Resumo: O trabalho versa sobre uma análise sistêmica do nosso ordenamento jurídico, analisando a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente com o objetivo de verificar a possibilidade ou não de veiculação de publicidade direcionada para o telespectador infantil. Analisa assim, a possibilidade dessa publicidade, uma vez veiculada, se deve ser considerada como publicidade abusiva e se sim quais as consequências disso. Aborda a questão da publicidade restrita demonstrando que isso já ocorre no Brasil em diversos casos e que a vedação da publicidade direcionada ao público infantil seria apenas mais uma das hipóteses.
Palavras-chave: Publicidade infantil. Publicidade enganosa. Publicidade Restrita. ECA. CDC. Proteção Integral. Melhor Interesse.
Sumário: 1. Introdução. 2. Direitos das Crianças e dos Adolescentes. 2.1 A Doutrina da Proteção Integral. 2.2 Princípios Orientadores do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2.3 Direitos Fundamentais das Crianças e dos Adolescentes. 2.3.1 Direito à Vida e à Saúde. 2.3.1.1 Mas, o que é saúde ? 2.3.1.2 Proteção Integral – saúde física, psicológica e social e o ordenamento jurídico brasileiro. 2.4 Direito ao Respeito. 3. A Criança no Estatuto da Criança e Adolescente e no âmbito do Código Civil. 4. O Código de Defesa do Consumidor. 4.1 Conceito de Consumidor. 4.2 A criança pode ser consumidora ? 4.3 Vulnerabilidade. 4.4 A vulnerabilidade agravada por ser criança. 4.5 Propaganda, publicidade e publicidade sensível. 4.6 O Princípio da Boa-fé e o Dever de Informar. 4.7 Princípio da Identificação da Mensagem Publicitária. 4.8 Princípio da Veracidade. 4.9 Princípio da não-abusividade da publicidade. 4.10 A Publicidade Restrita. 5. Ofensa à Família. 6. Considerações Finais
1. Introdução
O presente artigo versa sobre a publicidade dirigida ao público infantil e os seus efeitos na vida familiar. Quando nos deparamos com adultos influenciando as crianças para agirem de forma contrária ao que é certo ao que é devido, execramos esse adulto, pois entendemos que eles estão apenas tirando vantagem da condição dessas crianças, de sua inocência e de seus temores. Tal análise decorre dos diversos projetos de lei apresentados ao Congresso Nacional, visando coibir ou minimizar a publicidade infantil, e especificamente ao projeto de lei, que ora se encontra arquivado, que tinha como objetivo proibir a veiculação de publicidade voltada ao público infantil no horário das 06 às 20 horas.
Dessa feita, a análise aqui proposta passa pela compreensão do que a nossa Constituição Federal nos traz como princípios norteadores, bem como a compreensão do que vem a ser a publicidade abusiva e enganosa, fazendo o enquadramento das publicidades que são transmitidas destinadas ao público infantil e ainda verificando o que temos em termos de previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda outras legislações correlatas.
Busca-se, portanto, responder ao questionamento, se a nossa televisão vem a prejudicar ou não as nossas crianças. E o que precisamos perceber é que a publicidade voltada para o público infantil também acaba sendo uma forma de explorar as crianças, já que elas não apresentam, ainda, o discernimento necessário de que estão sendo induzidas ao consumo, sem que esse sentimento seja originário da criança, mas sim implantado, cultivado pela publicidade direcionada a ela.
Dessa forma, iremos percorrer pelos princípios protetivos voltados ao desenvolvimento completo dessa criança, e iremos verificar que a exposição à essa publicidade acaba ofendendo esses princípios. Além disso, iremos verificamos a possibilidade de vedação completa dessa forma de publicidade amparada por nosso sistema constitucional, interpretando artigos ali presentes.
2. Direitos da Criança e da Adolescência
Quando tratamos desse universo o que queremos é que as crianças sejam crianças e que possam se desenvolver de forma saudável tornando assim, um adulto completo. Estamos assim, buscando concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana em toda a sua vertente, já que reconhecemos a necessidade dessa proteção para que tenha uma formação adequada em consonância com esse princípio.
