Resumo: O presente ensaio aborda algumas características marcantes da cultura jurídico-penal germânica de três povos que se instalaram nos antigos territórios do Império Romano do ocidente na chamada Alta Idade Média, sendo eles: os visigodos (Península Ibérica); longobardos (Península Itálica) e francos (Gália). Na introdução, são indicadas as três diferentes culturas (coexistentes) que tinham a pretensão de exercer o poder no início da Idade Média: tradição germânica; tradição romana e o pensamento místico cristão. Em seguida é apresentado um sumaríssimo contexto histórico para situar o leitor nas particularidades dos três reinos germânicos existentes entre os séculos V e VIII nas regiões abordadas. Finalmente, são destacados e comentados alguns traços da cultura jurídico-penal germânica e suas transformações diante da tradição jurídica romana remanescente, além das influências da Igreja Católica como fonte de legitimação das novas potestades européias. Na conclusão, indica-se uma hipótese para a compreensão geral da cultura jurídico-penal que prevaleceu na Europa Medieval, mormente a partir do século IX com a generalização do feudalismo.
Palavras-chave: História do Direito; Alta Idade Média; Direito Germânico.
Sumário: Introdução; 1. Contexto Histórico e Político da Península Ibérica, Península Itálica e Gália entre os Séculos V e VIII; 2. A Cultura Jurídica e a Experiência Penal na Alta Idade Média; Conclusão.
INTRODUÇÃO[1]
O objetivo deste trabalho é fornecer uma visão panorâmica do cenário político e jurídico-penal nos primeiros séculos da chamada Alta Idade Média[2]. Isso porque, desde a derrocada do Império Romano do Ocidente (século V) até a constituição do Império Carolíngio (final do século VIII), a cultura jurídico-penal, nos territórios do extinto Império Romano, é comumente vista como se fosse uma regressão ao denominado período da vingança privada, pois os mecanismos de resolução de conflitos penais eram orientados por normas consuetudinárias trazidas por cada povo germânico que se instalou na região ora abordada.
As peculiaridades das culturas jurídicas, nos primeiros séculos da Idade Média Ocidental, residem no que se pode chamar de noção de poder, porquanto ocorreu uma amálgama complexa de institutos jurídicos germânicos primitivos[3] com os institutos jurídicos romanos[4] remanescentes em cada lugar da Europa invadida. Nesse sentido, vale transcrever a explicação de Augusto F. G. Thompson:
“O Direito romano foi socionômico ou estatutômico, enquanto o Direito germânico foi autonômico ou demonômico: o primeiro, consagrando a força e o poder do estado, revelou-se uma instituição eminentemente social onde a consideração da res publica sobrepujava a todas as outras; o segundo foi uma emanação do selbsthulfe, um simples reconhecimento legal das faculdades e prerrogativas do indivíduo”.[5]
Paralelamente a esse complexo conflito entre tradição jurídica individualista (germânica) e a noção de poder social, representado por autoridades (romano), foi sendo desenvolvida uma idéia mística de poder universal cristão, que tinha a pretensão de manter o dogma niceno[6] em todas as regiões onde imperava a vontade do poder espiritual exercida pela Igreja Católica. A relação curiosa entre as novas potestades temporais (reis germânicos) e a Igreja Católica é esboçada por Bertrand Russell:
“O poder absoluto era alheio a essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e sem espírito. O rei tinha que compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhe fosse permitido, de vez em quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou rapto. É possível que esses monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, […]. De que lhes valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos, submeter-se às ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos de força armada?”[7]
Todavia, apesar de toda força armada restar nas mãos dos reis e guerreiros germânicos bárbaros, a Igreja saiu vitoriosa da disputa pelo poder supremo de legitimação do poder com os reis germânicos, porquanto possuía o monopólio do estudo (monastérios) e da escrita, além do fato de que os reis viviam em constantes guerras entre si. Mas, acima de tudo, porque a Igreja era quem decidia, através da excomunhão, se um chefe, convertido ao catolicismo, iria passar a eternidade no céu ou no inferno, podendo, dessa forma, estimular rebeliões ao absolver os súditos (também cristãos) do dever de fidelidade para com o poder temporal.[8]
A partir dessa concepção particularíssima a respeito do exercício do poder no início da Idade Média Ocidental, a seguir será esboçado um panorama histórico dos Reinos Germânicos surgidos nos territórios do Império Romano até o final do século VIII para, em seguida, expor as peculiaridades dos mecanismos de resolução de conflitos penais entre os germânicos em tal período.
