Sobrepreço nos pagamentos com cartão de crédito

Resumo: O presente trabalho visa perquirir se é abusiva a diferenciação de preços nos pagamentos com cartão de crédito. Para tanto analisaremos os conceitos legais e doutrinários de práticas e cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor, bem como as características da formação do preço. Veremos também as características do cartão de crédito como meio de pagamento e suas implicações, pontuando ainda como as decisões judiciais no Superior Tribunal de Justiça têm abordado o assunto. Por fim, definiremos o cartão de crédito como pagamento a prazo e veremos que a vedação ao sobrepreço cria um subsídio cruzado e onera todos os consumidores, de forma que é necessário possibilitar a diferenciação dos preços.

Palavras-chave: Direito do consumidor. Cartão de crédito. Diferença de preços. Prática abusiva.

Sumário: Introdução. 1 Cláusulas e Condutas Abusivas no Direito do Consumidor. 1.2 Vantagem Manifestamente Excessiva ou Desvantagem Exagerada. 1.3 Abusividade na Formação ou Elevação de Preços. 1.4 Abusividade na Discriminação entre Consumidores. 2 A Formação do Preço pelo Fornecedor. 2.1 O Cartão de Crédito como Meio de Pagamento. 3 Análise de Decisões Judiciais sobre o Tema. 4 Inexistência de Prática abusiva na Diferenciação de Preços para Pagamentos com Cartão de Crédito. 4.1 Sobrepreço nas Compras com Cartão de Crédito, Função Social Do Contrato e Liberdade Negocial. Conclusões. Referências.

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INTRODUÇÃO

É inegável que vivemos um novo mundo de relações virtuais ou digitais, no qual as pessoas se comunicam pelas redes sociais, fazem ligações com vídeo, pedem comida e chamam o táxi pela internet.

Nesse mesmo mundo novo, as relações entre consumidores e fornecedores sofreram uma verdadeira reviravolta com a utilização da internet, seja para os sites de venda ou para a atração dos consumidores por anúncios direcionados.

Acompanhando essa evolução, surgiu um meio de pagamento que se amolda perfeitamente a esta realidade, pois pode ser usado tanto presencialmente quanto virtualmente: é o cartão de crédito.

O cartão de crédito é hoje um dos meios de pagamento mais utilizados, tendo conquistado espaço no comércio em razão da sua praticidade e segurança, o que o levou a ser o substituto do cheque.

Entretanto, a utilização deste meio de pagamento tem um custo, que é o da intermediação feita pelas administradoras de cartões, sendo que estas cobram tanto dos comerciantes (taxas de administração), quanto dos clientes (anuidades).

Desta forma, este custo, de algum modo, deve ser considerado na utilização dos cartões de crédito, seja pelos consumidores, seja pelos fornecedores. No que tange aos fornecedores, a existência de mais um custo entra na composição do preço final das mercadorias ou serviços, de forma que, no final das contas, quem paga é o consumidor.

Ao analisar este espectro, muitos órgãos de defesa do consumidor, especialmente Procons e até mesmo decisões judiciais, têm entendido pela impossibilidade do fornecedor conceder abatimento no preço para o consumidor que efetuar o pagamento em espécie.

Mesmo assim, muitos fornecedores têm mantido este tipo de conduta de conceder descontos para os pagamentos em dinheiro, especialmente lojas virtuais e pequenos varejistas.

Desta forma, o nosso trabalho pretende analisar em que medida a diferenciação do preço nos pagamentos com cartão de crédito pode ser uma conduta abusiva do fornecedor.

Neste espeque, nosso objetivo será demonstrar que o sobrepreço nas compras com cartão de crédito não é abusivo, pois trata-se de diferenciação legítima entre consumidores que utilizam meios de pagamentos distintos, o que sempre foi aceito no nosso ordenamento jurídico e, especialmente, nas práticas comerciais.

Além disso, a vedação ao sobrepreço gera uma elevação dos serviços e mercadorias, que são arcados por todos os consumidores, indistintamente, e, principalmente, pelos de mais baixa renda, que não utilizam cartão de crédito.

Desta forma, a proibição da diferença de preço é que se afigura como abusiva, pois impõe ao consumidor que não utiliza cartão, que arque com os custos do mesmo.

Para tanto, detalharemos o conceito de práticas e cláusulas abusivas, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, em confronto com a liberdade do fornecedor para a formação do seu preço final e analisando o que é o pagamento com o cartão de crédito (pagamento à vista ou a prazo).

Para trilharmos esse caminho, deveremos analisar detidamente o que a legislação prescreve e a doutrina entende por abusividade nas condutas dos fornecedores em face do Código de Defesa do Consumidor, tentando discernir em qual espécie específica poderíamos enquadrar a diferenciação dos preços em razão de diferentes formas de pagamento. Ainda, teremos de verificar como o Código regula as variações de preços.

Após, vamos nos deter na formação de preços pelo fornecedor. Por lógico, não iremos abordar todo o tema, posto que matéria controversa e extensa nas ciências da Economia e da Administração, cabendo-nos apenas entender, em breves linhas, como os custos do comerciante influenciam na composição do seu preço final e se seria possível retirar dessa composição os custos de taxa de administração das companhias de cartão de crédito.

Ainda, vamos estudar um pouco dos conceitos e definições do cartão de crédito, bem como da sua posição no mercado atual, tentando por fim entender se a sua utilização encerra um pagamento à vista ou a prazo. Neste ponto, veremos que a análise das relações jurídicas do sistema contratual do cartão de crédito permite que o consumidor exija do fornecedor o cumprimento de uma cláusula que este firmou apenas com a administradora.

Na sequência, analisaremos as decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, as quais ilustram bem a controvérsia, pontuando os argumentos contra e a favor da abusividade.

Por último, vamos analisar diretamente o tema da vedação ao sobrepreço nas compras com cartão de crédito, demonstrando que o subsídio cruzado criado por esta é prejudicial aos consumidores, notadamente aos mais carentes e que não utilizam cartões de crédito, sendo benéfica, exclusivamente, para a indústria do cartão de crédito.

Assim, iremos ponderar se deverá prevalecer a necessidade de engessar os custos do fornecedor ou a liberdade de iniciativa, que possibilita a consumidores e fornecedores buscarem as melhores condições para a condução dos seus negócios. Ainda, iremos ponderar como a função social do contrato pode ser utilizada como fundamento para afastar qualquer cláusula contratual em sentido diverso, pois que em confronto com o espírito do Código de Defesa do Consumidor, bem como da melhor prática para a sociedade.

Para chegar a tanto, utilizaremos a pesquisa bibliográfica como fonte principal, através de livros, revistas especializadas, legislação, textos da rede mundial de computadores e jurisprudência nacional.

Tentaremos, sempre que possível, utilizar uma abordagem relacionada à legislação vigente, de forma a demonstrar que as ideias esposadas têm cabimento dentro do direito positivo.

Para orientar o leitor, utilizaremos a sigla CDC como sinônima de Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90); também utilizaremos a expressão condutas abusivas como sinônima de práticas abusivas e esta como gênero do qual as cláusulas abusivas são espécie. Ainda, utilizaremos a abusividade como adjetivo referente a práticas abusivas.

As traduções existentes no texto foram livremente feitas por nós, assim como os grifos das citações correspondem aos originais.

1   CLÁUSULAS E CONDUTAS ABUSIVAS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990) inaugurou uma nova forma de codificação, com a característica da primazia principiológica e prevalência das cláusulas gerais, com conceitos indeterminados.

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Desta forma, o CDC dá maior ênfase aos princípios, alguns explicitamente expressos no artigo 6º, bem como ao uso de cláusulas com conceitos a serem complementados, seja pela própria legislação, seja pela interpretação jurídica, seja pela prática das relações de consumo.