Para tanto apresentamos o princípio da prioridade absoluta, presente no art. 227 da Constituição Federal que nos traz que:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Pela simples leitura desse artigo percebe-se que é dever de todos – família, sociedade e Estado – assegurar à criança e ao adolescente – temas desse artigo – o direito à ida, à saúde, à educação, à alimentação, dentre outros, além de ser obrigação de todos – família, sociedade e Estado – de colocá-las a salvo de toda forma de discriminação e exploração especificamente. Assim, as crianças não podem ser exploradas, devendo ser protegidas de toda forma de discriminação. O que não tem ocorrido.
E esse artigo constitucional veio em decorrência da doutrina da proteção integral que nós implantamos em nosso sistema jurídico com o advento da Constituição Federal de 1988, já que anteriormente não era assim, que as crianças e adolescentes eram vistos.
Com a introdução dessa nova doutrina – a doutrina da proteção integral – passou a ser obrigação de todos preservarem as crianças e adolescentes de tudo aquilo que esteja em desacordo com o seu desenvolvimento e seu crescimento saudável.
O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta uma divisão pelo critério cronológico de quem é criança e de quem é adolescente, assim, para ser considerado como criança pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é aquela pessoa até os 12 anos incompletos, já para ser considerado adolescente bastou ter completado 12 anos até os 18 anos, conforme o art. 2º do ECA.
Por sua vez o art. 1º. Da Convenção Internacional dos Direitos da Criança considera como criança todo ser humano que conte com menos de 18 anos, vejamos:
Art. 1. Para os efeitos da presente convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.
2.1 A Doutrina da Proteção Integral
A Doutrina da Proteção Integral ingressou em nosso ordenamento jurídico somente em 1988 por meio da Constituição Federal, antes desse momento histórico adotávamos a doutrina da situação irregular[1].
A Doutrinada da Proteção Integral encontra-se assente em três pilares[2]:
1º Pilar: Reconhecer: Foi preciso reconhecer que criança e adolescente não são mini-adultos e assim, devem ser tratados como pessoas em desenvolvimento e por isso precisam de proteção especial.
2º Pilar: Convivência Familiar: A importância da convivência familiar é reconhecida de tal sorte que essas crianças e adolescentes devem estar com as suas famílias.
3º Pilar: Princípio da Absoluta Prioridade: Aqueles países que forem adotar a doutrina da proteção integral, devem, portanto utilizar o princípio da absoluta prioridade para que seja possível concretizar a doutrina da proteção integral.
O Art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente não nos deixa qualquer dúvida sobre a aplicação desse princípio em nosso ordenamento jurídico, verbis:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
A interpretação desse artigo nos remete então à doutrina da proteção integral, prevista constitucionalmente e reforçada no Estatuto.
Se é dever da família, sociedade e Estado preservar as nossas crianças e adolescentes o Estatuto da Criança e do Adolescente não pode ser uma norma de acesso restrito aos juristas e ser apenas interpretado pelos juristas. É necessário que o Estatuto da Criança e do Adolescente saia às ruas e encontre respaldo e divulgação em todas as camadas sociais e em todas as esquinas da vida.
