1 Considerações Iniciais
O conflito entre capital e trabalho nunca esteve tão em voga. Ao passo que o capital avança na sua meta de produzir cada vez mais, reduzindo a utilização de mão-de-obra, o esfacelamento do Direito do Trabalho emerge como um milagroso corolário da globalização com matizes neoliberais. Nesta sociedade extremamente complexa, os valores estão perdidos num emaranhado de leis. Estas, quase sempre, feitas sob encomenda, com interesses muitas vezes desconhecidos e sobre um ideário nem sempre condizente com a verdadeira vontade popular. Desta realidade as normas trabalhistas também fazem parte, e existe uma grande articulação para precarizar as condições de trabalho do brasileiro. Por isto, diagnósticos como o de Viviane Forrester são de primordial importância para revelar a desestruturação do valor do trabalho na sociedade contemporânea:
“Não é ele que, em princípio, rege toda distribuição e, portanto, toda sobrevivência? Os emaranhados de intercâmbios que daí decorrem parecem-nos tão indiscutivelmente vitais quanto a circulação do sangue. Ora, esse trabalho, tido como nosso motor natural, como a regra do jogo que serve à nossa passagem para esses lugares estranhos, de onde cada um de nós tem vocação a desaparecer, não passa hoje de uma entidade desprovida de substância.”[1]
Eric Hobsbawm aduz que o neoliberalismo:
“baseia-se no pressuposto de que a liberalização do mercado otimiza o crescimento e a riqueza do mundo e leva à melhor distribuição deste incremento. Toda tentativa de controlar e regulamentar o mercado deve, portanto, apresentar resultados negativos, pois restringe a acumulação de lucros sobre o capital, e, portanto impede a maximização da taxa de crescimento”.[2]
Com base nesta assertiva supracitada, observamos que a globalização é fenômeno que torna possível a materialização do neoliberalismo e seus resultados excludentes. A globalização econômica é um dos aspectos marcantes desta sociedade contemporânea complexa, marcada pela volatilidade de informações e pela instabilidade dos países na economia global. Os teóricos têm muita dificuldade em conceituar a globalização, Otávio Augusto Reis de Souza nos fornece uma visão do que venha a ser o fenômeno chamado globalização e o porquê da dificuldade conceitual:
“A globalização tão referida é muito antes descrita do que conceituada. A dificuldade reside, talvez, na proximidade dos cientistas sociais com o fenômeno, o que transforma em tarefa penosa sua clara percepção e mais difícil ainda a elaboração de um conceito. Ainda, assim, é vista mais das vezes como um processo que, passando pela fase inicial de formação de blocos regionais (MERCOSUL) dirige-se à inserção da humanidade em uma sociedade única mundial, diluindo as idéias de soberania e fronteira geográfica. Eis por que denominada também mundialização”[3].
No Brasil a informalidade coloca milhares à margem do Direito do Trabalho, laborando sem nenhuma garantia ou proteção jurídica, submetendo-se a condições de semi-escravidão, quando não de escravidão propriamente dita. Calcula-se que 60% (sessenta por cento) da população economicamente ativa encontra-se no trabalho informal[4]. É sabido que as normas trabalhistas alcançam um número ínfimo de trabalhadores, o que força a conclusão de que não é, na verdade, o Direito do Trabalho o responsável pela estagnação econômica. Desta sorte, devemos rechaçar a visão simplista e descomprometida de que o Direito do Trabalho é o responsável pela estagnação econômica.
