Resumo: A Lei nº 13.429/2017 dispõe sobre as relações de trabalho nas empresas de prestação de serviços públicos a terceiros, notabilizando-se por alterar a Lei nº 6.019/1974 (Lei do Trabalho Temporário) e acrescentar artigos relativos à terceirização que foi complementada pela lei que instituiu a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017). O presente artigo busca apresentar a nova lei de terceirização e expor respostas sobre os limites para a terceirização de acordo com as Leis n. 13.467/2017 e 13.429/2017.
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico. 3. Limites para a terceirização de acordo com as Leis n. 13.429/2017 e 13.467/2017. a) Inconstitucionalidade formal; b) Inconstitucionalidade material; c) Princípio da proteção; d) Princípio da Primazia da realidade; e) Princípio da boa-fé objetiva. 4. Conclusão.
1. Introdução.
A CLT acertadamente reconheceu que a relação entre capital e trabalho se dá entre empregado e empregador, estabelecendo como regra geral o disposto em seu art. 2º segundo o qual o empregador é a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
O padrão jurídico criado pela aprovação das Lei n. 13.467/2017 e a Lei n. 13.429/2017 revela claro movimento no sentido de precarização do trabalho humano, mascarado de modernização, desvinculando-se da função histórica do Direito do Trabalho que é proteger o trabalhador para alcançar a igualdade substancial entre as partes uma vez que, como ensina Plá Rodriguez[1], a liberdade contratual entre pessoas com capacidade econômica e poder desiguais conduz a diferentes maneiras de exploração.
2. Histórico.
Embora o paradigma da relação laboral seja bilateral, em 1974, foi editada lei que rompia com este padrão (Lei nº 6.019/74), permitindo à empresa terceira (fornecedora de mão de obra) intermediar a prestação de serviços para uma empresa tomadora. Conforme a redação original do art. 2º da referida lei, o trabalho temporário seria aquele prestado por pessoa física a uma empresa, para atender à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços.
Em 1983, a Lei nº 7.102/83 revogou o Decreto-lei n. 1.034/1969 e passou, além de reger o serviço de segurança em estabelecimentos financeiros, o transporte de valores, que poderia ser realizado pela própria instituição ou por empresa especializada (arts. 3º e 10). Por muitos anos foram estes os diplomas que regiam a terceirização no setor privado.
Em 1986, o enunciado n. 256 do Tribunal Superior do Trabalho (Resolução n. 04/1986), diante das demandas que se empilhavam no Poder Judiciário, buscou manter a coerência com o princípio protetor, considerando ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, decidindo que o vínculo empregatício se formava diretamente com o tomador dos serviços, salvo nos casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nº 6.019/74, e 7.102/83. Posteriormente, a súmula nº 256 foi incorporada pela súmula nº 331 do TST prevendo a diferenciação entre terceirização da atividade meio e atividade fim para considerar lícita a terceirização quando realizada para (I) contratação de trabalhadores por empresa de trabalho temporário; (II) na contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983); (III) na contratação de serviços de conservação e limpeza; e (IV) na contratação de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador.
Por várias décadas a matéria permaneceu sem regulamentação, até que em 2017, a Lei nº 6.019/74 foi alterada duas vezes para acrescentar dispositivos sobre a terceirização, de forma que passou a ser conhecida como a Lei de Terceirização.
A primeira alteração à Lei nº 6.019/74 se deu de forma tímida pela Lei nº. 13.429 de 31.03.2017, inserindo disposições sobre as relações de trabalho nas empresas de prestação de serviços e suas tomadoras, acrescentando os arts. 4o-A, 4o-B, 5o-A, 5o-B, versando sobre a terceirização.
O art. 4º-A da lei citada positivou a terceirização pela primeira vez em nosso ordenamento jurídico, de forma genérica, sem vincular a um ou outro segmento específico de atividade. O dispositivo, já derrogado, estabelecia que a empresa prestadora de serviços a terceiros destinava-se a prestar à contratante serviços determinados e específicos, impondo requisitos para o funcionamento da empresa de prestação de serviços a terceiros, em seu art. 4º-B, como a prova de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o registro na Junta Comercial e capital social compatível com o número de empregados.
Os defensores da terceirização logo se apressaram em afirmar que os arts. 4º-A, 4º-B, 5º-A e 5º-B, introduzidos pela Lei n. 13.429/2017 na Lei n. 6.019/1974 (a Lei do Trabalho Temporário), autorizaram a terceirização ampla e irrestrita, inclusive do que seria a “atividades-fim” (atividade econômica principal). Todavia, o art. 4º-A, caput, apenas registrava o conceito de empresa prestadora de serviços a terceiros, estipulando que os serviços deveriam ser determinados e específicos, sem ampliar suas hipóteses para a atividade fim, tanto que o artigo 9º, §3º, introduzido na Lei n. 6.019/1974, estabelecia que o contrato de trabalho temporário poderia versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-fim, silenciando sobre esta diferenciação em relação a empresas de prestação de serviços terceirizados.
