Lei Pelé, caso Bosman e o Mercosul

Introdução

A primeira vista, os três temas elencados como título deste texto causam uma
certa apreensão, eis que poder-se-ia indagar que ligação haveria entre a
lei que estabelece normas gerais sobre o desporto, o Caso Bosman
(o que é o Caso Bosman?) e o Mercosul. Para
interligarmos as mesmas, no escopo de tornar mais compreensíveis as idéias
perfilhadas nestas linhas, cumpre que façamos uma análise em separado de cada
um dos temas propostos para que ao final possamos conjugá-los e chegarmos a um
ponto comum.

O Caso Bosman

O chamado caso Bosman,
de grande repercussão na seara futebolística européia, principalmente no que
tange aos países comunitários, teve como seu protagonista o jogador de futebol Jean-Marc Bosman, de
nacionalidade belga. Este jogava desde 1988 pelo Royal Club Liégeois SA (RCL), clube da primeira divisão
daquele país, tendo um contrato que se expirava em 30 de junho de 1990 e que
lhe garantia um renda mensal de 120.000 BFR. Em 21 de
abril de 1990, o RCL propôs ao citado jogador um renovação
contratual por mais uma temporada. Todavia, a proposta apresentada reduzia o
salário percebido por Bosman, que agora seria de
30.000 BFR. Não concordando com a proposta apresentada pelo clube belga, Bosman foi inscrito na lista de transferências, tendo sido
fixado o valor de 11.743.000 francos belgas (BFR) como quantia a ser paga pelo
clube interessado em adquirir o “passe” do jogador.

Como não houve o interesse de nenhum
clube em pagar o valor estipulado para a transferência de Bosman,
este estabeleceu contatos com o clube francês Dunquerque,
da segunda divisão daquele país, tendo fechado um contrato que lhe garantiria
um saldo mensal de 100.000 BFR, mais uma “prima de contratación”
de 900.000 BFR.

Em 27 de julho celebrou-se também um
contrato de entre o clube belga RCL e o clube francês Dunquerque
no qual estipulava-se a transferência temporal, pelo
prazo de 1 ano, mediante o pagamento por este último clube de uma compensação
de 1.200.000 BFR que seriam exigíveis quando da recepção pela federação francesa
de futebol do certificado de transferência expedido pela federação belga. No
mesmo contrato concedia-se ao Dunquerque a opção de
adquirir definitivamente o vínculo do jogador mediante o pagamento de 4.800.000
BFR.

Como não houve a expedição do citado
certificado de transferência, e por duvidar da capacidade financeira do Dunquerque, os contratos acabaram tornando-se sem efeito.
Destarte, em 31 de julho de 1990, o RCL suspendeu Bosman,
impedindo-lhe de jogar aquela temporada. Por tal razão, o jogador ingressou, em
8 de agosto de 1990, com uma ação junto a um Tribunal de 1ª Instância de Liège, contra o RCL, requerendo, dentro outros pleitos, que
os demandados ficassem proibidos de obstacularizar a
sua liberdade de contratação.

Durante o trâmite processual, outras
organizações, tais como FIFA e UEFA, passaram a integrar a demanda. Desta
maneira, o Tribunal de 1ª instância de Liège, em 11
de unho de 1992, declarou a admissibilidade das ações propostas por Bosman contra a RCL, a URBSFA e a UEFA, determinado a
inaplicabilidade  das normas relativas à
transferências e às cláusulas de nacionalidade, sancionando o comportamento
destas três organizações.

Por conseguinte, por conta das questões
prejudiciais suscitadas, formulou-se ao Tribunal de
Justiça da Comunidade Européia duas indagações, das quais citamos tão somente a
primeira, eis que a segunda foge ao escopo do tema proposto. Assim, indagou o
Tribunal belga: “Os artigos 48, 85 e 86 do Tratado de Roma de 25 de Março de
1957 devem ser interpretados no sentido de que proíbem: a) que um clube de
futebol exija e receba o pagamento de um montante em dinheiro pela contratação,
por um novo clube empregador, de um dos seus jogadores cujo contrato tenha
chegado ao seu termo?”.