Assim, sintetiza Cláudia Lima Marques, que o Código de Defesa do Consumidor “adaptou conceitos indeterminados, incluiu normas narrativas e cláusulas gerais, e assim permitiu um desenvolvimento jurídico original do direito privado brasileiro (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 51).

Com o mesmo entendimento, Ricardo Maurício Freire Soares, ainda pontua que essa forma de codificação adotada no CDC permite ser possível regular situações que não podiam ser previstas quando da elaboração do texto legal, dada a generalidade e amplitude do conteúdo normativo. Ainda, pontua o mesmo autor que este tipo de Código impõe ao jurista o competente manejo dos princípios para alcançar a plenitude dos objetivos almejados pelo Direito do Consumidor (SOARES, 2009, p. 67-68).

Os artigos 39 e 51 do referido Código são exemplares neste sentido, pois apesar de listarem em seus incisos as práticas e cláusulas abusivas, esse rol é exemplificativo e permeado de cláusulas gerais com conceitos indeterminados.

Importante ressaltar que é forte o entendimento de que prática abusiva é o gênero do qual são espécies todas as condutas do fornecedor em “desconformidade com os padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor” (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 216). Desta forma, incluem-se como práticas abusivas não só aquelas listadas no artigo 39 do CDC, mas também a publicidade abusiva ou enganosa, os acidentes de consumo, as cláusulas abusivas, a cobrança irregular de dívidas, as irregularidades em bancos de dados, entre outras (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 217).

Assim, os artigos 39 e 51 do Código de Defesa do Consumidor prescrevem que, além dos tipos previstos em seus incisos, também são consideradas abusivas outras práticas ou condutas, sem determinar quais seriam. Tal estilo de redação abre duas possibilidades, a primeira de outras leis ou normas inferiores tipificarem situações abusivas e a segunda de que o próprio aplicador do direito considere a conduta ou cláusula abusiva por infringir o sistema de valores e princípios do próprio CDC.

Além disso, nos próprios incisos dos mencionados artigos vemos textos permeados de expressões indefinidas ou com muitos sentidos, como o inciso V do artigo 39 que prescreve ser abusiva a prática de “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva” (BRASIL, 1990) ou o inciso IV do artigo 51, pelo qual são abusivas as cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” (BRASIL, 1990).

Desta forma, vemos que a abusividade das condutas do fornecedor é um conceito inaugurado pelo Código de Defesa do Consumidor, o qual não é, em sua totalidade, exaurido na legislação.

Por isso, a doutrina tem se debruçado sobre o tema para tentar estabelecer as balizas hermenêuticas para a compreensão do que é, ao final, abusivo.

Algum consenso se formou, no início, no sentido de que a abusividade seria um conceito derivado do abuso de direito da doutrina civilista, ou seja, decorrente do uso inapropriado ou excessivo de uma prerrogativa que a transforma em ilícito (BENJAMIN, MARQUES, MIRAGEM, 2006, p. 695).

Ocorre que a evolução do Direito do Consumidor não conseguia compatibilizar a figura do abuso do direito, a qual é fundada na apreciação subjetiva, dependente do dolo ou culpa (BENJAMIN, MARQUES, MIRAGEM, 2006, p. 697) com a sistemática do Código que visa a facilitar a defesa do consumidor. Por isso, passou-se a adotar o critério da boa-fé objetiva para conectar a abusividade com uma perspectiva objetiva, observando-se mais a manifestação, os efeitos da conduta, mais do que a sua intenção.

Neste sentido Rizzato Nunes pontua que “a exigência de boa-fé objetiva como princípio (art. 4º, III [do Código de Defesa do Consumidor]) e como norma (inciso IV) é verdadeira cláusula a ser observada nos contratos, de sorte que outras cláusulas abusivas podem ser identificadas” (2007, p. 582).

Eneas de Oliveira Matos explica que a jurisprudência tem entendido que a abusividade configura-se claramente nas condutas que impingem uma desproporção entre as obrigações ou dificultam o exercício de direitos pelo consumidor (2009, p. 145).

Ainda, o mesmo autor, ao adentrar no tema de verificação da abusividade, elenca, com base também nos estudos de Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva, os seguintes critérios: desequilíbrio econômico, abuso de direito, desequilíbrio significativo entre direitos e deveres e boa-fé objetiva. Ressalte-se que a abusividade caracterizar-se-á pela infração a qualquer um dos critérios listados (MATOS, 2009, p. 147-151).

Exemplo significativo da abusividade é a cláusula de eleição de foro, a qual é prática antiga e permitida pela lei, entretanto revela-se desproporcional na prática consumerista quando impõe ao consumidor que este tenha de propor a ação em comarca distante da qual reside, dificultando ou impossibilitando o seu acesso à justiça[1].

Não obstante o exemplo trazido, há casos em que o abuso da conduta ou da cláusula não são explícitos, necessitando de profunda análise do caso concreto para identificá-los; talvez por isso que o Código de Defesa do Consumidor tenha deixado aberto o rol, bem como possibilitado ampla interpretação dos seus dispositivos.

Assim são os casos que envolvem bens de primeira necessidade ou relacionados à saúde, para os quais não se admite limitação da responsabilidade do fornecedor ou mesmo imposição de prazos ao consumidor, posto que tais seriam extremamente danosos, logo desproporcionais, ao consumidor.

Desta forma, parece-nos que, para entendermos uma cláusula ou conduta como abusiva, será necessário caracterizar que a mesma evidencia uma desproporção entre obrigações ou que dificulte ou impossibilite o exercício de direitos pelo consumidor, violando a boa-fé objetiva.

1.2 VANTAGEM MANIFESTAMENTE EXCESSIVA OU DESVANTAGEM EXAGERADA.

Segundo nos informa Antônio Herman Benjamin, estas duas previsões, a prática de exigir vantagem manifestamente excessiva e a cláusula que coloca o consumidor em desvantagem exagerada, não são apenas expressões que se aproximam, mas sim sinônimas, devendo ambas serem interpretadas à luz do que dispõe o § 1º do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 223).

O referido parágrafo elenca balizas hermenêuticas a serem utilizadas para a análise da abusividade de cláusula contratual, listando a ofensa aos princípios fundamentais do sistema jurídico, a restrição de direitos ou obrigações inerentes ao contrato que ameace o objeto ou o equilíbrio contratual e a onerosidade excessiva.

Analisando estas disposições, Leonardo Bessa pondera que a boa-fé objetiva deverá nortear a aplicação das mesmas, trazendo-se ao exame as três funções da boa-fé objetiva (critério hermenêutico, criação de deveres anexos, limitação do exercício de direitos), para poder se concluir da existência ou não de prática ou cláusula abusiva (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 300).

Mais especificamente no tema que é objeto deste estudo, o mesmo autor pondera que o desequilíbrio contratual relativo à desvantagem exagerada veda abusos na determinação de preços, mesmo partindo do pressuposto que o contrato é objeto de obtenção de lucro pelo fornecedor; contrapondo, ainda, que este desequilíbrio há de ser analisado no caso e se manifestar desproporcional (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 301).

Sendo assim, privilegiar a boa-fé objetiva é fazer com que as partes se comportem de forma a cooperarem entre si e cumprirem aquilo que delas se espera, seguindo assim o standard de lealdade, ou seja, o conteúdo da conduta ou do contrato deve estabelecer obrigações proporcionais às expectativas criadas[2].

Analisando a boa-fé objetiva, Menezes Cordeiro (2011, p. 778), pontua que a sua diferença para a boa-fé subjetiva, é que nesta busca-se a intenção da parte quando do negócio jurídico, enquanto que naquela tutela-se a confiança que a parte deposita na outra em razão do contrato e do seu funcionamento, da forma como irá se cumprir o avençado.

