Resumo: A desconsideração da personalidade jurídica é prática comum na sistemática processual do trabalho, uma vez que, para obter a satisfação das obrigações contraídas pela pessoa jurídica, permite atingir o patrimônio particular dos sócios. Por conseguinte, tem o presente estudo o objetivo de analisar a possível aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, positivado nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, ao direito processual do trabalho, visto que, em casos omissos no diploma consolidado, o direito processual trabalhista terá o processo comum como fonte subsidiária, salvo diante de incompatibilidades entre tais processos.
Palavras-chave: desconsideração da personalidade jurídica; incidente; Novo Código de Processo Civil.
Abstract: The disregard of the legal entity is common practice in labour law, since, for the satisfaction of obligations entered into by the legal entity, could achieve the private patrimony of members. Therefore, the present study has the purpose of analyzing the possible applicability of the incident of disregard of the legal entity, positivado in articles 133 to 137 of the code of Civil procedure, once the procedural law of the labour, in omitted cases in the consolidated norm, the labour procedural law will have the common process as subsidiary source, except in front of incompatibilities between these processes.
Keywords: disregard of the legal entity; incident; New Code of Civil Procedure.
Sumário: Introdução; 1. A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro; 1.1 O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica; 2. Da Subsidiaridade do Direito Processual Comum; 3. Da Aplicação do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica ao Direito do Trabalho; Considerações Finais; Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo terá como finalidade analisar a eventual aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos artigos 133 a 137 do Novo Código de Processo Civil (NCPC), ao processo do trabalho. O estudo justifica-se pelas controvérsias oriundas da possível incompatibilidade do incidente ora analisado com as normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Com efeito, a presente pesquisa será fracionada em três capítulos, além destas linhas introdutórias e das considerações finais. Desta feita, adotará a metodologia de caráter qualitativo, tendo como base a análise da legislação e doutrinas pátrias, além de entendimentos expressos pelo Tribunal Superior de Justiça (TST) na edição de Instrução Normativa.
Por conseguinte, cada capítulo será concebido de forma independente em relação aos demais, no intuito de proporcionar ao leitor compreender cada tema e acompanhar o raciocínio alcançado ao final. Destarte, o primeiro capítulo terá por finalidade analisar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Ademais, estudará, outrossim, em tópico próprio, dentro do primeiro capítulo, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica introduzido ao direito processual brasileiro pelo Código de Processo Civil de 2015.
O segundo capítulo terá como objetivo estudar a aplicação subsidiária e supletiva do Código de Processo Civil ao processo do trabalho. Verificar-se-á neste tópico que existem diferenças entre os artigos que autorizam a subsidiaridade do processo comum, podendo concluir se há revogação ou complementaridade entre eles.
No terceiro capítulo adentra-se efetivamente ao tema da presente pesquisa, analisando a aplicabilidade ou não do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao processo do trabalho. Logo, analisará o entendimento da doutrina nacional verificando se está em conformidade com as determinações do Superior Tribunal de Justiça ao editar a Instrução Normativa n° 39/2016.
Por conseguinte, a análise de todo o exposto, tornará possível tecer as considerações finais, podendo constatar se o incidente introduzido pela Lei n° 13.105/2015 é compatível com a sistemática do direito processual do trabalho.
1. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO
As pessoas jurídicas possuem personalidade distinta das de seus sócios, com fincas no artigo 985 do Código Civil. Com efeito, nos termos do artigo 1.024 do codex civil, a responsabilidade dos sócios será, em regra, subsidiária, uma vez que apenas após a execução dos bens da sociedade, poderão ser atingidos os bens particulares dos sócios.
Inobstante o exposto, dependendo do tipo societário adotado pela pessoa jurídica, poderão os sócios responder ilimitadamente com seus patrimônios particulares, como é o que ocorre nas sociedades em nome coletivo (artigo 1.039 do Código Civil), nas sociedades em comanditas simples, no que tange aos sócios comanditados (artigo 1.045 do Código Civil) e quanto aos sócios diretores nas sociedades em comanditas por ações (artigo 1.091 do Código Civil). Lado outro, acerca das sociedades limitadas, assim dispõe o artigo 1.052 do Código Civil: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”.
