1. Introdução
As sociedades comerciais, na situação
de pessoas jurídicas que são, praticam seus atos através de representantes
legais, seus diretores. Estes não contraem responsabilidade pessoal pelos atos
praticados dentro da lei ou do estatuto, e não respondem pelo cumprimento das
obrigações contraídas no exercício desta função, posto que, não são suas, mas
da sociedade. Seus atos estão vinculados ao objeto social, determinado no
estatuto social, não podendo praticá-los fora da finalidade da empresa, sob
pena de serem considerados atos ultra vires societatis.
A teoria do ato ultra
vires societatis ,ora estudada, é de origem
anglo-saxônica, e de acordo com ela, a sociedade não responde pelos atos de
seus representantes legais praticados com extravagância do objeto social. O ato
ultra vires societatis é
aquele praticado pelo gerente fora ou além dos limites postos pelo objeto
social, figurando-se o abuso da razão social.
Aplicando essa teoria em termos
absolutos, a sociedade não se responsabiliza por tais atos, mesmo que eles
trouxerem vantagens à empresa; os atos estranhos ao objeto social são
insanavelmente nulos, mesmo quando hajam sido deliberados por decisão unânime
dos sócios. Qualquer negócio realizado pela companhia além de seus poderes é
nulo e não pode ser ratificado de modo algum.
Em termos relativos, a sociedade
comercial só não se responsabiliza pelos atos praticados fora do objeto social
dos quais não tenha obtido vantagem ou, no caso da sociedade anônima, não tenha
sido ratificado pela assembléia geral.
2. Aplicação da teoria
O objeto social limita a atividade do
gerente, que não é responsável pelos atos normais que pratica na gestão, à
frente da empresa. O fim da sociedade é realizar o objeto social, sendo de
extrema importância a sua descrição precisa e completa, pois os atos que o
violam podem ser perigosos para os acionistas e credores.
Essa concepção de declarar nulos os
atos praticados fora do objeto social surgiu com a sociedade moderna, na qual a
responsabilidade dos sócios é limitada e em que a personalidade jurídica
resulta do devido registro. Além da visão atual de proteger os interesses
confluentes, dos acionistas e terceiros, que podem restar prejudicados se tais
atos foram tidos como válidos.
A finalidade da sociedade deve ser a
consecução de seu objeto social, sua definição precisa e completa, previamente
expressa no contrato ou estatuto, limita a área de discricionariedade dos
administradores e a capacidade da sociedade; sendo assim, mais fácil
caracterizar o abuso.
A proibição ao sócio gerente de
realizar qualquer negócio além dos limites fixados no estatuto social visa
principalmente à proteção dos credores e acionistas, pois estes, por estarem
diretamente relacionados com a sociedade, são os eventualmente prejudicados pelos
efeitos dos atos abusivos, que conflitam com a lei ou estatuto social.
A proteção aos acionistas é devida já
que estes aplicam seu capital em determinada empresa da qual conhecem a
finalidade, o objeto, sendo este de confiança e interesse do investidor, pois,
parte-se da idéia de que a sociedade existe apenas para a realização do objeto
social sendo perigosos os atos que o violam, devendo ser declarados nulos. Não
devendo o acionista responder por um ato abusivo do gerente, fora dos poderes a ele delegado.
O excesso de poder do diretor não pode
também prejudicar os credores, já que estes confiam nos negócios atuais da
empresa, não podendo esta ingressar em negócio de natureza arriscada, do qual
resultará perda do capital social.
3. Evolução da teoria dos atos ultra vires e sua amenização
Hodiernamente a doutrina ultra vires não vem sendo utilizada da forma em que foi
concebida, ou seja, eivando de nulidade todo ato que ultrapassasse os objetivos
da sociedade. Deve-se levar em conta a pessoa de boa-fé que negocia com a
empresa, posto que em alguns momentos é difícil
vislumbrar o desvirtuamento do objeto, aplicando-se em alguns casos a teoria da
aparência, presumindo-se assim a boa-fé do terceiro, que se ilude frente a
notória dificuldade de verificar se o representante está ou não imbuído de
poderes para contrair obrigações em nome da empresa.