O art. 5º-A vedou a utilização dos trabalhadores pela contratante, em atividades distintas daquelas que foram objeto do contrato com a empresa prestadora de serviços, possibilitando que a execução dos serviços ocorra nas instalações físicas da empresa contratante ou em outro local. Estabelece a faculdade de a contratante estender ao trabalhador da empresa de prestação de serviços o mesmo atendimento médico, ambulatorial e de refeição destinado aos seus empregados (§ 4o do art.5º-A), vulnerando o princípio da igualdade, e adotou a responsabilidade subsidiária pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços(§ 5º).
Percebendo que a alteração promovida pela Lei nº 13.429/17 não fora suficiente para alcançar o desiderato do capital, em menos de três meses, a Lei nº 6.019 fora alterado pela Lei nº 13.467/2017, Lei da Reforma Trabalhista, para incluir no art. 4º-A, a possibilidade de prestação de serviços a terceiros na atividade principal, superando a diferenciação sedimentada na súmula nº 331 do TST.
A Lei nº 13.467/17 acrescentou, ainda, o art. 4o-C para assegurar aos empregados da empresa prestadora de serviços, as mesmas condições de alimentação, transporte; atendimento médico, treinamento adequado, e estabeleceu a faculdade de estabelecimento de salário equivalente vulnerando neste particular o princípio da isonomia com assento constitucional (art. 4º-C § 1º).
3. Limites da Terceirização de acordo com a Lei nº. 13.429/17 e 13.467/17.
a) Inconstitucionalidade Formal.
O processo legislativo que culminou na aprovação da Lei nº 13.429/17 foi iniciado pelo Presidente da República que após seu início, mas antes de ultimar a deliberação, solicitou sua retirada. Treze anos depois desta solicitação, a Câmara dos Deputados não deliberou sobre este pedido e deu seguimento à tramitação legislativa, em clara usurpação de prerrogativa.
A lei é formalmente inconstitucional, por vício na tramitação do projeto de lei 4.302/1998, que a originou, em violação aos arts. 2º, 61, caput, e 84, III, da CRFB, pois foi iniciado pelo Poder Executivo e a deliberação do requerimento de retirada é uma prerrogativa reflexa do poder de iniciativa. Desse modo, o seguimento do projeto de lei, implicou usurpação de prerrogativa, afrontando a divisão funcional do poder e colidindo com a CRFB.
Neste sentido é a jurisprudência do STF que já se pronunciou pela inconstitucionalidade formal, quando há usurpação do poder de iniciativa do Presidente da República, de modo que o vício é insanável, ainda que haja sanção posterior do projeto pelo chefe do Executivo (ADI 687/ES, relator Min. Celso de Mello).
Em relação à Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17), a inconstitucionalidade formal resta evidenciada pelo desrespeito aos ditames constitucionais contidos nos arts. 64 e 65 da CRFB que estabelecem que o projeto de lei de iniciativa do Presidente da República, aprovado pela Câmara dos Deputados que for objeto de emendas no Senado Federal, deverá retornar à apreciação da Câmara dos Deputados para nova deliberação e votação.
É importante ressaltar que o relatório da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal – CAE entendeu pela modificação do projeto de lei, mas, contraditoriamente, opinou pelo encaminhamento ao Presidente da República para sanção. Ora, a norma constitucional busca assegurar espaço para o debate democrático no âmbito do Congresso Nacional, mas não foi o que ocorreu em relação à Reforma Trabalhista que ocorreu em menos de um ano, com rejeição da sociedade na consulta pública realizada pelo Senado Federal[2] e sem a necessária participação popular, em desacordo com normas internacionais (Convenções 154 e 155 da OIT), implicando em denúncia do Estado brasileiro perante a Organização dos Estados Americanos[3], como apontado por Gondim[4].
A complexidade de alteração da CLT não permite que ela seja concluída em prazo exíguo, reconhecendo expressamente que obra dessa envergadura não poderia ser realizada de forma açodada, de modo que a própria exposição de motivos da Medida Provisória nº 808/017 reconhece que o processo legislativo não percorreu o curso adequado ao dispor que seu objetivo é o aprimoramento de dispositivos ditos como pontuais, relacionados a aspectos discutidos durante a tramitação do PLC nº 38, de 2017, no Senado Federal que demonstram de forma cabal a ausência de processo de diálogo e análise realizado pelo Congresso Nacional.