A primeira questão posta à exame pelo Tribunal de Justiça, refere-se a possibilidade
de que o art. 48 do Tratado se oponha a aplicação das normas adotadas por
associações desportivas quando da transferência de jogadores, as quais
fundamentam-se na necessidade de uma compensação financeira caso um clube de um
Estado membro queira contratar os serviços de um jogador profissional de
futebol de outro Estado membro, quando do término do contrato deste,
compensação esta chamada de formación o promoción.

Enfrentando o tema proposto, declara a
Corte que a necessidade de pagamento de uma compensação financeira que os
clubes empregadores estão obrigados a pagar para contratar um jogador
proveniente de outro clube está a afetar diretamente as possibilidades deste
para encontrar um emprego, bem como suas respectivas condições. Assim, conclui
que o art. 48 do Tratado se aplica as regulamentações adotadas por associações
desportivas como a URBSFA, a FIFA e a UEFA, o que, por conseguinte, acarreta as
mesmas a obrigação de observar, em caso de transferência, a desnecessidade de
pagamento de indenização por um clube a outro quando o contrato do jogador já
tenha terminado.

O primeiro consectário lógico desta
decisão, e também o mais importante, é que quando atingido o termo final do
contrato de um jogador de futebol profissional com o seu clube, e sendo esse
jogador cidadão de um dos Estados-membros da União Européia, o clube antigo não
pode impedir o jogador de assinar um novo contrato com outro clube noutro
Estado-membro, de modo que o clube cedente não poderá mais exigir uma
compensação financeira em caso de transferência do jogador.

Por óbvio que esta decisão desagradou
clubes, federações e confederações, mas, mesmo assim, fora observada em todas
as negociações envolvendo na transferência de jogadores.

A legislação brasileira

A Lei 9.615, de 24 de março de 1998,
mais conhecida como Lei Pelé, que teve o escopo de condensar normas gerais
sobre o desporto, introduziu algumas mudanças significativas no futebol, dentre
as quais, sem dúvida alguma, sobrepõe-se o § 2º do art. 28, o qual, em uma
simples locução, revoluciona o futebol brasileiro. Isto porque o citado
parágrafo estabelece que “o vínculo desportivo do atleta com a entidade
contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo de emprego…”. Em
outras palavras, significa a extinção do instituto do passe, consagrado pela
Lei 6.354/76, cabendo esclarecer, todavia, que a “morte” do passe, por expressa
disposição legal (art. 93 da Lei 9.615/98), deu-se a partir de 26 de março de
2001.

O passe, na definição do art. 11 da lei
nº 6.354/76, é “a importância devida por um
empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência
do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas
vigentes”. A FIFA, no art. 14 do seu Regulamento de Transferência de Jogadores de Futebol, em disposição similar, declara
que “cuando un jugador no-aficionado concluya un contrato con un nuevo club, su
antiguo club tendrá derecho a una indemnización de promoción y/o formación”. Esta indenização de formação ou promoção
nada mais é do que a aquisição, mediante pagamento de uma quantia, do vínculo
desportivo do atleta.

Nos contratos firmados sob a égide da
inexistência do vínculo desportivo, não existe mais a possibilidade do clube,
ao final do contrato, negociar o atleta recebendo do clube contratante uma
indenização pelo pagamento do passe. Poderá o clube apenas, da mesma forma como
ocorre no futebol europeu, receber indenização no caso de rescisão antecipada
do contrato, pelo jogador, mediante o pagamento da cláusula de rescisão
previamente fixada no contrato, nos termos do § 3º do art. 28.