Desta feita, em estando totalmente integralizado o capital social, os bens particulares dos sócios não responderão por eventuais dívidas contraídas pela sociedade. Logo, existem casos em que sócios, agindo de má-fé, passaram a valer-se de ser a personalidade jurídica da sociedade distinta das suas para cometer abusividades, no intuito de obter um enriquecimento indevido e lesar outrem. Por essa razão, surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Nesse sentido, explica Carlos Roberto Gonçalves:
“O ordenamento jurídico confere às pessoas jurídicas personalidade distinta da dos seus membros. Essa regra, entretanto, tem sido mal utilizada por pessoas inescrupulosas, com a intenção de prejudicar terceiros, as quais se utilizam da pessoa jurídica como uma espécie de “capa” ou “véu” para proteger os seus negócios escusos.
A reação a esses abusos ocorreu no mundo todo, dando origem à teoria da desconsideração da personalidade jurídica (no direito anglo-saxão, com o nome de disregard of the legal entity). Permite tal teoria que o juiz, em casos de fraude e de má-fé, desconsidere o princípio de que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros e os efeitos dessa autonomia para atingir e vincular os bens particulares dos sócios à satisfação das dívidas da sociedade (GONÇALVES, 2011, p. 86)”.
Por conseguinte, a desconsideração da personalidade jurídica intenciona combater possíveis atitudes fraudulentas de sócios e ou administradores que valem-se da personalidade jurídica da sociedade para cometer abusividades em detrimento de terceiros.
Sobre o exposto, salientam Pablo Stolze Gagliano e Rodolgo Pamplona Filho:
“A teoria da desconsideração da pessoa jurídica serve, exatamente, para achar, desvendar, revelar o verdadeiro “negociante”, que se escondeu com a “máscara” da pessoa jurídica. Serve, pois, para as situações em que o ato é, em princípio, lícito, só sendo ilícito na medida em que se revela que houve um abuso no exercício do direito de constituir ou valer-se de uma pessoa jurídica (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 246)”.
Ademais, é possível a ocorrência da desconsideração da personalidade jurídica inversa, situação esta em que o patrimônio da pessoa jurídica responderá pelas obrigações contraídas pelos sócios ou administradores, como explica Isaura Filgueiras:
“Caracteriza-se a desconsideração inversa quando é afastado o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, como, por exemplo, na hipótese de um dos cônjuges, ao adquirir bens de maior valor, registrá-los em nome de pessoa jurídica sob o seu controle, para livra-los da partilha a ser realizada nos autos da separação judicial. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge do sócio. (FILGUEIRAS. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28632-28650-1-PB.pdf>. Acesso em 30 de abril de 2016)”.
Vale ressaltar que acerca da desconsideração da personalidade jurídica existem duas importantes correntes: a teoria maior e a menor. A primeira entende que para que ocorra a desconsideração é necessário demonstrar o abuso da personalidade jurídica, bem como ter o credor sofrido prejuízo. Para a teoria menor, basta apenas que tenha prejuízo o credor.
Assim, segundo Flávio Tartuce:
“Aprofundando, a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, a melhor doutrina aponta a existência de duas grandes teorias, a saber:
a) Teoria maior – a desconsideração, para ser deferida, exige a presença de dois requisitos: o abuso da personalidade jurídica + o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pelo art. 50 do CC/2002.
b) Teoria menor – a desconsideração da personalidade jurídica exige um único elemento, qual seja o prejuízo ao credor Essa teoria foi adotada pela Lei 9.605/1998 – para os danos ambientais – e, supostamente, pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (TARTUCE, 2015, p. 141)”.
Logo, consoante à teoria maior, para que o Magistrado defira a desconsideração da personalidade jurídica, é essencial que a parte interessada demonstre a abusividade perpetuada pelos sócios e administradores, visto que a boa-fé é presumida, enquanto a fraude deverá ser comprovada (GONÇALVES; GONÇALVES, 2011, p. 98).
A desconsideração da personalidade jurídica, antes da promulgação do Código de Processo Civil de 2015 apenas encontrava fundamento no direito material, conforme os seguintes artigos: 135, inciso III do Código Tributário Nacional (Lei n° 5.172/66); 28, caput e parágrafo 5°, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90); 4° da Lei n° 9.605/98, referente às responsabilidades por danos ambientais; 50 do Código Civil (Lei n° 10.046/02); e 34 da Lei n° 12.529/11, que trata do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e “dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica” (ALMEIDA, 2016, p. 312). Logo, o Código de Processo Civil consiste no primeiro diploma processual a dispor acerca de um incidente para instrumentalizar a desconsideração da personalidade jurídica.