O Senado Federal apontou para a desnecessidade de alteração do projeto no momento de sua tramitação para não atrasar sua entrada em vigor, utilizando medida provisória, para aperfeiçoar aquilo que a lei deveria alcançar, justamente porque não houve maturação e diálogos suficientes em relação a referida reforma.
Assim, a MP nº 808/2017 foi editada em desacordo com o artigo 62 da CRFB sem preencher o requisito constitucional de urgência[5], sendo inequívoca sua inconstitucionalidade formal por ausência de tal condição. Além disso, seu art. 2º, ao expressamente dispor que disposto na Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, se aplica, na integralidade, aos contratos de trabalho vigentes.
b) Inconstitucionalidade Material.
Quando a OIT enunciou que o trabalho não é mercadoria[6], busca assegurar, nas lições do Kant[7], que o homem tenha sua dignidade respeitada, impedindo que ele seja utilizado como meio para a consecução de um fim, uma vez que é o homem que possui fim em si mesmo.
A terceirização mina as bases constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88) e da valorização do trabalho (art. 1º, III, c/c art. 170, caput, CRFB/88), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CRFB/88), com o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III, CRFB/88), na busca da promoção do bem de todos (art. 3º, IV, CRFB/88), além da vedação ao retrocesso social (art. 7º, caput).
Diversos são os estudos que demonstram que a terceirização reduz o espectro de proteção dos trabalhadores, de modo que um empregado terceirizado possui menores salários[8], menos benefícios em razão da atuação sindical deficiente e maior número de adoecimentos e acidentes de trabalho[9], além de alta rotatividade[10][11], restando mais que comprovada a violação do regime fundamental de emprego protegido socialmente (arts. 1º, IV, 7º a 11, 170, VII e VIII, e 193). Assim o aumento da concentração de renda, com inversão do objetivo constitucional de redução das desigualdades sociais, passa necessariamente pelo debate constitucional para afastar qualquer interpretação que colida com nossa ordem jurídica[12].
Seguindo o mesmo raciocínio, a 2ª Jornada Direito Material e Processual do Trabalho da ANAMATRA aprovou o enunciado nº 80[13], segundo o qual a autorização de transferência da atividade principal da tomadora, para empresa de prestação de serviços é incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro.
A interpretação dos arts. 4º – A e 5º- A e do § 3 o do art. 9º da Lei 6.019/1974, na redação das Leis nº 13.429/2017 e 13.467/2017, no sentido de autorizar terceirização irrestrita de atividades fim de empresas privadas é inconstitucional por violar a função social da empresa (arts. 1º, IV; 5º, XXIII, e 170, III, c/c arts. 7º, XII; 24, XIV; 212, § 5º; 218, § 4º, e 227) que deve sobrepor aos seus fins o valor social do trabalho digno, um dos fundamentos do nosso estado democrático de direito que objetiva construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, com promoção do bem de todos.
Não se pode admitir que o conteúdo dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores seja esvaziado com a irrestrita terceirização em afronta à CRFB em seu arts. 7º a 11, e ao princípio isonômico nas relações de trabalho (art. 5º, caput e inc. I, art. 7º, IV) em razão da discriminação salarial que importa violação a convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como, a Convenção 111 da OIT, sobre discriminação em matéria de emprego e profissão, uma vez que a permissão de terceirização de atividades-fim, possibilitará que trabalhadores que exercem as mesmas funções para a mesma empresa receba salários distintos.
O princípio da isonomia impede o estabelecimento de diferenças salariais a trabalhadores que exerçam as mesmas funções para o mesmo tomador, de modo que a faculdade de salário equivalente deve ser lida como uma obrigação, sob pena de ferir de morte o postulado da igualdade, à luz da CRFB/88, art. 7º, XXXII[14].
Cumpre citar a violação às Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público, pois a contratação de empregados terceirizados pulveriza a classe trabalhadora, diminui o espírito de solidariedade de classe e debilita os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade[15]. Não cabe neste texto o aprofundamento do tema sobre abrandamento sindical, mas não se pode negar que o avanço do desemprego tem como consequência o efeito de desfavorecer o trabalhador que permanece em situação de desigualdade de poder inspirando a aplicação do princípio da proteção[16].