1. Contexto Histórico e Político da Península Ibérica, Península Itálica e Gália entre os Séculos V e VIII.
Os grupos germânicos que se instalaram na Península Ibérica no século V – alanos, suevos, vândalos e, posteriormente, visigodos –, apesar de trazerem seus próprios costumes do norte europeu, encontraram a Hispania romana já civilizada, mas fragmentada em regiões devido – entre outras causas – aos condicionamentos geográficos que dificultavam uma efetivação dos projetos de centralização administrativa ainda no tempo do Império.[9]
Politicamente, importante ressaltar que os visigodos, depois de uma série de batalhas e alianças com os romanos durante todo o século V, se estabeleceram em parte da Gália e da Península Ibérica formando o Reino Visigótico. Os reis visigodos promulgaram diversas normas jurídicas, que deixaram claras as influências romana e cristã em relação à cultura tipicamente germânica – consuetudinária – trazida por eles para a Península. Em uma noção ampla, pode-se entender a Península Ibérica do século VI até o início do século VIII como sendo povoada por romano-germânicos cristãos.
Os cristãos da Península Ibérica, porém, não resistiram à invasão dos muçulmanos, sendo que em 711 o último rei visigodo (Roderico) foi derrotado e, a partir de 716, consumou-se o domínio muçulmano na Hispania, que perdurou por muitos séculos; só sendo recuperada a região pelos cristãos remanescentes – de maneira considerável – a partir do século XII pela chamada “reconquista”.[10]
Na Península Itálica, por sua vez, as invasões foram mais freqüentes e vários grupos bárbaros ali passaram, como, por exemplo, os supramencionados visigodos que, antes de fundarem seu reino, estavam fugindo dos hunos (grupo de origem mongólica) e, sob a liderança de Alarico, saquearam Roma em 410. Em 455, os vândalos, após escaparem dos visigodos, já instalados na Península Ibérica, se aventuraram no norte da África e, em seguida, entraram na Itália e saquearam Roma. Em 476, os hérulos, comandados por Odoacro, invadiram Roma e depuseram o último Imperador romano do Ocidente, dando início ao período tradicionalmente designado pela História como sendo a Idade Média.
A partir de 489, os Ostrogodos expulsaram os hérulos e também se instalaram na Itália, tentando promover uma conciliação entre os germânicos e romanos[11]; mas, no século VI (a partir de 533), Justiniano, Imperador bizantino (Império Romano do Oriente), iniciou a reconquista da Itália e conseguiu debilitar o poderio gótico.