Luciano Mendes de Almeida ao tecer comentários referente à doutrina da proteção integral e ao art. 1º do ECA nos traz que:
O Estatuto tem por objetivo, a proteção integral da criança e do adolescente, de tal forma que cada brasileiro que nasce possa ter assegurado seu pleno desenvolvimento, desde as exigências físicas até o aprimoramento moral e religioso. Este Estatuto será semente de transformação do País. Sua aplicação significa o compromisso de que, quanto antes, não deverá haver mais no Brasil vidas ceifadas no seio materno, crianças sem afeto, abandonadas, desnutridas, perdidas pelas ruas, gravemente lesadas em sua saúde e educação.[3]
Reforçando essa ideia, temos ainda que
A proteção integral tem como fundamento a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado. Rompe com a idéia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento.[4]
Conforme Wilson Donizetti Libertai temos que
A Lei 8.069/90 revolucionou o Direito Infanto-juvenil, inovando e adotando a doutrina da proteção integral. Essa nova visão é baseada nos direitos próprios e especiais das crianças e adolescentes, que, na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral (TJSP, AC 19.688-0, Rel. Lair Loureiro). É integral, primeiro, porque assim diz a CF em seu art. 227, quando determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo; segundo, porque se contrapõe à teoria do “Direito tutelar do menor”, adotada pelo Código de Menores revogado (Lei 6.697/79), que considerava as crianças e os adolescentes como objetos de medidas judiciais, quando evidenciada a situação irregular, disciplinada no art. 2º da antiga lei.[5]
Assim temos que essa doutrina nos traz que a criança e o adolescente apresentam valor intrínseco como ser humano, e em decorrência disso há necessidade de que a sua condição de pessoa em desenvolvimento seja respeitada. Além do que, há que se considerar que a infância e a juventude são as portadoras da continuidade do seu povo e da sua cultura e é necessário que reconheçamos a sua vulnerabilidade para que possamos protegê-las. E essa proteção é papel tanto da família, da sociedade quanto do Estado, sendo que este deverá fomentar as políticas públicas necessárias para a concretização da doutrina da proteção integral. Promovendo assim os direitos e defendendo os direitos das crianças e dos adolescentes.[6]
Tânia da Silva Pereira ao discorrer sobre essa doutrina nos traz o estudo apresentado por Deodato Rivera em debate promovido pela PUC-RIO e Funabem publicado pela PUC em 1990, no qual veio a demonstrar quais são os princípios orientadores e fundamentais dessa doutrina, vejamos:
DEODATO RIVERA demonstra que esta nova orientação em relação à criança e ao adolescente é baseada em princípios fundamentais:
“1 – UNIVERSALIZAÇÃO – “Todos são sujeitos de Direito independentemente de sua condição social. A proteção não é só ao menor pobre, ou ao menor em situação irregular. O novo ordenamento atingirá a todos.”
2 – HUMANIZAÇÃO – “Este é o princípio previsto no art. 227 da Constituição de 1988. Neste princípio cabe sobretudo uma mudança de mentalidade. Tradicionalmente, a defesa social, a proteção de interesses dominantes na sociedade, é dado àquilo que é normal, regular. E os pobres são considerados anormais e irregulares.”
3 – DESPOLICIALIZAÇÃO – “A questão da criança e do adolescente não é questão de polícia. Ela tem um aspecto policial quando o adolescente ou a criança são vítimas de violação de seus direitos ou quando são autores de violência, e isso porque, em primeiro lugar, foram vítimas. Nesses casos, há um ângulo policial, no caso de alto risco para essa criança, de protegê-la, com armas se for preciso, proteger sua integridade ou proteger as pessoas da sociedade, de sua violência. Mas é um aspecto secundário, não é fundamental.”
4 – DESJURIDICIONALIZAÇÃO – “A criança e o adolescente não são questão de Justiça. Somente naqueles casos de lide, de conflitos de interesses.”
5 – DESCENTRALIZAÇÃO – “O atendimento fundamental é no Município. É ali que a criança nasce, é ali que ela vive, é ali que ela está. Nenhuma criança nasce ou vive na União. A União é uma abstração, não tem geografia. A geografia da União é o somatório das geografias municipais, então a criança tem que ser atendida ali onde ela está.”
6 – PARTICIPAÇÃO – “Esse princípio é fundamental. O art. 227 da Constituição Federal de 1988, convoca a família, a sociedade e o Estado para assegurar a criança e ao adolescente os seus direitos fundamentais. Os Conselhos Tutelares são um resultado desta convocação do cidadão para participar na nova sistemática”[7]
Assim, doutrinariamente a doutrina da proteção integral encontra-se inserida em nosso universo jurídico, porém, com relação à sociedade é necessário ainda um longo caminhar.
2.2 Princípios Orientadores do Estatuto da Criança e do Adolescente
São quatro os princípios que formam a base do Estatuto da Criança e do Adolescente, são eles: o princípio da prioridade absoluta, princípio do melhor interesse, princípio da municipalização e princípio da cooperação.