Lia Tiriba fez excelente pesquisa abordando a economia informal. Explicita que, dentro deste universo, a maioria das pessoas já realizou, algum dia, um trabalho assalariado. Esclarece que, mesmo assim, ficavam à margem dos direitos laborais, uma vez que realizavam as atividades sem nenhum registro formal. Assim, os estimados 40% (quarenta por centro) dos trabalhadores formais pode ser um número falso, eis que a diferença entre formalidade e informalidade é fronteiriça, carteira assinada não significa, em todos os casos, respeito às normas trabalhistas.[5]
A valorização dos resultados econômicos sobre os humanísticos pode levar a sociedade ao caos, fomentando o aumento indiscriminado do rol dos excluídos, juntamente com a violência urbana, podendo levar até à ruptura social. Neste sentido encontra-se Rodrigo Deon que alerta para a necessidade de reconhecimento e efetivação do princípio da valorização do trabalho:
“Entretanto, a globalização da economia, por meio de seus instrumentos, como a revolução tecnológica, inferiorizou o homem à condição de mero instrumento de trabalho, substituindo-o pela máquina e priorizando o capital sobre o valor da dignidade humana. É claro que se deve buscar o progresso econômico do país, no entanto o desenvolvimento político, o econômico e o social devem estar harmonizados com o ordenamento jurídico, para que os direitos fundamentais não sejam ignorados na relação de trabalho”.[6]
Luiz Otávio Linhares Renault acentua bem o perigo de entender o trabalho como bem material:
“Note-se, acima de tudo, que ainda é necessária a erradicação por completo da mentalidade de que o trabalho, qualquer que seja o sistema de produção, é um simples bem material, que só interessa ao indivíduo e não a toda a sociedade; é indispensável o convencimento por parte de alguns setores produtivos de que a organização do trabalho alheio “deslizou” definitiva e irremediavelmente, há mais de um século, do plano puramente contratual para uma necessária e indispensável dimensão de tutela, pouco importando se o sistema da produção é rígido ou flexível, fordista ou toyotista.”[7]
O conteúdo axiológico do trabalho não tem sido devidamente observado, uma vez que até a economia o considera como apenas um elemento do sistema econômico de um país, reduzindo-o a um aspecto desumanizado da sociedade. É um lamentável equívoco porque retira do labor seu mais importante significado: a dignidade que confere ao ser humano. Kátia Magalhães Arruda enfatiza a respeito, descortinando alguns dos efeitos do processo de globalização em nossa sociedade:
“A globalização intensifica a abertura de mercados e a migração de empresas para países e localidades que sejam mais lucrativas, ou seja, onde existe a mão-de-obra mais barata e a menor fiscalização e respeito aos direitos internacionalmente conhecidos como fundamentais para a classe trabalhadora. Além disso, o neoliberalismo privilegia a lógica exclusiva do mercado em detrimento do homem, desviando o avanço tecnológico para o fator lucro, em vez de ter como destinatário a valorização da vida humana”.[8]
A globalização não pode ser entendida como a salvação econômica do nosso país, porque o fator que pode ser capaz de auferir o desenvolvimento é a qualidade de vida de um povo. Este entendimento é abalizado por Amauri Mascaro Nascimento quando afirma que “os reflexos da globalização não caracterizam o desenvolvimento do país, visto que, para isso, seria necessária a melhoria de qualidade de vida dos homens”[9]. Esta premissa de forma nenhuma pode ser ignorada, sob pena de subvertermos o conceito da finalidade do Estado que consiste na promoção do bem comum.
Fica claro que o abandono dos princípios constitucionais referentes à dignidade do trabalhador constitui-se numa tentativa ignóbil de desmantelo da Justiça do Trabalho, uma vez que a atenuação daqueles leva indiscutivelmente ao esfacelamento do aparato jurisdicional trabalhista.
A especialidade do ramo justrabalhista reside nas suas peculiaridades, nos seus princípios próprios e marcantes. A garantia mínima de dignidade a que se remetem todos os princípios trabalhistas é que garante a dignidade do trabalho humano. Desfocando a especialidade, os princípios serão atingidos diretamente. A doutrina trabalhista começa a perceber a tentativa de manipulação da finalidade do Direito do Trabalho. Magda Biavashi e Ricardo Carvalho Fraga alertam para a nova “teoria” sobre a finalidade do Direito do Trabalho que vem surgindo, maléfica para a sociedade como um todo, vez que despreza o conteúdo ético e valorativo do trabalho humano, reduzindo-o a uma pseudociência:
“Nesta nova visão, a finalidade do Direito do Trabalho passaria a ser a da busca de maior produtividade, com o que se transformaria numa pseudociência auxiliar-dependente dos conhecimentos da área de Administração Empresarial. Abandonar-se-ia a preocupação central com a proteção do homem trabalhador. Nesta visão, ainda não explicitada por inteiro, porque pouco atraente, o princípio da tutela seria menos relevante, ou até mesmo um obstáculo”.[10]
Xisto Tiago de Medeiros Neto adverte que “estão se confirmando as previsões de que apenas 20% da força de trabalho humano disponível serão suficientes para atender às necessidades da produção do mercado consumidor mundial”[11]. Se houver confirmação desta perspectiva, verdadeira calamidade social irá instalar-se.