A terceirização irrestrita colide com a cláusula constitucional de vedação de retrocesso social e vulnera normas internacionais de direitos humanos, dotadas de caráter supralegal, como o Pacto de São José da Costa Rica (promulgado no Brasil por meio do Decreto 678/1992 ), a Carta da Organização dos Estados Americanos (promulgada no Brasil pelo Decreto 67.542/1970) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC – promulgado pelo Decreto 591/1992), razão pela qual devem ser declarados inconstitucionais.
Por fim, mas não menos importante, a terceirização utilizada na Administração Pública afronta a regra constitucional do concurso público (arts. 37, II, e 173, § 1º, II). Resta salientar que o ataque do capital busca atingir não só o setor privado[17], sobretudo após a aprovação da PEC 55/2016, conhecida como PEC dos gastos públicos, são recorrentes notícias de necessidade de limitação de gastos públicos com despesas de pessoal, gerando pressão para que a Lei 13.467/2017, ao alterar a lei 6.019/74, se aplique ao setor público, uma vez que os contratos com empresas terceirizadas não estariam incluídos na despesa de pessoal. Como alerta Leomar Daroncho[18], a terceirização, no mais das vezes, está atrelada à corrupção:
“São notórios os casos que desnudam a relação estreita entre terceirização e corrupção na Administração Pública. Recentemente, ganhou visibilidade o caso da terceirização nos presídios, com indícios de corrupção e doações eleitorais. Também há inúmeras denúncias e investigações nas áreas da saúde e da educação.
Conforme registrado pela procuradora Regional do Trabalho Ileana Neiva Mousinho, criam-se. Em geral, parte-se da contratação emergencial, com dispensa de licitação, de empresas prestadoras de serviços terceirizados ou de falsas organizações sem fins lucrativos. No processo, tem-se o superfaturamento de preços dos contratos de prestação de serviços que servem, ainda, aos interesses econômicos e eleitorais de políticos que engendram a sua contratação.”
Todavia, cumpre alertar que a lei citada, tanto no tema da contratação temporária quanto da terceirização de serviços, não se aplica à administração pública direta ou indireta, em razão da obrigatoriedade de concurso público (art. 37, caput, e incs. II e IX, da CRFB/88)[19], na esteira de entendimento já sedimentado pelo STF (ADI 890/DF e MS 21.322/DF)[20].
A título de informação, foram ajuizadas mais de uma dezena de ações declaratória de inconstitucionalidade em face de dispositivos da reforma trabalhista. O Procurador-Geral da República ajuizou as ADIs 5735 e 5766[21], que tratam respectivamente de terceirização e assistência judiciária gratuita, e outras 11 ADIs foram ajuizadas por confederações sindicais sobre os temas da contribuição sindical, negociado sobre o legislado e contrato de trabalho intermitente (5685, 5686, 5687, 5735, 5766, 5794, 5806, 5810, 5870, 5850 e 5860).
Independentemente das discussões em curso, a presença de pessoalidade e subordinação em relação à empresa contratante continua a ser ilícito, na esteira do preconizado pela orientação nº 15 da Coordenadoria de Combate às Fraudes do MPT[22].
c) Princípio da Proteção.
A autonomia do Direito do Trabalho tem como base seus princípios e métodos próprios, com conceitos comuns distintos de outros ramos do direito. Os princípios peculiares do ramo jus laboral devem presidir todas as soluções afastando interpretações da lei que, em razão da própria dinâmica social, muitas vezes é fonte de incerteza jurídica como é o caso da Reforma Trabalhista.
O caráter fragmentário deste ramo conduz a uma variação de normas que impõe a adoção de uma base de princípios sólida e fiel a razão de existir do Direito do Trabalho que é restabelecer juridicamente o equilíbrio de uma relação faticamente desigual. Plá Rodrigues aponta que o Direito do Trabalho é um direito em constante formação e, com acerto, ressalta a importância e o reconhecimento de princípios próprios do Direito do Trabalho que suprem a estrutura conceitual deste ramo relativamente novo antes assentada em outros ramos jurídicos[23] .
A ordem jurídica estabeleceu a relação de emprego como preceito universal da conexão entre o capital e o trabalho. Assim, pensamos como Jorge Luiz Souto Maior segundo o qual “não é possível que a ordem jurídica estabeleça a relação de emprego como regra geral da vinculação entre o capital e o trabalho e se permita, ao mesmo tempo, que a relação de emprego não seja esse mecanismo de vinculação do capital ao trabalho[24].
A nova redação do art. 2º da Lei nº 6.019/74 subverte esta lógica ao prever que a prestação do trabalho temporário por pessoa física ao tomador de seus serviços poderá ser intermediada por empresa de trabalho temporário para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços (Lei nº 13.429/17). Além da inclusão explícita da empresa de trabalho temporário, o dispositivo suprimiu o ‘acréscimo extraordinário de serviço’, exatamente a situação excepcional que justificava a contratação de um trabalhador temporário, revelando claramente a mera intermediação de mão de obra, reduzindo o trabalhador a uma coisa.