O princípio da prioridade absoluta encontra-se consubstanciado num primeiro momento no art. 227 da Constituição Federal, conforme colocado anteriormente, e inserido no Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 4º:
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.”
Conforme podemos verificar pela leitura desse artigo temos como prioridade absoluta a criação de políticas públicas voltadas para as crianças e adolescentes. Dessa forma temos que, as políticas públicas para crianças e adolescentes “deverão estar em primeiro lugar na escala da preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes […]”.[8]
Ainda nesse art. 4º podemos verificar a existência do Princípio da Cooperação onde todas as pessoas estão envolvidas para concretizar os direitos da criança e do adolescente, haja vista que o art. 4º atribui esse dever à família, à sociedade e ao Estado, deixando bem claro que se trata de dever de todos.
Além desses dois princípios temos o princípio do superior interesse ou do melhor interesse da criança e do adolescente. Esse princípio encontra-se consagrado de forma expressa no art. 3º. Da Convenção dos Direitos da Criança, vejamos:
Artigo 3.1 Todas as rações relativas às crianças, levadas, a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (…)
Art. 18.1 Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança.
A jurisprudência pátria já se manifestou para a aplicação do Princípio do Melhor Interesse, vejamos:
“Direito civil. Família. Criança e adolescente. Adoção. Pedido preparatório de destituição do poder familiar formulado pelo padrasto em face do pai biológico. Legítimo interesse. Famílias
recompostas. Melhor interesse da criança.
– O procedimento para a perda do poder familiar terá início por provocação do Ministério Público ou de pessoa dotada de legítimo interesse, que se caracteriza por uma estreita relação entre o interesse pessoal do sujeito ativo e o bem-estar da criança.
– O pedido de adoção, formulado neste processo, funda-se no art. 41, § 1º, do ECA (correspondente ao art. 1.626, parágrafo único, do CC/02), em que um dos cônjuges pretende adotar o filho do outro, o que permite ao padrasto invocar o legítimo interesse para a destituição do poder familiar do pai biológico, arvorado na convivência familiar, ligada, essencialmente, à paternidade social, ou seja, à socioafetividade, que representa, conforme ensina Tânia da Silva Pereira, um convívio de carinho e participação no desenvolvimento e formação da criança, sem a concorrência do vínculo biológico (Direito da criança e do adolescente – uma proposta interdisciplinar – 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 735).
– O alicerce, portanto, do pedido de adoção reside no estabelecimento de relação afetiva mantida entre o padrasto e a criança, em decorrência de ter formado verdadeira entidade familiar com a mulher e a adotanda, atualmente composta também por filha comum do casal. Desse arranjo familiar, sobressai o cuidado inerente aos cônjuges, em reciprocidade e em relação aos filhos, seja a prole comum, seja ela oriunda de relacionamentos anteriores de cada
consorte, considerando a família como espaço para dar e receber cuidados.
– Sob essa perspectiva, o cuidado, na lição de Leonardo Boff, “representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo de ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana” (apud Pereira, Tânia da Silva. Op. cit. p. 58).
– Com fundamento na paternidade responsável, “o poder familiar é instituído no interesse dos filhos e da família, não em proveito dos genitores” e com base nessa premissa deve ser analisada sua permanência ou destituição. Citando Laurent, “o poder do pai e da mãe não é outra coisa senão proteção e direção” (Principes de Droit Civil Français, 4/350), segundo as balizas do direito de cuidado a envolver a criança e o adolescente.
– Sob a tônica do legítimo interesse amparado na socioafetividade, ao padrasto é conferida legitimidade ativa e interesse de agir para postular a destituição do poder familiar do pai biológico da criança. Entretanto, todas as circunstâncias deverão ser analisadas detidamente no curso do processo, com a necessária instrução probatória e amplo contraditório, determinando-se, outrossim, a realização de estudo social ou, se possível, de perícia por equipe interprofissional, segundo estabelece o art. 162, § 1º, do Estatuto protetivo, sem descurar que as hipóteses autorizadoras das destituição do poder familar – que devem estar sobejamente comprovadas – são aquelas contempladas no art. 1.638 do CC/02 c.c. art. 24 do ECA, em numerus clausus. Isto é, tão somente diante da inequívoca comprovação de uma das causas de destituição do poder familiar, em que efetivamente seja demonstrado o risco social e pessoal a que esteja sujeita a criança ou de ameaça de lesão aos seus direitos, é que o genitor poderá ter extirpado o poder familiar, em caráter preparatório à adoção, a qual tem a capacidade de cortar quaisquer vínculos existentes entre a criança e a família paterna.
