O artigo 15 do novo Código de Ética Médica aponta como infração deontológica o descumprimento da legislação específica relativa a transplantes de órgãos ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia genética. A Lei 9434/97 (Lei de Transplantes) dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. A esterilização é objeto de tratamento na Lei 9029/95 que inclusive criminaliza sua prática discriminatória em geral e especificamente nas relações de acesso ou manutenção em emprego. Além disso, a esterilização se praticada com a finalidade de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal, pode configurar crime de Genocídio nos termos do artigo 1º., alínea “d”, da Lei 2889/56. Por seu turno a fecundação artificial ou reprodução assistida não conta com legislação específica no Brasil. Essa lacuna é lamentável, demonstrando o quanto pode ser abissal a distância entre a legislação e a evolução da tecnologia e da ciência. A matéria hoje é objeto de um antigo Projeto de Lei em trâmite no Senado onde é registrado sob o número 90/99, bem como é regulamentada pela Resolução CFM n. 1358/92 que trás normas deontológicas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Embora o artigo 3º. da Resolução CFM 1931/09 (novo Código de Ética Médica) determine a revogação de todas as “disposições em contrário” antecedentes, entende-se que a Resolução CFM 1358/92 permanece incólume, pois que não colide com a nova ordenação, antes a completa. A relevância do tema é tão ingente e a lacuna legal tão terrível que o Código Civil de 2002 já se adiantou a tratar de questões relativas à paternidade ligadas às técnicas de reprodução assistida, no aguardo de uma regulamentação específica do tema (vide artigo 1597, III, IV e V, do Código Civil Brasileiro). Sobre esse problema assim se manifesta Venosa:
“O Código Civil de 2002 não autoriza e nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador”. [1]
Prosseguindo nesta temática, o abortamento é criminalizado pelo Código Penal em seus artigos 124 a 127, havendo apenas dois casos excepcionais de aborto legal previstos no artigo 128, I e II, CP. [2] Finalmente, no que tange às questões de manipulação ou terapia genética deve-se ter em conta os dispositivos da Lei 11.105/05, denominada “Lei de Biossegurança” ou “Lei de Engenharia Genética”.
Mas, o Código de Ética Médica não poderia simplesmente reduzir-se a apontar a proibição de infração às normas legais sobreditas. Frente aos avanços tecnológicos, principalmente aqueles da área da biotecnologia, seria imprescindível que a normativa deontológica adentrasse no tratamento mais aprofundado dos temas da reprodução assistida e da manipulação genética. Por isso o artigo 15 em seus parágrafos 1º., 2º. e 3º., bem como o artigo 16 abordam essa problemática. Entende-se que esses dispositivos podem ser cotejados e complementados pelas previsões da Resolução CFM 1358/92 naquilo em que não conflitarem.
Dessa forma uma primeira observação a ser levada a efeito é que, de acordo com as normas deontológicas aplicáveis à matéria, a reprodução assistida deve ter caráter de procedimento subsidiário e extraordinário ou excepcional para a solução dos problemas de infertilidade humana. O item 1 do Título I da Resolução CFM n. 1358/92, que trata dos Princípios Gerais da reprodução assistida, determina que o uso dessas técnicas de inseminação artificial torna-se opção aceitável apenas “quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade”. Isso significa que do médico é exigida a tentativa de solução do problema da infertilidade primordialmente através de métodos e tratamentos ordinários, configurando a inseminação artificial uma conduta extraordinária e subsidiária.