Já Orlando Gomes, antecipando o que hoje se entende por boa-fé objetiva, conceitua a boa-fé:

“Ao se prescrever que as partes de uma relação obrigacional oriundas de contrato precisam proceder de boa-fé, quer dizer que lhes cumpre observar comportamento decente, que corresponda à legítima expectativa do outro contratante. O devedor há de ajustar sua conduta ao tipo abstrato presumido pela lei à base dos princípios da correção interindividual que se refletem amplamente na consciência comum. (…)

Entende-se, finalmente, que o devedor obriga-se não somente, pelo que está expresso no contrato, mas, também, por todas as consequências que, segundo os usos, a lei e a equidade, derivam dele” (GOMES, 2006, p. 108).

Com esse entendimento, Luís Renato Ferreira da Silva pondera que:

“A presença de cláusula abusiva certamente reflete no equilíbrio contratual na medida em que, quando ela mesma vier a ser invocada, gerará para o beneficiário uma vantagem excessiva, ainda que a princípio não ilícita, rompendo com a expectativa normal do modo de distribuir os ônus e encargos da relação contratual” (DA SILVA, 2009, p. 26-27).

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Neste sentido, parece-nos que só poderemos caracterizar a vantagem excessiva ou exagerada se a conduta do fornecedor ou a cláusula contratual demonstra, objetivamente, um ganho excepcional deste ou um ônus anormal para o consumidor. Ressaltamos que esta demonstração há de ser objetiva, ou seja, evidenciada na manifestação concreta do contrato ou conduta, a qual, na maioria das vezes, se dá pelo preço (e pela sua elevação).

Deverá também restar caracterizada a quebra da expectativa do consumidor em relação à proporcionalidade das prestações, como medida de aferição da desproporção da obrigação.

1.2 ABUSIVIDADE NA FORMAÇÃO OU ELEVAÇÃO DE PREÇOS.

O inciso X do artigo 39 do CDC prescreve que é uma conduta abusiva a elevação de preços pelos fornecedores, sem justa causa (BRASIL, 1990).

Este inciso tem sido utilizado como base na repressão à concessão de descontos para pagamento em espécie, sob a justificativa que o desconto para o pagamento em espécie, significa, a contrário senso, a elevação do preço para quem paga utilizando o cartão de crédito.

Por isso, é essencial entender a lógica deste inciso, a qual nos parece apontar em sentido diverso, senão vejamos.

Inicialmente, temos que atentar que o referido inciso foi incluído no Código de Defesa do Consumidor pela Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, a qual “dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica” (BRASIL, 1994), também chamada de lei antitruste, a qual também regulava o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).[3]

Sendo assim, parece-nos que o referido inciso X, do artigo 39 do CDC visa, primordialmente, reprimir elevações de preço praticadas por fornecedores em situação de dominação ou controle de mercados, tais como monopólio, oligopólio e cartéis.

Também, esse dispositivo é aplicado em casos de escassez de produtos, decorrentes de calamidade ou desastres naturais, como, por exemplo, no caso de um fornecedor que triplica o preço de material de construção após um desastre que destrua grande parte dos imóveis da cidade.

Veja-se que neste exemplo não há, a princípio, um abuso de posição dominante de mercado pelo fornecedor, mas há, por outro lado, a elevação excessiva e desproporcional do preço, caracterizando-se assim a abusividade pela desproporção, como já vimos.

Necessário ponderar que, para os economistas, a noção de “justa causa” para elevação de preços é fortemente rechaçada, dado que o preço pode flutuar de acordo com a simples alteração da oferta e da demanda (PFEIFFER, 2009, p. 213).

Com a interpretação mais ampla, Antônio Herman Benjamin, analisa o dispositivo pelo fundamento da elevação do preço, de forma que o fornecedor precisa justificar os aumentos, para que estes não sejam abusivos, arbitrários ou leoninos, exemplificando que numa situação de estabilidade, a elevação do preço superior ao índice inflacionário cria uma presunção relativa de abusividade (BENJAMIN, BESSA, MARQUES, 2009, p. 228).

Desta forma, parece-nos que este inciso do CDC está ligado a uma elevação substantiva do preço, a qual se apoia em uma situação de prevalência do fornecedor (posição dominante) ou de necessidade do consumidor (seja pela existência de um contrato cativo ou pela necessidade do bem).

Concordando com este entendimento, Roberto Pfeiffer pondera que:

“Reveste-se de enorme importância o estabelecimento de parâmetros para a caracterização da figura da elevação sem justa causa do preço, uma vez que a lógica de fixação de preços é muito complexa, nem sempre tendo relação com abusos. Por exemplo, pode decorrer simplesmente de um aumento da procura ou de uma queda na produção (restrição da oferta). Consequentemente, parece ser mais seguro relacionar a elevação sem justa causa com a prática de abuso de poder econômico, sendo, assim, importante analisar os requisitos estabelecidos no artigo 21, parágrafo único da Lei nº 8.884/94” (PFEIFFER, 2009, p. 214).[4]

Já Bruno Miragem (2016), não obstante reconheça a proximidade entre as disposições legais (defesa da concorrência e defesa do consumidor), pontua que a disposição do CDC não depende de um abuso de posição dominante de mercado, posto que pode ocorrer no abuso da liberdade negocial do fornecedor, “segundo a dogmática própria das práticas abusivas na legislação de defesa do consumidor”, ponderando ainda que, por outro lado, existirão aumentos excessivos que não serão abusivos, acaso exista justa causa.

Ainda, acrescenta o autor que o abuso na elevação do preço sem justa causa, normalmente é acompanhado pela deslealdade do fornecedor com o consumidor, seja pela dissimulação, utilizando-se uma justificativa válida, mas excedendo-a na quantificação, seja pelo aproveitamento da posição de vulnerabilidade ou catividade do consumidor (MIRAGEM, 2016).

Diante destes argumentos, parece-nos que o inciso X do artigo 39, do Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado nos casos em que o fornecedor se vale de uma posição dominante frente ao consumidor (seja pelo domínio do mercado ou pela vulnerabilidade) para impingir a este preço que destoa da média do mercado ou aumento com falsa justificativa.

1.3 ABUSIVIDADE NA DISCRIMINAÇÃO ENTRE CONSUMIDORES

Outro fundamento que tem sido levantado para a proibição da diferenciação de preços nos pagamentos com cartão de crédito são os incisos X e XI do artigo 36 da Lei 12.529/11, os quais prescrevem, respectivamente que:

“X – Discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços.

XI – recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais” (BRASIL, 2011).

Com redação similar, também são invocados os incisos II e IX do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor:

“II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;

IX – recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;” (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994) (BRASIL, 1980).

Novamente, vemos dispositivos da defesa da concorrência trazidos para a defesa do consumidor. É lógico que esses dois ramos do direito se conectam e devem ser interpretados conjuntamente, até certo ponto, inclusive pela similitude das redações transcritas.

Entretanto, da redação dos dispositivos transcritos, o que nos transparece é o impedimento aos fornecedores de discriminar os consumidores, ou seja, o fornecedor deverá atender igualmente os seus clientes, não podendo diferenciá-los, salvo sob aspectos objetivos.

Neste sentido, se dois consumidores se propõem a adquirir a mesma mercadoria com a mesma forma de pagamento, não pode o fornecedor impor preços diferenciados, por inexistir aspecto objetivo de diferenciação.

Com o mesmo entendimento, Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer sintetiza:

“O que se visa a evitar é a discriminação, ou seja, que o fornecedor se recuse a vender a um determinado consumidor (em razão de uma antipatia ou desavença) ou a uma categoria de consumidores (por exemplo, para prestigiar clientes habituais em detrimento de um consumidor eventual)” (PFEIFFER, 2009, p. 195).

Para esclarecer, o citado autor ainda complementa que, por exemplo, se o fornecedor se propõe a aceitar o pagamento a prazo, para recusar tal concessão a algum consumidor, deverá explicitar as razões para tal de forma objetiva (PFEIFFER, 2009, p. 196).

