Resumo: O presente trabalho buscou analisar a obra “O Direito dos Oprimidos” do Boaventura de Sousa Santos, evidenciando os principais aspectos do texto e fazendo uma análise crítica sobre livro.
Palavras-chave: Pluralismo Jurídico. O Direito dos Oprimidos.
Abstract: The present paper tried to analyse the book “The Right of the Oppressed” of Boaventura de Sousa Santos, evidencing the main aspects of the text and doing a critical analysis about the book.
Keywords: Legal Pluralism. The Right of the Oppressed.
Sumário: Introdução. 1. O Discurso e o Poder: Ensaio sobre a Sociologia da Retórica Jurídica. 2. O Direito dos Oprimidos: a Construção e Reprodução do Direito em Pasárgada. 3. Ao espelho. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Atualmente com 77 anos, Boaventura de Sousa Santos é um professor catedrático jubilado português da Faculdade de Economia de Coimbra em Portugal, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick.
Neto de imigrante português no Brasil, Boaventura licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 1963. Ao final do curso, no período da Guerra Fria, rumou para Berlim para fazer uma pós-graduação em filosofia do Direito.
Ao final de 1960, momento em que Boaventura optou por realizar seu doutorado, Portugal vivia uma Ditadura Militar Salazar, motivo pelo qual optou ir para Universidade de Yale nos Estados Unidos, uma vez que não poderia desenvolver estudos dentro da Sociologia, muito menos da sociologia crítica de orientação marxista que gostaria de fazer, em sua terra natal.
Em 1970, o Brasil também vivia o período de Ditadura Militar. No Rio de Janeiro, 1 milhão de pessoas viviam na ilegalidade, a margem do Estado, em mais de 200 favelas na cidade.
Nesse sentido, Boaventura escolheu como objeto de sua pesquisa uma das mais antigas e mais numerosas favelas do Rio de Janeiro: A favela do Jacarezinho.
Vivendo na comunidade de julho a outubro de 1970, o autor se dispôs a viver o cotidiano da favela, conversando com a população, como donos de bares, sapateiros, pais de santo, líderes comunitários, entre outros, afim de desenvolver legitimidade para abordar tal temática, assim como, favorecer o diálogo.
Optando por preservar a identidade dos envolvidos, em decorrência da situação histórica em que o país se encontrava de repressão contra insurgentes militantes políticos de esquerda, Boaventura decidiu por adotar o nome fictício Pasárgada para a favela do Jacarezinho, inspirado pelo famoso poema homônimo de Manuel Bandeira.
Considerada a primeira parte da coleção “Sociologia crítica do Direito”, a obra “O Direito dos Oprimidos” é um “resumo alargado” – como denomina o autor -, da parte teórica e da análise de campo desenvolvida no Jacarezinho.
Nesse sentido, o artigo em tela visa fazer uma análise da obra supracitada, afim de abordar os principais tópicos de cada capítulo e realizar uma reflexão crítica desses.
1. O Discurso e o Poder: Ensaio sobre a Sociologia da Retórica Jurídica
Através de uma observação participante, Santos visou uma teorização marxista em áreas da vida coletiva até então pouco estudadas, com base em uma pesquisa empírica, na qual constatou a coexistência de um direito oficial brasileiro – aplicado pelos opressores – com o direito não-oficial de Pasárgada – o dos oprimidos – como estratégia alternativa de legalidade interna, paralela à legalidade estatal.
Retomando ideais de Pluralismo Jurídico até então esquecidos, Boaventura caracteriza o Direito oficial brasileiro como formalista, profissional e com pouco espaço para a retórica, enquanto, Pasárgada, o total oposto, um Direito com pouco formalismo, sem profissionalização, com muita retórica e principalmente, pautado na mediação de conflitos para resolver as demandas da coletividade. Desse modo, o sistema de Pasárgada relativiza a forma e o discurso em busca de uma solução mais ética em prol do interesse e do bem-estar da comunidade.