Depois das investidas de Justiniano foram dezoito anos de luta contra os ostrogodos, “durante os quais Roma e a Itália, de modo geral, sofreram muito mais do que durante a invasão dos bárbaros”.[12] Finalmente, a partir de 568, outros bárbaros germânicos denominados longobardos, aproveitando o enfraquecimento dos bizantinos e de uma grande peste que ocorreu na época, instalaram-se na Itália e, mais tarde, grupos eslavos também passaram pela península.[13]
Os primeiros reis longobardos eram cristãos arianos e somente no decorrer da segunda metade do século VII é que ocorreu uma adesão mais importante de tais germânicos ao dogma niceno, sendo que o governo do rei Liutprando (713-744) é considerado o auge do Reino Longobardo. Após o reinício de conflitos entre os longobardos e o papado por questões territoriais no século VIII, o Papa Adriano II pediu ajuda ao rei franco Carlos Magno, que pôs termo ao Reino Longobardo em 774. A parte setentrional das terras da Itália foram incorporadas ao Reino Franco – posteriormente Império Carolíngio – e as terras da Itália central foram doadas para Igreja Católica, criando os Estados Pontifícios.[14]
Na Gália, os germânicos denominados francos criaram um reino que foi o que mais se destacou na Alta Idade Média, uma vez que foi o primeiro a emergir com a queda do Império Romano e, já no século V, os reis francos, da dinastia dos merovíngios, aderiram ao dogma niceno e realizaram uma sólida aliança com a Igreja Católica, criando condições para a unificação desse povo em torno da fé cristã ortodoxa e de uma instituição social chamada comitatus.[15] Nessa perspectiva, Sônia Regina de Mendonça tece comentários a respeito da coesão social entre os francos:
“Essencialmente militar e espontânea, a solidariedade germânica era incompatível com a idéia de Estado ou de bem público. Ela servia de base para uma concepção de reino que se confundia com a propriedade particular do soberano e dele o monarca dispunha como bem lhe aprouvesse. A solidariedade era garantia pela prestação de um juramento de fidelidade (ou recomendação), através do qual os súditos se incorporavam à clientela em torno do rei. Criava-se um vínculo que implicava deveres e direitos de ambas as partes. Aos fiéis (ou vassalos) cabia a obrigação do serviço das armas. Ao soberano, o dever de proteger e auxiliar sua fiel clientela, propiciando-lhe, sobretudo, os meios de sustento. Com essa finalidade, desenvolveu-se a prática de concessão de benefício, isto é, de qualquer bem, mas quase sempre terra, doado em recompensa pelos serviços prestados. Assim, o poder militar do rei saía fortalecido. O reino franco foi onde esse processo se desenvolveu de forma mais típica e conhecida.”[16]
Já no século VIII (em 771), Carlos Magno ascendeu ao trono do Reino Franco, inaugurando a dinastia carolíngia. Tal monarca, pelas valiosas contribuições militares prestadas em favor da Igreja Católica contra o avanço dos muçulmanos instalados na Península Ibérica e longobardos da Península Itálica, foi coroado pelo Papa Leão III, em Roma, durante as celebrações do natal de 800, como sendo o imperador do Império Carolíngio. Como explica Bertrand Russell, nasceu daí uma curiosa interdependência entre o Papa e o imperador em relação à legitimação do poder, pois “ninguém podia ser imperador a não ser que fosse coroado pelo Papa em Roma; por outro lado, durante séculos, todo imperador forte reivindicava para si o direito de nomear ou depor os Papas.”[17]
Todavia, o poder central carolíngio foi tão pouco sólido que o Império foi rapidamente fragmentado em administrações locais de aproximadamente 250 condados, onde os condes gozavam de vantagens pessoais excepcionais. Com a política vassálica carolíngia, marcou-se uma etapa importante no processo de privatização das funções públicas, dando início ao chamado feudalismo, que atingiu seu apogeu nos séculos X e XI[18], já no advento do chamado Sacro Império Romano-Germânico.[19]
