Resumo: Responsabilidade objetiva x Responsabilidade subjetiva e sua aplicabilidade aos acidentes de trabalho A teoria subjetivista baseia-se na culpa do agente, ao passo que a teoria objetiva independe de culpa, sendo também conhecida como teoria do risco. Assim, para a teoria subjetivista é necessário que se demonstre a vontade do agente em concreto, ou seja, o dolo; ou a culpa em sentido estrito, resultante da negligência, imperícia ou imprudência. Para a teoria do risco, basta ao autor demonstrar o dano e o nexo causal para surgir o dever de indenizar. Na esfera do direito trabalhista, a responsabilidade objetiva do empregador está consagrada no artigo 2º da CLT, que considera empregador a empresa, individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. De fato, os pressupostos da imputação objetiva são os que guardam maior sintonia com o comando legal do artigo 170 da Constituição Federal, no qual a ordem econômica deve estar fundada na valorização do trabalho e a propriedade deve ter uma função social.
Sumário: 1. Introdução. 1.1 Evolução histórica do conceito de responsabilidade civil. 1.2 Natureza jurídica da responsabilidade civil. 2. Responsabilidade Objetiva x Responsabilidade Subjetiva. 2.1 Fundamentos e critérios da responsabilidade objetiva. 2.2 Modalidades da teoria do risco. 3. Responsabilidade civil por acidentes de trabalho. 3.1 Conceito de acidente de trabalho. 3.2 Aplicabilidade da responsabilidade objetiva aos acidentes de trabalho. 4. A teoria do risco acolhida no novo Código Civil. 4.1 Proteção ao patrimônio físico, psicológico e moral do trabalhador: dever geral de cautela. 4.2 É aplicável a inovação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002 aos acidentes do trabalho. 5. A interpretação do inciso XXVIII do art. 7º da Carta Magna e sua eventual inconstitucionalidade. 5.1 Pressupostos da responsabilidade civil prescrita no inciso XXVIII do art. 7º da Constituição Federal. 5.2 A mitigação do inciso XXVIII do art. 7ºda Constituição Federal. 5.3 A aparente antinomia entre o inciso XXVIII do art. 7º e o § 3º do art. 225 da Constituição Federal. 6. Considerações finais. Bibliografia.
1. Introdução
A degradação ambiental, ao lado da explosão demográfica e da globalização da economia, representa um dos mais emblemáticos fatores da crise da civilização no final do século XX. A chamada crise ecológica, também se reproduz no mundo do trabalho e da produção, com prejuízos às condições de vida e trabalho. O direito à vida, suporte para existência e gozo dos demais direitos, é um direito fundamental, sendo necessário, para sua proteção, assegurar os seus pilares básicos: trabalho digno e saúde.
A questão do meio ambiente, nele incluso o meio ambiente do trabalho, passou a integrar a contextualização da saúde do trabalhador de forma ampla. O meio ambiente do trabalho contempla uma atuação na prevenção, na promoção da saúde e assistência no âmbito dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
De acordo com o artigo 1º da Constituição Federal, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. O artigo 170, por sua vez, diz que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos, existência digna, conforme os ditames da justiça social, observada a defesa do meio ambiente.
O artigo 225 da Carta Magna assegura que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Por sua vez, o artigo 196 da Lei Maior assegura a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo-a mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos.
No âmbito trabalhista estrito, o artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal, frisa que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a redução dos risco inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. De forma detalhada, temos ainda o Capítulo V da Consolidação da Leis do Trabalho e a Portaria n. 3.214/77, do Ministério do Trabalho, tratando da segurança, higiene e medicina do trabalho. Como se observa, em termos de proteção legal ambiental, estamos bem posicionados entre as nações. A realidade, não obstante, é outra, como leciona Marcus Moura Ferreira,
“Temos uma Constituição moderna, comprometida com os valores éticos e substantivos essenciais à realização das dimensões mais sensíveis do homem, e uma realidade cruel, que transita ao longe da superfície da ordem jurídica e das práticas que legitimam uma sociedade democrática e socialmente justa. O Estado brasileiro não se ocupa de criar uma dinâmica social nova e abrangente, de sorte a se poder afirmar que lhe cabe a decisiva responsabilidade pelo abismo que se formou entre os direitos positivados e a vida”.[1]
1.1. Evolução histórica do conceito de responsabilidade civil
De acordo com a teoria clássica, a responsabilidade civil assenta-se em três pressupostos básicos: dano, culpa e relação de causalidade entre o ato e o dano. Nos primórdios da humanidade, os danos infligidos por alguém a outrem, autorizavam, de imediato, a reação instintiva por parte do ofendido, que podia fazer sua própria defesa. Em seguida, veio a fase da composição, em que o prejudicado caso quisesse, podia receber vantagens e conveniências em substituição à vindita. Tal composição não era ideal por não decorrer de norma cogente que determinasse a substituição da reação instintiva pela indenização. Somente quando passou a existir disposição normativa proibindo que a vítima fizesse justiça pelas próprias mãos, é que a composição deixa de ser voluntária, e passa a ser obrigatória com o objetivo de penalizar o ofensor.
Entretanto, foi somente com o direito romano que obtivemos a distinção entre delitos públicos e delitos privados e a consequente diferenciação entre “pena”
e “reparação”. A reparação econômica era, então, direcionada aos cofres públicos, no caso dos delitos públicos ou diretamente à vítima, no caso dos delitos privados. Contudo, é na Lex Aquília (denominação ligada ao tribuno “Aquilius”, que propôs um plebiscito por volta do século III a.C., cujo resultado foi pela aprovação da referida Lei), que se esboça afinal o princípio geral da reparação do dano, fonte direta da moderna acepção da culpa aquiliana.