– O direito fundamental da criança e do adolescente de ser criado e educado no seio da sua família, preconizado no art. 19 do ECA, engloba a convivência familiar ampla, para que o menor alcance em sua plenitude um desenvolvimento sadio e completo. Atento a isso é que o Juiz deverá colher os elementos para decidir consoante o melhor interesse da criança.
– Diante dos complexos e intrincados arranjos familiares que se delineiam no universo jurídico – ampliados pelo entrecruzar de interesses, direitos e deveres dos diversos componentes de famílias redimensionadas –, deve o Juiz pautar-se, em todos os casos e circunstâncias, no princípio do melhor interesse da criança, exigindo dos pais biológicos e socioafetivos coerência de atitudes, a fim de promover maior harmonia familiar e consequente segurança às
crianças introduzidas nessas inusitadas tessituras.
– Por tudo isso – consideradas as peculiaridades do processo –, é que deve ser concedido ao padrasto – legitimado ativamente e detentor de interesse de agir – o direito de postular em juízo a destituição do poder familiar – pressuposto lógico da medida principal de adoção por ele requerida – em face do pai biológico, em procedimento contraditório, consonante o que prevê o art. 169 do ECA.
– Nada há para reformar no acórdão recorrido, porquanto a regra inserta no art. 155 do ECA foi devidamente observada, ao contemplar o padrasto como detentor de legítimo interesse para o pleito destituitório, em procedimento contraditório.
Recurso especial não provido.
(STJ – Resp 1106637?SP – Relatora Ministra Nancy Andrighi – 3ª. Turma – Data do Julgamento 01/06/2010).
(STJ – REsp 1172067/MG – 3ª. Turma – Ministro Relator Massami Uyeda – Data do Julgamento 18/03/2010).”
Além disso, podemos localizar esse princípio expresso no art. 100, parágrafo único, IV do ECA, vejamos:
“IV – interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;”
Além desses três princípios encontramos o quarto que é o princípio da municipalização, esse princípio decorre da Constituição Federal, § 7º do art. 227 e ainda o art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente que determinar que as diretrizes da política de atendimento devam ser determinadas pela municipalização. É necessário reconhecer as particularidades e as necessidades das crianças e adolescentes dentro do espaço em que elas vivem, e não simplesmente receberem orientações daqueles que não tem esse conhecimento, essa vivência.
2.3 Direitos Fundamentais das Crianças e dos Adolescentes
Conforme Andréa Rodrigues Amin, “o legislador constituinte particularizou dentre os direitos fundamentais, aqueles que se mostram indispensáveis à formação do indivíduo ainda em desenvolvimento”[9] Não excluiu os demais, simplesmente lançou um reforço com relação aqueles que seriam considerados mais importantes nesse processo de formação das crianças e adolescentes.
Quando se trata de analisar os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes temos pelo art. 3º do ECA que:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Mas quando iremos analisar o Estatuto da Criança e do Adolescente sobre os direitos fundamentais no Título II ele nos traz:
Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde
Capítulo II – Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade
Capítulo III – Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária
Capítulo IV – Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer
Capítulo V – Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho
Dessa forma o Estatuto da Criança e do Adolescente nos traz de forma detalhada quais são os direitos fundamentais a que ele faz menção expressa. Claro que além desses enumerados, todos os demais referentes a todo ser humano, também pertence às crianças e adolescentes.
Dentre esses direitos fundamentais apresentados pelo constituinte e inseridos no Estatuto da Criança e do Adolescente para o presente trabalho iremos nos ater somente na análise de alguns desses direitos.