Observando conjuntamente as três regiões supra destacadas, nota-se que a Península Ibérica, no decorrer do século VIII, estava fora da administração dos cristãos devido à invasão muçulmana e a Península Itálica enfrentava suas vicissitudes políticas diante dos longobardos. Enquanto isso, o exército dos francos derrotou os inimigos da Igreja Católica e se expandiu a tal ponto de consolidar um (efêmero) Império, onde as conquistas territoriais dos carolíngios quase atingiram os antigos limites do extinto Império Romano do Ocidente, tornando todos seus novos súditos, tanto latinos quanto germânicos, um único povo cristão, submetido espiritualmente à Igreja Católica. Nesse contexto, a noção de política pública, como existente no Império Romano, foi preservada de maneira simbólica e mística, dentro da estrutura institucional eclesiástica.[20]
Quanto à noção particularíssima do exercício do poder na época, Jacques Le Goff pondera que o homem comum medieval não possuía liberdade, no sentido moderno deste termo. Para ele a liberdade era um privilégio diante da concepção teocrática da sociedade feudal. O indivíduo, para sobreviver, se sujeitava a uma rede de obediências e sua liberdade era exteriorizada como uma sendo uma relação pessoal de submissão a um protetor poderoso.[21] O caso mais típico desse fato foi a relação de vassalagem (Vassalaticum), que se configurava com um rito de reconhecimento da capacidade jurídica do adolescente livre no momento em que a assembléia o declarava apto às armas e ele jurava fidelidade ao suserano, dedicando-lhe todas as obras de paz e guerra, conservando a sua liberdade; o suserano, por sua vez, assumia o compromisso de fornecer armas e de manter o novo súdito.[22]
Nessa perspectiva, pode-se observar que o poder político temporal altomedieval se caracterizava por ser, precipuamente, uma relação privada entre indivíduos da classe dos guerreiros. A antiga idéia clássica de “Estado”, como sendo uma instituição pública, voltada para a coesão social, praticamente desapareceu na administração temporal, especialmente com a difusão da política de vassalagem, que modelou uma sociedade em que as relações pessoais de benefícios e prestações de serviços militares acabaram por criar numerosos reinos por toda a Europa ocidental. O resultado dessa política de fidelidade e benefício foi a privatização das principais instituições sociais que no Império Romano eram públicas, notadamente a administração da justiça, a arrecadação dos impostos e a chamada às armas, poderes esses exercidos pelos reis e, paulatinamente, entregues aos senhores feudais.[23]
A História da Europa ocidental, a partir do século IX, foi marcada pelas lutas entre os imperadores do Sacro Império, monarcas diversos e a Igreja Católica; e todos eles, em frágeis alianças, contra os normandos (vikings), os sarracenos (muçulmanos) e os magiares (húngaros).[24] Não é objetivo do presente trabalho acompanhar com minudência os acontecimentos sutis que influenciaram as dinâmicas político-jurídicas da época, mas cumpre salientar que foi no século X que se completou a fragmentação e regionalização dos poderes na Europa ocidental, pois a política feudal foi incorporada ao Sacro Império Romano-Germânico, transformando as atuais França, Alemanha e Itália em um mosaico de reinos, ducados, marcados e condados, praticamente independentes: “foi a era da construção de castelos e fortificações e da chamada ‘guerra privada’ que se estende por tôda a Europa [sic].”[25]
2. A Cultura Jurídica e a Experiência Penal na Alta Idade Média
No tocante ao Direito na Idade Média, Paolo Grossi diz que esse deve ser observado como um planeta jurídico separado, fechado e descontínuo do “clássico” e do moderno; e distinto por sua própria integridade, pois, apesar da media aetas ter sido marcada por uma retórica ideológica renascentista – como sendo uma idade obscura, transitória e não autônoma na produção de Direito – houve, em tal período, a criação de uma verdadeira Ordem Jurídica, e isso demonstra a originalidade e a adequação das comunidades medievais às suas exigências cotidianas.[26]
Não se deve cair no equívoco, todavia, de que não havia Leis na Alta Idade Média. Ao revés, elas existiam e eram destinadas a todos os súditos, com o intuito de se obter uma determinada disciplina social. As compilações medievais permitem ao historiador do direito a verificação das influências romanas e cristãs nos costumes germânicos. Na Itália, por exemplo, havia o Edictum Longobardorum, também conhecido por Edictum Rothari (Edito de Rotário, do ano de 643), onde eram previstas orientações ao Direito Penal e ao Direito de Família, mas sem nenhuma pretensão de encerrar a totalidade de um ordenamento.[27]