Por outro lado, se um consumidor propõe o pagamento em espécie e o outro o pagamento em cartão de crédito, parece-nos clara a diferença entre estes dado que as formas de pagamento são distintas, por mais que se queira dizer que se assemelham.

Neste ponto, será crucial entender se o pagamento através de cartão de crédito é ou não diferente do pagamento em espécie e em que medida esta distinção pode ser utilizada pelo fornecedor, o que faremos no próximo capítulo.

Por outro lado, parece-nos que, se consideradas formas de pagamento iguais, correta é a utilização dos incisos X e XI da supracitada lei de defesa da concorrência e os II e IX do CDC para impedir a prática de diferenciar o preço ou conceder desconto, posto que estar-se-ia dando condições distintas para consumidores em situação igual.

2 A FORMAÇÃO DO PREÇO PELO FORNECEDOR

Conforme já advertimos, não será objeto deste tópico analisar as teorias existentes sobre a formação do preço e suas oscilações, posto que matéria por demais extensa e complexa, merecedora de um estudo exclusivo para tanto, queremos, entretanto, entender, em linhas gerais, como se forma o preço final para o consumidor e como os custos do fornecedor influenciam nesta formação.

De início, é necessário pontuar, como informam BALDÃO e ROCHA (2012), que a formação de preços tem vasta literatura voltada para a indústria, carecendo de uma maior bibliografia para o segmento varejista[5].

Ainda assim, dentre a maior parte dos que se debruçam sobre o tema, existe uma concordância de que, na formação do preço do varejo, dois métodos são os principais: o financeiro ou de custos (que se baseia no cálculo do preço pelos custos do fornecedor) e o mercadológico (que se baseia no reflexo que o preço causa nos clientes, seja pelo valor percebido pelos clientes ou pela concorrência) (ABREU et all, 2006).

Com relação ao método financeiro, este se caracteriza pela aplicação, sobre o preço de custo de uma dada mercadoria, de um marcador (mark-up), que determina o preço de venda. Esta taxa de marcação já considera, de uma forma proporcional[6] os custos sobre a venda (impostos), bem como custos fixos (aluguel, funcionários) e a margem de lucro (SPERLING, 2008).

Já o método mercadológico tem por base a fixação do preço a partir da análise de qual o valor que o cliente atribui àquela mercadoria, bem como comparando o quanto praticado pela concorrência (ABREU et all, 2006).

Ocorre que, utilizados com exclusividade, cada método tem uma fragilidade por excluir o outro, por isso, WERNKE (2005, p.47) pondera a necessidade de mesclar os dois métodos, podendo assim o comerciante saber, pelo mark-up, qual o preço mínimo que pode vender sem prejuízo e pelo mercadológico qual o preço que torna o seu produto competitivo.

Vemos assim, que a base da precificação pelo fornecedor são os seus custos. Exemplificando quais custos entram na composição do mark-up, WERNKE (2005, p. 53), inclui a “taxa cobrada pela administradora do cartão de crédito nas vendas com essa ferramenta”.

Sendo assim, ainda que nem todas as vendas sejam realizadas com o cartão de crédito, o fornecedor, ao elaborar a sua marcação, deverá diluir no preço de todos os clientes, os custos referentes às taxas que pagar nas vendas em que efetivamente forem utilizados cartões de crédito.

Frise-se que o mark-up é uma metodologia de precificação típica do varejo, ou seja, que considera todos os consumidores como iguais, estipulando um preço único para todos eles.

Por isso, por mais que a ideia de o fornecedor repassar os custos da sua atividade para o consumidor seja rechaçada por alguns, na prática, isso sempre acontece, pois, a precificação imprescinde de agregar as despesas (como um todo) dos custos do fornecedor ao preço.

Entretanto, adverte Bruno Miragem que:  

“Isso não significa que o fornecedor deva ser mero repassador de custos. A rigor, seu propósito racional deverá ser sempre o de oferecer produtos e serviços de qualidade com preços competitivos, vale dizer, que tenha aptidão para atrair o consumidor” (MIRAGEM, 2016).

Ainda pondera o referido autor que, nosso sistema econômico é, constitucionalmente, fundado na livre iniciativa e defesa da concorrência, de modo que os fornecedores têm liberdade para gerenciarem seus negócios, ressalvadas as exceções previstas em lei.

Por outro lado, como veremos adiante, toda vez que a legislação impõe mais um custo ao fornecedor, este imediatamente os repassa aos consumidores, sendo que, no caso da vedação ao sobrepreço nas vendas com cartão, esse repasse será feito a todos os consumidores, em benefício daqueles que usam cartão.

Pelo exposto, resta claro que ao formular os seus preços, o fornecedor já inclui neles todos os custos da atividade, inclusive os provenientes de taxas de administradoras de cartão de crédito, não havendo, para o consumidor, como afastar esse repasse, senão através de concessão de descontos quando do pagamento sem cartão de crédito.

2.1 O CARTÃO DE CRÉDITO COMO MEIO DE PAGAMENTO

O cartão de crédito é hoje um dos meios de pagamento mais utilizados no mercado de consumo. Segundo relatório do Banco Central, foram 3,3 bilhões de transações em 2010, para 175,4 milhões de cartões ativos (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 7). Sua segurança e praticidade fizeram-no desbancar o cheque, que hoje é de rara aceitação no mercado varejista.

É difícil formular um conceito exato do que seja o cartão de crédito, mas a noção de defini-lo como um conjunto de contratos ou sistema operacional parece-nos mais adequada. Desta forma, tem-se entendido o cartão de crédito como um sistema operacional que pretende captar uma clientela, pela oferta de facilitação, segurança e desregulamentação do crédito nessa clientela (AVELAR, 2014).

Com entendimento similar, Gerson Branco (1998, p. 78) sustenta que tentar entender o conjunto das relações de forma separada torna o entendimento impreciso, em razão da interdependência que existe entre os contratos, de forma que a melhor noção é a de sistema.

Dessa forma, fica mais fácil perceber que, em verdade, o contrato de cartão de crédito encerra de três a quatro relações jurídicas, quais sejam: a relação do fornecedor que se afilia; a relação do consumidor que porta o cartão; a relação da administradora de cartão com a instituição financeira e, a relação que fecha o ciclo, o contrato entre fornecedor e consumidor.

Na relação com o fornecedor, a administradora se compromete a honrar com as compras efetuadas pelos consumidores portadores dos cartões, desde que verificada a regularidade das operações. É de se ressaltar que a compra será paga no prazo de 30 dias ao fornecedor (salvo se for parcelada, o que implica em recebimento parcelado), independentemente do pagamento do consumidor.

Desta forma, o risco do fornecedor afiliado passa a ser apenas o de fraude no uso do cartão, sendo que mesmo esse risco tem sido mitigado pelas administradoras com o uso de novas soluções de segurança (senhas, cartões com chip).

Por esta afiliação, os fornecedores pagam um valor fixo pelo aluguel do equipamento destinado à realização das transações e mais um percentual sobre cada compra, este de 2,84% em média (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 7).

Na relação com o consumidor, a administradora concede àquele um limite crédito rotativo pré-aprovado, com o qual se pode efetuar compras nos fornecedores afiliados, sendo determinado um dia específico para o pagamento das compras (data de vencimento da fatura). Com isso, o consumidor tem, além da praticidade e segurança de não portar dinheiro, a possibilidade de organizar seus gastos, pagando-os sempre na data que lhe for mais interessante.

É importante ressaltar que o consumidor ainda tem a possibilidade de não efetuar o pagamento total da fatura na data aprazada, desde que efetue, ao menos, o pagamento de um determinado percentual (valor mínimo), sendo que o restante do valor devido é financiado por meio de um crédito também rotativo, para pagamento na próxima fatura.