2.3.1 Direito à Vida e à Saúde
Não é possível falar em proteção integral se não houver vida e entre as características dos direitos fundamentais está a complementaridade assim, a vida que se almeja, não é simplesmente sobreviver, mas sim, uma vida com qualidade. Para José Farias Tavares “vida e saúde são direitos que se imbricam, faces da mesma moeda – cara e coroa.”[10]
2.3.1.1 Mas, o que é saúde ?
Dessa feita, precisamos conceituar o que vem a ser exatamente saúde.
Buscando a fundamentação desse direito e o conceito do que vem a ser saúde nos socorremos do Conceito apresentando pela OMS quando da divulgação da Carta de Princípios de 7 de abril de 1948 – data essa que ficou conhecida como Dia Mundial da Saúde, já que ficou reconhecido o direito à saúde e a obrigação do Estado para realizar políticas públicas que venham a concretizar esse direito.
O Conceito de Saúde passou então a ser:
Saúde é o estado de mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade.
Em 1974 Marc Lalonde então titular do Ministério da Saúde e do Bem-estar da Canadá apresentou uma forma de analisar quais os fatores intervém sobre a saúde e que portando a saúde pública deveria intervir, dessa forma o campo de saúde abrange:
_ a biologia humana, que compreende a herança genética e os processos biológicos inerentes à vida, incluindo os fatores de envelhecimento;
_ o meio ambiente, que inclui o solo, a água, o ar, a moradia, o local de trabalho;
_ o estilo de vida, do qual resultam decisões que afetam a saúde: fumar ou deixar de fumar, beber ou não, praticar ou não exercícios;
_ a organização da assistência à saúde. A assistência médica, os serviços ambulatoriais e hospitalares e os medicamentos são as primeiras coisas em que muitas pessoas pensam quando se fala em saúde. No entanto, esse é apenas um componente do campo da saúde, e não necessariamente o mais importante; às vezes, é mais benéfico para a saúde ter água potável e alimentos saudáveis do que dispor de medicamentos. É melhor evitar o fumo do que submeter-se a radiografias de pulmão todos os anos. É claro que essas coisas não são excludentes, mas a escassez de recursos na área da saúde obriga, muitas vezes, a selecionar prioridades.[11]
Tanto o conceito de saúde da OMS quanto o desenvolvido no Canadá apresentam uma amplitude que ainda hoje se discute esses conceitos. A nossa Constituição Federal não traz o conceito de saúde porém em seu art. 196 nos traz que:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Para Antonio Cezar Lima da Fonseca
O Poder Público e a sociedade – por meio de políticas sociais – devem reparar eventuais desigualdades sociais criando modos de proteção e amparo ao sadio desenvolvimento de crianças e adolescente. [12]
Para Andréa Rodrigues Amin a “saúde compreende sanidade física e mental. Alcançá-la é formalmente direito de toda criança e adolescente, aplicação do princípio da igualdade.”[13] E mais adiante complementa: “hoje, não podemos conceber dignidade da pessoa humana sem pensarmos na proteção do ser humano de forma integral: integridade física, psíquica e intelectual”[14]
2.3.1.2 Proteção Integral – saúde física, psicológica e social e o ordenamento jurídico brasileiro.
Dentro dessa vertente, ou seja, buscando preservar o direito à saúde, alguns Estados começaram a sancionar leis visando a restringir ou proibir a venda de refrigerante em escolas, ou de alimentos gordurosos ou produzidos com gordura saturada e trans. Em destaque o Estado do Paraná por meio da Lei Estadual 14.855/2005 e o Estado de Minas Gerais por meio da Lei Estadual 18.372/2009. E isso decorre da crescente taxa de obesidade que vem afetado as crianças, atingindo assim, a sua saúde. Essas e outras normas semelhantes visam proteger a saúde física de nossas crianças.
No campo da proteção da saúde psíquica podemos citar a lei que trata da alienação parental, ou seja, a Lei no. 12.318 de 2010 que em seu art. 2º, nos traz que:
Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Assim, o aspecto psicológico encontra-se previsto em uma norma, recente, infelizmente, já que podemos localizar diversos adolescentes e até mesmo adultos que trazem a marca da síndrome da alienação parental.