Ainda, quanto ao Reino Longobardo, pode-se mencionar os seguintes textos jurídicos: Grimualdi leges; Liutprandi leges; Memoratorio de mercedes commacinorum; Notitia de actoribus regis; Ratchis leges; Ahistulfi leges; Principum Beneventi legis, sendo que tais textos jurídicos germânicos, ao contrário do Edictum Rothari, foram fortemente influenciados dogma niceno, pois os reis longobardos posteriores a Rotário – que era ariano – tornaram-se católicos.[28]
Na Península Ibérica (Reino Visigótico) houve uma reiterada atividade legislativa antes da invasão muçulmana. Como destaca Nilo Batista, o primeiro código promulgado por um monarca germânico foi Codex Euricianus (aproximadamente 476), posteriormente surgiu a Lex Romana Wisigothorum (506), também conhecida por Breviarum Alaricianum, e, finalmente, em 654, o Liber Iudiciorum, também chamado de Lex Wisigothorum, Codex Wisighotorum, Liber Iudicum ou Forum Iudicum.[29]
Da mesma forma, a Lex Salica, entre os francos, era destinada a todos os súditos, mas as suas disposições legais eram, em sua maioria, de caráter privado.[30] Paradoxalmente, como informa John Gilissen: “A maior parte dos ‘títulos’, mais de três quartos, diz respeito à matéria penal. Na realidade, trata-se (a Lei Sálica) duma tabela de composições: a compositio (ou Wergeld) era a soma necessária para pagar a faida ou direito à vingança privada.”[31] Finalmente, ainda existiam outras leis de outros reinos germânicos, como por exemplo: a Lex Saxonum; a Lex Frisionum; a Lex Bavariorum, a Lex Gundobada[32] etc., que evidenciam a influência romana no direito germânico, especialmente porque o direito público romano reforçava, a fortiori, a autoridade débil dos reis bárbaros.[33]
A tradição jurídica propriamente germânica era consuetudinária e exercida nas Sippen (comunidades de sangue) que seguiam fielmente seus chefes guerreiros que, segundo Michel Rouche, estavam condenados a vencer para poder manter sua autoridade.[34] O fundamento das organizações germânicas não foi como o de Roma no período do Império, que estava assentada na idéia de salvação pública e de bem comum, mas era uma “reunião de interesses privados numa associação provisória automaticamente reconstruída pela vitória.”[35]
O mesmo autor informa que as leis germânicas inconscientemente confundiam domínio público e domínio privado, e que elas foram elaboradas ao longo das peregrinações dos visogodos, francos etc., que eram povos desprovidos de escrita – apenas possuíam algumas runas religiosas – e que confiavam suas normas de direito a alguns especialistas, que decoravam cada artigo e acrescentavam as últimas decisões tomadas, fazendo jurisprudência. Esse mesmo autor ilustra:
“Espécie de bibliotecas ambulantes, eram a lei encarnada, imprevisível e terrível, pois bastava o juiz pronunciar em alto alemão antigo, por exemplo, friofalto uaua buscho – “homem livre mutilado na relva” -, para que se proferisse a sentença: “Cem soldos de ouro de multa”. O primado da oralidade na justiça tornava o ato judiciário eminentemente pessoal e subjetivo, pois, exceto os especialistas, ninguém conhecia a lei. Ademais, de acordo com sua origem, todos eram passíveis de comparecer perante a justiça.”[36]
A generalização do direito privado sobre o direito público na Europa medieval foi um fenômeno tipicamente germânico, e o autor acima mencionado dimensiona a importância que os invasores da Gália davam ao seu patrimônio pessoal : “os juízes francos se preocupavam tanto com o roubo de um cão quanto seus colegas romanos com a responsabilidade fiscal dos conselheiros municipais, os curiais. […]. Era uma conseqüência inevitável da preferência por uma sociedade guerreira pelos bens pessoais.”[37]
Nilo Batista explica que um dos elementos mais importante para as comunidades germânicas, que promoviam a coesão grupal através de uma noção de “pertencimento” social, era a chamada fridr (paz), de tal forma que os acontecimentos contrários ao sentimento de paz local levava a uma reação coletiva por parte dos integrantes do grupo contra o ofensor.[38] Assim, nas comunidades germânicas altomedievais, o autor de uma ofensa poderia sujeitar-se à uma exclusão (banimento), da Sippe (estirpe, comunidade de sangue) a qual pertencia. Isso, naqueles tempos de guerra, realmente significava um futuro incerto e perigoso ao indivíduo.
Se a ofensa viesse de uma sippe diversa, a ruptura da paz “conduzia a um estado de inimizade (Fehde ou faida), que perduraria até a compensação, real ou simbólica, do grupo ofendido. E se a ofensa houvesse consistido na morte violenta de alguém, a solidariedade grupal […] impunha a vingança do sangue (Blutrache)”[39]. As características desse período são denominadas, pelos penalistas, como sendo o “período da vingança privada”.[40] Todavia, não eram todas as ofensas que levavam as sippen ao exercício da faida. Ao revés, os mecanismos de resolução de conflitos entre os germânicos demonstram a larga utilização de acordos para a composição dos danos e, somente em casos isolados é que ocorria a faida, como será visto mais adiante.
Sobre o procedimento penal dos germânicos, Nilo Batista pondera que, além de serem incompreensíveis para o jurista contemporâneo, era estruturalmente idêntico ao “processo civil”, e seu objetivo não era o esclarecimento do fato punível, “mas a interpretação de suas virtualidades ofensivas à paz e a superação do estádio [sic] de perturbação e temor por ele inaugurado”.[41] Jean-Marie Carbasse também ressalta essa característica privatista do direito processual entre os francos, informando que “contrariamente ao direito romano, o direito franco não (fazia) distinção entre o civil e o criminal: um único e mesmo procedimento se aplicava a todos os processos.”[42]
Brian P. Levack explica que o sistema processual utilizado pelos tribunais seculares europeus antes do século XIII era o acusatório, ou seja, a ação penal era desencadeada e julgada por pessoas privadas, geralmente a própria pessoa prejudicada ou um de seus parentes. A acusação era uma declaração oral, formal, pública e sob juramento perante o acusado e um juiz. Este, por sua vez, decidia contra o acusado se este admitisse a sua culpa ou se o acusador privado conseguisse reunir certas provas. No caso de dúvidas o julgador apelaria a Deus para que fornecesse algum sinal de culpa ou da inocência da pessoa acusada. Para a realização desse tipo de prova, era utilizado o ordálio ou, como alternativa, o acusado (ou seu padrinho) poderia ser convocado para o duelo judicial.[43]
Sem adentrar em outras questões próprias do processo germânico, o qual apresenta suas curiosidades quanto ao uso do ordálio[44] e do duelo judiciário[45], interessa destacar que, também entre os germânicos, estava muito presente a questão da religiosidade com a presença de Deus no estabelecimento da Justiça e, por isso, a execução d e uma pena, mais que uma mera “vingança”, era um meio simbólico de recompor a paz na Sippe. Como reflete Nilo Batista: “diante de tal cenário, um direito de graça seria precisamente uma cumplicidade com a desgraça”.[46] Um homem livre e honrado tinha por obrigação vingar os seus parentes ofendidos, não representando isso uma reação desmedida e bárbara ao ofensor, mas um ideal de justiça e pacificação na comunidade.