É nesta última transação que pode se inserir a instituição financeira[7], concedendo este crédito rotativo, o qual, usualmente, tem as maiores taxas de juros do sistema financeiro.

Pelo direito ao uso do cartão, o consumidor paga um valor de anuidade, a qual normalmente é cobrada mensalmente, e os juros se utilizar da prerrogativa de pagamento inferior ao devido[8].

A consolidação desse emaranhado de relações em um sistema relativamente simples e que permite a utilização do crédito pelos portadores de cartão sem dificuldade e com segurança para os fornecedores, parece-nos ser o motivo do sucesso desta ferramenta, dado que no nosso sistema econômico, a facilitação da circulação da riqueza é sempre bem vista, posto que aumenta a eficiência do sistema como um todo.

A relação contratual que se estabelece entre a administradora e os estabelecimentos fornecedores é tipicamente empresarial/comercial, prevalecendo, assim, a autonomia da vontade contratual.

Neste particular é importante ressaltar que as administradoras incluem em seu contrato de afiliação que os estabelecimentos fornecedores deverão oferecer seus produtos e serviços pelo mesmo preço aos clientes que pagarem com cartão de crédito e em espécie. Neste sentido é, por exemplo, a Cláusula 8ª do Contrato de Credenciamento da Cielo, que prescreve que “o cliente se obriga a praticar as mesmas condições em todas as transações que realizar, independentemente do meio de pagamento” (CIELO, 2013).

Não obstante essa cláusula ser, a princípio, válida na relação contratual entre administradoras e estabelecimentos, poder-se-á questionar a eficácia da mesma com relação aos consumidores, dada a existência de um sistema contratual (ou cadeia de fornecimento).

Neste sentido, seria possível obrigar o fornecedor a não diferenciar o preço, pois seu contrato de afiliação assim estabelece e pode o consumidor pedir a execução específica, ainda que não tenha sido parte direta neste contrato, mas é por ele diretamente afetado quando da relação consumo com o fornecedor e com a administradora de cartão de crédito.

Com essa linha de raciocínio, pondera Daniel de Avelar (2014) que o entendimento em contrário fere o quanto prescrito no Código de Defesa do Consumidor: “Esse tipo de disposição rompe com as ligações internas do sistema contratual do cartão de crédito, isolando as relações particulares como se as mesmas fossem autônomas e não interligadas”.

Entretanto, como veremos adiante, não obstante seja possível aplicar essa cláusula de vedação ao sobrepreço, ela não deverá ser imposta, pois violaria direitos básicos do consumidor, especialmente da igualdade, além da função social do contrato.

Ainda no tocante às relações entre administradora e fornecedor afiliado, é importante destacar que existe previsão contratual, na maioria dos contratos, de que em caso de fraude no uso do cartão, as compras registradas pelo fornecedor não serão pagas pela administradora. Esse ponto mitiga um pouco a segurança desse meio de pagamento, mas tem sido remediada com todas as medidas de segurança adotadas (uso de senha, inclusão de chip no cartão, dentre outras) (CIELO, 2013).

Já nas relações entre consumidor e administradora, bem como com o fornecedor afiliado, é pacífica a incidência do Código de Defesa do Consumidor.

No que tange à realidade do mercado de cartões de crédito, vemos que este se caracteriza por uma concentração entre as três maiores instituições financeiras do país, o que tem determinado também uma falta de competitividade no setor, bem como a não redução dos custos. Veja-se que Bradesco, Banco do Brasil e Itaú detêm, juntos, o controle da Cielo e da Redecard, que respondem por mais de 80% do mercado, segundo relatório do Banco Central sobre o tema (2011, p. 8).

Além disso, da forma como o sistema funciona, parece-nos que não há como entender a venda com cartão de crédito como à vista, dado que a conclusão do negócio fica condicionada à verificação de regularidade pela administradora, a qual ocorre à posteriori, bem como visto que o efetivo recebimento do valor pelo fornecedor só ocorre 30 (trinta) dias após a compra.

Neste sentido é o entendimento de Fran Martins (1976, p. 168), segundo o qual a venda à vista se caracteriza pelo recebimento da contraprestação no momento da tradição do produto, o que não ocorre no caso do cartão de crédito, no qual o efetivo recebimento pelo fornecedor só ocorre trinta dias depois da tradição.

Ainda acrescenta o referido autor que a própria gênese dos cartões de crédito se deu para possibilitar que ocorressem transações comerciais presentes com pagamentos futuros, as quais seriam garantidas pela administradora (MARTINS, 1976, p. 209).

Como já pontuamos no subitem anterior, este prazo para recebimento dos valores, para o fornecedor, representa um custo, qual seja o custo de não dispor do capital, já tendo realizado a venda, o qual se soma com os valores cobrados pelas administradoras (aluguel e percentual sobre as transações).

Pode parecer que estes custos são pequenos e não representam grande quantia quando divididos por todos os consumidores, porém o relatório do Banco Central sobre a Indústria de Cartões de Crédito estima uma transferência de renda anual de R$ 3,7 bilhões de reais para os usuários de cartões coletivamente (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 74).

Analisando individualmente, a transferência de renda é ainda mais alarmante, pois demonstra que os usuários de cartão recebem um subsídio de R$ 194,00 (cento e noventa e quatro reais) anuais dos consumidores que utilizam outros meios de pagamento (estes arcam, individualmente, com R$ 97,00). Ainda, considerando-se apenas as famílias de alta renda portadoras de cartão de crédito, o benefício recebido é de R$ 301,00 (trezentos e um reais) anuais (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 74).

Segundo o citado relatório, esse subsídio cruzado, que é a transferência dos custos das transações com cartão de crédito para todo o mercado, faz com que pessoas que não utilizam esse meio de pagamento arquem com os custos dele, posto que estes estão diluídos em todos os preços pela impossibilidade de diferenciação (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 64).

Segundo os economistas, o cartão de crédito é um meio de pagamento que tem uma eficiência diferente do pagamento em dinheiro ou em cheque. Desta forma, se a legislação iguala os preços entre todos os meios de pagamento, o custo dessa diferença de eficiência haverá de ser diluído para todos os consumidores.

Analisando a questão por outro ângulo, mas também com enfoque no preço final ao consumidor, Marcos Jorge e Wilfredo Maldonado (2013), utilizando modelos econômicos, demonstram que comparando dois cenários ideais hipotéticos em que um não permite o sobrepreço e outro permite, no cenário em que se permite, o preço médio das mercadorias é menor.

Diante disso, resta demonstrado que, ao permitir a diferenciação de preços permite-se que o fornecedor repasse ao consumidor o efetivo preço da transação, contrariando as suposições de que os fornecedores apenas criariam um preço maior (do que os atuais) para os cartões de crédito com a liberação do sobrepreço.

Assim, parece-nos que, em verdade, quem se beneficia da impossibilidade da diferenciação dos preços nos pagamentos com cartão de crédito são as administradoras, as quais podem vender os seus serviços, equiparando-os ao uso do dinheiro (o que é uma grande vantagem competitiva).

3 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE O TEMA

Para ficar ainda mais clara a controvérsia no tema, entendemos interessante analisar três decisões do Superior Tribunal de Justiça que explicitam bem os argumentos sobre o tema. As decisões foram escolhidas como exemplificativas do posicionamento do tribunal, que já foi em um sentido e, mais recentemente, reverteu-se, desta forma existem outras decisões com posicionamentos similares.

A primeira é o Agravo Regimental no Recurso Especial (AgRg no REsp) nº 1.181.256-AL, relatado pelo Ministro Humberto Martins (BRASIL, 2010). Nessa decisão, o Superior Tribunal de Justiça adotou a tese da livre iniciativa e autonomia privada e decidiu pela inexistência de ilegalidade na diferenciação de preços para venda com cartão de crédito.