Nesta miscelânea de acontecimentos, a precarização do trabalho se faz presente sob vários aspectos. Podemos destacar os seguintes: as formas mutantes e aberrantes das cooperativas e da terceirização, significando a verdadeira absorção ilegítima do trabalho, tudo sob uma suposta manta de legalidade. A miséria da população compele o trabalhador ao aceite de quaisquer condições de trabalho, favorecendo e alimentando o ciclo vicioso do desrespeito às normas trabalhistas.
O único caminho que pode despontar para a satisfação de uma sociedade justa e igualitária é garantir, por força e proteção de lei, a dignidade do trabalho. E não só isto, propiciar formas de que estas normas sejam efetivamente cumpridas.
Este capítulo destina-se, prioritariamente, a propor uma revitalização do trabalho no tocante ao seu cunho ético-social. Ressaltamos que o princípio da valorização do trabalho humano, gravado textualmente no art. 170 da Carta Magna de 1988, deve se constituir em verdadeira garantia. Caso contrário, existe o risco real de que a proteção estatal e a dignidade do trabalhador desapareçam por completo.
Magda Biavashi alerta-nos pra que o “mito de que inexistem alternativas outras para a inserção num mundo globalizado que não as subsumidas no ideário neoliberal”[12] seja combatido. De forma que a falácia neoliberal não prospere e coloque-nos numa posição de exploração do trabalho análoga à que vivemos no período da escravatura.
José Martins Catharino completa com propriedade que existem outras formas de participar do mundo globalizado, preservando o ser humano como epicentro e objeto principal da proteção jurídica e não como a teoria neoliberal apregoa.[13]
A intervenção estatal é o único óbice à exploração desumana do trabalhador e a ciência jurídica, enquanto ciência social aplicada, tem um papel preponderante, pois reflete, também, a política adotada com relação ao trabalho. Luiz Fernando Coelho defende este papel social do direito como um todo, de modo que seja necessário um “direito efetivamente engajado na construção de um mundo mais humano”[14].
Elimar Pinheiro do Nascimento reforça a idéia de que é preciso uma posição firme do Estado, marcando uma postura ativa e decisões políticas no sentido de proteger o trabalho enquanto valor preponderante de uma sociedade democrática:
“Enquanto a modernidade ganha novas qualificações e novas dimensões, com a crescente mundialização da economia, agudizando tendências que se encontravam em seu interior, desde os seus primórdios, a exclusão constitui uma ameaça real e direta à modernidade, destruindo um de seus espaços essenciais, o da igualdade. Na superação das tendências de exclusão reside, portanto, a possibilidade de redefinição de modernidade, o que demanda, paradoxalmente, uma maior efetivação do Estado-nação. Sem ética nacional e sem Estado de Direito, intervindo nos processos econômicos, a modernidade tende a desaparecer. E aí é que se revela a influência indireta do processo de mundialização sobre o esgotamento da modernidade, pois ele retira poderes do Estado, esgarça-o simultaneamente para fora (internacionalização da produção) e para baixo (controle do crescimento da desigualdade)”.[15]
2 O Trabalhador como cidadão inserido numa sociedade justa e igualitária: princípio do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal é um marco instrumental de mudança de paradigma social porque adota valores que norteiam toda a interpretação das leis e imprime ao aplicador do direito uma nova tônica. Esta tônica é voltada para a satisfação dos interesses garantidos nos preceitos constitucionais, conferindo-lhes o valor axiológico e pragmático concretos, de modo a favorecer que os direitos se efetivem.
O preâmbulo da Constituição de 1988 tem sido entendido, pela maioria da doutrina, como parte integrante do conteúdo normativo da Constituição. Segundo Clèmerson Merlin Clève[16] é possível identificar claramente no preâmbulo que o legislador originário quis favorecer a preponderância da dignidade do ser humano, elencando-a como um valor social. E não só a Constituição assim o fez, os tratados e convenções também tratam da dignidade da pessoa humana, na sua acepção mais ampla que contém a dignidade do trabalhador.
No art. 1º da Constituição de 1988 (CF/88) encontramos a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho como fundamentos de construção da sociedade brasileira, concebida inserta no Estado Democrático de Direito. O trabalho é compreendido como instrumento de realização e efetivação da justiça social, porque age distribuindo renda[17].
Ao abraçar a dignidade da pessoa humana, a Constituição abarca duas definições: a de direito individual visando à proteção e a de dever de tratamento igualitário. Portanto, o dever de respeitar a dignidade do outro é um direito fundamental. Até mesmo a Declaração Universal da Organização das Nações Unidas (ONU), datada de 1948, em seu art. 1º trata do princípio da dignidade: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
A dignidade da pessoa humana em sua dimensão sócio-política, conforme Izabel Christina Baptista Queiroz Ramos, “é aquilo que iguala todos os homens, pois apesar das diferenças existentes em cada um, todos possuem a mesma dignidade que deve ser protegida e respeitada, como um mínimo invulnerável”[18].