Com o direito francês, estabeleceu-se a separação entre a responsabilidade civil, perante a vítima, e a responsabilidade penal, perante o Estado, bem como a existência da culpa contratual, que não se refere ao delito, mas origina-se da negligência, imperícia ou imprudência (culpa em sentido estrito), generalizando, desta maneira, o princípio aquiliano.
O desenvolvimento econômico e industrial deu surgimento a novas teorias, considerando que os danos multiplicaram-se e as vítimas nem sempre conseguiam obter indenização pelos danos sofridos, diante das dificuldades quanto à comprovação da culpa do autor do ato ilícito. A principal dessas novas teorias é a chamada teoria do risco, que visa atender certos casos em que a simples aplicação da concepção tradicional de culpa revela-se insuficiente: trata-se da responsabilidade objetiva, que determina a indenização do empregado, não em razão de um ato culposo, mas em função do empregador possuir um negócio, cujos riscos, por consequência, assume.
1.2. Natureza jurídica da responsabilidade civil
Onde houver dano ou prejuízo, o instituto jurídico da responsabilidade civil é invocado para fundamentar a pretensão de ressarcimento por parte daquele que sofreu as consequências do infortúnio, sendo, portanto, instrumento de manutenção da harmonia social. Podemos afirmar que o interesse em restabelecer o equilíbrio econômico-jurídico alterado pelo dano é a causa geradora da responsabilidade civil.
Para Raimundo Simão de Melo,
“a responsabilidade civil respalda-se na prática de uma ato ilícito, como regra, ou mesmo não sendo ilícito este ato, quando assim determinar o ordenamento em função do risco, decorrendo disso a existência de uma sanção contra aquele que praticar um ato danoso para alguém, entendendo-se a sanção no sentido mais amplo do termo”.[2]
A sanção que a lei impõe ao ofensor, varia conforme a esfera do direito violado. Em se tratando de infringência de norma penal, a sanção é uma “pena”; na órbita civil, a sanção corresponde à reparação do dano causado na sua integridade, retornando-se as coisas ao estado anterior em que se encontravam antes da ofensa.
A responsabilidade civil tem, portanto, natureza jurídica dúplice: de sanção e reparação, sendo a indenização um desdobramento da reparação. Tanto a sanção, como a reparação, visam castigar o ofensor, gerando um efeito punitivo pela ausência de cautela na prática de seus atos.
2. Responsabilidade Objetiva X Responsabilidade Subjetiva
É essencialmente relevante o debate acerca do motivo que justifica que alguém se responsabilize por atos causadores de prejuízos a outrem. Tal debate deu origem a duas teorias: a teoria subjetivista, baseada na culpa do agente, e a teoria objetiva, que independe da culpa, sendo esta última também conhecida como teoria do risco. Não se trata de uma classificação, mas dos fundamentos que justificam o dever de reparação dos danos causados a bens e pessoas.
A teoria subjetivista repousa na culpa do agente como fundamento e pressuposto da obrigação de reparar. Dessa forma, se não houver culpa, ou se esta não restar demonstrada, não haverá o dever de reparação. É necessário que se demonstre a vontade do agente em concreto, ou seja, o dolo; ou a culpa em sentido estrito, resultante da negligência, imperícia ou imprudência. Já a teoria objetiva independe da culpa do agente, bastando ao autor demonstrar o dano e o nexo causal para surgir o dever de indenizar.
2.1. Fundamentos e critérios da responsabilidade objetiva
O desenvolvimento industrial e tecnológico, a multiplicação dos eventos danosos, a hipossuficiência da vítima, sobretudo nos acidentes de trabalho, bem como a necessidade de reequilíbrio dos patrimônios afetados pelo evento danoso, além dos princípios da equidade e justiça social, fundamentam a imputação objetiva. A imputação objetiva amplia o campo das reparações porque não somente quem prova a culpa do agente tem direito à indenização, mas também aqueles que não estiverem em condições de fazê-lo por insuficiência de meios para tal.
A responsabilidade civil objetiva decorre do texto expresso de lei ou da atividade de risco desenvolvida normalmente pelo agente do dano. Na esfera do direito trabalhista, a responsabilidade objetiva do empregador está consagrada no art. 2º da CLT, que considera empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. Trata-se da teoria do risco de quem busca um proveito da atividade empreendida, mesmo que o resultado final não corresponda ao pretendido. Assim, os critérios da imputação objetiva são a lei e as atividades de risco. No caso das atividades de risco, caberá ao juiz a importante tarefa de identificar as situações de incidência do preceito legal, uma vez que o comando legal é genérico, isto é, o parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002 não define o que seja “atividade de risco”.
2.2. Modalidades da teoria do risco
A responsabilidade civil objetiva ao longo do século XX, ganhou adeptos e crescente densidade doutrinária. Segundo a teoria da responsabilidade objetiva, basta ao autor demonstrar o dano e a relação de causalidade para o deferimento da indenização, ou seja, os riscos da atividade, em sentido amplo, devem ser suportados por quem dela se beneficia. Contudo, leciona Sebastião Geraldo de Oliveira,
“É necessário registrar, todavia, que a responsabilidade objetiva não suplantou, nem derrogou a teoria subjetiva, mas afirmou-se em espaço próprio de convivência funcional, para atender àquelas hipóteses em que a exigência da culpa representa demasiado ônus para as vítimas, praticamente inviabilizando a indenização do prejuízo sofrido.”[3]
No tocante ao acidente do trabalho, a imputação objetiva obteve ampla aceitação dos operadores do direito, sendo adotada sem maiores controvérsias no campo do seguro acidentário. Todas as leis acidentárias no Brasil mantiveram a responsabilidade objetiva quanto à obrigação de indenizar o trabalhador vítima de acidente de trabalho, com fundamento na teoria do risco. Essa teoria é explicada com base em quatro modalidades: risco integral, risco profissional, risco proveito e risco criado.
A teoria do risco integral, abolindo a ideia de culpa, proclama que qualquer fato, culposo ou não, deve assegurar à vítima a reparação do dano causado, sem qualquer excludente. Tal teoria, por seu radicalismo, não prosperou. Já a teoria do risco proveito proclama que todo aquele que retira proveito do fato causador do dano deve repará-lo, independente da existência de culpa. No caso, cabe saber o que é proveito que justifique a reparação. Caso se entenda proveito adstrito à ideia de riqueza, a responsabilidade ficaria limitada aos comerciantes ou industriais, o que restringiria sua aplicação a determinadas classes, retirando seu valor de responsabilidade civil.
A teoria do risco criado sustenta que quem empreende alguma atividade, seja lucrativa ou não, em seu sentido econômico, assume os riscos decorrentes dela e responde pelos danos causados a outrem, salvo as excludentes que a lei admite, quais sejam, o caso fortuito, a força maior e a culpa exclusiva da vítima. Não se cogita da culpa do agente ou da ilicitude do ato. A tarefa do juiz resume-se à pesquisa objetiva da relação de causalidade entre o dano e o ato. A teoria do risco criado procura colocar a vítima em condições de igualdade em que se acham os empreendimentos econômicos, com a utilização de maquinários e a intensificação de atividades potencialmente perigosas, sendo portanto, a que mais se afina com a função social da responsabilidade objetiva. A teoria do risco criado foi adotada pelo novo Código Civil de 2002, em seu art. 927, parágrafo único.
Já a teoria do risco profissional, que também não cogita da culpa, afirma que o empregador é obrigado a ressarcir os acidentes ocorridos com seus empregados no trabalho ou por ocasião dele, quando o fato decorre da atividade ou profissão da vítima. É considerada mais ampla do que a teoria do risco criado, pois não se cogita da periculosidade da atividade profissional.
3. Responsabilidade civil por acidentes de trabalho
Dos comandos legais já expostos anteriormente, decorrem as responsabilidades do empregador ou tomador de serviços pelos danos oriundos do trabalho em condições inadequadas e em ambientes insalubres, perigosos e penosos ou em razão de acidentes de trabalho considerados lato sensu (acidentes-tipo e doenças profissionais e do trabalho). Essas responsabilidades são de natureza administrativa, previdenciária, trabalhista, penal e civil. Esta última, de natureza civil, requer a reparação do dano causado de maneira mais completa possível, indo desde a reconstituição do dano, quando possível, até a sua substituição ou compensação pelo pagamento de determinadas importâncias em dinheiro vinculadas à redução patrimonial sofrida pela vítima.
Contudo, há autores que defendem a tese de que não podemos limitar a proteção dos interesses relacionados ao meio ambiente de trabalho, à reparação do dano, mediante pagamento de adicional de insalubridade, periculosidade ou penosidade, considerando o dispositivo constitucional que assegura a todos um meio ambiente, nele incluso o meio ambiente do trabalho, ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida, considerado então, um direito fundamental do cidadão.
Na esteira desse entendimento, leciona Jane Evanir Sousa Borges:
“As normas de proteção à saúde do trabalhador são de natureza cogente, irrenunciáveis pelas partes, mas os elevados índices de desemprego, em nosso país, têm inibido o trabalhador de buscar melhorias em seu ambiente de trabalho, preferindo, muitas vezes, aquilatar o risco em valores irrisórios mediante o pagamento de adicionais, tudo isto concorre para a falta de efetividade desta legislação. Não há dúvida que qualquer dano deve ser reparado patrimonialmente de forma exemplar, no entanto, a adoção de medidas preventivas devem ser priorizadas e exigidas de seus responsáveis, sejam pessoas físicas ou jurídicas, inclusive a Administração Pública”.[4]
Partilhamos do entendimento de que a efetividade das normas cogentes de proteção ao meio ambiente do trabalho e à saúde do trabalhador, estão essencialmente vinculadas à necessária fiscalização e adoção de medidas punitivas eficazes, em face dos que descumprem as normas legais que visam à proteção da saúde e integridade física e psíquica do trabalhador.
3.1 Conceito legal de acidente de trabalho
Quando se fala em acidente do trabalho, estamos diante do gênero que abrange as espécies: acidente-tipo, doenças ocupacionais e acidente por equiparação legal, que são respectivamente os artigos 19, 20 e 21 da Lei nº. 8.213/91, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social.
O acidente de trabalho-tipo, ou típico, caracteriza-se pela existência de evento único, súbito, imprevisto e bem configurado no espaço e no tempo. As consequências do acidente típico são, geralmente, imediatas, ao contrário das doenças ocupacionais que se caracterizam por um resultado mediato, porém evolutivo.
Tal é o conceito legal previsto no artigo 19 da Lei 8.213/91:
“Art. 19: Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.”
Na lição de Antônio Lopes Monteiro e Roberto Fleury de Souza Bertagni:
“acidente de trabalho é todo aquele sinistro que decorre da execução do contrato de trabalho, provocando lesão corporal que cause morte ou redução da capacidade laborativa.”[5]
Equiparando as doenças profissionais e do trabalho ao acidente propriamente dito, para os efeitos legais, estabelece o art. 20 da Lei 8.213/91:
“Art. 20: Consideram-se acidentes de trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
“I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e da Previdência Social;
II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.”
De forma ampliativa, o artigo 21, da mesma Lei, ainda inclui outras hipóteses consideradas acidentes de trabalho, uma vez que há eventos acidentários que não estão incluídos nos conceitos anteriores, constituindo tais eventos os acidentes de trabalho por equiparação legal.
3.2. Aplicabilidade da responsabilidade objetiva aos acidentes de trabalho
Nota-se uma nítida tendência do pensamento jurídico em direção à responsabilidade objetiva, em especial nas questões que envolvem maior alcance social, tais como os acidentes de trabalho. Como preleciona Sebastião Geraldo de Oliveira:
“A indenização baseada no rigor da culpa está cedendo espaço para o objetivo maior de reparar os danos, buscando amparar as vítimas dos infortúnios, mesmo sem a presença da culpa comprovada, em harmonia com o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e da marginalização, conforme exposto no art. 3º da Constituição da República . Desse modo, o instrumental jurídico está deslocando seu foco de atenção dos danos causados para os danos sofridos”.[6]
Em face do alarmante aumento de acidentes, principalmente no meio ambiente do trabalho, tornando muitas vezes irreparável o dano pela insuficiência de meios probatórios da culpa do agente, vinculada à hipossuficiência de quem sofreu o prejuízo, a responsabilidade objetiva aplicável ao acidente de trabalho deixou de ter caráter excepcional para se afirmar como a regra norteadora das decisões judiciais.
Cláudio Mascarenhas Brandão, em Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador, afirma:
O trabalhador possui um direito de proteção à saúde, elevado ao patamar de norma constitucional com natureza jurídica de direito fundamental e que o empregador possui a responsabilidade objetiva pelos danos a ele causados, em virtude de acidentes do trabalho ocorridos no desenvolvimento de atividade de risco acentuado, o que representa a consagração, no plano interno, da tendência internacional de priorizar o homem como centro da proteção dos sistemas jurídicos, inserindo o Brasil, pelo menos no que tange ao modelo teórico, entre os países com regras avançadas referentes à reparação civil .[7]
De fato, os pressupostos da imputação objetiva são os que guardam maior sintonia e coerência com o comando legal do artigo 170 da Constituição Federal, no qual a ordem econômica deve estar fundada na valorização do trabalho e a propriedade deve ter uma função social.
4. A teoria do risco acolhida no novo Código Civil
Com o advento do Código Civil de 2002, foi adotada norma genérica encampando expressamente a teoria do risco, no parágrafo único do art. 927, com o seguinte teor:
“Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente da culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem.”
A previsão do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil representa a consolidação da teoria da responsabilidade objetiva no Brasil, que passa a conviver no mesmo patamar de importância e generalidade da teoria da responsabilidade subjetiva. Não se pode mais dizer, portanto, que no Brasil a responsabilidade objetiva tenha caráter residual ou de exceção. Ao contrário, pode-se afirmar que a responsabilidade subjetiva é que se torna residual, tantas são as hipóteses de responsabilidade que independem de culpa, estampadas no diploma legal.
Em sede constitucional, os princípios da solidariedade social e da justiça distributiva, capitulados no artigo 3º, incisos I e III, da Constituição Federal, os quais se constituem em objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, não podem deixar de moldar os novos contornos da responsabilidade civil. Em consonância com o preceito constitucional, o parágrafo único do artigo 927 do novo Código Civil, representa um passo à frente na legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porta para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando ao arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente por equidade.
4.1 Proteção ao patrimônio físico, psicológico e moral do trabalhador: dever geral de cautela.
Dentre os deveres considerados anexos de conduta, existe o dever de proteção ao patrimônio físico, psicológico e moral do trabalhador. No entendimento de José Cairo Júnior:
“tal dever impõe ao empregador o dever de proporcionar segurança, higiene e saúde para os seus empregados, também denominada obrigação de custódia, dever de segurança ou cláusula de incolumidade”.[8]
O dever geral de cautela subdivide-se em prevenção e precaução. O dever de prevenção tem força normativa, pois encontra-se expresso na NR 01.7, do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe: “Cabe ao empregador: I – prevenir atos inseguros no desempenho do trabalho.” Quanto ao dever de precaução, encontra-se consolidado e erigido no Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro (ECO-RIO 1992), da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, além de ser amplamente aceito no âmbito científico, devendo ser aplicado aos empregadores em relação ao meio ambiente de trabalho, máxime pela exegese do artigo 225 da Carta Constitucional que assegura a todo cidadão o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, aqui incluído o meio ambiente do trabalho, referência ao artigo 200, inciso VIII, da Constituição Federal.
A jurisprudência vem adotando tal posicionamento, como se deflui das seguintes ementas:
“ACIDENTE DE TRABALHO. DIREITO DE SEGURANÇA DA VÍTIMA. RISCO PROFISSIONAL. EMPREGADOR. (…) Ademais, ao empregador cumpre observar o direito de segurança da vítima, seu empregado, em razão da assunção dos riscos advindos da atividade econômica que explora.” (Apelação Civil n. 70007539596, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, julgado em 26.11.2003).
“A lei incumbe o empregador de zelar pela integridade física dos seus empregados. Nesse sentido, o art. 157 da CLT determina às empresas:“ I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho.” Assim também dispõe o § 1º do art. 19 da Lei n. 8.213/91, depois de definir o acidente do trabalho: “A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador.” O risco do negócio é sempre do empregador; assim sendo, quanto mais perigosa a operação, quanto mais exposto a risco estiver o empregado, tanto mais cuidado se exige daquele quanto à prevenção de acidentes. Nesse diapasão, evidencia-se a culpa do empregador pelo infortúnio acontecido ao empregado, quando o primeiro não se desincumbe das determinações previstas pelos dispositivos legais sobreditos e, além disso, descumpre a NR 12, item 12.2.2, do Ministério do Trabalho e Emprego, ao não instalar dispositivo de segurança para o acionamento da máquina utilizada pelo empregado.” (TRT – 3ª Região, 2ª Turma, Rel.: Juiz Sebastião Geraldo de Oliveira, DJ de 18.8.2006)
Observa-se que tanto a precaução quanto a prevenção de infortúnios no trabalho, encerram valor jurídico muito maior que a mera reparação pecuniária do dano, considerando que o respeito à dignidade do trabalhador pressupõe a preservação de sua saúde física, mental e emocional. Conclui-se que o empregador tem a obrigação de zelar pela conservação da saúde de seus empregados, sendo que quanto maior for a exposição do empregado a riscos ambientais do trabalho, maior deverá ser o cuidado e a prevenção dos acidentes.
4.2 É aplicável a inovação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002 aos acidentes de trabalho?
A questão da aplicabilidade do parágrafo único do artigo 927, do Código Civil de 2002, às ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho, suscita controvérsias.
Há quem entenda que o parágrafo único do art. 927 do Código Civil, que afirma que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, não se aplica ao acidente de trabalho, sob o argumento básico de que a Constituição da República tem norma expressa estabelecendo como pressuposto da indenização a ocorrência de culpa do empregador, no inciso XXVIII do artigo 7º, que afirma, em sua parte final, ser necessária a ocorrência de dolo ou culpa para assegurar-se a devida indenização. Assim, norma alguma de hierarquia inferior poderia contrariar a previsão constitucional.
No entendimento de outros doutrinadores o novo dispositivo do Código Civil tem inteira aplicação aos acidentes do trabalho. Isto porque, segundo tais doutrinadores, a previsão do inciso XXVIII deve ser interpretada em harmonia com o que estabelece o caput do artigo 7º: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, o que nos leva a concluir que o rol dos direitos mencionados no art. 7º da Constituição não impede que a lei ordinária amplie os direitos existentes ou acrescente outros.
Nesta linha de raciocínio, a I Jornada de Direito e Processo do Trabalho, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho, em novembro de 2007, aprovou o Enunciado n. 37, verbis:
“RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA NO ACIDENTE DE TRABALHO. ATIVIDADE DE RISCO. Aplica-se o art. 927, parágrafo único, do Código Civil nos acidentes do trabalho. O art. 7º, XXVIII, da Constituição da República, não constitui óbice à aplicação desse dispositivo legal (referindo ao parágrafo único do art. 927 do Código Civil), visto que seu caput garante a inclusão de outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores”. (grifo nosso)
Cabe ainda ressaltar que, por ocasião da IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, no ano de 2006, foi adotado um Enunciado importante na linha de pensamento da corrente que postula a aplicabilidade da responsabilidade objetiva aos acidentes de trabalho:
“Enunciado n. 377 – O art. 7º, inc. XXVIII, da Constituição Federal não é impedimento para a aplicação do disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil quando se tratar de atividade de risco”.
Ademais, a Lei n. 6.938/81, principal norma infraconstitucional sobre a proteção ambiental no Brasil, adotou a responsabilidade objetiva como teoria adequada para obter-se o ressarcimento do dano ambiental, no seu artigo 14, § 1º, sem distinção do meio ambiente ao qual se refere. Ao aceitarmos o posicionamento de que não se pode prescindir do elemento subjetivo, com fundamento no inciso XXVIII, artigo 7º da Constituição Federal, chegaríamos a uma conclusão que fere a boa lógica. Assevera o juiz Rodolfo Pamplona Filho, da 1ª Vara do Trabalho de Salvador, com razão:
“A aceitar tal posicionamento, vemo-nos obrigados a reconhecer o seguinte paradoxo: o empregador, pela atividade exercida, responderia objetivamente pelos danos por si causados, mas, em relação a seus empregados, por causa de danos causados justamente pelo exercício da mesma atividade que atraiu a responsabilização objetiva, teria um direito a responder subjetivamente … Desculpe-nos, mas é muito para o nosso fígado…”[9]
A nossa posição quanto ao tema é pela aplicabilidade do parágrafo único do art. 927 da Constituição Federal aos acidentes de trabalho, por entendermos que a melhor exegese sistêmica dos preceitos legais aponta para a legitimidade do mencionado artigo e seu parágrafo único, vez que o caput do art. 7º da CF assegura um rol não exaustivo de direitos mínimos, sem prejuízo de outros que visem à melhor condição social do trabalhador.
Além disso, não devemos esquecer que o desenvolvimento da responsabilidade objetiva tem estreita ligação histórica com a questão dos acidentes de trabalho, e é principalmente neste tema que a teoria do risco encontra a primazia de sua aplicação e maior legitimidade dos seus preceitos.
5. A interpretação do inciso XXVIII do artigo 7º da Carta Magna
A responsabilidade civil do empregador pelos acidentes de trabalho está agasalhada no artigo 7º e inciso XXVIII da Constituição Federal, que assim dispõem: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.”
Assevera o renomado Raimundo Simão de Melo acerca do tema:
“Seguindo-se os padrões tradicionais de interpretação desse dispositivo constitucional, poder-se-ia simplesmente dizer que se trata de responsabilidade fundada na culpa, a chamada responsabilidade subjetiva ou aquiliana, em face da qual, para alcançar reparação civil por dano decorrente de acidente de trabalho, teria o trabalhador de demonstrar a culpa ou dolo do empregador. Ou, de outra forma, poder-se-ia, também de forma simplista, como já o fizeram alguns, enfocar o parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, que estabelece a responsabilidade objetiva quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, e concluir, desde logo, que nas atividades de risco a responsabilidade civil será sempre objetiva. Numa terceira ótica, também seria possível dizer-se, com base no que dispõe o art. 2º da CLT, que no âmbito trabalhista a assunção dos riscos da atividade incumbe ao empregador, que responderá sempre objetivamente pelos danos decorrentes de acidentes de trabalho.”[10]
A questão merece reflexão cuidadosa. Para a correta interpretação do inciso XXVIII do art. 7º da Carta Magna, devemos considerar os vários métodos de exegese existentes concomitantemente com os princípios constitucionais, com base na Constituição Federal e nas demais disposições legais regentes da matéria.
Dos métodos de interpretação e aplicação do Direito, (1) gramatical, (2) lógico-dedutivo, (3) sistemático, (4) teleológico e (5) histórico-evolutivo, os dois últimos foram acolhidos pelo art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil quando afirma que o juiz, na aplicação da lei, atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e ao bem comum, dessa forma, vinculando o intérprete e aplicador na adaptação da lei ao caso concreto e no trabalho de criação e integração do Direito. O método teleológico visa a determinar a finalidade da norma dentro de uma dada sociedade e em determinado momento para lograr interpretar a lei segundo seus fins práticos, enquanto o método histórico-evolutivo ou progressivo visa a atender, na medida do possível, à realidade social ao tempo da aplicação da lei buscando conciliar a intenção do legislador no momento em que elaborou a norma com o sentido desta no momento em que a interpretação está sendo feita, levando em conta a vontade da própria lei, que é mais importante do que a vontade isolada daquele. Pelo que se observa, os métodos teleológico e histórico-evolutivo são complementares.
Concluindo este tópico podemos afirmar que, de acordo com as diretrizes do artigo 5º da LICC, recepcionadas pela Constituição Federal em sua totalidade, o sistema de interpretação das leis no Brasil é flexível. Deve-se, portanto, atendendo a tais diretrizes, buscar na lei o melhor resultado que, de acordo com o momento e circunstâncias, prestigie o bem comum da coletividade.
5.1 Pressupostos da responsabilidade civil prescrita no inciso XXVII do art. 7º da Constituição Federal e sua eventual inconstitucionalidade
São pressupostos da responsabilidade civil subjetiva ou aquiliana: 1) a ação ou omissão do agente; 2) a culpa do agente; 3) o nexo causal e 4) o dano efetivo. Conforme a doutrina clássica, tais pressupostos são indispensáveis para a caracterização da responsabilidade civil do empregador nos acidentes de trabalho.
Contudo, torna-se necessário conjugar o mencionado inciso XXVIII do art. 7º com o § 3º do art. 225 da Constituição, o qual reconhece a responsabilidade objetiva pelas condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, que sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados, como já discutido anteriormente neste trabalho, no tópico referente à aplicabilidade do parágrafo único do art. 927 do Código Civil aos acidentes de trabalho. Ademais, há de ser verificada também, neste particular, sobre a compatibilidade ou não do disposto no § 1º do art. 14 da Lei n. 6.938/81 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente), que assegura a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio ambiente e a terceiros em decorrência prejudicados.
A experiência de longos anos já demonstrou que a responsabilidade fundada exclusivamente na culpa é insuficiente para solucionar com equidade todas as questões de danos, em especial os decorrentes de acidentes de trabalho. Há, porém, quem entenda em contrário. Afirma Fernando Rossi, em artigo intitulado “Do Acidente do Trabalho ao Dano Ambiental Individual: Inaplicabilidade da Responsabilidade Objetiva”, publicado na Revista Jurídica Unijus/UNIUBE/MP-MG, em maio de 2009:
“A impossibilidade de aceitar que o empregado pleiteie danos materiais e morais em face do acidente ou da doença do trabalho, somente comprovando a lesão e o nexo de causalidade, tem fundamento constitucional.
O inciso XXVIII do art. 7º da Constituição Federal, além de referir-se ao seguro pelo acidente do trabalho, observa outro direito assistido ao trabalhador rural e urbano: a garantia de que o empregador indenizará o prejuízo “quando incorrer em dolo ou culpa.”
Então, consideramos inaplicável a responsabilidade objetiva. E, por isso, nos casos de acidente do trabalho, o pagamento da indenização poderá ser pleiteado somente depois de demonstrado o dolo ou a culpa do empregador, valendo-se, portanto, dos aspectos inerentes à responsabilidade subjetiva. Nessa perspectiva, o art. 7º, inciso XXVIII, da Carta Magna estaria em confronto com o § 1º do art. 14 da Lei n. 6.938/81. Dessa forma, diversamente, enquanto o primeiro estaria embasado na teoria da culpa, o segundo teria seu parâmetro firmado na teoria do risco.”[11]
Assim também leciona Rui Stocco, ao posicionar-se contrariamente à possibilidade de se aplicar a responsabilidade objetiva aos acidentes do trabalho, in verbis:
“(…) Não vemos essa possibilidade (referindo-se à aplicabilidade da responsabilidade objetiva), pois a responsabilidade civil, nas hipóteses de acidente do trabalho com suporte na culpa (lato sensu) do patrão, está expressamente prevista na Constituição Federal. A Carta Magna assegura aos trabalhadores seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, e indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa (art. 7º, inciso XXVIII). Sendo a Constituição Federal uma carta de princípios, todos os enunciados que contém, exceto aqueles de ordem programática, com caráter meramente enunciativo (com o objetivo educativo) ou de natureza regulamentar anômala, caracterizam-se como princípios que norteiam as demais normas infraconstitucionais do nosso ordenamento jurídico. Esses princípios hão de prevalecer sobre as demais leis e sobre elas exercer influência decisiva. A disposição normativa que contrariá-la não pode prevalecer.”[12] (grifo nosso)
Data venia, discordamos de tal posicionamento, pelo menos em parte. Enquanto o § 3º do art. 225 assegura a responsabilidade objetiva para os danos genéricos ao meio ambiente, o inciso XXVIII do art. 7º nega esse tipo de responsabilidade para a consequência do dano ambiental do trabalho, que é o acidente que atinge a vida e a integridade física do trabalhador. Não é lógico, nem tampouco justo, que para a consequência do dano ambiental em face da vida humana, se crie uma maior dificuldade para a reparação dos prejuízos causados ao trabalhador.