O caso concreto tratava-se de discussão entre o Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de Alagoas contra o Estado de Alagoas, na qual aquele procurava assegurar-se da possibilidade de diferenciar preços entre compras com cartão de crédito, impedindo este de aplicar sanções em razão de tal diferenciação.

Nas instâncias ordinárias foi reconhecida a abusividade da prática, indeferindo-se o pleito do Sindicato.

Entretanto, como já pontuado, o Ministro Relator conheceu e deu provimento ao recurso, deferindo a tutela ao Sindicato, argumentando que:

“Não seria possível, pois, sem a existência de norma que proíba a majoração do preço de mercadoria nas vendas com cartão, aplicar multa ao comerciante que fizer tal diferenciação do valor à vista, pois "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º, II, da Constituição). (…)

Assim, descabe aplicar sanção ao comerciante que majorou o preço da mercadoria para a transação realizada com cartão de crédito em relação ao preço à vista, ante a inexistência de lei que proíba essa diferenciação” (BRASIL, 2010).

Vale ressaltar que, além da liberdade negocial, o Ministro também ponderou que o pagamento com cartão de crédito é pagamento a prazo.

Trazemos essa decisão como exemplo, pois a mesma representava o entendimento dominante do Superior Tribunal de Justiça à época, logo admitindo-se a diferenciação do preço. Neste sentido são estas decisões do Superior Tribunal de Justiça: REsp 827.120⁄RJ, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 18.5.2006, DJ 29.5.2006, p. 223; REsp 229.586⁄SE, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ 21.2.2000.

Entretanto, julgando o Recurso Especial nº 1.133.410/RS, o relator, Ministro Massami Uyeda, firmou um entendimento relevante.

Na questão fática, o recurso tratava de uma ação coletiva promovida pelo Ministério Público contra uma rede de postos de combustíveis, na qual se pedia que não fosse permitida a diferenciação de preços entre pagamentos em espécie e com cartão de crédito.

Julgando o recurso, o Ministro (BRASIL, 2010), que foi acompanhado por unanimidade, entendeu que o pagamento com o cartão de crédito gera a quitação imediata da obrigação, caracterizando-se assim como cessão de crédito pro soluto[9]. Sendo assim, é pagamento à vista e por isso não poderá ser diferenciado do pagamento em espécie.

Ainda ponderou o Ministro que, quando o fornecedor recebe uma transação, a administradora de cartão de crédito assume todos os riscos (de fraude e inadimplemento), de forma que inexiste incerteza ao fornecedor sobre o recebimento.

Noutro giro, o Ministro pontuou que o fornecedor não é obrigado a aceitar o cartão de crédito como meio de pagamento, de forma que, quando o faz, aufere as vantagens e clientela que este traz, devendo assim também arcar com os ônus e não os repassar ao consumidor (BRASIL, 2010).

Vemos assim que o Ministro fundou sua decisão em dois sólidos pilares, quais sejam: a escolha dos meios de pagamento é direito do fornecedor e o cartão de crédito é pagamento à vista.

Ocorre que essa decisão passou a nortear os julgados do Superior Tribunal de Justiça que a sucederam, inclusive o REsp nº 1.479.039/MG, o qual foi relatado pelo Ministro Humberto Martins, tendo o mesmo revisto o seu posicionamento anterior e julgado abusiva a diferenciação de preços para pagamentos com cartão de crédito (BRASIL, 2014).

Há de se ressaltar que já houve tentativa anterior de suscitar a divergência, que ocorreu nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.181.256/AL, o qual acabou não conhecido, pois os Ministros entenderam que as circunstâncias de fato não autorizavam a divergência.

Em suma, o caso do processo tratava de multa aplicada pelo Procon de Alagoas por diferenciação de preços para pagamento com cartão de crédito, enquanto que o paradigma foi o já mencionado Recurso Especial 1.133.410/RS, no qual se discutia a legalidade desta conduta frente aos consumidores (BRASIL, 2012).

Não obstante a igualdade do direito discutido, os Ministros entenderam que, pelas diferenças apontadas nos casos concretos, descaberia a divergência, do que discordaram os Ministros Massami Uyeda e Arnaldo Esteves Lima (BRASIL, 2012).

Também concordamos que o Superior Tribunal, no caso, perdeu a oportunidade de melhor pacificar o tema, em um julgamento de Sessão, de forma a estabilizar a matéria.

Pelo exposto, parece-nos que a tendência do Superior Tribunal de Justiça é firmar a posição pela existência de abusividade na diferenciação de preços para pagamentos com cartão de crédito, fundando-se, primordialmente, na caracterização do pagamento com cartão de crédito como pagamento à vista.

4 INEXISTÊNCIA DE PRÁTICA ABUSIVA NA DIFERENCIAÇÃO DE PREÇOS PARA PAGAMENTOS COM CARTÃO DE CRÉDITO

Diante de tudo o que analisamos, resta claro que a vedação à diferenciação dos preços para pagamentos com cartão de crédito funda-se em três principais premissas: impossibilidade de imposição dos custos e riscos ao consumidor, aferição de vantagem excessiva pelo fornecedor e equiparação do cartão de crédito ao pagamento à vista.

Com relação à impossibilidade de imposição dos custos e riscos ao consumidor, tal premissa se mostra equivocada, posto que este é o mote do nosso sistema econômico.

Como vimos, os fornecedores, para formarem seus preços, têm como pedra fundamental a análise de custos e ponderação dos mesmos na elaboração do mark up. Sendo assim, se a aceitação dos cartões de crédito gera custo, este estará inserido na marcação.

Poder-se-á ponderar que o fornecedor não é obrigado a aceitar todos os meios de pagamento, exceto dinheiro, porém, nesta hipótese, somente os fornecedores que não aceitarem cartão de crédito poderão reduzir seus preços, mantendo-se a já demonstrada transferência de renda e beneficiando-se, injustamente, aqueles consumidores que utilizam o cartão de crédito e, principalmente, os de mais alta renda.

Vale lembrar que, em dezembro de 2010, existiam 87,9 milhões de cartões de crédito ativos, com 3,3 bilhões de transações (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 7), o que representa uma fatia significativa de consumidores que atraem o interesse de todos os fornecedores.

Por isso, se a legislação impede que o fornecedor repasse o custo apenas aos consumidores que utilizarão o cartão, aquele será repassado a todos os consumidores, logicamente de forma mais diluída, mas implicando no subsídio cruzado.

Quanto à vantagem exagerada, também a mesma não tem se mostrado tão desproporcional.

Isto porque, o que se tem visto, na diferenciação de preços, é uma diferença de 3% a 5% (MARQUES, 2013), o que não pode ser considerado excessivo nem desproporcional. Devemos ponderar ainda que a diferenciação de preço não pode ser considerada desproporcional se fundada em justo motivo, como detalhamos supra.

Por isso, se a diferenciação atende à diferença média de custo entre o recebimento em espécie e o recebimento por cartão, sendo que este não só implica na taxa cobrada pela administradora, mas também a espera pelo efetivo recebimento dos recursos, não haveria desproporção ou excessividade.

Noutro giro, caso algum fornecedor comece a diferenciar excessivamente os preços, poderá a Justiça ser instada a analisar o caso e, demonstrada a desproporção, aplicar as sanções cabíveis.

É o caso, por exemplo, do fornecedor que oferece desconto para pagamento em espécie desde que o cliente não exija a nota fiscal, concedendo assim descontos superiores a 10%. Neste caso, além de estar cometendo uma infração penal e incluindo o consumidor nesta prática, o fornecedor estará auferindo vantagem excessiva, posto que calcada em ilícito contra o mercado de consumo e a arrecadação do Estado.

Quanto ao último argumento, da equiparação do cartão de crédito ao pagamento à vista, também nos parece descabido, não obstante as opiniões ao revés.

