Acórdão Processo Apelação Cível 2006.001.51839 – TJRJ – Possibilidade de pedido de pensão alimentícia de pais biológico e pai afetivo

APELAÇÃO CÍVEL 2006.001.51839


ORIGEM – 7A VARA DE FAMÍLIA DA CAPITAL


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APELANTE – ANA BEATRIZ ELKINS


APELADOS – ENEIDA DE CASTRO OLIVEIRA, FERNANDO RONCARATI E MARCIO GRESSI DE SIMONI


RELATOR – JDS. DES. MAURO NICOLAU JUNIOR


R E L A T Ó R I O


ANA BEATRIZ ELKINS ajuizou ação de alimentos contra os apelados sendo que os primeiro e terceiro na condição de pais biológicos e o segundo na qualidade de pai afetivo.


Afirma que reside nos Estados Unidos da América do Norte onde contraiu matrimônio do qual resultou o nascimento de um filho – Benny Elkins IV que em viagem ao Brasil para visitar os avós acabou por ter seu regresso vedado em razão de ação judicial ajuizada pelos avós que pleiteiam sua guarda.  Em razão de tal situação a autora não teve outra opção que não fosse retornar ao Brasil para exercer sua defesa no processo judicial referido o que acabou por inviabilizar o normal desenvolvimento de sua profissão e, em conseqüência, não ter condições financeiras para seu próprio sustento.


A fls. 118 a ínclita magistrada SIMONE DALILA NACIF LOPES decretou a extinção do processo sem resolução do mérito e o fez sob o fundamento de que o segundo réu tivesse qualquer espécie de parentesco que justificasse sua inclusão no pólo passivo e quanto aos pais biológicos, que a obrigação alimentar se extinguiu ao completar a autora a maioridade e não estando cursando qualquer faculdade ou universidade não sendo, ademais, portadora de qualquer patologia ou incapacidade física ou mental que a impossibilite de trabalhar tendo ela a profissão de auxiliar de enfermagem.


Apela a autora a fls. 126 afirmando a necessidade de receber auxilio alimentar visto que foi compelida a retornar a residir no Brasil exatamente por força da ação judicial que lhe desferiram seus pais objetivando a guarda de seu filho.  Esse fato impossibilitou que a autora continuasse sua vida normal e, principalmente, que continuasse a desenvolver sua atividade laborativa em território norte americano.


Contra-razões da primeira ré a fls. 135 prestigiando a sentença e parecer do MP em primeira instância a fls. 142.


Manifestação do MP em segunda instância a fls.  152 e 154/5.


Os autos vieram à conclusão em 02 de janeiro de 2007.


É O RELATÓRIO.


À ÍNCLITA REVISAO.


Rio de Janeiro, 03 de janeiro de 2007.


MAURO NICOLAU JUNIOR


Jds. Des. Relator


APELAÇÃO CÍVEL 2006.001.51839


ORIGEM – 7A VARA DE FAMÍLIA DA CAPITAL


APELANTE – ANA BEATRIZ ELKINS


APELADOS – ENEIDA DE CASTRO OLIVEIRA, FERNANDO RONCARATI E MARCIO GRESSI DE SIMONI


RELATOR – JDS. DES. MAURO NICOLAU JUNIOR


ALIMENTOS DEVIDOS A FILHO MAIOR. POSSIBILIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO DE NECESSIDADE QUE, ASSIM, DEVE SER COMPROVADA, JUNTAMENTE COM A POSSIBILIDADE DOS PAIS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE PERMITE AO FILHO, MESMO MAIOR E CAPAZ, BUSCAR PENSIONAMENTO ALIMENTAR DE SEUS PAIS COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 1.695 DO CÓDIGO CIVIL, 229 E 1o, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – POSSIBILIDADE JURÍDICA DE CARACTERIZAR OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. O INDEFERIMENTO DA INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO CARACTERIZA VEDAÇÃO DE ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO O QUE NÃO É ADMITIDO PELA CONSTITUÇÃO FEDERAL. OS PRINCÍPIOS DA AFETIVIDADE E DA SOLIDARIEDADE ENCONTRAM RESPALDO CONSTITUCIONAL E ÉTICO E DEVEM PERMEAR A CONDUTA E AS DECISÕES DA MAGISTRATURA MODERNA E ATENTA À REALIDADE DO MUNDO ATUAL.