Analisando os principais artigos da Lei
6.040/76 que tratam da responsabilidade dos administradores, encontramos, no
artigo 158, basicamente três situações concernentes à prática de atos dentro e
fora dos poderes a eles delegados, e suas conseqüências civis.
A primeira, constante no caput, diz respeito aos atos
praticados pelos diretores dentro de suas atribuições ou poderes, em obrigações
regulares de gestão. Neste caso, o administrador não é pessoalmente responsável
pelos atos que contrair em nome da sociedade, mesmo que haja prejuízo a esta ou
a terceiro.
A segunda, expressa no inciso I,
refere-se ao atos praticados dentro do âmbito regular
de gestão, porém com culpa ou dolo por parte do administrador. Nesta hipótese,
a sociedade responderá pelo prejuízo, contanto, terá ação regressiva contra o
administrador, devendo provar o dolo ou a culpa nos atos deste.
A terceira hipótese, prevista no inciso
II, é a que realmente nos interessa, posto que trata
da prática do ato ultra vires societatis. As
obrigações assumidas com violação da lei ou do estatuto acarretam a
responsabilidade do administrador que agiu dessa forma, independente da prova
do dolo ou culpa, pois, nesta situação, presume-se a culpa. É o princípio da
inversão da prova, já que a culpa do diretor é presumida, e a ele incumbe
provar que a violação do estatuto resultou de circunstância anômala, não
provocada por sua culpa ou relativamente às quais não podia ter nenhuma
influência, ou ainda, que os prejuízos decorrentes da prática de seus atos
ocorreriam de qualquer forma.
Violando a lei ou o estatuto social o
administrador estará agindo além dos poderes e atribuições que a lei lhe
confere, ensejando responsabilidade pessoal pela prática de atos dessa
natureza, respondendo perante a sociedade (art. 159, caput) e o terceiro
prejudicado (art. 159, § 7º). Os diretores responsáveis devem responder em
caráter pessoal, diretamente perante os prejudicados. Tendo estes
legitimidade para acionar aqueles, diretamente, pelo prejuízo que
causaram com a má utilização dos poderes a eles delegados pela sociedade que
representam.
Porém, se o administrador, agindo
dentro de suas atribuições, causar prejuízo a terceiros,
a empresa é responsável por estes atos, já que aquele age em nome desta, mesmo
que isso possa trazer ônus à sociedade. Não possuindo, nesse caso, o terceiro ação de reparação contra o administrador, não
pode acioná-lo diretamente. Poderá apenas ajuizar ação contra a sociedade. A
esta, por sua vez, caberá ação regressiva contra o administrador responsável
pelo dano causado.
Deve-se destacar a existência do ato intra vires, mais um mecanismo
para amenizar a doutrina do ato ultra vires societatis
em sentido absoluto. Aquele conceitua-se como
acessório para a consecução do objeto social, sendo válidos. Pois, mesmo não
sendo expressamente mencionados no estatuto, certos poderes são considerados
como necessários e complementares para a realização da finalidade da empresa.
Os poderes para praticar atos intra vires responsabilizam a sociedade da mesma forma que
expressamente previsto para o empreendimento do objeto social, já que aqueles consideram-se implicitamente reconhecidos.
Por seu turno, não podemos invocar a
teoria ultra vires societatis
para eivar de nulidade atos como a venda de substâncias entorpecentes, postos
que estes, por violarem a ordem pública, são nulos de pleno direito. Não
ensejando, nestas hipóteses, a possibilidade de proteção às pessoas, como os
acionistas e credores, que consentem em participarem de empresas que tenham
finalidade ilícita.
Do exposto, podemos afirmar que, quando
o sócio-gerente age com excesso de poder, violando o objeto social lícito para
o qual foi constituída a empresa, acaba responsabilizando-se civilmente perante
a sociedade ou terceiros, pelos prejuízos causados, de acordo com o que se
verificar em alguns julgados:
“A prática de atos ultra vires não obriga a sociedade, por eles respondendo o sócio
signatário dos títulos (…)” Ap.Cível 63955/81-TARJ.
“O gerente de uma sociedade por
cotas responde, solidária e ilimitadamente para com a sociedade e para com
terceiros, pelos atos praticados com violação do contrato social” RT
485/249 – TJSP.