1.1 O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica
A Lei n° 13.105 de 16 de março de 2015 introduziu ao ordenamento jurídico pátrio o primeiro código processual promulgado sob a égide de uma Constituição Federal democrática. Com efeito, este diploma foi idealizado tendo como base preceitos constitucionais, dentre os quais inclui-se as garantias individuais ao contraditório e à ampla defesa, previstas no artigo 5°, inciso LV da Carta Magna.
O Novo Código de Processo Civil ao prever um incidente para desconsideração da personalidade jurídica ratifica essas garantias constitucionais, tendo em vista que possibilita ao sócio e ou ao administrador da sociedade demandada se manifestar e produzir provas, antes que seu patrimônio particular responda por obrigações supostamente contraídas pela pessoa jurídica.
Desta feita, dedica o Código de Processo Civil de 2015 ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica o Capítulo IV, composto pelos artigos 133 a 137, tendo o artigo 133 a seguinte redação:
“Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1° O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2° Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica”.
Desta feita, percebe-se que diante da literalidade da lei, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não poderá ser instaurado de ofício pelo juiz, devendo o mesmo ser requerido pela parte interessada ou pelo Ministério Público, quando for cabível sua intervenção no processo. Contudo, para a doutrina, em casos de ordem pública, poderá ser instaurado o incidente “ex officio”.
Nesse sentido, salienta Flávio Tartuce:
“O presente autor entende que, em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da personalidade jurídica ex officio é possível. Cite-se, de início, as hipóteses envolvendo os consumidores, eis que, nos termos do art. 1º da Lei 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor é norma de ordem pública e interesse social, envolvendo direitos fundamentais protegidos pelo art. 5º da Constituição Federal de 1988 (TARTUCE, 2015, p. 85)”.
O artigo 134 determina o cabimento da instauração desse incidente em todas as fases processuais, sendo obrigatória observância do mesmo para que haja a desconsideração da personalidade jurídica, com fincas no parágrafo 4° do artigo 795 do novo codex processual civil. No entanto, conforme dispõe o parágrafo 2° do artigo 134 da Lei 13.105/2015, é dispensável a instauração do incidente quando requerida a desconsideração na peça vestibular, situação esta em que os sócios ou a pessoa jurídica deverão ser citados.
Com a instauração desse incidente, o sócio ou a pessoa jurídica é citado para, no prazo de quinze dias, se manifestar ou requerer a produção de provas, nos termos do artigo 135 do Código de Processo Civil, o que demonstra o respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Percebe-se que, ao contrário da ideia passada pelo parágrafo 4° do artigo 134 do Novo Codex, não precisará a parte apresentar uma prova pré-constituída na propositura do incidente.
Consoante o exposto, ressalta Daniel Amorim Assumpção Neves:
“(…) deve-se compreender o § 4° do art. 134 do Novo CPC, que não foi feliz em prever que no requerimento cabe à parte demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais para a desconsideração, o que pode passar a equivocada impressão de que o requerente terá que apresentar prova pré-constituída e liminarmente demonstrar o cabimento da desconsideração.
Na realidade, o requerente não deve demonstrar, mas apenas alegar o preenchimento dos requisitos legais para a desconsideração, tendo o direito a produção de prova para convencer o juízo de sua alegação, inclusive conforme expressamente previsto nos arts. 135 e 136 do Novo CPC, ao preverem expressamente possibilidade de instrução probatória no incidente ora analisado (NEVES, 2016, p. 457)”.
Finda a instrução probatória, caso esta seja necessária, o juiz proferirá uma decisão interlocutória solucionando o incidente, a qual, se decidida pelo relator, será recorrível por meio de agravo interno, com fincas no artigo 136, caput e parágrafo único, do novo diploma processual civil.
Por fim, assim preconiza o artigo 137 sobre o deferimento do pedido do incidente: “Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”.
2. DA SUBSIDIARIDADE DO DIREITO PROCESSUAL COMUM
O processo do trabalho consiste em um ramo autônomo do direito processual, que rege-se pelas normas contidas no Capítulo X da Consolidação das Leis do Trabalho, nos termos do artigo 763 do diploma consolidado, aprovado pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943. Ocorre, todavia, que a CLT não exaure todos os temas fundamentais para o devido exercício da jurisdição, precisando valer-se do processo comum.