A C Ó R D Ã O


A C O R D A M os desembargadores que integram a Décima segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça, por maioria em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator, reformando-se a sentença.


V O T O


Adota-se o relatório já constante destes autos. O dever de prestar alimentos aos parentes decorre de expressa imposição inserida no artigo 1.694 do Código Civil e é um dever recíproco entre pais e filhos, extensivo a todos os ascendentes, podendo alcançar irmãos germanos e unilaterais (art. 1696 e 1697). Os alimentos decorem, portanto, do parentesco (iure sanguinis), do casamento e da união estável e podem se originar de responsabilidade civil quando são concedidos como indenizações por atos ilícitos (art. 948,II e 950 do CC).


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É fato que ao atingir a maioridade, sendo os filhos aptos ao trabalho a obrigação alimentar dos pais e avós se extingue, havendo farta interpretação jurisprudencial no sentido de que se ainda estiver em curso superior, a obrigação alimentar perdurará até os 24 anos de idade.


Nessa hipótese, a pretensão de manutenção e prorrogação da obrigação alimentar não se fundamenta mais no artigo 1694 visto estar extinto o poder familiar mas, funda-se sim, no artigo 1.695 do Código Civil cujo princípio é o da solidariedade familiar ininterrupta e consentânea com os dizeres dos artigos 229 e 1o, III da Constituição Federal.


O insigne magistrado Belmiro Pedro Welter sustenta esse enunciado apoiado em precedente do  TJ-SP (AGIn 129876-4, 09.11.99, CD Juris Síntese, 23, jun, 2000, relator Des. Ênio Santarelli Zuliani), com a seguinte ementa:


A jurisprudência, com sabedoria, prolonga o encargo alimentar para possibilitar que o filho maior e responsável complete, com a ajuda do pai, o curso universitário, uma questão de dignidade humana, afinada com o dever de solidariedade; enunciado que criou costume jurídico e que reclama ação de exoneração ou processo justo (art. 5o, LV, da CF), para excluir do alimentando a fruição do direito básico.


Dessa forma, resta certo que não é a menoridade o único fato que justifica a obrigação alimentar que se fundamenta, por outro lado, na própria relação jurídica familiar entre as pessoas mesmo que os filhos sejam maiores.


Alimentos a filhos maiores. É viável a prestação alimentar a filhos maiores desde que, apesar de atingida a condição, subsista a necessidade do suprimento a cargo do alimentante, tendo este condição de prestá-la. A necessidade de suprimento desaparece quando, cessada a incapacidade, passem os filhos a desenvolver atividades remuneradas (RT. 622/84)


Assim, sendo os filhos menores, ou ainda que maiores, estejam cursando faculdade, vige em seu favor a presunção de necessidade.  Ao contrário, sendo os filhos maiores, deverão comprovar a necessidade e, por outro lado, a possibilidade de os pais prestarem os alimentos objetivados sendo esse, exatamente, o mérito da ação de alimentos, de forma que o julgamento pela extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido se mostrou açodada e prematura, não oportunizando à parte autora a demonstração e comprovação do preenchimentos de tais pressupostos.


Diverso não é o entendimento do diversos julgados deste Tribunal, como adiante se vê:


“OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DECORRENTE DE PÁTRIO PODER. DEVER DE SUSTENTO. CESSAÇÃO COM A MAIORIDADE DO FILHO. 1. Aos pais é exigida pela Carta Política a mantença dos filhos, sobre os quais não pesa mais qualquer tipo de distinção discriminatória (cf. art. 229). 2. No mesmo,sentido dispõe o inciso IV do artigo 1566 do novo Código Civil, que corresponde ao inciso IV do artigo 231 do Código Civil de 1.916. 3. Os filhos, enquanto menores, podem exigir dos pais a prestação alimentícia com base no dever de sustento decorrente do pátrio poder. 4. Tendo a alimentada completado 24 anos, ultrapassou o limite fixado pela jurisprudência para a conclusão do curso superior, razão pela qual, está o alimentante exonerado do dever de sustento ao qual estava obrigado. 5. Com a maioridade, ou cessado o der familiar’ por qualquer outra causa, o filho pode de requerer alimentos com base na obrigação alimentar recíproca decorrente do parentesco ou do jus sanguinis, competindo ao requerente a prova da necessidade. 6. Manutenção do decisum. 7. Desprovimento do recurso. (AC 2006.001.14573, Des. Letícia Sardas, j. 12/09/2006, 8a CC).


CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. EXONERAÇÃO. MAIORIDADE. EXTINÇÃO DO PODER FAMILIAR. Somente é possível extinguir a obrigação paterna de prestar alimentos se provada a absoluta impossibilidade do alimentante ou inexistência de necessidade do alimentado. Presume-se a necessidade do alimentado que ainda freqüenta curso universitário, embora tenha atingido a maioridade, até completar 24 anos de idade. Recurso desprovido. (AC 2006.001.23167, Des. Henrique de Andrade Figueira, j. 09/08/2006, 17a CC).


Ação de Alimentos. Pedido de exoneração. Maioridade da Alimentanda. Preliminar de cerceamento de defesa acolhida. Tratando-se de nova causa e, apesar de não depender do manejo de ação autônoma, o pleito não dispensa a manifestação da alimentanda, já que demanda a devida instrução probatória. O advento da maioridade não pode gerar presunção de desnecessidade dos alimentos, sendo que a exoneração somente tem lugar quando a maioridade puder ser confrontada com outras situações fáticas a denotarem a ausência de necessidade. Recurso conhecido e provido para anular a sentença e determinar a intimação da Apelante para se manifestar sobre o pedido de exoneração. (AC 2006.001.00799, Des. Mario Roberto Mannheimer, j. 01/08/2006, 16a CC).


Os poderes conferidos ao juiz não podem chegar ao ponto de negar ao cidadão os direitos que a própria lei lhes resguarda. Defende-se, aqui, a concepção do Juiz-Cidadão. De uma magistratura que se conceba e se considere como representante do Estado e, portanto, como agente político deste, cujas decisões interferem diretamente na vida das pessoas. A palavra-chave seria “conscientização”. Aos Juizes incumbe uma tarefa tão complexa e tão cheia de repercussões que não há porque se reduzir sua carreira a uma atividade por demais formalista, ritualesca, que acaba muitas vezes sendo ineficaz.


Esses desafios exigem que o novo juiz rompa o formalismo legalista das concepções tradicionais do direito, que tenha uma abordagem multidisciplinar, como também uma reflexão crítica no ato de interpretação das leis e dos fatos concretos que chegam às suas mãos. Uma verdadeira mudança, que implicaria uma atitude compromissada com a realidade. Como já disse Paulo Freire em seu Educação e mudança, 12a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 18:


Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanização dos homens, responsabilidade com estes, com a história. Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavratório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos.  O compromisso com a realidade de cujas águas os homens verdadeiramente comprometidos ficam molhados, ensopados. Somente assim o compromisso é corajoso, decidido e consciente, os homens já não se dizem neutros.  A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um compromisso contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão comprometidos consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses de grupos aos quais pertencem.  E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível.