Diante do exposto, não se sustenta uma interpretação literal da disposição do inc. XXVIII do art. 7º da Constituição. Nossa posição, mais uma vez, repousa no entendimento de que o mencionado inciso não é mero direito, senão uma garantia ampla do trabalhador, e deve ser interpretado à luz do caput do art. 7º, que afirma textualmente que “são direitos dos trabalhadores, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, o que nos leva à conclusão de que nenhum dos direitos inseridos nos incisos do retro mencionado artigo são de conceito e conteúdo fechados, senão de conteúdo aberto, por conseguinte, leis infraconstitucionais podem ampliar tais direitos, visando à melhoria da condição social dos trabalhadores.
5.2 A mitigação do inciso XXVIII do artigo 7º da Constituição Federal
O entendimento de que a responsabilidade civil requer o elemento subjetivo (culpa do empregador) para que o empregado faça jus à indenização decorrente de acidente do trabalho, com base no inciso XXVIII do art. 7º da Constituição, necessita ser revisto para que se possa acompanhar a evolução do instituto da responsabilidade civil. A indenização devida ao empregado que sofreu acidente do trabalho não visa somente à reparação, mas inclusive, à prevenção do infortúnio, ou seja, a indenização tem, também, caráter de sanção para que se evitem novos acidentes. Tal o caráter aberto da norma constitucional, que nos leva à possibilidade de mitigação do inciso XXVIII do art. 7º da Carta Magna, como veremos a seguir.
Ao analisarmos, por exemplo, o nexo causal (para saber se o acidente é, de fato, do trabalho ou não) constatamos que, embora o ônus de comprovar o nexo causal seja, como regra geral, do trabalhador que sofreu acidente ou doença ocupacional, devemos, conforme as circunstâncias do caso, flexibilizar tal regra. Nesse sentido, leciona Gisela Sampaio da Cruz:
“Nos últimos tempos, acompanhando as transformações da responsabilidade civil, o conceito de nexo causal foi flexibilizado, com vistas a permitir a efetivação do principio da reparação integral. Não é mais possível em alguns casos, à luz dos princípios constitucionais, exigir das vítimas a prova cabal e absoluta da relação de causalidade. Dessa forma, apesar de o nexo causal ser, tal qual o dano, um dos elementos da responsabilidade civil, exige-se, com fundamento na nova ordem constitucional, que a prova da relação de causalidade seja flexibilizada em certas situações.”[13]
O julgado a seguir transcrito decide, reformando a sentença de 1º grau, a favor da reclamante, reconhecendo o nexo causal entre a doença adquirida e o labor exercido:
“EMENTA: “DANOS MORAIS. DOENÇA OCUPACIONAL SÍNDROME DO TÚNEL DO CARPO (LER). Restou clara a existência do dano à saúde da reclamante, que é portadora de Síndrome do Túnel do Carpo (LER). Nem sempre é fácil estabelecer se a enfermidade apareceu ou não por causa do trabalho. Verifica-se que a reclamante laborou por todo o contrato de trabalho na preparação de saladas efetuando movimentos repetitivos, uma vez que passava cerca de quatro horas seguidas lavando, descascando e cortando verduras e legumes. Restou claro nos autos que a autora somente passou a apresentar o quadro de tendinite no ano de 2002, após dois anos trabalhando na reclamada, conforme laudos médicos de fls. 25/30 e laudos periciais de fls. 211/217 e 319/327. Levando-se em conta o tempo de labor diário da reclamante na mesma função é o fato de que o julgador tem que estar atento, aos fatos, indícios, presunções e a observação do que ordinariamente acontece, verifica-se que há sim nexo de causalidade entre o labor exercido pela obreira e a doença ocupacional adquirida. Dá-se provimento ao apelo para, reformando-se a sentença, condenar a reclamada a pagar à autora indenização por danos morais.” (AC 01757.2005.009.17.00.8 RO – 17ª REGIÃO – Juiz José Carlos Rizk – Relator . DJ/ES de 8.5.2007)
Pelo exposto, concluímos que, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, sinalizam no sentido de flexibilizar o nexo causal, um dos elementos basilares da responsabilidade civil. Tal flexibilização, em conjugação com toda análise até aqui feita, nos leva a admitir que o inciso XXVIII do art. 7º da Constituição comporta mitigação, quando interpretado à luz do caput do mencionado artigo. Tal é a posição que defendemos.
5.3 A aparente antinomia entre o inciso XXVIII do art. 7º e o § 3º do art. 225 da Constituição Federal
Quando o § 3º do art. 225 da Constituição Federal assegura a responsabilidade objetiva por danos ao meio ambiente e o inciso XXVIII do art. 7º fala em responsabilidade subjetiva por acidentes de trabalho, surge logo a seguinte indagação: há antinomia ou contradição entre tais normas constitucionais?
Tal indagação surge porque o § 3º do artigo 225, norma supralegal de âmbito maior, trata dos danos ao meio ambiente em geral, e o inciso XXVIII do artigo 7º cuida do acidente individualmente considerado, como consequência do descumprimento de normas ambientais do trabalho. Poderíamos, então, falar de uma hierarquia de normas constitucionais? Se considerarmos que o § 3º do art. 225 é uma norma que se destina a garantir um direito fundamental, qual seja, um meio ambiente sadio e equilibrado, então poderemos indagar: todas as normas que se opuserem ao seu postulado, poderão ser consideradas “inconstitucionais” ou serão, tão somente, “regras de exceção”?
Por tradição, a doutrina e a jurisprudência nacionais não consideram tais indagações, e inclinam-se a solucionar as possíveis antinomias recorrendo aos princípios da unidade e harmonização dos textos constitucionais, mediante ponderação de valores para solucionar as eventuais tensões entre normas conflitantes, delimitando a força vinculante e o alcance de cada uma delas, com o fito de produzir um equilíbrio, sem negar por completo a eficácia de nenhuma delas.