Já com relação ao aspecto da saúde social da criança podemos apresentar a preocupação em relação ao Bullying, sendo que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei no. 5369/2009 de autoria do Deputado Vieira da Cunha
Que traz em seu art. 1º.:
Art. 1º Fica instituído o Programa de Combate ao “Bullying” em todo o território nacional, vinculado ao Ministério da Educação, que expedirá as normas e procedimentos necessários a sua execução, observadas as diretrizes prescritas na presente Lei.
Parágrafo único. No contexto da presente Lei, “bullying” é considerado todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.
E buscando conceituar o que vem a ser o Bullying nos traz a violência física ou psicológica, vejamos a proposta apresentada no art. 2º do Projeto de Lei no. 5369/2009:
Art. 2º Caracteriza-se o “bullying” quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação e/ou discriminação, e ainda:
a) ataques físicos;
b) insultos pessoais;
c) comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;
d) ameaças por quaisquer meios;
e) grafitagem depreciativas;
f) expressões preconceituosas;
g) isolamento social consciente e premeditado;
h) pilhérias.
Assim, o nosso ordenamento jurídico encontra-se já amadurecido ao ponto de perceber a necessidade de proteger a criança e o adolescente em termos de concretização do direito à saúde, tanto no aspecto físico, quanto psicológico e social.
Mas é preciso perceber ainda outros pontos acerca do desenvolvimento e amadurecimento da criança e do adolescente.
O art. 6 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças – ONU de 1989 nos traz que:
Toda criança tem o direito inerente à vida, sendo que os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.
O art. 7º do ECA nos traz que:
Art. 7º. A criança e o adolescente têm direitos a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Assim, a norma estatutária assegura que deve ser realizada políticas públicas para o desenvolvimento sadio.
E desenvolvimento sadio no caso se refere tanto ao aspecto físico, quanto psíquico, quanto social. Se as crianças não conseguem se defender faz-se necessário que a sociedade como um todo providencie essa defesa, essa proteção.
2.4 Direito ao Respeito
Ainda analisando o Estatuto da Criança e do Adolescente temos no art. 17 a previsão ao direito ao respeito à criança e ao adolescente de sorte que é inviolável a integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideais e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Com base nesse artigo, que tem origem na proteção integral a criança e o adolescente deve ser colocado à salvo de tudo aquilo que venha a lhe violar a integridade, seja ela física ou psíquica. Assim, no momento em que nos deparamos com uma publicidade voltada para o público infantil em que afirma que ter tal brinquedo ou tal roupa irá fazer com que ele se destaque e seja o herói entre os seus amigos, E ele não consegue obter aquele objeto de consumo, essa sua integridade acaba de ser violada.
Com relação à autonomia, prevista nesse artigo refere-se à possibilidade da criança e do adolescente, conforme o seu desenvolvimento, poder se autogerir, autoadministrar, e no caso específico perceber que cada etapa da vida da criança ela tem condições de realizar determinados atos ao passo que não consegue realizar outros.
3. A Criança no Estatuto da Criança e Adolescente e no âmbito do Código Civil.
Iniciamos o presente trabalho apresentando a conceituação legal de quem vem a ser criança, assim, a previsão encontra-se expressa no art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que nos traz que criança é a pessoa até 12 anos de idade incompletos e que o adolescente é de 12 anos até os 18 anos de idade.
Para o presente trabalho precisamos nos socorrer do Código Civil em seu aspecto que trata da capacidade. Assim, analisando a capacidade percebemos que podemos dividir a capacidade sobre dois ângulos: a capacidade plena na qual a pessoa poderá realizar todos os atos da vida civil sem necessidade de nenhuma espécie de auxílio ou intervenção. Por outro lado verificamos a existência da capacidade limitada, no momento em que ainda não se atingiu a capacidade plena.
A capacidade limitada, ou incapacidade, por sua vez, pode ser dividida em relativamente incapaz ou absolutamente incapaz. Dentre outros parâmetros analisamos o requisito cronológico, ou seja, da idade da pessoa, assim, pelo critério cronológico é considerado plenamente capaz a pessoa que atingiu 18 anos. Já os menores de 18 anos apresentam a capacidade limitada dividindo-se em incapacidade absoluta, ou seja os menores de 16 anos de idade e a incapacidade relativa para aqueles que já completaram 16 anos até os 18 anos de idade.