Não há mais como ignorar que o Direito Civil atual é outro, remodelado, com novos paradigmas, constitucionalizado e oxigenado por valores e fundamentos diversos daqueles que apoiavam e alicerçavam o Código Civil de 1916, fruto do liberalismo exacerbado que elegeu a propriedade e o patrimônio como forças centrais do ordenamento legal, pois


Este Direito Civil “repersonalizado” que se ancora em princípios e fins para além da suposta autonomia e pretensa igualdade; sem carpir-se no futuro acontecido ontem, saudar o reconhecimento da pessoa e dos direitos da personalidade, mesmo que seja para prantear os não reconhecidos, os excluídos de todos os gêneros; no véu da liberdade contratual encontrar mais responsabilidade que propriedade, menos posse na formação epistemológica do núcleo familiar; e fotografar a legitimidade da herança e direito de testar na concessão que também outorga personalidade jurídica aos entes coletivos. E aí filmar o roteiro das tendências contemporâneas. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000 , p. 6)


Na mesma senda, pode-se colher o ensinamento de Orlando de Carvalho, que, explicando o significado de “repersonalização”, afirmou:


É esta valorização do poder jurisgênico do homem comum – sensível quando, como no direito dos negócios, a sua vontade faz lei, mas ainda quando, como no direito das pessoas, a sua personalidade se defende, ou quando, como no direito das associações, a sua sociabilidade se reconhece, ou quando, como no direito de família, a sua afetividade se estrutura, ou quando, como no direito das coisas e no direito sucessório, a sua dominialidade e responsabilidade se potenciam – é esta centralização do regime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do Direito Civil o foyer da pessoa, do cidadão puro e simples. (CARVALHO, Orlando. A teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Centelha, 1981, p. 92)


Como disse Vinícius de Moraes, “a vida é a arte do encontro, apesar de tantos desencontros”. É preciso permitir que o aconchego e a afetividade sejam as forças motrizes de uma construção constante do ser humano pleno, digno, realizador e concretizador dos anseios de modernidade, que resultará, finalmente, num homem feito à imagem e semelhança daquele que nos criou a todos, mas que, por tanto tempo, insistimos em ser exatamente o contrário do que nos foi ensinado.


No entanto, ao final e ao cabo, sempre buscando um recomeço, sem se deixar esmorecer pelas eventuais quedas, tropeços e objetivos não atingidos, mas, de qualquer forma, tirando lições dos erros, na busca constante da convivência pacífica, humanizada e afetiva entre os seres humanos, vale invocar passagem literária que caminha para a possibilidade de gerar debates, críticas e questionamentos dos padrões do direito para aproximá-lo da legitimidade consistente em serem julgados os atos e comportamentos de conformidade com a realidade social atual, plúrima, múltipla, flexível e em constante movimento.


Fatos marcados por êxitos e tropeços cunham o que se pode chamar de vida, como observou Lya Luft:


A história mais difícil de escrever é a nossa própria, complexa, obscura, inocente ou perversa – bem mais do que são as narrativas ficcionais.


Brinquei muito tempo com a idéia de dizer “sim” ou “não” a nós mesmos, aos outros, à vida, aos deuses, como parte essencial dessa escrita de nosso destino – com os naturais intervalos de fatalidades que não se podem evitar, mas têm que ser enfrentadas.


Acredito em pegar o touro pelos chifres, mas vezes demais fiquei simplesmente deitada e ele me pisoteou com gosto. Afinal, a gente é apenas humano.


Nessa difícil história nossa, de dizer sim ao negativo, ao sombrio em lugar de dizer sim ao bom, ao positivo, é o desafio maior. Pois a questão é saber a hora de pronunciar uma ou outra palavra, de assumir uma ou outra postura.


O risco de errar pode significar inferno ou paraíso.


Também descobri (ou intentei?) isso de existir um ponto cego da perspectiva humana, em que não se enxerga o outro, mas apenas um lado dele: seu olho vazado, sua boca cerrada, seu coração amargo.


Sua alma árida, ah…


O ponto cego das nossas escolhas vitais é aquele onde a gente pode dizer “sim” ou “não”, e nossa ambivalência não nos permite enxergar direito o que seria melhor na hora: depressa, agora.


O ponto mais cego é onde a gente não sabe quem disse “não” primeiro. E todos, ou os dois, deviam naquele momento ter dito “sim”.


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Viver é cada dia se repensar: feliz, infeliz, vitorioso, derrotado, audacioso ou com tanta pena de si mesmo. Não é preciso inventar algo novo. Inventar o real, o que já existe. Nosso drama é que às vezes a gente joga fora o certo e recolhe o errado.


Da acomodação brotam fantasmas que tomam a si as decisões: quando ficamos cegos não percebemos isso, e deixamos que a oportunidade escape porque tivemos medo de dizer o difícil “sim”.


O “não” também é um ponto cego por onde a gente escorre para o escuro da resignação.


O ponto mais cego de todos é onde a gente nunca mais poderá dizer “sim” para si mesmo. E aí tudo se apaga. Mas com o “sim” as luzes se acendem e tudo faz sentido.


Dizer “sim” a si mesmo pode ser mais difícil do que dizer “não” a uma pessoa amada: é sair da acomodação, pegar qualquer espada – que pode ser uma palavra, um gesto, ou uma transformação radical, que custe lágrimas e talvez sangue – e sair à luta.


Dizer “sim” para que o destino nos oferece significa acreditar que a gente merece algo parecido com crescer, iluminar-se, expandir-se, renovar-se, encontrar-se, e ser feliz.


Isto é: vencer a culpa, sair da sombra e expor-se a todos os riscos implicados, para finalmente assumir a vida. (LUFT, Lya. Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 15. Sem destaque no original.)


E não há como esperar que o magistrado permaneça ao largo e distante de realidade com tamanha densidade.


No que diz respeito à paternidade sócioafetiva, da mesma forma há que ser reformada a sentença terminativa.


Nos tempos atuais de “sacralizadação do DNA” reconhece-se a aptidão da ciência de identificar a origem genética dos indivíduos, o que, infelizmente, não assegura a construção de laços sólidos de solidariedade e responsabilidade, caracterizadores da relação entre pai e filho. A filiação estabelecida por esta via, por vezes, não significará nada mais do que a menção, na certidão de nascimento, da paternidade, e a conseqüente possibilidade de reivindicação de direitos patrimoniais.


Ao tratar esta questão, agora na modernidade, é mais importante captar a função da família na formação da personalidade dos seus membros. Assim, nota-se a importância do afeto, preponderando à simples contingência dada pela biologia. Já apontava Rolf Madaleno feita antes da entrada em vigor do Novo Código e que hoje se confirma:


A Carta Política de 1988 garante a todos os filhos o direito à paternidade, mas este é o sutil detalhe, pois que se limita ao exame processual e incondicional da verdade biológica sobre a verdade jurídica. Entretanto, adota um comportamento jurídico perigoso, uma vez que dá prevalência à pesquisa da verdade biológica, olvidando-se de ressaltar o papel fundamental da verdade socioafetiva, por certo, a mais importante de todas as formas jurídicas de paternidade, pois, seguem como filhos legítimos os que descendem do amor e dos vínculos puros de espontânea afeição e, para esses caracteres a Constituição e a gênese do futuro Código Civil nada apontam, deixando profunda lacuna no roto discurso da igualdade, na medida em que não protegem a filiação por afeto, realmente não exercem a completa igualização. (MADALENO, Rolf Hanssen. Novas Perspectivas no Direito de Família. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000, p. 41)


Em que pese não haja referência explícita, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988, no Capítulo VII, traduz sua ampla preocupação com a valorização do afeto como objeto fundamental dos núcleos de convivência interpessoal, estimulando a mútua assistência no parentesco e na conjugalidade.


(…) a paternidade tem um significado mais profundo do que a verdade biológica, onde o zelo, o amor paterno e a natural dedicação ao filho revelam uma verdade afetiva, uma paternidade que vai sendo construída pelo livre desejo de atuar em interação paterno-filial, formando verdadeiros laços de afeto que nem sempre estão presentes na filiação biológica, até porque, a paternidade real não é biológica, e sim cultural, fruto dos vínculos e das relações de sentimento que vão sendo cultivados durante a convivência com a criança. MADALENO, Rolf Hanssen. Novas Perspectivas no Direito de Família. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000, p. 40. (sem destaque no original).