O jurista Ingo Wolfgang Sarlet ocupou-se de conceituar a dignidade da pessoa humana no campo jurídico de forma bastante elucidativa e acolhida neste capítulo, vejamos:
“a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.[19]
Podemos observar que os princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana foram colocados lado a lado no texto constitucional, o que revela que caminham de mãos dadas para a concretização do Estado Democrático de Direito. Ingo Wolfgang Sarlet ao analisar o conteúdo do art. 1º, aduz o seguinte:
“Igualmente sem precedentes em nossa evolução constitucional foi o reconhecimento, no âmbito do direito positivo, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF), que não foi objeto de previsão no direito anterior. Mesmo fora do âmbito dos princípios fundamentais, o valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de previsão por parte do Constituinte, […] quando estabeleceu que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna (art. 170, caput). […] Assim, ao menos neste final de século, o princípio da dignidade da pessoa humana mereceu a devida atenção na esfera do nosso direito constitucional”.[20]
É bastante emblemática a preocupação com que o legislador constitucional construiu as bases do Estado Democrático de Direito, alçando seus pilares em valores humanísticos e, secundariamente em valores econômicos. Embora não seja intento deste capítulo negar a importância do desenvolvimento econômico e da inserção do país no mercado globalizado, estas se localizam em segundo plano diante do ser humano. No mesmo sentido Marcelo Silva Moreira:
“Do princípio da igualdade deriva a imposição, sobretudo dirigida ao legislador, no sentido de criar condições que assegurem uma igual dignidade social em todos os aspectos. Outrossim, do conjunto de princípios referentes à organização econômica deduz-se que a transformação das estruturas econômicas visa, também, a uma igualdade social”.[21]
O conceito de trabalho na expressão “valorização do trabalho” deve ser compreendido como trabalho juridicamente protegido, ou seja, emprego. Porque é o emprego o veículo de inserção do trabalhador no sistema capitalista globalizado, e só deste modo é possível garantir-lhe um patamar concreto de afirmação individual, familiar, social, ética e econômica.[22]
A correta leitura constitucional do princípio da valorização do trabalho está ligada intrinsecamente com o emprego, porque é a única forma de coerência com os demais imperativos principiológicos constitucionais, como o princípio da justiça social e da busca do pleno emprego (conforme o art. 170, VIII da CF/88).
A finalidade maior de nossa Constituição é garantir o bem comum. Dessa forma, a dignidade dos cidadãos brasileiros é o norte para qualquer interpretação, inclusive das emendas ao texto constitucional. Maurício Antônio Ribeiro Lopes suscita o caráter intangível da dignidade da pessoa humana de qualquer discussão constitucional, afirmando como “ponto de partida e de chegada de todo o ordenamento jurídico num Estado de Direito”[23].
“É o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”[24]. Com estes dizeres, Ingo Wolfgang Sarlet torna cristalino que o ser humano é razão de ser do Estado e para ele deve se voltar todas as garantias e proteções. No mesmo sentido, Maximiliano Nagl Garcez, assessor do Partido dos Trabalhadores, expressa que:
“Não se pode tratar o trabalhador como uma peça sujeita a preço de mercado, descartável quando não se presta mais à sua finalidade. A luta pelo respeito à integridade do trabalhador visa também lembrar à sociedade os princípios fundamentais de solidariedade e valorização humana, que ela própria fez constar do documento jurídico/político que é a Constituição.”[25]
Quaisquer normas que surjam relacionadas à temática trabalhista devem ater-se a uma interpretação coesa com os princípios constitucionais da valorização do trabalho e do cidadão trabalhador no tocante à sua dignidade. Isto significa utilizar a técnica de interpretação conforme a Constituição. Para Paulo Ricardo Schier esta “técnica de interpretação consiste em verdadeiro instrumento de efetivação do Estado democrático de Direito, recurso que não pode ser dispensado no exercício da prestação jurisdicional”[26].