A análise de Boaventura representa “uma clara alternativa emancipatória ao direito burguês e ao projeto monista-positivista”, embora não objetive romper com essa estrutura através da busca por uma situação originária a implantação da ordem moderna, pelo contrário, visa ser integrado à ordem jurídica estatal (CARVALHO apud OOLIVEIRA, 2013, p. 18).
Santos chegou à conclusão de que “amplitude do espaço retórico do discurso jurídico varia na razão inversa do nível de institucionalização da função jurídica e do poder dos instrumentos de coerção a serviço da produção jurídica” (2015, p.42). Isto é, “quanto mais elevado é o nível de institucionalização da função, menor tende a ser o espaço retórico do discurso jurídico”, assim como os instrumentos de coerção a serviço da produção jurídica (SANTOS, 2015, p. 45).
Na pesquisa, Boaventura define que o problema do pluralismo jurídico se divide em dois subproblemas: a definição de direito e como resolver a questão de se reconhecer a existência de 2 sistemas jurídicos em um mesmo espaço geopolítico.
Nesse sentido, o autor define o Direito como “o conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados justificáveis num dado grupo, que contribuem para a criação e prevenção de litígios e para a resolução destes através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada” (idem, p. 54).
Desse modo, é incontestável que os fenômenos investigados em Pasárgada caiam no domínio jurídico. Enquanto no pluralismo jurídico, existem 2 vertentes: a primeira, do ponto de vista da colonização, em que o direito do Estado colonizador e os direitos tradicionais coexistem num mesmo espaço; e uma segunda, anticapitalista, que pode ser de “países com tradições culturais dominantes ou exclusivamente não europeias, que adotam o direito europeu como instrumento de consolidação do poder do Estado (…), ou em virtude de uma revolução social, em que o direito tradicional entrou em conflito com a nova legalidade (…) ou de populações autóctones, nativas ou indígenas, quando não totalmente exterminadas, foram submetidas ao direito do conquistador com a permissão, expressa ou implícita, de em certos domínios continuarem a seguir o seu direito tradicional” (idem, p.57).
Assim, Boaventura propõe que esse conceito seja ampliado para cobrir situações das sociedades capitalistas, ao exemplo de Pasárgada, em que as bases jurídicas são as mesmas do direito oficial brasileiro: capitalista. Contudo, o aspecto econômico não é o único, uma vez que a homogeneidade é formada também pelas dimensões sociais, políticas e culturais (idem, p. 57).
Em relação a coexistência do Direito Oficial brasileiro e o Direito de Pasárgada, o autor visa salientar que “no Estado de direito da sociedade capitalista, o Estado não é só de direito e o direito não é só do Estado” (idem, p. 57).
Podemos concluir, então, que, o Direito de Pasárgada “Não é um direito revolucionário, nem tem lugar numa fase revolucionária da luta de classes; visa resolver conflitos interclassistas num espaço social ‘marginal’. (…) Representa uma tentativa de neutralizar os efeitos da aplicação do direito capitalista de propriedade no seio das favelas” (idem, p. 76).
2. O Direito dos Oprimidos: a Construção e Reprodução do Direito em Pasárgada
O Capítulo 2 da obra de Boaventura entra de fato na experiência vivida em Pasárgada, enaltecendo o papel desenvolvido pela Associação de Moradores (AM) da comunidade, a grande responsável pela prevenção e resolução de litígios em Pasárgada.
A AM visa “organizar a participação, autônoma e coletiva, dos habitantes de Pasárgada no melhoramento, físico e cívico, da comunidade” (idem, p.152) indo de encontro “a normatividade sancionatória que decorre da participação compulsória dos indivíduos no discurso institucional do Estado (idem, p. 166).
Para tanto, embora tenha direito a voto nos assuntos referentes a Associação de Moradores somente aqueles que contribuíram com uma espécie de taxa, todos membros da comunidade podem requerer sua ajuda para contrair obrigações.
Em Pasárgada, a liberdade contratual não é um princípio absoluto, ela pode ser restringida para atender interesses mais amplos da comunidade (idem, p. 128). Os indivíduos percebem que estão envolvidos em uma estrutura jurídica permanente paralela que antecede a relação entre elas, uma manifestação que transcende a sua vontade (idem, p. 170).