Conclui-se pela possibilidade de existência de uma paternidade jurídica sem a biológica, mas revelando-se a sócioafetiva; de uma paternidade biológica sem que exista a jurídica e a sócioafetiva. Pode-se, ainda, encontrar a paternidade sócioafetiva, sem a presença de nenhuma das outras. A falta de coincidência entre esses três pilares pode gerar complexidade.


Amor, dedicação e assistência são elementos tão importantes na identificação da real paternidade quanto um sobrenome proveniente de uma relação consangüínea, revelando esses três fatores uma relação psicoafetiva. (BOEIRA, Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade, Posse do Estado de Filho. Paternidade SócioAfetiva. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, p. 53).


Denota-se proporcional o crescimento da dimensão da posse do estado de filho à inviabilidade de absorção total da verdadeira filiação pela premissa biológica, eis que a desbiologização da paternidade encontra respaldo exatamente no fortalecimento dessa noção:


Devido à constitucionalização, no Direito de Família contemporâneo, vive-se um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade seja, antes de tudo, biológica. No entanto, o elo que une pais e filhos é, acima de tudo, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico. (ALMEIDA, Maria Christina. A Paternidade Sócioafetiva e a Formação da Personalidade. O Estado e os Estados de Filiação. Revista Jurídica, Belo Horizonte/IBDFAM, n. 8, p. 24, maio 2002. (Número especial).


A Carta Magna redefiniu a noção de família com base em valores que consagram a paternidade sócioafetiva. Por conseqüência, se faz necessária a substituição dos fundamentos axiológicos rigidamente normativos, que até há pouco norteavam o Direito de Família, por critérios interpretativos humanizados. Nessa linha, destaca-se a família nuclear, que se distingue de todos os outros padrões familiares pelo seu peculiar sentido de solidariedade que une os membros da unidade doméstica pela espontânea vontade.


A nova ordem constitucional elevou valores ao ápice do ordenamento jurídico, que vieram a determinar três premissas a caracterizar a matéria da filiação: a funcionalização das entidades familiares à realização da personalidade de seus membros; a despatrimonialização das relações entre pais e filhos, que passaram a ser subordinadas a outros valores, sobretudo ao fundamento da dignidade da pessoa humana, e a desvinculação entre os relacionamentos dos genitores e a proteção conferida aos filhos. Estes fatores implicam na “repersonalização” das relações de família e objetivam a realização sentimental da pessoa no grupo familiar:


Aliás, o afeto é a matéria-prima fundamental nas relações de filiação, de intensidade variável, contudo constante, oxigênio e sobrevida que responde pela adequada formação moral e psíquica dos filhos que são postos neste agitado mundo dos adultos, pessoas que, por vezes, de adultos nada demonstram, senão uma constante distorção na forma como educam e usam sua prole, comprometendo sua natureza humana, fragilizando sua estrutura moral, vilipendiando as relações parentais da prole com seus pais não guardiães, com ingerências ilícitas e movidas apenas por suas mesquinhas deficiências e carências pessoais. (MADALENO, Rolf Hanssen. A Multa Afetiva. Revista Jurídica Del Rey, Belo Horizonte : Del Rey/IBDFAM, n. 8, p. 33, 2002. (Número especial).


O status de filho pode ser revelado pela posse de estado. Cabe destacar que o estado de filho é irrenunciável, imprescritível e não admite transação – impossível nas ações declaratórias por serem exclusivas do direito público. Uma vez declarado o estado de filiação jurídica, suas conseqüências são o nome e a indivisibilidade, posto que tal declaração torna-se erga omnes por integrar a personalidade jurídica e definir sua classificação social.


Pode-se indagar a respeito de qual argumento que, sendo legítimo, poderia justificar não considerar-se como pai aquele homem que ama, que educa, alimenta e protege uma criança, fazendo transparecer a todos que é o pai, tendo em vista que assume pacificamente a função de genitor. (BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Novos Contornos do Direito de Filiação: a Dimensão Afetiva das Relações Parentais. Revista da AJURIS, Porto Alegre : Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 26, n. 78, p. 204, jun. 2000.)


A paternidade sócioafetiva caracteriza-se pela reunião de três elementos clássicos, a saber: a utilização pela pessoa do nome daquele que considera pai, o que faz supor a existência do laço de filiação; o tratamento, que corresponde ao comportamento, como atos que expressem a vontade de tratar como faria um pai, e a fama, que constitui a imagem social, ou seja, fatos exteriores que revelam uma relação de paternidade com notoriedade – a pessoa aparenta à sociedade ser filho do pretendido pai. Essas circunstâncias, reveladas pela convivência, constituem os elementos do que se denominou posse de estado de filho.


A notoriedade se manifesta na objetiva visibilidade da posse de estado no ambiente social, devendo esse fato ser contínuo e apresentar uma certa duração que revele estabilidade. Assim, o tempo surge como fator determinante da posse de estado de filho, trazendo a idéia de continuidade. A jurisprudência tem acrescentado a ausência de equívoco e vícios, como a troca de filhos na maternidade e até mesmo o seqüestro de uma criança para fins de adoção.


Há, pois, um estado, senão de continuidade, pelo menos de constância. A constância na posse de estado não é somente a permanência: é, antes de tudo, o seu caráter notório e incontestável. Ora, a continuidade entendida como a coerência dos fatos constitutivos da posse e ausência de contradição entre eles, aparece, sem dúvida, como uma condição da constância assim definida. (BOEIRA, Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade, Posse do Estado de Filho. Paternidade Sócioafetiva. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, p. 78).


A publicidade normalmente reflete-se na convicção da paternidade pela opinião pública, Por isso, na ‘posse de estado’, sempre haverá de coincidir a verdade exterior (objetiva), ditada pela realidade dos fatos, com a verdade interior (subjetiva), produto do sentimento, refletido pela relação paterno-filial


A publicidade pode vir a ser a mais determinante das provas de existência de um liame de filiação. Nesse caso, ela exprime a realidade, revelando uma situação que enseja proteção. Tal importância pode elevar esse elemento até mesmo a pressuposto de análise de uma ação de investigação de paternidade, pois se o investigante é tratado como filho do suposto pai e nessa reputação vive, motivo não há para não incluir esse fato entre os fundamentos da ação investigatória.


Luiz Edson Fachin observou que:


o valor socioafetivo da família é uma realidade da existência. Ela se “bonifica” com o transcorrer do tempo. Não é um dado e sim um construído. Se o vínculo genético é um dado, a posse do estado é um construído. Viver juntos, sem liame jurídico prévio, o que mantém esta condição é ser possuidor de um estado. Os filhos, filhos são; importa menos a origem ou sua ascendência. (Curso de Direito Civil – Elementos críticos do Direito de Família. Coord. Ricardo Pereira Lira, Rio de Janeiro: Renovar, 1999,      p. 309).


Há que se constatar que a redação estabelecida no artigo 1.593 do Código Civil rende ensejo a outras hipóteses de parentesco quando menciona que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem” (sem destaque no original), até mesmo ao parentesco socioafetivo. Nas palavras de Luiz Edson Fachin, parece induvidoso que o Código Civil reconheceu, no artigo 1.593, outras espécies de parentesco civil, além daquele decorrente da adoção, acolhendo a paternalidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filho (FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo Código Civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. (Vol. XVIII, p. 22), ainda que o legislador não tenha tido essa intenção.


Do exposto, afirma-se possível considerar a posse de estado de filho como causa suficiente para demandar o reconhecimento da filiação e, por conseguinte, a declaração da paternidade, posto que somente esta é capaz de garantir a verdadeira estabilidade de alguém o que, por óbvio, há de ser matéria probatória.


Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso para reformar a sentença e determinar o prosseguimento da tramitação processual.


Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 2007.


GAMALIEL QUINTO DE SOUZA


Desembargador Presidente


MAURO NICOLAU JUNIOR


Jds. Des. Relator


Informações Sobre o Autor

Mauro Nicolau Junior

Juiz de Direito, Mestre em Direito Público e Evolução Social, Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Cândido Mendes e professor palestrante da EMERJ-Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.


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