Ainda que assim não fosse entendido, não seria possível simplesmente desprezar os princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana, mesmo em caso de confronto com outros princípios constitucionais, conforme explica Alexandre de Moraes:
“Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas.”[27]
Não se trata aqui de orientação hermenêutica, mas de imperativo constitucional intangível. A interpretação idônea e coerente com a Constituição, deste modo, é sempre a que satisfizer o conteúdo jurídico destes princípios. O Estado Democrático de Direito tem como fulcro basilar a realização de sua Constituição, como bem observou Francisco Pedro Jucá “fazendo com que os objetivos políticos decididos pela Constituição sejam atingidos através da prática da aplicação do ordenamento jurídico por parte da própria sociedade”[28].
3 O novo inciso I do art. 114 da Constituição Federal e os princípios da valorização do trabalho e da dignidade da pessoa humana
Muito embora a reforma tenha sido recebida em clima de festejo, o momento posterior deve ser de profunda reflexão sobre os rumos que o Direito Laboral irá assumir como meta para efetivação de direitos. O reconhecimento de que o Direito do Trabalho tem um importante papel civilizatório implica em agregar um compromisso social. O patamar de civilização alcançado deve ser mantido e ampliado, não numa atitude ou visão paternalista do direito, mas de ação garantidora da dignidade do trabalhador e a sua valorização como parte de uma sociedade justa e igualitária.
Maurício Godinho Delgado, ao comentar o inciso I do art. 114 da CF/88 inserido pela Reforma do Judiciário, trata da questão apontando que:
“ao retirar o foco competencial da Justiça do Trabalho da relação entre trabalhadores e empregadores (embora esta, obviamente, ali continue incrustada) para a noção genérica e imprecisa de relação de trabalho, incorpora, quase que explicitamente, o estratagema oficial dos anos 90, do fim do emprego e do envelhecimento do Direito do Trabalho. A emenda soa como se o trabalho e o emprego tivessem realmente em extinção, tudo como senha para a derruição do mais sofisticado sistema de garantias e proteções para o indivíduo que labora na dinâmica socioeconômica capitalista, que é o Direito do Trabalho”.[29]
Este comentário é oportuno para não analisarmos com tanta ingenuidade os efeitos futuros da nova redação do art. 114 da Constituição proposta pela Emenda 45. Sabemos que esta modificação de competência não partiu do povo, mas da estrutura de poder, que se funda, no grande capital financiador das milionárias campanhas eleitorais.
O Direito do Trabalho é um núcleo de resistência ao dito “capitalismo selvagem”, onde o lucro justifica tudo, inclusive a exploração sem limites da força de trabalho. Neste aspecto, o Direito do Trabalho torna-se um alvo porque, mitigada a sua aplicação, todo o sistema organizado fica enfraquecido.
Muitos anunciam que não há motivos para tanta comemoração, a exemplo de João José Sady que alerta para o fato de que vir a integrar a Justiça Trabalhista não significa auferir o direito material da mesma, ou seja, não existe este benefício todo para o jurisdicionado, vejamos:
“Neste primeiro momento de impacto da vigência da E.C. 45, há um cortejo de aplauso entre tantos intérpretes e uma interpretação corrente no sentido da ampliação da competência na direção do trabalho como prestação autônoma de serviços. Esperemos que a luz se faça e venha a deter-se este cortejo que se anuncia em ritmo de festa, mas que bem poderia desfilar ao toque de marcha fúnebre anunciando que a Emenda em questão, com esta interpretação, pode ser um passo importante na direção do desmonte do Direito do Trabalho. Os bem intencionados defensores desta ampliação, a nosso ver, laboram em equívoco, na medida em que vislumbram a essência da ação tutelar da norma jurídica como sendo um fato do instrumento do Estado que é a Justiça do Trabalho. Esta, contudo, é somente a “longa manus” desta proteção e não, a proteção propriamente dita. Atribuir-lhe a missão de aplicar direito comum aos prestadores autônomos de serviços não vai incrementar em nada a proteção da ordem jurídica sobre este contingente de atores.”[30] (grifo nosso)
Está cristalino que a Reforma do Judiciário, no tocante à Justiça Trabalhista, não pode ter vindo para fortalecer uma estrutura judicial que sempre foi asseguradora dos direitos dos trabalhadores. Haja vista que a força do capital deseja o desmantelo e aviltamento da Justiça do Trabalho.
O princípio da valorização do trabalho, na sua acepção de dignidade do trabalhador, certamente sofrerá mitigação, caso a interpretação mais ampliativa seja a adotada. O epicentro do Direito do Trabalho será, aos poucos, modificado e sofrerá um processo de mutação natural que significará a flexibilização dos princípios juslaborais por via reflexa.