Neste sentido, defendendo a classificação do cartão de crédito como pagamento à vista, Daniel de Avelar, fundando-se nos argumentos de Nelson Abraão e Reynaldo Daiuto, afirma que a diferenciação de preços é abusiva, pois, pelo cartão de crédito, o fornecedor tem a segurança do recebimento e confere imediata quitação ao consumidor (AVELAR, 2014).

Não obstante o quanto citado, não podemos concordar, pois, como já vimos, o fornecedor não confere quitação imediata ao consumidor, a qual fica condicionada à confirmação de autenticidade da compra pela administradora, condição esta que também pode mitigar a segurança do recebimento.

Além disso, somente após 30 (trinta) dias da venda é que o fornecedor será pago pela compra efetuada, o que não se pode entender como pagamento à vista. Ressalte-se que o próprio consumidor também não precisa fazer a quitação imediata da compra realizada, a qual fica diferida para a data contratual (data da fatura).

Cabe lembrar que o argumento de que a utilização do cartão de crédito encerraria uma cessão de crédito pro soluto, não o descaracteriza como pagamento a prazo, pois na referida cessão não ocorre o efetivo recebimento pelo fornecedor.

Como já pontuamos, o pagamento à vista depende do recebimento da quantia pelo vendedor quando da tradição do bem objeto da obrigação.

Pelo exposto, não temos como entender o pagamento com cartão de crédito como à vista, o que afasta a ideia de discriminação entre consumidores em iguais condições.

Sendo assim, parece-nos que, com base no Código de Defesa do Consumidor, não temos como caracterizar como abusiva a diferenciação de preços para pagamentos com cartão de crédito, desde que essa diferenciação esteja dentro dos patamares correspondentes ao custo agregado do uso deste meio de pagamento.

Por outro lado, ainda está em vigor a Portaria nº 118/94 do Ministério da Fazenda, a qual dispõe no seu artigo 1º, parágrafo primeiro, inciso I, a qual dispõe que não poderá haver diferença de preço para pagamentos com cartão de crédito (BRASIL, 1994).

Ocorre que essa portaria tem duas peculiaridades que precisam ser bem analisadas.

A primeira é que a mesma foi editada na época de estabilização da economia, após longo período de hiperinflação. Desta forma, era importante manter a estabilidade de preços no tempo para evitar nova ciranda inflacionária.

Por isso, mesmo nos 30 dias de prazo para recebimento do valor pelo fornecedor poderia haver grande ágio e, com isso, pressão inflacionária.

Neste sentido a própria ementa da portaria esclarece que a mesma se refere aos tempos de busca do equilíbrio econômico, ao ter em seu título que “Dispõe sobre a emissão de carnês, duplicatas e faturas, inclusive as emitidas por administradora de cartão de crédito, em URV” (BRASIL, 1994).

Vemos assim que a portaria tinha a finalidade precípua de regular aqueles tempos de utilização da URV e preocupação inflacionária.

Em segundo plano, temos que ponderar que a referida portaria limita diretamente o regime de preços do mercado, o que só se pode admitir em situações excepcionais dentro da ordem econômica constitucional vigente, conforme artigos 170, 172, 173 e 174 da Constituição (BRASIL, 1988).

Neste sentido, a lei é clara ao dispor que o Estado só intervirá nos preços da economia para resguardar a livre concorrência ou para remediar situações extremas como graves racionamentos. Temos também alguns mercados regulados estratégicos nos quais o preço é ditado pelo Estado.

Não obstante as exceções trazidas, a regulação do preço nas transações com cartão de crédito não se insere nas mesmas.

Diante do exposto, cremos que a mencionada Portaria nº 118 de 1994 do Ministério da Fazenda não pode ser aplicada nos dias de hoje por ferir tanto a Constituição quanto a legislação.

Neste espeque também é a disposição da nº 34 de 1989, do extinto Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que considerou irregular o sobrepreço nos pagamentos com cartão de crédito.

Ocorre que no próprio texto da resolução, também editada em época de elevada inflação, evidencia-se que, à época, o acréscimo praticado era de 20%, logo, realmente, elevado (BRASIL, 1989), o que não é a realidade dos dias atuais.

Neste sentido, já existe projeto de lei no Senado Federal, Projeto de Lei do Senado nº 492, de 2009, de autoria do senador Adelmir Santana, o qual tenciona incluir um parágrafo 2º ao artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, de forma a explicitar que não é abusiva a diferenciação de preços entre os pagamentos com cartão de crédito em relação ao preço à vista (SENADO FEDERAL, 2009).

Veja-se que pela proposição, restaria claro não só que a diferenciação é possível, mas também que o pagamento com cartão de crédito é diferente do à vista, posto que o próprio texto proposto evidencia esta diferença.

Em suas justificações, o autor do projeto de lei pontua bem o fato de que as vedações à diferenciação decorriam da instabilidade da economia brasileira na época em que tal entendimento se firmou, bem como que a manutenção desta vedação importa em prejuízos aos próprios consumidores (SENADO FEDERAL, 2009). Neste último aspecto, o relatório que analisamos supra do Banco Central parece comprovar estes prejuízos.

4.1. SOBREPREÇO NAS COMPRAS COM CARTÃO DE CRÉDITO, FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E LIBERDADE NEGOCIAL

Ao final, parece-nos que esta discussão sobre a possibilidade de diferenciar ou não o preço para pagamento com cartão de crédito esbarra no conflito entre liberdade negocial e dirigismo contratual.

O Código de Defesa do Consumidor é a mola mestra desse conflito, pois suas cláusulas permitem ampla atividade hermenêutica, possibilitando ao intérprete regular novas situações com a lei antiga.

Ainda, o Código de Defesa do Consumidor também estabelece direitos e limitações ao dirigismo, de forma que é uma lei da ponderação, que não visa oprimir os fornecedores.

Por outro lado, é normal que alguns entendimentos exagerados sejam extraídos do Código em face da sua versatilidade e mesmo dos direitos que ele tutela.

Ainda assim, não devemos esquecer da lição de Fábio Ulhôa (COELHO, 2005, p. 37-40), que nos lembra que o direito é um custo no mercado, devendo-se ponderar a legislação para não se reprimir a atividade produtiva.

Pondera o mencionado autor que não devemos dar primazia apenas a essa análise econômica do direito, fazendo apenas o que o mercado quer; porém não é possível esquecer do mercado, sob pena de planificarmos a economia (COELHO, 2005, p. 42).

Por outro lado, seria possível concluir pela violação contratual nessa diferenciação de preço, se o contrato entre a administradora e o fornecedor proibir esta conduta.

Esta interpretação decorre da aplicação da noção de cadeia de consumo, na qual os contratos entre fornecedores vinculam não somente estes, mas também os consumidores, salvo no que tolherem direitos e garantias previstos na legislação.

Sendo assim, apesar de não ser uma prática abusiva, a diferenciação de preço para pagamento com cartão de crédito seria um ilícito contratual, ao qual o consumidor poderá se insurgir por meio de um processo judicial.

Ocorre que, como vimos, a proibição do sobrepreço nos pagamentos com cartão de crédito encerra na imposição do custo do serviço do cartão de crédito a consumidores que não utilizam essa ferramenta, especialmente os mais carentes.

Desta forma, essa disposição viola a função social do contrato, pois impõe à coletividade os custos de transações de uma parcela dos consumidores.

Neste sentido, Orlando Gomes já antecipava a função social do contrato, dado que este deixou de ser instrumento de mero exercício da autonomia privada, para ser efetivo gerador de riquezas e de regulação das relações sociais (GOMES, 1983, p. 108-109).

Ainda, acrescenta que o contrato não pode ser analisado apenas da perspectiva da relação entre os contratantes, pois se tornou “um instrumento que deve realizar também interesses da coletividade” (GOMES, 1983, p. 109).