O § 1º. do artigo 15 aborda a questão dos “embriões supranumerários”, ou seja, aqueles produzidos “in vitro” e que não serão implantados para fins de inseminação. Esses embriões, segundo a Lei 11.105/05 (artigo 5º.) poderão ser utilizados para pesquisa e terapia com utilização de células – tronco embrionárias, desde que satisfeitas determinadas condições (vide artigo 5º., I e II e seus §§ 1º. a 3º., todos da Lei 11.105/05). [3] Por seu turno, a Resolução CFM1358/92 regula a “criopreservação” dos embriões produzidos e não utilizados em processo de inseminação artificial. Determina dita normativa que as clínicas dedicadas à reprodução assistida poderão criopreservar espermatozóides, óvulos e pré – embriões. Também determina que os excedentes devam ser comunicados aos pacientes e permanecerem criopreservados, “não podendo ser descartados ou destruídos”. Um cotejo da normativa deontológica sobredita com a Lei 11.105/05 deixa claro que nas condições do artigo 5º. deste último diploma, os embriões criopreservados poderão ser utilizados em pesquisas e terapias com células – tronco embrionárias, satisfeito o requisito temporal do congelamento há pelo menos 3 anos e o consentimento dos genitores. Também se pode entrever coerência entre a normativa legal e a deontológica em destaque no que tange à proibição de utilização comercial do referido material biológico (vide Resolução CFM1358/95, Título IV, item 1 e artigo 5º. § 3º., da Lei 11.105/05).
Voltando ao Código de Ética Médica em seu artigo 15, § 1º., constata-se a vedação da produção sistemática de embriões supranumerários em processos de fertilização. Realmente esse tipo de conduta feriria terrivelmente a dignidade humana, mediante a criação de embriões supranumerários para quaisquer fins, tratando um produto da concepção humana como um objeto qualquer. A criação deliberada de embriões supranumerários, que não serão utilizados na fertilização de uma mulher configura um processo de reificação do ser humano e como tal é inaceitável. Um dos argumentos discutidos na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510-0/DF foi exatamente o fato de que os processos de inseminação artificial produzem embriões supranumerários, os quais ficariam congelados indefinidamente ou seriam talvez descartados, de modo que então seria uma postura utilitária seu uso em pesquisas e terapias. Foi certamente a falta de atenção para com a grave violação da dignidade humana presente na produção de embriões supranumerários que possibilitou tal argumentação na discussão da pesquisa com células – tronco depois que as técnicas de reprodução assistida já estavam disseminadas e a ocorrência de embriões supranumerários já era corriqueira. Se houvesse mais cuidado com a dignidade humana desde a inauguração das técnicas de reprodução assistida, impedindo-se a produção de embriões não utilizáveis, certamente a discussão seria bem diferente em suas bases ou sequer poderia ter existido.
A produção excedente de embriões em processos de reprodução assistida é não somente ofensiva à dignidade humana como também extremamente perigosa no que se refere à criação de um incentivo à mercantilização da medicina. Se esse tipo de produção excedente é permitido há um enorme risco (senão certeza absoluta) de sua disseminação em escala comercial de produção. Poderíamos presenciar num futuro o execrável espetáculo de linhas de produção de embriões para os mais diversos fins, não somente terapêuticos, para pesquisa de curas de doenças, mas também e talvez primordialmente em termos lucrativos, para finalidades de estética. Seria mesmo um pesadelo de horror testemunhar a degradação humana por seu tratamento como um produto, uma coisa em uma linha de produção, com clara violação de um dos princípios mais básicos da Ética proposto há tanto tempo por Kant, que é a vedação do tratamento do ser humano como um meio para determinados fins e não como um fim em si mesmo. [4]
Tendo em vista esses argumentos, entende-se que a disposição do § 1º., do artigo 15 é salutar, mas poderia ter ainda maior alcance. A eliminação da palavra “sistematicamente” do texto e a proibição absoluta de produção de embriões supranumerários certamente traria uma proteção mais ampla e adequada da dignidade humana. [5]
O § 2º., do mesmo dispositivo proíbe a procriação assistida com os seguintes objetivos:
a)criar seres humanos geneticamente modificados;
b)criar embriões para investigação;
c)criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras.