Desta feita, assim disciplina o artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título”. Nada obstante, preceitua o artigo 15 do Novo Código de Processo Civil: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
Nota-se que para que seja o código de processo civil aplicado subsidiariamente ao processo do trabalho é essencial que haja lacuna na lei trabalhista e que as normas do processo comum sejam compatíveis com as da Consolidação das Leis do Trabalho.
Nesse sentido, explica Salvador Laurino:
“De maneira analítica, a aplicação subsidiária do processo civil justifica-se pelo binômio “compatibilidade + omissão”: i) omissão do regime do processo do trabalho (“Nos casos omissos […]”) e ii) compatibilidade com a lógica formal de seus procedimentos (“[…] o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título”) (LAURINO, 2016, p. 11)”.
Cumpre ressaltar que o artigo 15 do Código de Processo Civil não menciona a compatibilidade como requisito para a aplicação subsidiária de suas normas ao processo do trabalho. Entretanto, o artigo 769 da CLT trata-se de regra especial, enquanto o artigo 15 do CPC consiste em regra geral, razão pela qual continua sendo essencial à compatibilidade entre as normas do processo comum com o trabalhista para que haja a aplicação subsidiária.
Consoante o exposto, salienta Vólia Bomfim Cassar:
“Em se tratando de normas de mesma hierarquia, a hermenêutica nos ensina que a posterior revoga a anterior quando tratar da mesma matéria de forma diversa. Ora, o art. 15 do NCPC não determina que a incidência de suas regras se dê desde que haja compatibilidade. Refere-se, apenas, ao vazio legislativo, o que levaria à lógica conclusão de revogação total do art. 769 da CLT. Essa interpretação, entretanto, não é razoável, pois, em se tratando de lei especial, que rege um direito permeado de princípios próprios e peculiares, o requisito da compatibilidade deve ser valorizado e mantido, sob pena de se descaracterizar o processo do trabalho, já que o que o distingue dos demais ramos processuais são seus princípios: oralidade, efetividade, imediatidade, informalidade e impulso de ofício (entre outros) (CASSAR, 2016, p. 23)”.
Por conseguinte, verifica-se que, em havendo lacuna no direito processual do trabalho, aplicar-se-á as normas do processo comum, desde que compatíveis com o processo trabalhista.
3. DA APLICAÇÃO DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA AO DIREITO DO TRABALHO
O Novo Código de Processo Civil introduziu ao ordenamento jurídico nacional o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos artigos 133 a 137. Com fincas nos artigos 769 da CLT e 15 do NCPC, aplica-se o direito processual comum ao processo do trabalho, de forma subsidiária e supletiva, nos casos em que for o diploma consolidado omisso, desde que sejam compatíveis as normas do processo comum com as do processo laboral.
Com efeito, o incidente da desconsideração da personalidade jurídica visa consagrar o contraditório e a ampla defesa, ao permitir ao sócio e ou ao administrador manifestar-se e produzir provas antes que seus bens particulares sejam atingidos para cumprir obrigações contraídas, em tese, pela pessoa jurídica.
Cléber Lúcio de Almeida (2016, p. 320) ressalta que Fredie Didier Júnior informou que foi o Processo do Trabalho o que deu causa à criação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Corroborando com o exposto, Flávio Tartuce entende que a desconsideração da personalidade jurídica tem sido utilizada de forma imoderada na Justiça do Trabalho, salientando que “a desconsideração não pode ser utilizada sem limites, como infelizmente ocorre na prática, principalmente em ações trabalhistas” (TARTUCE, 2015, p. 144).
Acerca da desconsideração da personalidade jurídica, dispõe Amador Paes de Almeida:
“No direito do trabalho, a teoria da desconsideração da pessoa jurídica tem sido aplicada pelos juízes de forma ampla, tanto nas hipóteses de abuso de direito, excesso de poder, como em casos de violação da lei ou do contrato, ou, ainda, na ocorrência de meios fraudulentos, e, inclusive, na hipótese, não rara, de insuficiência de bens da empresa, adotando, por via de consequência, a regra disposta no art. 28 do Código de Proteção ao Cosumidor (ALMEIDA, 2016, p. 378-379)”.