A imprecisão na redação do inciso, ora objeto de comentário, compromete até mesmo sua interpretação, uma vez que se for entendida de forma extensiva em demasia irá abarcar quase todos os conflitos humanos. A Justiça do Trabalho foi concebida para acatar uma espécie definida de conflitos, razão pela qual é especializada. Como bem salientou Jorge Luiz Souto Maior “há uma impropriedade de ordem lógica na proposição ao se atribuir a uma justiça especializada uma competência baseada em termos genéricos”.[31]
O inciso I do art. 114 oriundo da Emenda Constitucional nº 45 se for entendido de forma ampliativa está em posição diametralmente oposta ao princípio da valorização do trabalho e constitui forma maquiada de mitigação. E mais, significa uma verdadeira inversão de valores e deturpação da Justiça Laboral. Como bem salienta Maurício Godinho Delgado, os princípios justrabalhistas da dignidade e da valorização do trabalho sofrem lesão se ocorre “uma situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social”[32] […] “Na medida desta afirmação social é que desponta o trabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade mais bem elaborada, o emprego”[33].
Por isto, torna-se indispensável conhecer o Direito do Trabalho profundamente e compreender de forma inequívoca suas funções para que possamos assimilar o inciso I do art. 114 da CF/88 de forma positiva e constitucionalmente correta, evitando distorções e o desmantelo da estrutura trabalhista. Dorothee Susanne Rüdiger alerta para como deve ser compreendido o Direito do Trabalho na contemporaneidade, fixando seu papel de corrigir as distorções causadas pela lógica perversa do mercado:
“Apesar da dialética de sua formação, o direito do trabalho moderno deve ser visto no contexto da sociedade moderna organizada em torno do mercado. Nesta ótica, o direito do trabalho deve ser compreendido como uma das “medidas corretivas do mercado”. Essa correção se dá em dois níveis. De um lado, pela redução do desequilíbrio entre as partes e pelo restabelecimento da autonomia da vontade e da igualdade entre as partes. […] De outro lado o direito do trabalho propicia aos grupos representativos dos interesses dos trabalhadores um verdadeiro contrapoder.”[34]
Jorge Luiz Souto Maior adverte que se forem aceitos os argumentos neoliberais tendenciosos que pregam a extinção da Justiça do Trabalho, nem será necessário que o fim da mesma seja proclamado formalmente, uma vez que sua essência já terá sido extirpada[35]. Se a essência de algo lhe é retirada, perde sentido lógico a própria existência da coisa, porque é a essência que anima, dá vida e sentido. Neste diapasão, uma postura cautelosa com relação ao texto constitucional modificado pela Emenda 45 é vital para garantir a sobrevivência do Direito do Trabalho.
Instaura-se um novo paradigma, onde se favorece o oferecimento de trabalho a qualquer custo[36]. O que nos remete a uma possível realidade futura assombrosa, no qual todos os valores e princípios juslaborais constitucionais serão simplesmente aniquilados e o Direito do Trabalho fatalmente encontrará seu fim.
4 Considerações finais
Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente artigo foi escrito com o escopo de, essencialmente, chamar a atenção para os avanços na estratégia de desmantelo do Direito do Trabalho, atacando-o em sua essência e promovendo um processo de flexibilização paulatino e constante. Processo este que avança a passos largos e ameaça a democracia brasileira.
A ameaça à democracia se dá no instante em que a cidadania do trabalhador e o valor do trabalho, entendido como valor social do emprego constitucionalmente protegido, é aviltado e desrespeitado diuturnamente. Um Estado só é democrático na medida em que assegura aos seus cidadãos um arcabouço protetivo eficaz.
Ainda que possa parecer utópico desejar uma sociedade justa e igualitária, onde os ditames constitucionais sejam plenamente respeitados, é imprescindível acreditar na real possibilidade de uma democracia paupável, concreta. Porque “Se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las… Que triste os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas!”[37]
Informações Sobre o Autor
Dayse Coelho De Almeida
Professora do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe – UFS e do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe – FaSe, advogada cível e trabalhista do escritório Almeida, Araújo e Menezes Advogados Associados – ALMARME, Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ. Co-autora dos livros: Relação de Trabalho: Fundamentos Interpretativos para a Nova Competência da Justiça do Trabalho, LTr, 2005 e 2006; Direito Público: Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Tributário, PUC Minas, 2006 e Roda Mundo 2006, Editora Ottoni, 2006. Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – IHJ, da Associação Brasileira de Advogados – ABA e do Instituto Nacional de Estudos Jurídicos – INEJUR.