Tal disposição deontológica, assim como o artigo 16 do Código de Ética, está em pleno acordo com a regulamentação da Lei 11.105/05 que proíbe em seu artigo 6º. III e IV a prática de “engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano”, bem como a “clonagem humana”. [6]
A criação de seres humanos geneticamente modificados ou de híbridos ou quimeras, mesclando caracteres genéticos humanos com animais ou vegetais é certamente um atentado contra a própria natureza humana, um verdadeiro risco para a própria existência da humanidade como tal, para a autenticidade do ser humano, como bem alerta Jonas, ao asseverar que esse “homem utópico” somente pode ser um “homúnculo da futurologia sociotecnológica”; para o autor esse é um dos temores que devem ser guardados como precaução em relação ao futuro da humanidade. [7] Não é por outra razão que o Código de Ética Médica em seu artigo 16 insiste na vedação de intervenção sobre o genoma humano com vistas à sua modificação e exclui qualquer atuação em células germinativas que resulte em modificação genética da descendência. Esse tipo de atuação somente não é descartado em caso de “terapia gênica”, a qual visa o tratamento de doenças hereditárias e, portanto, não representa dano ou perigo para a natureza humana, tanto quanto o tratamento de uma doença já manifestada em um ser humano formado é um benefício e não um risco ou dano para a humanidade do homem. Também a vedação da criação de embriões para fins de escolha de sexo ou eugenia é bem vinda. São condutas que podem trazer consequências desastrosas para a humanidade com a conformação de uma medicina seletiva a qual além de atentatória à dignidade humana pode gerar um desequilíbrio nefasto no número ideal de pessoas dos sexos masculino e feminino. O dispositivo do Código de Ética Médica encontra correspondência com os itens 4 e 5 do Título I da Resolução CFM 1358/92 que proíbem a aplicação das técnicas de reprodução assistida com o intento de “selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho”, salvo para fins terapêuticos ou preventivos de doenças. Da mesma forma proíbe a fecundação artificial “com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana”.
Retoma-se o imperativo kantiano de que o ser humano é fim e não meio para fins alheios quando se veda a criação de embriões para fins de investigação. Novamente há coerência do dispositivo do Código de Ética com o item 5 do Título I da Resolução CFM 1358/92, que impede a fecundação para fins diversos da reprodução humana.
No § 3º. o Código Deontológico trás à colação o Princípio do Consentimento Informado ao determinar que não se pode praticar processo de procriação assistida sem que os participantes estejam de inteiro acordo devidamente esclarecidos. A Resolução CFM 1358/92 também estabelece em seu Título I, item 3 a imperatividade do “consentimento informado”. Cria inclusive a exigência da expedição de um documento escrito de consentimento informado produzido em formulário especial. Ademais, no Título II, itens 1 e 2, ao tratar dos usuários das técnicas de reprodução assistida, estabelece a necessidade do consentimento informado livre e consciente da mulher capaz e, acaso ela seja casada ou esteja em união estável, também o necessário assentimento do cônjuge ou companheiro. Note-se que somente a mulher capaz poderá ser usuária das técnicas de reprodução assistida, não havendo previsão de utilização de tais procedimentos em relação a menores ou incapazes, ainda que com o consentimento de seus representantes legais.
Outro ponto de contato importante entre o Código de Ética Médica e a Resolução CFM 1358/92 encontra-se no Título III, item 1 desta segunda ao exigir que o responsável pelos procedimentos médicos e laboratoriais executados em técnicas de reprodução assistida seja obrigatoriamente um médico (grifo nosso). Tal disposição vem ao encontro do disposto no Código de Ética quando estabelece a exclusividade e indelegabilidade dos atos médicos (vide Decreto 44.045/58, artigo 1º. e Resolução1931/09 Capítulo II, inciso II e Capítulo III, artigo 2º.).
É de se concluir que o Código de Ética Médica e a Resolução CFM 1358/92 estabelecem uma normatização deontológica bastante razoável com relação à novas biotecnologias, não obstante possam haver aperfeiçoamentos, conforme inclusive prevê expressamente o próprio Código de Ética em seu Capítulo XI, intitulado “Disposições Gerais”, inciso III:
“O Conselho Federal de Medicina, ouvidos os Conselhos Regionais de Medicina e a categoria médica, promoverá a revisão e atualização do presente Código, quando necessárias”.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.