Não querendo adentrar na controvérsia
sobre com quem está razão quanto a extinção ou não do
vínculo desportivo, pois boas razões existem para ambos os lados (clubes e
jogadores), cabe-nos consignar, previamente, uma questão causará muita celeuma,
que é a referente a redação do art. 93, alterada pela Lei 9.981/00, a qual
determina a observância dos direitos adquiridos decorrentes dos contratos de
trabalho e vínculo desportivos profissionais pactuados com base na legislação
anterior. Isto quer dizer, como já manifestaram-se
alguns juristas, que mesmo atingindo-se o término do contrato, se este tivesse
sido firmado sob a tutela da legislação anterior (que previa a existência do
passe) o clube tem o direito adquirido sobre o mesmo, podendo então requerer
indenização pela transferência do jogador. Trata-se, sem dúvida, de matéria
extremamente polêmica, que será decidida pelos nossos tribunais, mas que já
rendeu um primeiro exemplo, que é o caso do jogador Ronaldinho, ex-atleta do
Grêmio e hoje tentando via Poder Judiciário a declaração da inexistência de
qualquer vínculo desportivo com o Grêmio.

O Mercosul

No art. 1º da Tratado
de Assunção lê-se que o mesmo implica na “livre circulação de bens, serviços e
fatores produtivos entre países…”. Pois bem, muito embora
que não esteja expresso no corpo do tratado um paradigma de livre circulação de
trabalhadores entre os Estados componentes do Mercosul, muitas pessoas
identificaram na livre circulação de fatores produtivos um supedâneo para tal
lacuna, de modo que aptos estaríamos para lançarmos as bases, tendo como pano
de fundo o modelo comunitário europeu, para uma ampla mobilidade dos fatores de
produção (trabalhadores) dentro do Mercosul.

Na seara do Direito Desportivo, que a
que nos interessa, a confirmação de tal regra por
óbvio traria grande repercussões, principalmente quanto aos jogadores de
futebol. Isto porque, admitindo-se a possibilidade de trabalho em qualquer do países do Mercosul, sem qualquer vínculo que os afete
(respeitando-se, é claro, as bases contratuais), teríamos a possibilidade de um
jogador argentino, encerrado o seu contrato, transferir-se a qualquer clube do
Brasil sem qualquer ônus de transferência para este e vice-versa. E ainda,
utilizando este exemplo, o jogador não seria taxado como estrangeiro, de modo
que estaria fora da cota de três jogadores provenientes de outras
nacionalidades que os clubes brasileiros podem ter em seu elenco.

Conclusões

Não obstante as
freqüentes comparações com o direito comunitário europeu, cumpre
consignar que tal modelo é dotado de caráter supranacional, com instituições
que proferem decisões com reflexos diretos e imediatos nos Estados membros,
como é o caso do Tribunal de Justiça de Luxemburgo, órgão responsável pela
decisão que entendeu contrária ao Tratado de Roma a obrigatoriedade de
pagamento de indenização, quando findo o contrato, para a contratação dos
serviços de um jogador de futebol. O Mercosul, ao contrário, fundamentando em
um modelo integracionista, não possui um órgão com um
caráter de “Poder Judiciário Supranacional” apto a interpretar as regras do
Tratado de Assunção, tornando suas sentenças obrigatórias e vinculantes
aos respectivos ordenamentos nacionais dos países signatários. Muito embora
exista um Sistema de Solução de Controvérsias, tendo como último estágio a
arbitragem, o mesmo ainda está longe de ditar uma linha interpretativa e
vinculativa do Tratado de Assunção tal qual ocorre na CE.

Assim, sob o prisma integracionista
do Mercosul, devemos dizer que o Brasil deu um passo bastante importante no
sentido de tornar viável a livre circulação de trabalhadores entre os Estados
membros, eis que hoje já é possível a qualquer jogador de futebol brasileiro,
encerrado o contrato com um clube nacional, transferir-se livremente a qualquer
país do Mercosul, respeitadas as peculiaridades de seus ordenamentos internos.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Eduardo Carlezzo

 

Advogado. Consultor Jurídico da M. Stortti Business Consulting Group. Assessor Jurídico do Sport Club Internacional. MBA em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduando em MBA em Finanças Empresariais pela Fundação Getúlio Vargas. Vice-Presidente e membro do Conselho Consultivo do Instituto Gaúcho de Direito Desportivo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, International Association of Sports Law, Instituto Brasileiro de Direito Societário e Instituto Brasileiro de Governança Corporativa.

 


 

logo Âmbito Jurídico