Resumo: Investiga o sistema internacional de proteção dos direitos humanos em suas esferas global e regional, e a observância do seu conteúdo pelo Estado brasileiro.
O sistema internacional de direitos humanos surgiu a partir da criação da Organização das Nações Unidas – ONU, em 24 de Outubro de 1945, e do consequente estabelecimento de órgãos e instâncias voltadas à proteção dos direitos humanos. Com a posterior Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, que veiculava verdadeiro código de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados, materializava-se então a estrutura formal e material da chamada “jurisdição” internacional, vocacionada à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.
O marco temporal do movimento de internacionalização dos direitos humanos foi o pós-guerra, e os espólios da campanha nazista na Europa. O marco ideológico foi a disseminação da ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve ficar ao alvedrio exclusivo da competência nacional ou à jurisdição doméstica, porquanto tais direitos transcendem os interesses do estado soberano, representando legítimo interesse internacional.
Neste novo cenário, a soberania estatal não é absoluta, de forma que, se determinado estado membro não adotar providências a fim de garantir os direitos humanos poderá ser pressionado ou obrigado pelas instâncias internacionais. Neste ponto, trago à colação lição de Flávia Piovesan1 a respeito das características deste novo cenário:
“1ª) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos; permitem-se formas de monitoramento e responsabilização internacionais, quando os direitos humanos forem violados (transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania centrada no Estado para uma concepção “kantiana” de soberania centrada na cidadania universal);
2ª) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de direito. Prenuncia-se, desse modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania.”
O sistema internacional de proteção dos direitos humanos é constituído por duas esferas: a esfera global, formada pela ONU, e a esfera regional, constituída, no caso brasileiro, pela Organização dos Estados Americanos -OEA. Tais sistemas, e seus respectivos instrumentos específicos (tratados, convenções, recomendações, etc.) não são estanques, antes disso, são complementares, pelo que coexistem com o propósito de salvaguardar os mesmos direitos, objetivando a máxima eficácia na tutela de proteção aos direitos humanos.
Necessário frisar que o sistema internacional de proteção aos direitos humanos é dotado das características típicas de um modelo de prestação jurisdicional, apresentando poderes de coerção e sanção destinados à imposição de suas decisões aos Estados-membros transgressores.
No âmbito global, também conhecido como o Sistema das Nações Unidas de proteção dos direitos humanos, a justicialização operou-se com ênfase na esfera penal, mediante a criação de Tribunais ad hoc e, posteriormente, do Tribunal Penal Internacional.
Já nos sistemas regionais, a justicialização operou-se na esfera civil, a exemplo da atuação das Cortes européia e interamericana. No âmbito da OEA, o Pacto de San José previu dois órgãos processuais internacionais, que são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington DC (EUA), e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em San José (Costa Rica). Enquanto a Comissão é um órgão político-administrativo, com competência para, dentre outras funções, receber e analisar petições individuais que contenham denúncias de violação aos direitos humanos contra os Estados-partes, a Corte é um verdadeiro órgão judiciário internacional, dotado de força jurídica vinculante e obrigatória.
Para que o Estado reconheça a competência contenciosa da Corte Interamericana, ele deve manifestar vontade expressa para tanto. No caso brasileiro, reconheceu-se a competência consultiva da Corte Interamericana em 1992, ao ratificar o Pacto de San José, só aceitando a competência contenciosa em 1998, malgrado a Constituição Federal de 1998 já houvesse previsto a formação de um “tribunal internacional de Direitos Humanos”, na forma da diretriz dada pelo art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A incorporação dos tratados internacionais de proteção dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro gera para o País a obrigação de reconhecer a prevalência da norma internacional sobre a norma interna, de forma que incorporada a norma alienígena ao ordenamento jurídico brasileiro, seja com status de lei ordinária ou de norma constitucional (art. 5º, §3º com redação dada pela EC 45/04), esta prevalecerá qualquer que seja o grau hierárquico da norma conflitiva. Ademais, o poder constituinte derivado ou reformador brasileiro está sujeito à limitação consubstanciada em não fazer reformas à Constituição que vão de encontro com um preceito de tratado internacional.
Neste sentido lecionam LUIZ FLÁVIO GOMES e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI2:
“Não se pode olvidar, além do mais, que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados impõe a todos os Estados a obrigatoriedade de reconhecerem a primazia do direito internacional sobre o direito interno, regra esta consagrada, com a exceção do art. 46, no seu art. 27.6 E isso quer dizer que: a) mesmo quando internamente um tratado possa ser declarado inconstitucional a responsabilidade externa do Estado subsiste plenamente; b) a discordância entre o princípio da primazia, internacionalmente consagrado, e as soluções em contrário adotadas internamente, implica em quebra da harmonia do sistema jurídico estatal, incompatível com aquela que deve reger a totalidade do seu sistema jurídico.”
A nosso sentir, o conteúdo sistema internacional de direitos humanos é mais abrangente que o complexo de órgãos, tratados e convenções, recomendações etc.. que o integram, porquanto estados membros que se comprometem, perante a ordem internacional, a resguardar direitos humanos, devem enraizar, no seu ordenamento jurídico interno, a própria filosofia de preservação da dignidade da pessoa humana, filtrando suas leis a luz de princípios como a “vedação ao retrocesso social”, “máxima efetividade na implementação e proteção aos direitos humanos” etc.. Em outros termos, o sistema internacional de direitos humanos só será verdadeiramente efetivo se suas instâncias jurisdicionais não forem acionadas ante o total comprometimento pelos estados membros com a proteção aos direitos humanos.
Informações Sobre o Autor
Alan Saldanha Luck
Procurador do Estado de Goiás, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-LFG