Ademais, Tartuce entende que a desconsideração da personalidade jurídica na seara trabalhista ocorre de forma excessiva:
“Em resumo, não se pode esquecer que, para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, devem ser utilizados os parâmetros constantes do art. 187 do CC, que conceitua o abuso de direito como ato ilícito. Esses parâmetros são o fim social ou econômico da empresa, a boa-fé objetiva e os bons costumes, que constituem cláusulas gerais que devem ser preenchidas pelo aplicador caso a caso. Desse modo, a utilização da desconsideração não pode ocorrer de forma excessiva, como é comum em decisões da Justiça do Trabalho, em que muitas vezes um sócio que nunca administrou uma empresa é responsabilizado por dívidas trabalhistas (TARTUCE, 2015, p. 144)”.
Por essa razão, há entendimentos no sentido da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao direito processual do trabalho, com fulcro nos artigos 15 do Código de Processo Civil e 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, como defende Francisco Ferreira Jorge Neto:
“O incidente da desconsideração da personalidade jurídica é compatível com o processo trabalhista (art. 769, CPC; art. 15, NCPC), notadamente, por ser um procedimento que permite o respeito à segurança jurídica e ao devido processo legal quanto à pessoa do sócio ou ex-sócio (JORGE NETO, 2015)”.
Além disso, determina o Código de Processo Civil que é obrigatória a instauração do incidente de desconsideração da personalidade para que os bens particulares dos sócios respondam pelas dívidas supostamente contraídas pela sociedade, nos termos do artigo 795, parágrafo 4°, “in verbis”:
“Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei.(…)
§ 4° Para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código”.
Lado outro, a doutrina trabalhista tem firmado entendimento no sentido da inaplicabilidade do incidente previsto nos artigos 133 a 137 do novo codex ao processo do trabalho. Nesse sentido, Cléber Lúcio de Almeida (2016, p. 325) sustenta que “a disciplina do incidente de desconsideração da personalidade jurídica realizada pelo CPC de 2015 é incompatível com várias regras e princípios do direito processual do trabalho”.
No que tange à incompatibilidade entre o incidente e as normas processuais trabalhistas, explicam Eliana dos Santos Alves Nogueira e José Gonçalves Bento:
“(…) é preciso destacar que os princípios que regem o direito do trabalho e que inspiram o processo do trabalho não admitem que se possa pensar em medidas que dificultam a persecução do patrimônio empresarial ou societário a fim de garantir o pagamento da dívida trabalhista, não se admite a transposição dos riscos do empreendimento ao empregado, que os assumiria se a inexistência de patrimônio empresarial pudesse tornar inefetiva a execução trabalhista.
Além disso, o processo do trabalho não admite, em sede de execução, qualquer privilégio para o devedor. Reconhecido o débito, a única alternativa que cabe ao devedor é cumprir sua obrigação (NOGUEIRA; BENTO, p. 339)”.
Partilha do mesmo entendimento Bezerra Leite:
“À luz dos princípios da simplicidade e celeridade que informam o processo do trabalho, não se mostra compatível, mesmo em sede de execução, a instauração de um incidente processual. Basta o juiz, que tem o dever de promover de ofício a execução (CLT, art. 878), determinar, por simples despacho, reconhecendo ter restado infrutífera a execução contra a empresa executada, a intimação dos sócios para responderem pelos débitos trabalhistas constantes do título executivo. Nesse caso, não há falar em violação aos princípios constitucionais da legalidade, ampla defesa e contraditório e fundamentação das decisões judiciais (LEITE, 2016, p. 398)”.
Percebe-se que a doutrina trabalhista aponta incompatibilidade entre o incidente ora estudado e as normas processuais trabalhistas, entendendo que contribui com a morosidade do processo e dificulta a satisfação da obrigação trabalhista.
Além disso, não se pode, com fundamento no artigo 15 do Novo Código de Processo Civil, conceber que toda e qualquer possível omissão da Consolidação das Leis do Trabalho implicará na aplicação das normas do procedimento comum, visto que pode a lacuna ser apenas um silêncio eloquente, como explica Salvador Laurino:
“Dois desafios interpretativos são corriqueiros na dinâmica do processo do trabalho. O primeiro é distinguir as “verdadeiras lacunas” das “falsas lacunas”, também conhecidas como “silêncio eloquente”. No primeiro caso, em nome da simplicidade do procedimento, a lei apenas relega ao processo comum as disciplina pontual de determinadas matérias; no segundo caso, o sistema jurídico intencionalmente deixa de disciplinar determinada situação justamente para excluir a aplicação do processo comum (LAURINO, 2016, p. 11)”.
Todavia, no intuito de sanar possíveis controvérsias acerca da aplicação ou não das normas da Lei n° 13.105/2015 ao processo laboral, o Egrégio Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa n° 39, que, acerca da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, dedica o artigo 6°, “in verbis”:
“Art. 6° Aplica-se ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137), assegurada a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução (CLT, art. 878).
§ 1º Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente:
I – na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do art. 893, § 1º da CLT;
II – na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo;
III – cabe agravo interno se proferida pelo Relator, em incidente instaurado originariamente no tribunal (CPC, art. 932, inciso VI).
§ 2º A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 do CPC”.
Constata-se, por conseguinte, que a doutrina não é pacífica acerca da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao processo trabalhista. No entanto, percebe-se que os doutrinadores trabalhistas posicionam-se pela incompatibilidade do incidente em estudo com as normas laborais. Inobstante ao exposto, o Tribunal Superior do Trabalho, mediante à Resolução n° 203/2016, editou a Instrução Normativa n° 39, na qual entende, pelo disposto em seu artigo 6°, pela aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao processo do trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A desconsideração da personalidade jurídica encontra fundamento no direito material, mormente, concernente às disposições dos artigos 135 do Código Tributário Nacional, 28 do Código de Defesa do Consumidor e 50 do Código Civil. No entanto, apenas com o advento do Novo Código de Processo Civil de 2015, o direito processual pátrio passou a prever o procedimento adequado para a ocorrência da desconsideração da personalidade jurídica.
O codex processual instituído pela Lei n° 13.105/2015 corresponde ao primeiro diploma processual brasileiro promulgado sob a égide de uma Constituição Democrática e, portanto, suas normas foram idealizadas em atenção aos preceitos constitucionais.
Com efeito, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, inserido ao ordenamento jurídico pátrio pelo novo codex, tem como fundamento os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, assegurados no artigo 5°, inciso LV da Carta Magna, uma vez que permite ao sócio ou ao administrador se manifestar e produzir provas antes que seus bens particulares sejam atingidos para cumprimento das obrigações supostamente contraídas pela pessoa jurídica.
Destarte, em que pese seja determinado pelos artigos 769 da CLT e 15 do NCPC que, nos casos em que for a CLT omissa, aplicar-se-á, supletiva e subsidiariamente, o direito processual comum ao direito processual laboral, salvo no que for incompatível com as normas do diploma consolidado, é controversa a aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao direito processual do trabalho.
Verifica-se que a doutrina trabalhista majoritária entende que o incidente ora estudado não é compatível com os preceitos e princípios trabalhistas, uma vez que acarretam morosidade ao processo trabalhista e dificultam ao empregado ter satisfeito seu crédito trabalhista, que tem caráter alimentar.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça editou a Instrução Normativa n° 39/2016, determinando, no artigo 6°, a compatibilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com o direito processual do trabalho.
Por conseguinte, constata-se que o ordenamento jurídico nacional não é pacífico no que concerne à aplicabilidade do incidente previsto nos artigos 133 a 137 do Novo Código de Processo Civil ao processo do trabalho, uma vez que a Jurisprudência firmou um entendimento através de uma instrução normativa, enquanto relevantes nomes da doutrina trabalhista formulam teses no sentido da incompatibilidade do instituto ora estudado com o processo do trabalho.
Vale destacar que uma das incompatibilidades desse incidente com as normas da Consolidação das Leis do Trabalho foi sanada pela Instrução Normativa n° 39 do Tribunal Superior do Trabalho, visto que o caput de seu artigo 6° permite a instauração ex officio pelo Juiz do Trabalho na fase de execução, atendendo os preceitos estatuídos no artigo 878 da CLT.
Data venia, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, na exata disposição do Código de Processo Civil, apresenta incompatibilidades com a sistemática do processo do trabalho, uma vez que afronta princípios norteadores do direito do trabalho, ao dificultar que o empregado satisfaça seu crédito trabalhista, além de acarretar a morosidade processual, uma vez que, em regra, ficará o processo suspenso até a resolução do incidente.
Informações Sobre o Autor
Lorena Franciele Corrêa Rosa
Advogada, bacharela em Direito pela Faculdade de Minas – FAMINAS – Muriaé (2014) e com Pós-Graduação “Lato Sensu”, Especialização em Advocacia Trabalhista, pela Universidade Anhanguera-UNIDERP (2017)