“É a sociedade por ações obrigada
pelos atos praticados por seus diretores. Estes estarão solidariamente
obrigados com aquela, outrossim, se os prejuízos causados resultarem de prática
sua, mas levada a efeito por culpa e com violação dos estatutos sociais”
RDM 02/74.
“A responsabilidade civil dos
administradores somente surge com a violação dos deveres impostos por lei ou
pelos estatutos, pois a direção da sociedade é obrigada a executar as medidas
deliberadas pela assembléia geral dentro de sua competência. Se o administrador
obra em nome da sociedade, praticando ato regular de gestão, não será
pessoalmente responsável pelos atos que praticar, ainda que o resultado não
seja o esperado pela maioria controladora.” 29ª
VCRJ – Proc 15.403/94.
“Em que pese à proibição
estatutária, cumpre resguardar os interesses de quem transaciona de boa-fé
(…). A jurisprudência vem se orientando no sentido de resguardar os terceiros
de boa-fé.” RT 569/194.
“O ajuste celebrado entre terceiro
de boa-fé e sócio que, embora com infração ao estatuto ou contrato social, se
haja apresentado como habilitado a representar e contrair obrigações em nome da
sociedade, deve ser honrado por esta, cabendo-lhe, ou
a qualquer de seus sócios, demandar pessoalmente infrator pelos danos
decorrentes do ato lesivo.” Agr. Reg./
4ª Turma STJ.
Contudo, o princípio da boa-fé que
norteia o direito comercial não deve ser levado às últimas conseqüências, como
regra geral. Pois se assim fosse, o patrimônio social correria enormes riscos
frente a má administradores. Deve-se proteger o
terceiro de boa-fé se este for um homem comum, já que não é hábito desta
categoria a verificação de poderes dos diretores no registro de comércio,
assim, não deve ser prejudicado se não houver razões concretas para presumir que
tinha conhecimento da irregularidade. No entanto, não deve restar protegido o
terceiro que tenha conhecimento, ou devesse ter, do
objeto social e dos limites da atuação dos gerentes em razão da profissionalidade de seus atos.
Entendem alguns doutrinadores que há
situações em que mesmo agindo com excesso de poderes, os atos ultra vires dos administradores obrigam a sociedade, não podendo
esta repudiá-los e atribuir a responsabilidade aos seus representantes. São os
casos em que tal prática ocasione benefícios à empresa ou se ratificados pela
assembléia geral dos acionistas.
Se os atos ultra
vires gerarem lucro à sociedade, é natural que esta deva
responsabilizar-se por ele, já que um dos princípios basilares do direito veda
o enriquecimento sem causa.
No que tange à ratificação dos atos
praticados com excesso de poder, entende-se que estes subsistirão tendo em
vista o princípio geral que admite a ratificação do ato anulável.
A classificação dos atos ultra vires societatis como válidos
funda-se na teoria da representação orgânica, na qual o diretor ou gerente não
é um mero mandatário ou representante da pessoa jurídica que está a frente,
mas, sim, um órgão desta. Sendo que a sociedade faz-se presente através de seus
diretores, parte de seu organismo.
4. Conclusão
Assim, verifica-se que atualmente a
teoria do ato ultra vires societatis
não é mais aplicada com a mesma severidade com que foi concebida, já que os
atos praticados com excesso de poder, fora do objeto social não são sempre
nulos. Antes deve-se levar em conta uma série de
fatores, quais sejam, o fato de gerar benefícios à sociedade; de serem
ratificados pela assembléia geral; de serem intra
vires, já que mesmo não estando expressos, vinculam-se aos atos legítimos. Além
de caber responsabilização civil aos administradores perante terceiros de
boa-fé que contrataram com quem aparentemente estava no âmbito de suas
atribuições, e também frente aos acionistas que não devem sofrer prejuízos pelo
fato do representante da sociedade que fazem parte ter agido com violação do
estatuto social, ao qual aqueles se submeteram.
Informações Sobre o Autor
María Pérez Pereira
Abogada en España
Doctora en derecho en la Universidad Carlos III de Madrid/España