O caráter privatista do direito penal altomedieval revela-se, especialmente, na pena pecuniária. Esta surgia como possibilidade de compensação material ao ofendido (ou seus familiares) pelo resultado ocasionado pela conduta tida como violadora da paz. Afirma o autor supramencionado que a composição era oferecida como uma alternativa ao exercício da vingança e se aplicava a “qualquer tipo de delito (Busse) ou especificadamente do homicídio (Wergeld), e lograva transcender a ruptura da paz e encerrar a inimizade (faida).”[47] Havia uma questão honorífica nesse tipo de pena, pois, geralmente, o ofensor que dela se utilizava tinha mais força ou poder do que a vítima ou sua família, e, assim, havia a exculpação por intermédio da composição pecuniária para as vítimas.[48]
Carlo Calisse, historiador do direito italiano, ao escrever sobre a lei dos longobardos – que foi diferente das visigóticas, uma vez que estas tiveram maior influência romana e católica – informa que, ao contrário do que se afirma, o Direito Penal bárbaro regulamentava as diferenças entre dolo, culpa e caso fortuito, ou seja, levava em conta o elemento subjetivo do crime. Assim, por exemplo, no Edito de Rotário (séc. VII), estava previsto que aquele que incendiasse uma casa com dolo deveria pagar três vezes o valor dela; se fosse com negligência deveria pagar o equivalente ao dano e, se ocorresse o incêndio sem o dolo ou negligência, não devia nada.[49]
No direito germânico, como já dito, a pretensão de satisfação pela vítima ofendida (auxiliada por sua sippe) era levado ao extremo com o exercício da faida, que era a “inimizade” entre as sippen, uma prática jurídica e que ficou registrada na História como sendo uma verdadeira “guerra privada” entre famílias. No tempo de Rotário, porém, a lei proibia que houvesse a faida antes de ocorrer a possibilidade do ressarcimento do dano, ou seja, estava sendo deslegitimado o estado de inimizade particular, e se obrigava a resolução dos conflitos através da composição dos danos, como forma de se extinguir a ruptura da paz na comunidade.
O mesmo autor italiano informa que o crime era juridicamente extinto quando executada a pena, e esta, no direito antigo, servia para dar uma satisfação moral e material ao ofendido (e sua sippe). Nessa perspectiva, quando este se declarava satisfeito, mesmo com pouca ou nenhuma compensação, se entendia que o crime não existia mais, pois a pena estava paga e, nesse momento, se teria a paz concluída. “A paz, portanto, que o ofendido concede ao ofensor, é causa de extinção do crime: assim era no mais antigo direito romano, e assim era no bárbaro.”[50]
Com essa informação, nota-se que a realização do “Direito Penal germânico” caracterizava-se por ser uma facultas agendi exclusiva do ofendido, que era, por assim dizer, o único responsável pela oportunidade de declarar a paz restaurada, seja pela compensação alternativa à faida, seja pela renúncia à penalização do seu ofensor. Dessa forma, o costume bárbaro que autorizava a “vingança privada” concedia, a final de contas, o ius puniendi sobre o ofensor, mas não obrigava ofendido à sua execução.