Nesse sentido, “a ficção jurídica fundamental permite que coexistam, sem interferência, duas ideais mutuamente contraditórias de legalidade, desde que as respectivas jurisdições se mantenham separadas” (idem, p. 186).
A Associação de Moradores estimula o diálogo entre as partes e tenta prever possibilidades de conflitos não previstos anteriormente por eles, podendo intervir quando perceber algum tipo de abuso em compromissos extremamente onerosos para alguma das partes (idem, p. 170).
Os moradores de Pasárgada estão envolvidos em uma enorme variedade de relações, tema abordado pelo autor na exemplificação de 36 casos práticos que vivenciou. Mesmo assim, a maioria das questões se referem a regulamentação dos barracos, seja pela venda, troca ou aluguel de um, construção de mais peças em outro, trocas de bens móveis por um barraco, entre outros.
“O direito de Pasárgada não pretende regular a vida social fora de Pasárgada, nem questiona os critérios de legalidade prevalencentes na sociedade mais vasta” (idem, p 344).
Pasárgada repete a base jurídica fora dela, sendo considerada microcapitalista. Embora não exista um antagonismo de classes, existe uma estratificação social e separação entre zonas boas e de má vizinhança, fazendo com que a AM defenda os interesses dos estratos mais baixos mas de modo paternalista (idem, p. 344).
As relações dentro da comunidade são individualistas, mas com exemplos genuínos de solidariedade, Boaventura – em uma entrevista – descreve Pasárgada como uma comunidade de gente digna, pacífica e completamente o oposto do estereótipo criado por pessoas de fora. “São apenas pessoas que lutam por uma vida decente em uma sociedade indecente, excludente”.
3. Ao espelho
O referido capítulo chama atenção por ser um relato pessoal do trabalho de campo desenvolvido por Boaventura, trazendo reflexões que geralmente não são bem vistas no meio científico, que tende a valorizar mais a comprovação da tese do que a experiência vivida na pesquisa.
O autor encontrava-se em contradição, de viver o cotidiano da favela e assim que terminasse sua pesquisa, voltar para o conforto e segurança da Universidade, assim como quanto ao financiamento de sua bolsa, que era provido pela mesma instituição imperialista que fazia surgir Pasárgadas pelo mundo a fora.
Boaventura trata temas como a dificuldade que enfrentou por ser português, o dilema entre distanciar-se da comunidade para não influenciar a cientificidade da pesquisa ou ser solidário com a política vivida em Pasárgada, racismo, polícia e marginais, entre outros.
Considerações Finais
A obra “O Direito dos Oprimidos” de Boaventura de Sousa Santos é extremamente rica, tendo como base o ressurgimento dos ideais de Pluralismo Jurídico, evidenciando a existência de um pluralismo jurídico interclassista dentro da sociedade de Pasárgada, o direito dos opressores, oficial brasileiro versus o direito dos oprimidos, o Direito de Pasárgada, que desenvolveu um mecanismo próprio de jurisdição para lidar com a exclusão que enfrentava por ser uma favela.
Por meio de uma observação participante, trouxe uma teorização marxista em áreas da vida coletiva até então pouco estudadas através da pesquisa empírica. Identificou uma sociedade que relativiza a forma e o discurso em busca de uma solução mais ética em prol do interesse e bem-estar da comunidade.
A autonomia de Pasárgada deve ser vista como um avanço na luta dos oprimidos, uma espécie de alívio ao sistema jurídico dominante.
Como o próprio autor diz, o Direito de Pasárgada não é um direito revolucionário e também, não tem lugar numa fase revolucionária da luta de classes, visando apenas resolver conflitos interclassistas num espaço social “marginal”.
A obra não consegue ser transpassada para o contexto atual, pois a dinâmica existe foi alterada pelo alastramento da influência do tráfico de drogas, que inseriu o caráter coercitivo que não era presente em Pasárgada, que na verdade utilizava-se apenas de ameaças.
Mesmo assim, a obra deve ser vista como ousada pelo contexto em que foi escrita e o (re)começo da discussão do pluralismo jurídico.
Informações Sobre o Autor
Mariele Cunha Rocha
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG