Um necessário repensar sobre a previsão constitucional que outorga competência exclusiva ao estado-juiz para a expedição de mandados de busca e apreensão na esfera criminal

À beira de um precipício só há uma maneira de andar para a frente: é dar um passo atrás. (M. de Montaigne)


Defende o restabelecimento da sistemática processual que outorgava competência à autoridade policial para a expedição de mandados de busca e apreensão. Esclarece que o temor do constituinte frente a possíveis abusos de autoridade não se justifica, porquanto a responsabilidade da autoridade policial subsisti de toda sorte, quer-lhe seja restabelecida a competência para a efetivação de busca e apreensão desvinculada de mandamento judicial, quer não lhe seja ela restabelecida, porquanto o que sempre determina a responsabilização de qualquer agente público é o seu ato irresponsável, não a sistemática processual que o regula.


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Introdução


A expedição de mandados de busca e apreensão, quando de investigações criminais, é da competência constitucional exclusiva da autoridade judiciária., com suporte no art. 5º, XI, da CF.[1]  


Referida sistemática processual, em incontáveis oportunidades, acaba por prejudicar a perfeita atuação da autoridade policial frente às ilicitudes que lhe compete coibir, bem como acaba por frustrar alarmante número de investigações policiais e estorva a recuperação da “res furtiva” [2] em prol das vítimas.


Sem a intenção, pois, de desonrar o Constituinte que, frente à necessidade contemporânea de conceder-se o maior número de garantias possíveis à pessoa humana perante o Poder público, bem como em decorrência da tendência mundial em se quebrar  a inviolabilidade do asilo residencial do sujeito de direitos somente por meio de mandamento judicial, quer-se estabelecer nesta dissertação, isto sim, a inviabilidade da sistemática ora existente, assim como a indispensabilidade de um repensar incontinenti acerca da  garantia constitucional ora evocada.


Por vezes mesmo, como bem afirmado por Montaigne, no excerto que se escolheu para dar princípio a este artigo, é necessário retrocedermos em algum ou outro ponto legislativo que se concebia, quando da sua criação, como benévolo e criativo, mas que se mostrou, sem demora, incessantemente inexeqüível. 


1. Noções conceituais relativas à morada, à residência,  ao domicílio e a casa


Por certo, ao se procurar estabelecer um estudo tendente a tornar inteligível a legitimidade da autoridade policial, entendida esta como sendo exclusivamente o Delegado de Polícia, dirigente que é das atividades de Polícia Judiciária, não se concebe como prescindível deixar-se de lado o estabelecimento hialino do que se deve interpretar em termos legais a respeito de morada, residência, domicílio e casa.


Em primeiro lugar, deve-se deixar claro que há considerável gradação nos conceitos de morada, residência e domicílio.


De efeito, existe na residência um plus relativo à morada, ocasião em que se deve abstrair do conceito de morada aquela eventualidade efêmera tal qual a de uma pessoa que passa por um hotel determinado a passeio e por breve período.


A residência, pois, reclama um maior fator de estabilidade ou habitualidade, podendo até ser identificada como tal o quarto de um hotel, mas desde que o hóspede não ali esteja por um breve período ou a passeio, mas realizando, v.g., um curso de longa duração naquela respectiva cidade.


E vale, nessa esteira, conforme esclarecida doutrina de Adriano Soares da Costa, acrescentar:


Residência é o lugar onde se mora, onde há permanência do indivíduo por algum tempo. Se há propriedade de uma casa de campo, e nela passa-se temporadas, há residência; assim também se se possui casa de veraneio, ou casa de praia. Portanto, pode-se ter mais de uma residência. Basta à configuração da residência a estadia mais prolongada, costumeira, dia e noite. A habitualidade da moradia é nuclear no conceito de residência. [3] 


Domicílio, por sua vez,  já reclama vínculo psíquico entre o indivíduo e o respectivo local. Efetivamente, ao conceito de residência devemos acrescentar, ainda, o chamado animus manendi,[4] ou seja, deve haver  um elemento externo consubstanciado em “residir” e outro interno, de cunho jurídico, consubstanciado no verbo “permanecer”.


Para Washington de Barros Monteiro, domicílio “é a sede jurídica da pessoa onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou pratica, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos”. Já para Orlando Gomes, “domicílio é o lugar onde a pessoa estabelece a sede principal de seus negócios (constitutio rerum et fortunarum), o ponto central das suas ocupações habituais”.


No atual Codex substantivo civil brasileiro,[5] a conceituação legal autêntica acerca do domicílio encontra-se no Título III, do Livro I, da Parte Geral. Não obstante, vale prelecionar aqui, tão-somente, que, para fins de cumprimento de mandados de busca e apreensão pela Polícia Judiciária, durante o dia, salvo em hipóteses de flagrante delito, desastre ou para prestar-se socorro, ocasião em que a “violação” residencial poderá ser noturna, deve o ato ser precedido, de acordo com a Carta da República, de ordem judicial, tanto nas hipóteses de morada, como nas hipóteses de residência e domicílio.


Outrossim, no que concerne ao vocábulo “casa”, compreenda-se que este abarca, como característica nuclear do seu conceito legal, as concepções da morada, da residência e do domicílio.


De fato, face à garantia constitucional insculpida no inciso XI, do art. 5º da CF, onde se preceitua que a “casa” é o asilo inviolável, tem-se por pacífico que o vocábulo referido abarca, efetivametne, as inteligências de moradia, residência e domicílio. De modo real, o próprio Codex substantivo penal,[6] em seu artigo 150, estabelece que a expressão “casa” compreende qualquer compartimento habitado; aposento ocupado em habitação coletiva; ou compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.  


2. A finalidade precípua do mandado de busca e apreensão enquanto instrumento processual


O instituto do mandado de busca e apreensão está disciplinado nos arts. 240 a 250, Capítulo XI,  Título VII, do Livro I, do Codex adjetivo processual penal pátrio.[7]


Conjugados referidos dispositivos legais com o ordenamento constitucional previsto no inciso XI da Constituição Federal vigente, tem-se que o cumprimento de mandado de busca e apreensão somente poderá ocorrer com suporte em ordem judicial.


Percebe-se, pois, que o contido no art. 241 do CP não foi recepcionado em sua totalidade pela Magna Carta,[8] conjuntura em que agora só à autoridade judiciária compete proceder à busca domiciliar independentemente de mandado escrito.


Por outro lado, e em que pesem entendimentos contrários, o cumprimento de mandado de busca e apreensão poderá realizar-se durante o período noturno, desde que autorizado pelo morador, conforme reza o art. 245 do CPP.[9] Verdadeiramente, percebe-se que o dispositivo foi recepcionado pela Constituição de 1988, porquanto não há lógica em se privar o próprio morador da sua faculdade de decidir quem poderá, ou não, adentrar nas adjacências da sua morada. De fato, a garantia constitucional veio permitir-lhe que, ao menos no período noturno, não se cumpram mandados de busca e apreensão em sua “casa”, se assim não lhe apetecer, mas não lhe frustrou a liberalidade de permitir, se assim lhe convier, que a medida seja cumprida mesmo no período noturno, porquanto, a bem da verdade, pode-lhe até mesmo ser oportuna mencionada atitude estatal, quando, v.g., interessar-lhe comprovar, o quanto antes, a sua inocência.     


Guilherme de Souza Nucci, por sua vez, assevera que o mandado de busca não prescinde de comportar necessárias precisão e determinação. Segundo o autor, deve ele indicar, dentro do possível, a casa onde a diligência efetuar-se-á, assim como o nome do proprietário, morador, locatário ou comodatário. Admitir-se mandado genérico, preleciona, tornaria impossível o controle acerca dos atos de força do Estado contra o direito individual. [10]


Mirabete, ainda, oportunamente preleciona que, a fim de não desaparecerem as provas do crime, a autoridade policial deverá apreender os instrumentos e todos os objetos que tiverem relação com o delito.[11]


De efeito, compete a quem preside o caderno apuratório, no caso o Delegado de Polícia, primar pela sua efetividade como instrumento propício e de importância irrefutável à concessão de sustentáculo à propositura de eventual ação penal. 


O Código de Processo Penal, bem assim, relaciona[12] os objetos e pessoas que podem ser objeto da busca e apreensão, tanto pela autoridade policial como pelo juiz, quando fundadas razões autorizarem-nas. Embora a busca e a apreensão estejam insertas no capítulo das provas, a doutrina considera-as mais como medida acautelatória, liminar, destinada a evitar o perecimento das coisas e das pessoas.


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Não só no que tange aos objetos materiais do ilícito,[13] a busca e apreensão constitui-se em instrumento de indubitável imprescindibilidade frente à coleção de indícios outros tendentes à formação do adequado panorama comprobatório em torno do delito esquadrinhado.


De efeito, a necessidade de busca e apreensão em torno de instrumentos utilizados durante o iter criminis,[14] de bens auferidos na qualidade de produtos do crime, dentre outros, perfazem o instrumento processual em debate como sendo um dos mais importantes instrumentos processuais de irretorquível condão à formação das convicções policial, ministerial e judicial à roda de qualquer matéria investigada.   


3. O senso comum em torno da possibilidade de extensão ao delegado de polícia de competência constitucional para a expedição de mandados de busca e apreensão


Até o ano de 1988, o Delegado de Polícia possuía competência para a expedição de mandados de busca e apreensão. Com o advento da Carta da República, esta prerrogativa foi ceifada. Já no ano de 2002, ou seja, pouco após a inovação normativa, o próprio Poder Legislativo já percebeu a inviabilidade do novo ordenamento que criara.


Com efeito, houve proposta de emenda à Constituição cuja autoria coube a Luiz Antônio Fleury e outros. A proposição dá nova redação ao inciso XI do art. 5º da Constituição Federal, restabelecendo o poder à autoridade policial no que tange à expedição de mandados de busca e apreensão.[15]


A justificativa da proposta, por sua vez, evocou ser fundamental o restabelecimento do poder da autoridade policial no sentido de determinação da realização de busca e apreensão atinentes a provas e indícios de crime.


Embora sucinto, o texto que justificou a proposta mostrou-se direito e cristalino, ipsis litteris:[16]


“Muitas vezes, pela ausência da autoridade judiciária, não se consegue obter em tempo hábil a necessária determinação judicial para a busca domiciliar, possibilitando ao autor do crime o lapso temporal necessário à destruição de elementos de prova que poderiam levá-lo à condenação. (Sala das Sessões, em 26 de fevereiro de 2002).”


Como se vê, exsurge da consciência comum que a expedição de mandado de busca e apreensão como ato exclusivo da autoridade judiciária é conjuntura temerária aos fins do próprio instituto em estudo.


Na prática, não é só consenso entre as autoridades policiais que a necessidade de aguardar-se o mandado judicial constitui-se em entrave enfadonho que causa males não só à atuação estatal em torno da busca de provas e da recuperação da “res furtiva”, mas também, e principalmente, às vítimas de crimes contra o patrimônio. Estas, ordinariamente, almejam, atônitas, a recuperação daqueles bens a respeito dos quais labutaram durante as suas vidas, honesta e incessantemente, por meio de enorme esforço, para os verem inseridos no seu patrimônio de volume modesto.


Verdadeiramente, frustra e causa constrangimento a qualquer autoridade policial perceber o semblante da vítima de delito contra o patrimônio que, ofegante e cheia de esperanças, ao comunicar à autoridade policial seu conhecimento acerca de onde está a “res” do delito que acabara de ocorrer, acaba tendo de receber como resposta  preliminar a justificativa de que, antes de uma possível busca ao local indicado, deverá ser elaborado um adequado procedimento formal a ser destinado ao Estado-juiz, a fim de que este, cujo prazo para tanto não lhe é delimitado pelo sistema legal, avaliará, então, o ato formalizado e, quiçá, expedirá a ordem à autoridade policial.


4. O fundamento nuclear do embaraço constitucional à efetivação de busca e apreensão por deliberação própria da autoridade policial


Como bem definido por Hegel:[17] “o verdadeiro não reside na superfície do sensível; em tudo o que singularmente deve ser científico a razão não pode dormir, e há que se empregar a reflexão”.


Nessa linha de pensamento, objetivamente, não se torna oculto ao exegeta perceber a índole do constituinte quando da sua postura na Carta de 88. Percebe-se, sem a necessidade de grande esforço intelectual, que o leitmotiv[18] seu foi o temor de possíveis abusos de autoridade, possíveis precipitações consistentes em inserções indevidas de agentes do Estado no asilo da pessoa humana. Estabeleceu-se, pois, que a “casa” seria, a partir de então, o asilo inviolável do indivíduo.


No entanto, façamos a devida utilização do chamado “raciocínio por absurdo”:[19] se ao Estado-juiz é concedido o poder de violar o asilo tido como “inviolável”, de “inviolável” o que lhe resta? Se antes da Carta da República de 88 a casa da pessoa humana não era “inviolável”, porquanto ao juiz e ao delegado de polícia era concedida a prerrogativa processual de violá-la, seria ela agora “inviolável”, porquanto ao delegado foi afastada essa possibilidade, mas mantida foi ela ao Estado-juiz? Qual a diferença, então, de cunho antropológico, entre a figura humana do juiz de direito e da figura humana do delegado de polícia? Não correria o mesmo sangue nas veias de um e de outro? Não haveriam sido concursados pelo mesmo Estado e constituídos seus  “longa manus” ? [20]


Pois bem, o que se deve ter em mente, peremptoriamente, diante deste discurso, é o fato de que o abuso de autoridade pode ser levado a efeito por qualquer agente do Estado, pouco importando se delegado de polícia ou juiz de direito.


De fato, o sistema normativo não aponta com exclusividade o delegado de polícia como agente passível de ver sua conduta inserida no tipo de abuso de autoridade, tampouco elide essa possibilidade no que concerne à conduta do juiz de direito. Qualquer um pode incidir em aventado tipo desvalioso.


Nesse diapasão, tem-se que,  a contrario sensu,[21], em relação ao delegado de polícia não há óbice algum em lhe ser restituída, obviamente por meio de emenda constitucional, a competência para a efetivação de busca e apreensão desatada de ordem judicial.


O delegado de polícia é autoridade processante, competindo-lhe dar o devido andamento ao processo inquisitorial que lhe é de responsabilidade. Durante o iter [22] dos seus atos, há de responder ele por possíveis abusos de autoridade, assim como de resto qualquer outra autoridade, judicial, ministerial, etc., também o devem responder no tocante aos atos levados a efeito no desenvolvimento dos seus misteres.


A legitimidade dos atos efetivados pela autoridade policial como, v.g., a hipotética realização de busca e apreensão desvinculada de ordem judicial, de acordo com possível e vindoura inovação constitucional, adviria, como de resto já advém em relação a qualquer outro ato estatal, daquela fundamentação plausível (grifei) concernente às razões que o levaram à realização do ato.


Vê-se, pois, que o temor do constituinte frente a possíveis abusos de autoridade promoveu entrave inviável à diligência em debate, que por sua natureza deve comportar deliberação precípua e imediata ao encargo da autoridade de Polícia Judiciária, geralmente primeira receptora que é das informações em torno de ilícitos penais, bem como primeira responsável que se mostra pelas primeiras respostas estatais ao caso concreto.


Dessa arte, percebe-se que, caso advier emenda constitucional à roda desta matéria promovendo competência à autoridade policial para a efetivação de busca e apreensão desvinculada de ordem judicial, no curso de inquérito policial, bastará à autoridade policial, nos próprios autos do caderno apuratório, fundamentar as razões que a levaram a tornar efetivo o ato, à luz  dos princípios da persuasão racional e do livre convencimento motivado (grifei).    


5. O conflito de garantias e princípios cujo contrapeso legitima a competência constitucional ora examinada como instituto passível de ser obtenível pela autoridade policial  


Há sobejo rol de garantias e princípios em prol da pessoa humana em nosso ordenamento jurídico. Por vezes, no entanto, entram referidas proteções em obtusa colisão. Daí surge, então, a necessidade de propor-se adequado sopeso entre elas.


Com efeito, no que tange às colisões ora estudadas, tem-se, v.g., que entram elas em embate:


1. Quando a garantia de inviolabilidade do domicílio colide com a garantia constitucional à segurança;


2. Quando a garantia de inviolabilidade do domicílio colide com o princípio da efetividade na prestação dos serviços públicos; ou


3. Quando a garantia da inviolabilidade do domicílio colide com a garantia à propriedade.


Efetivamente, na primeira hipótese, a prerrogativa de a vítima (grifo meu) obter segurança do Estado vê-se prejudicada, na oportunidade em que o próprio Estado, por meio da sua polícia, fica impedido de atuar celeremente, por meio de deliberação do delegado de polícia, responsável que é pela presidência e comando imediato dos atos de polícia judiciária, deixando-se de adentrar incontinenti em determinada residência e, ali, buscar e apreender itens ligados à ilicitude, aplacar, com isso, a criminalidade e conceder uma adequada resposta estatal ao episódio.


Já na segunda hipótese, percebe-se que a garantia de inviolabilidade do domicílio colide com o princípio da efetividade na prestação dos serviços públicos, porquanto o Estado é impedido de atuar celeremente diante de um caso concreto e conceder à vítima o que lhe é de direito.


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Por fim, na terceira hipótese, presencia-se  um inadequado conflito entre a garantia da inviolabilidade do domicílio para com a garantia do indivíduo à propriedade, já que, impedido de atuar celeremente, o Estado deixa, constantemente, de recuperar a “res furtiva” que se constitui no legítimo patrimônio de quem se viu vítima em episódios de delitos contra o patrimônio. Em outras palavras, a vítima vê-se privada do seu direito ao patrimônio, porquanto ao autor de crime é garantido ver o seu direito à inviolabilidade de domicílio mitigado apenas por decisão judicial. Dessa arte toda, nem um nem outro restam  com suas prerrogativas asseguradas. Em primeiro lugar, porque a vítima, em decorrência da demora na efetivação de busca e apreensão, acabou perdendo o seu patrimônio definitivamente repassado a terceiros pelo autor. Este, em segundo lugar, também não restou com sua prerrogativa de inviolabilidade de domicílio resguardada, porquanto, assim que expedido foi o mandado de busca e apreensão pelo juiz de direito, teve de permitir a entrada dos agentes policiais em sua casa.


Como se vê, pela sistemática existente, manifestamente obtusa, havendo conflito entre garantias, o autor de ilícitos regozija-se com alarmante vantagem perante a vítima de crimes. Certamente, exposta conjuntura não mais pode ver-se sustentada pelo ordenamento jurídico pátrio.


Por outro lado, neste escrito, não se pretende defender a idéia de que, em hipotéticos episódios onde houvesse a coleta estatal de provas por meio irregular, violando-se o domicílio da pessoa humana com ausência de busca e apreensão regular, fosse possível  dali abstraírem-se provas validades como parte integrante de um conjunto probatório, ante o princípio da proporcionalidade.


Embora, como bem defendido por César Dário Mariano da Silva,[23] o princípio da proporcionalidade permita a articulação das normas constitucionais como um todo natural e harmônico, a ponto de viabilizar, entrementes, o sacrifício de um direito ou garantia constitucional em prol de outro, o que se defende nesta dissertação longe está disso. E também não se está aqui a defender, sequer, auxílio à idéia de uma “invenção” normativa qualquer, mas, isto sim, à idéia de uma necessária restauração, de uma indispensável reparação e de uma imprescindível recomposição daquilo que muito bem já vigorava dantes em nosso sistema legal, à luz do derrogado art. 241 do CPP.[24]   


Claro, não obstante, é que a reparação defendida nesta exposição deve emanar, agora, exclusivamente de imperativo constitucional, in casu a denominada “emenda constitucional”,[25] porquanto a derrogação do artigo 241 do nosso Codex adjetivo processual penal assim também se fez.


Conclusão


Pela preleção que se expôs, pois, deduz-se que o restabelecimento do sistema processual penal pretérito à Carta Política de 1988, no que concerne à concessão de competência para a expedição de mandados de busca e apreensão, é medida que longe está de mostrar-se prescindível.


Se a legitimidade do ato do Delegado de Polícia está atrelada à determinada fundamentação plausível que comporte justificativa coerente quanto aos motivos que o levaram a praticá-lo, não há, então, o porquê de barrar-lhe a iniciativa de ato que lhe é de vital importância à consecução dos seus objetivos dentro do sistema de investigações criminais.


De fato, o temor do constituinte frente a possíveis abusos de autoridade não se justifica, porquanto a responsabilidade da autoridade policial subsisti de toda sorte, quer-lhe seja restabelecida a competência para a efetivação de busca e apreensão desvinculada de mandamento judicial, quer não lhe seja ela restabelecida. O que sempre determina a responsabilização de qualquer agente público é o seu ato irresponsável, não a sistemática processual que o regula.


A sistematização ora existente, após a promulgação da Constituição de 1988, vem-se mostrando inexeqüível ao longo do tempo, incutindo prejuízos irrecuperáveis às vítimas de ilícitos penais, ao sistema de política criminal como um todo e fadando o delegado de polícia à situação de desdourada penúria, de vexatória mendicância processual que em nada condiz com a relevância ínsita do seu cargo.


O restabelecimento da disposição processual ora debatida tal qual se mostrava em tempo anterior à Carta da República de 1988, onde ao Delegado de Polícia era permitida a busca e apreensão desvinculada de mandado judicial, é medida cuja irrenunciabilidade e incontinência mostram-se patentes e irretorquíveis.


Consoante a tudo isso, aliás, e como epílogo deste redigido atinente ao indispensável restabelecimento de tamanho e crucial instrumento processual penal outrora de competência concorrente do delegado de polícia, hoje de competência exclusiva do juiz de direito, vale a pertinente passagem poética do nosso saudoso Soares de Passos, assim composta: “Às portas do rico bati sem alento. Eu, rico noutrora, mendigo por fim”.[26]


 


Notas:

[1] CF, art. 5º, XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial (grifo meu);

[2] Coisa furtada.

[3] COSTA, Adriano Soares da. Instituições de direito eleitoral: teoria da inelegibilidade: direito processual eleitoral: comentários à lei eleitoral. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 107.

[4] Do latim manere, ficar, deter-se. Intenção de permanecer, remanescer no mesmo local. Daí a caracterização do domicílio

[5] LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Institui o Código Civil.

[6] DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Instituiu o Código Penal.

[7] DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Código de Processo Penal.

[8] CPP, art. 241.  Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.

[9] CPP, art. 245.  As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 2º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 436.

[11] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal – Interpretado, 8ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2001, p. 535.

[12] CPP, art. 240, §1º.

[13] Objeto do Crime: aquilo contra que se dirige a conduta humana que o constitui. Objeto jurídico do crime: é o bem ou interesse que a norma penal tutela. Objeto material do crime: é a pessoa ou coisa sobre a qual recai a conduta ativa do delito. Exs.: HOMICÍDIO: o objeto jurídico é a vida; e o objeto material é o homem vivo. FURTO: o objeto jurídico é o patrimônio; e o  objeto material é a coisa furtada.

[14] Caminho do delito.

[15] O texto proposto foi elaborado da seguinte forma:

Art. 1º O inciso XI do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 5º……………..

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial ou por ordem decorrente de mandado de busca e apreensão expedido por autoridade policial, em caso de fundada suspeita da ocultação de provas ou indícios ou de autores de crime. (NR)

…………………….”

Art. 2º esta emenda entrará em vigor na data de sua publicação.

[16] Expressão de origem latina que significa “pelas mesmas letras”, “literalmente”. Utiliza-se para indicar que um texto foi transcrito fielmente ao original.

[17] Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Nasceu em Stuttgart, em 27 de agosto de 1770. Faleceu em 14 de novembro de 1831. Foi o último filósofo clássico famoso. Autor de um esquema dialético no qual o que existe de lógico, natural, humano e divino oscila, perpetuamente, de uma tese para uma antítese, e de volta para uma síntese mais rica.

[18] Motivo condutor.

[19] Raciocínio por absurdo.  Lóg. Demonstração da verdade de uma proposição pela demonstração da falsidade da proposição contrária; apagogia, demonstração por absurdo. [Cf. redução ao absurdo.] 

[20] Longa Manus: expressão derivada do latim cujo significado é “braço longo”.

[21] A contrario sensu: pela razão contrária, em sentido contrário.

[22] Iter: significa, em latim, caminho.

[23] DA SILVA, César Dário Mariano. Provas Ilícitas. 2 ed., São Paulo: Leud, 2002, 32.

[24] CPP, art. 241.  Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.

[25] Emenda Constitucional é o instituto que se utiliza, a fim  de promover adaptação da Carta Política às novas necessidades que surgem .

[26] Soares de Passos, Poesias, p. 1180.   


Informações Sobre o Autor

Roger Spode Brutti

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)


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