Entretanto, com a mescla dos institutos germânicos dos longobardos com os romanos, perfeitamente observável no Edito de Rotário, o caráter privado do ius puniendi foi se ligando ao público, porquanto a lei não obrigava o ofendido a executar a pena, mas o seu abandono por este já não mais extinguia o crime, apenas mudava de executor: o rei, substituindo a ação privada pela pública.[51]
Carlo Calisse ilustra a “apropriação” do conflito privado dos súditos pelo rei, representante do interesse público entre os longobardos:
“Se os parentes não punem a mulher que fornicou, inspira o rei a puni-la, da mesma forma é com a mulher livre, que se casa com um servo; se um dono não resgata um servo ladrão, nem pune aquele que foi pego furtando, a pena deles é dada ao rei; este se faz vingador também do adultério, quando o marido não se vinga, se bem que as mais antigas leis sobre este ponto guardam silêncio. Com o ulterior desenvolvimento do direito penal, o interesse público prevalece sempre mais; aquele privado, ao contrário, sempre mais se reduz ao ressarcimento do dano.”[52]
Esse tipo de “apropriação” do conflito penal pelo rei também ocorreu de maneira semelhante na Península Ibérica. Nilo Batista, comentando sobre a questão do ressarcimento pelos danos decorrentes de crimes entre os visigodos e o paulatino (re)surgimento do poder público na esfera privada informa:
“Se originalmente o produto da composição se destinava inteiramente à vítima ou seus parentes, já ao tempo de Tácito uma parcela tinha destinação comunal (aos olhos romanos, e em linguagem romana, “pars multae regi vel civitati”), e mais tarde se distinguirá entre o faidus, que pertence aos parentes da vítima, e entre eles se dividirá de acordo com certas regras, e o fredus, que pertence ao fisco. A extraordinária generalização dos procedimentos composicionais, além dos confiscos, converteria a jurisdição penal, na Idade Média, em atividade lucrativa.”[53]
O mesmo autor informa que era o resultado, e não a conduta em si, que balizava a reação penal no reino visigótico. Diante dessa característica, não havia uma reação penal àqueles que cometiam qualquer conduta contra o ban(d)ido e contra o estranho; sendo que uma das penas mais graves aplicadas àqueles condenados pelo processo germânico era justamente o banimento, a exclusão do grupo pela “perda da paz” (friedlosigkeit), tornando-o um estranho para a Sippe e, por isso, alvo fácil para a vingança privada.[54]
Nilo Batista também salienta que, de maneira análoga aos francos, os reis visigóticos não possuíam poder ilimitado e sua vontade não se outorgava em força de lei[55]; mas, com a promulgação das compilações visigóticas, mormente o Liber Iudiciorum (de 654), com forte influência cristã católica, já se podia verificar o desmonte da solidariedade grupal das sippen e a sua substituição pela política, promovendo a substituição da paz comunal por uma ordem política centralizadora, onde as leis penais seriam um importante instrumento de controle e modelação dos súditos.
Percebe-se com isso que, enquanto que na antiguidade germânica o delito era aquilo que causava dano ao indivíduo, ocasionando o rompimento da paz na sippe, no reino dos visigodos do século VII a simples violação da norma proibitiva – infração à Lei – já fornecia a referência básica para a repressão.[56] Dessa forma, pode-se observar que os reis germânicos, fomentados pela moral católica, ao mesmo tempo que começaram a proibir que a faida se instalasse antes da submissão da causa à sua apreciação, passaram a utilizar os conflitos inter-subjetivos de seus súditos para controlar a todos através da lei penal proibitiva e, ainda, receber taxas e multas decorrentes do julgamento dos atos ilícitos.
CONCLUSÃO
Nesse cenário medieval, não restam dúvidas de que o ius puniendi, que antes pertencia ao indivíduo livre e sua sippe, passou a ser uma prerrogativa particular do rei e de seus mandatários (vassalos), agora legitimados pela moral universal e mística proclamada pela Igreja Católica. Foram necessários praticamente três séculos de contato entre institutos jurídico-penais germânicos com os romanos remanescentes na Europa ocidental para, finalmente, descambar no arbítrio das resoluções de conflitos nas mãos dos reis e nobres cristãos, tornado o Direito Penal medieval mais uma característica de opressão privada desmedida (e lucrativa) do que uma suposta pacificação comunitária. Enfim, a única esperança que restou para os súditos cristãos, diante das mudanças promovidas nos mecanismos tradicionais de resolução de conflitos, era de que Deus mandasse um representante (rei ou nobre) piedoso e capaz de estabelecer a paz em consonância com os valores cristãos.
AS INVASÕES germânicas e eslavas na Europa. Atlas da história do mundo. São Paulo: Folha de São Paulo, 1995, p. 98-9.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Ribas de Paulo
Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando na matéria de Direito Processual Penal. Advogado Criminalista. Mestre em Direito, Estado e sociedade pelo Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Doutorando em Direito pelo CPGD/UFSC.