Alguns doutrinadores ponderam, também, que o constituinte de 1988 não detinha, à época, experiência bastante para legislar normas de cunho ambiental e, consequentemente não teria controlado suficientemente a compatibilidade de cada norma com as suas próprias decisões de princípio. Seja como for, podemos procurar para o caso em estudo, soluções de lege lata e de lege ferenda, estas últimas com a alteração do texto do inciso XXVIII para dele se excluir a ideia de culpa e, assim, compatibilizá-lo de uma vez por todas com a regra geral do § 3º do artigo 225.
A solução definitiva para a questão é o reconhecimento da responsabilidade objetiva para toda e qualquer indenização por acidente de trabalho, seja ele de que tipo for (empregador, segurador privado ou previdência social), levando-se em conta a teoria do risco criado, tendência contemporânea inafastável, já exposta anteriormente no item 2.2 deste trabalho.
6. Considerações finais
Conclui-se com a certeza de que os novos rumos da responsabilidade civil, em especial a que se refere à responsabilidade do empregador em face dos prejuízos causados ao meio ambiente do trabalho e à saúde do trabalhador, caminham no sentido de considerar objetiva tal responsabilidade, em consonância com as tendências sociais do Direito atual.
Com efeito, no Direito contemporâneo há uma forte tendência no sentido da socialização dos riscos, em harmonia com o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e da marginalização (art. 3º da Constituição Federal). Neste sentido, afirmam Carlos Alberto Menezes Direito e Sérgio Cavalieri Filho:
“Para onde caminha a responsabilidade civil? Qual a sua tendência no limiar deste novo século? O movimento que se acentuou nas últimas décadas do século findo, no sentido da socialização dos riscos, deverá continuar cada vez mais forte, expandindo ainda mais o campo da responsabilidade civil objetiva. Se antes a regra era a irresponsabilidade, e a responsabilidade a exceção, porque o grande contingente de atos danosos estavam protegidos pelo manto da culpa, agora, e daqui para a frente cada vez mais, a regra será a responsabilidade por exigência da solidariedade social e da proteção do cidadão, consumidor e usuário de serviços públicos e privados. O legislador, a jurisprudência e a doutrina continuarão se esforçando, pelos mais variados meios e processos técnicos apropriados, para estarem sempre ao lado da vítima a fim de lhe assegurar uma situação favorável. A vítima do dano, e não mais o autor do ilícito será o enfoque central da responsabilidade civil”.[14]
Sabe-se que tais inovações somente estarão consolidadas, e seus contornos nitidamente demarcados, à medida que a jurisprudência firmar entendimento acerca do tema. Já podemos vislumbrar, neste campo, entendimento a favor da responsabilidade civil objetiva e, embora existam julgados em contrário, as seguintes decisões dos tribunais superiores demonstram claramente o acolhimento da teoria do risco no tema em estudo:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. TEORIA DO RISCO (PRESUNÇÃO DE CULPA). ATIVIDADE PERIGOSA (TRANSPORTADOR DE VALORES). 1. É responsável aquele que causa dano a terceiro no exercício de atividade perigosa, sem culpa da vítima. 2. Ultimamente vem conquistando espaço o princípio que se assenta na teoria do risco, ou do exercício de atividade perigosa, daí há de se entender que aquele que desenvolve tal atividade responderá pelo dano causado.” STJ. 3ª Turma. Resp. nº. 185.659/SP, Rel.: Ministro Nilson Naves, julgado em 26 jun. 2000.
“RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ACIDENTE DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA. Se existe nexo de causalidade entre a atividade de risco e o efetivo dano, o empregador deve responder pelos prejuízos causados à saúde do empregado, tendo em vista que a sua própria atividade econômica já implica situação de risco para o trabalhador. Assim, constatada a atividade de risco exercida pelo autor, não há como se eliminar a responsabilidade do empregador, pois a atividade por ele desenvolvida causou dano ao empregado, que lhe emprestou a força de trabalho. Recurso de revista conhecido e provido.” TST. 6ª Turma. RR – 1239/2005-099-03-40, Rel.: Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, DJ 30 nov. 2007.
As decisões judiciais flexibilizam, deste modo, a configuração dos pressupostos da responsabilização no reconhecimento de que de alguma forma, por vivermos em sociedade somos todos responsáveis por todos os danos. É bem verdade que, neste caso, existe a preocupação com o lançamento do dever de indenizar sobre um único agente, qual seja, o empreendedor, fato que, segundo alguns, poderia comprometer sua atividade ou, até mesmo, a reparação da vítima pela insuficiência patrimonial do autor do dano. Tais argumentos geram sentimentos de injustiça e suscitam perplexidade quanto ao papel da responsabilidade civil. Nesta linha de raciocínio, argumentam alguns doutrinadores que, se solidarizarmos os pressupostos da reparação, devemos também solidarizar o dever de reparar. É provável que neste ponto, a técnica da socialização dos riscos encontre solução no seguro de responsabilidade civil, contratado por todos que exploram alguma atividade sem ônus excessivos para ninguém.
Por todo o exposto, podemos concluir que os valores básicos ou princípios fundamentais, quais sejam, o respeito ao meio ambiente e à dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho, fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado de Direito (art. 1º da Constituição Federal), se inserem na perspectiva da finalidade social da lei e do bem comum, pelo que toda norma e cada instituto do ordenamento jurídico pátrio devem ser compreendidos e interpretados à luz desses fundamentos, devendo a interpretação evidenciar a harmonia dos sistemas jurídicos e se orientar por aqueles princípios fundamentais.
[12] STOCCO, Rui. Responsabilidade civil, p. 814-815.
Informações Sobre o Autor
Carmen Victor Rodrigues Gontijo
Advogada, Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-UNIDERP, com menção final 10 na disciplina Segurança e Saúde do Trabalhador ministrada pelo Prof. Dr. Raimundo Simão de Melo Exerce cargo efetivo no Ministério Público da União, atualmente no ramo do Ministério Público do Trabalho