Em vez de acréscimo extraordinário de serviço, o § 2º, do art. 2º, da Lei nº 6.019, incluiu a demanda complementar de serviços como aquela relacionada a fatores imprevisíveis ou, quando decorrente de fatores previsíveis, apresentassem natureza intermitente, periódica ou sazonal. Para tais hipóteses, o empregador já lançava mão do banco de horas, compensando a exigência de mais trabalho em alguns meses e menos em outros. O referido parágrafo está eivado de inconstitucionalidade, golpeando o valor social do trabalho ao objetivar a relações de trabalho temporário como regra, além de colidir com o princípio da proteção, lumiar de todo o sistema jurídico-normativo laboral. Como explica Plá Rodriguez[25]:
“O recente passado nos países sul-americanos é rico nessas experiências, na promulgação de leis que significavam um retrocesso com relação aos princípios do Direito do Trabalho. Essas leis só duraram, na maioria dos casos, enquanto duraram os governos de força que as sancionaram.”
A reforma trabalhista é fértil em exemplos de inconstitucionalidades e desconhecimento do arcabouço normativo basilar do Direito do Trabalho, impondo sua interpretação para melhorar a vida do trabalhador, pois o desnível econômico, que é sua razão de ser, não deixou de existir.
d) Princípio da Primazia da Realidade.
A terceirização é instrumento de precarização que busca desvincular capital e trabalho, como se possível fosse apartar a relação dele subjacente pela contratação de entes interpostos[26]. Assim, a Reforma Trabalhista deve ser interpretada à luz do princípio da primazia da realidade, reconhecendo o vínculo de emprego com o empregador, que é quem de fato comanda e se beneficia do serviço prestado pela empresa interposta.
O princípio da primazia da realizada impede que haja transferência do vínculo jurídico da empresa produtiva (tomadora) para a empresa agenciadora (prestadora), em observância ao disposto no art. 2º da CLT, segundo o qual foi consagrado que se considera empregador a “empresa” que assume os riscos da atividade econômica. Assim, se não há autonomia formal, administrativa, organizacional, finalística e operacional da empresa contratada, há fraude ao regime de emprego.
Assim, ausentes quaisquer dos requisitos de validade da prestação de serviços a terceiros prevista na Lei nº 13.467/2017, desvirtua-se a prestação de serviços impondo o reconhecimento da nulidade com a aplicação do art. 9º da CLT( Orientações nº 16 e 17 da CONAFRET do MPT).
e) Princípio da Boa-fé objetiva.
A boa-fé objetiva serve como norte das relações contratuais, inclusive as laborais. Assim, uma vez ocorrendo a transferência de atividade empresarial a um terceiro, este deve gerir integralmente o objeto do contrato, implicando conhecimento específico e capacidade econômica[27] compatível com a sua execução durante todo o curso do contrato, pressupondo pactuação de preço compatível com os custos operacionais e inexistência de passivo comercial, trabalhista, previdenciário ou fiscal que ponha em risco o adimplemento contratual ( Orientação nº 19 da Conafret do MPT).
Tal idoneidade não se restringe a observar o capital social mínimo exigido pelo art. 4º B, III, impondo exclusividade de direção do trabalho, desvio de função do serviço previsto em contrato, sob pena de subverter a regra do direito do trabalho que é a relação de emprego, impondo o reconhecimento da fraude com a nulidade do ato praticado, de acordo com o art. 9º da CLT.
4. Conclusão.
A terceirização, embora alardeada como técnica de modernização das relações laborais, como esclarece Souto Maior, é mera intermediação de mão-de-obra que existia desde a Revolução Industrial e cuja perversidade trouxe à lume o “princípio básico do Direito do Trabalho de que ‘o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de comércio’ (Tratado de Versalhes, 1919)”[28].
A terceirização malfere as bases constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88) e da valorização do trabalho (art. 1º, III, c/c art. 170, caput, CRFB/88), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CRFB/88), com o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III, CRFB/88), na busca da promoção do bem de todos (art. 3º, IV, CRFB/88), além da vedação ao retrocesso social (art. 7º, caput), de modo que é sobre a lente dos princípios do direito internacional, dos constitucionais sociais e do princípio tutelar que os limites da terceirização devem ser postos.
Informações Sobre o Autor
Andrea da Rocha Carvalho Gondim
Procuradora do Trabalho. Mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Processual Civil. Graduada pela Universidade de Fortaleza