Desta forma, dado que a vedação ao sobrepreço importa na imposição dos custos de um contrato a toda a coletividade, vemos que tal cláusula fere, frontalmente, a função social do contrato, impondo-se a nulidade da mesma. Ressaltamos que a função social do contrato tem fundamento legal expresso no artigo 421 do Código Civil (BRASIL, 2002).

Diante disso, parece-nos que a diferenciação de preços para pagamentos com cartão de crédito é uma necessidade no nosso mercado, seja para reduzir os preços dos bens, seja para melhorar a indústria financeira dos cartões de crédito.

No primeiro aspecto, o próprio mercado tem demonstrado, não obstante as reiteradas decisões em contrário, a necessidade e utilidade da diferenciação, como vemos com frequência em promoções de lojas, principalmente virtuais, que aplicam descontos para pagamentos em espécie, no caso da virtuais, pagamentos em boleto (a concessão do desconto nada mais é do que a diferenciação de preço pela via oblíqua).

Isto demonstra que mesmo com o risco da sanção administrativa, a diferenciação de preços é viável para os fornecedores.

No segundo aspecto, como já vimos a concorrência da indústria dos cartões de crédito ainda é tímida e, por isso, a possibilidade de diferenciação de preços pode reduzir o uso dessa ferramenta e gerar a necessidade de redução dos preços pelas administradoras.

Com este entendimento, abordando a questão de forma bastante simples e prática é o parecer da economista Ana Quitéria Nunes Martins (2014), que pondera ainda que, diante de projeções por ela analisadas, o preço médio praticado no equilíbrio com diferenciação de preços é menor que o preço único em um cenário de vedação ao sobrepreço.

Nesse sentido, devemos trazer o exemplo do Nubank (NUBANK, 2016), o qual parece que vai revirar esse mercado, pois está oferecendo seus serviços sem cobrar anuidade dos clientes e utilizando taxas de juros bem razoáveis (de 2,75% a 12% ao mês).

Sendo assim, com a melhora do mercado e redução dos custos das transações com os cartões de crédito, é possível que a diferenciação de preços se torne ínfima para os fornecedores e será mais fácil manter um só preço, posto que ter dois preços também gera custos ao fornecedor.

Neste cenário que vislumbramos para o futuro, em face de iniciativas como a do Nubank, é possível que a discussão aqui tratada se torne coisa do velho mundo, mas, por enquanto, parece-nos importante tratá-la e defender a tese da possibilidade de diferenciação, pois a vedação, ao nosso ver, está lesando os consumidores, notadamente os de baixa renda.

CONCLUSÕES

Como vimos neste estudo, a diferenciação de preços para pagamentos com cartão de crédito ainda é tema polêmico, não obstante exista uma forte tendência a reprimi-la, por parte dos órgãos de defesa do consumidor e da própria justiça.

Entretanto, como vimos, a imposição do preço único gera uma distorção no mercado, fazendo com que as pessoas que não utilizam o cartão de crédito, especialmente as mais pobres, tenham também que arcar com os custos das estruturas necessárias para o funcionamento deste meio de pagamento.

Neste sentido, a única vantagem dessa proibição seria para a indústria de cartão de crédito, que teria seu produto com o mesmo benefício do dinheiro.

Tal ponderação não somente demonstra a injustiça da proibição de diferenciar os preços, como o desacordo desta com o sistema de defesa do consumidor vigente e mesmo com os princípios da isonomia e função social do contrato.

Sendo assim, a diferenciação de preços não encerra vantagem exagerada ao fornecedor, pois a diferença está fundada em um custo que existe e é passível de aferição; nem é uma discriminação entre consumidores, dado que existe um fator de descrimen a justificar a diferença de tratamento.

Por outro lado, não podemos igualar o cartão de crédito ao pagamento à vista, seja pelo prazo que fornecedor e consumidor têm para receber e efetuar o pagamento, seja pela intermediação existente no caso e sua possibilidade de frustração do recebimento, ainda que pequena.

Ainda, a noção de que o fornecedor não pode repassar os custos da sua atividade ao consumidor esbarra na prática do mercado e, se levada às últimas consequências, gera o emperramento da economia, pelo tolhimento da liberdade de iniciativa dos fornecedores.

Desta forma, não conseguimos caracterizar como prática abusiva a diferenciação dos preços para pagamento com cartão de crédito.

Com relação à cláusula contratual que veda a diferenciação dos preços, vimos que a mesma, ao gerar o subsídio cruzado, atenta contra a função social do contrato e, por isso, também merece ser reprimida do ordenamento jurídico.

Sendo assim, por tudo que vimos, parece-nos que ainda é mais salutar para o mercado e para os consumidores a permissão de se praticar preços distintos para pagamentos com cartão de crédito.

 

Referências
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Notas
[1] Com relação a este tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já é consolidada no sentido de afastar a cláusula de eleição de foro nos contratos de consumo, inclusive admitindo que seja declinada a competência de ofício. Neste sentido: REsp 1.049.639-MG, REsp 436.815-DF e AgRg no AREsp 426.563-PR.

[2] Neste ponto, não adentramos na função de criação de deveres anexos, por entendermos um pouco mais distante do nosso tema, o qual é bem analisado por Luís Renato Ferreira da Silva, na obra já mencionada (DA SILVA, 2009, p. 18-22).

[3] A Lei nº 8.884/94 foi quase que totalmente revogada pela Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, que passou a regular o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, entretanto, o dispositivo aqui analisado continua vigente.

[4] Essa disposição de Lei nº 8.884/94 citada pelo referido autor foi revogada, também, pela Lei nº 12.529/2011, a qual substituiu a infração de aumento de preços sem justa causa pela polêmica vedação ao aumento arbitrário de lucros, artigo 36, III, da referida Lei.

[5] Esses mesmos autores definem o comércio varejista como aquele que se destina ao consumidor final, ou seja, especificamente os consumidores agasalhados pelo Código de Defesa do Consumidor, objeto deste estudo.

[6] O mark-up de cada produto é diferente, variando de acordo com a atratividade do mesmo para o consumidor e seu valor agregado, o que resulta na margem de contribuição de cada mercadoria (BALDÃO e ROCHA, 2012).

[7] Em verdade, no Brasil, os Bancos tornaram o sistema ainda mais complexo, pois dividiram as atividades da administradora, gerando uma entidade responsável só pela emissão dos cartões (emissoras); outra pelo gerenciamento do uso e pagamento dos fornecedores (credenciadora); e outra responsável pela regulação do negócio, sendo também detentora da marca (bandeira) (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 8). Segundo Gerson Branco, essa subdivisão criada visa evadir o mercado da regulação do Banco Central, pois se uma mesma companhia fizesse todas as atividades, acabaria enquadrada como instituição financeira e, assim, sujeita a todos os regulamentos e fiscalização do Banco Central (BRANCO, 1998, p. 79).

[8] Vale ressaltar que muitas operadoras de cartão oferecem outras vantagens aos consumidores, tais como programas de recompensa ou isenções na anuidade, o que não nos cabe detalhar, no momento, para manter a atenção ao escopo do estudo.

[9] Segundo a lição de Orlando Gomes, existem duas modalidades de cessão de crédito, no aspecto da garantia de solvência, a cessio pro soluto e a cessio pro solvendo. Na primeira, o cedente garante apenas a existência do crédito, sem responsabilizar-se pela solvência do devedor; enquanto que na segunda obriga-se a pagar caso o devedor seja insolvente (GOMES, 2006, p. 246).


Informações Sobre o Autor

César Oliveira Ribeiro

Advogado; bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia 2008; especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia; especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera-Uniderp; especialista em Direito do Consumidor pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP – Faculdade São Leopoldo Mandic. Atualmente é sócio – Tawil Ribeiro e Stallone Advocacia e Consultoria


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