Esse critério cronológico é uma escolha feita pelo legislador e se refere ao âmbito civil, já que em outras esferas esse parâmetro da idade poderá vir a ser alterado diante de algumas circunstâncias específicas.
Quando adentramos ao estudo da capacidade civil verificamos que a realização de negócio jurídico por parte de pessoas absolutamente incapazes significa que esse negócio jurídico é nulo, haja vista não ter respeitado um dos requisitos essenciais para a realização do negócio jurídico que é o de sujeito capaz para a realização do ato jurídico. Dessa forma, o absolutamente incapaz não poderá realizar negócios jurídicos. A única forma que a norma autoriza é quando esse incapaz estiver representado por seu representante legal, normalmente os seus pais.
Assim, o negócio jurídico, realizado pelo incapaz, mas mediante a condução de seus representantes legais é que poderá vir a produzir efeitos. E isso, ocorre porque o nosso legislador, na essência do Código Civil, entendeu que o incapaz absolutamente será representado pelo seu representante legal, haja vista não deter a capacidade plena.
Analisando ainda sob a ótica dos negócios jurídicos, cabe ao representante legal do menor verificar se aquele negócio jurídico é vantajoso, se é interessante para o incapaz. Sendo que posteriormente, esses atos jurídicos poderão – conforme o caso – serem questionados perante o judiciário. E em alguns casos, como na hipótese de tutoria – somente autorização judicial é que os tutores poderão realizar determinados negócios jurídicos. Tudo isso buscando proteger os interesses do incapaz.
Por outro ângulo então temos que no caso de menores sob a égide da tutoria encontram-se mais protegidos do que aqueles que estão sob a responsabilidade de seus genitores.
4. O Código de Defesa do Consumidor
A análise dos institutos referentes ao Código de Defesa do Consumidor se faz necessário haja vista que a correlação entre os institutos referentes ao direito consumerista e ao direito menorista é que iremos observar que para estarmos em conformidade com o comando constitucional faz-se necessário reformular toda a estrutura referente à propaganda direcionada para o público infantil.
4.1 Conceito de Consumidor
Quando analisamos o art. 2º do CDC o conceito presente no caput desse artigo refere-se ao consumidor padrão, assim temos que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Do conceito apresentado pelo Código podemos verificar que são três os elementos que compõe o conceito de consumidor: (…). O primeiro deles é o sujeito (pessoa física ou jurídica), o segundo é o objetivo (aquisição de produtos ou serviços) e o terceiro e último é o teleológico (a finalidade pretendida com a aquisição de produto ou serviço) caracterizado pela expressão destinatário final.[15]
Assim, o consumidor padrão é aquele que adquire produto ou serviço como destinatário final. A jurisprudência do STJ tem abrandado a corrente finalista expressa nesse artigo para, analisar caso a caso a posição de vulnerabilidade ou não da parte prejudicada. Como exemplo dessa visão da jurisprudência podemos citar o REsp 476428/SC de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, publicado em 09/05/2005.
Nas palavras de Maria Antonieta Zanado Donato
A lei, ao incluir a pessoa jurídica no conceito de consumidor, pretendeu referir-se àquela pessoa jurídica que, mesmo sendo fornecedora, ao inserir-se no pólo ativo da relação jurídica de consumo, na qualidade de consumidor destinatário final, estaria a faze-lo como qualquer outro consumidor, ou seja, sem possuir qualquer poder de barganha sobre seu fornecedor estando a aceitar as cláusulas contratuais impostas sem que lhe fosse conferida a possibilidade de discutir seu conteúdo; enfim, encontrar-se-ia revestido com a mesma vulnerabilidade que qualquer pessoa comum se encontraria ao realizar aquele mesmo contrato, apresentando-se, nessa relação de consumo, o mesmo desequilíbrio que se apresentaria se fosse realizado por qualquer outro consumidor-vulnerável.[16]
Além da figura do consumidor padrão o Código de Defesa do Consumidor nos traz a figura do consumidor por equiparação, de forma expressa no § único do art. 2º, art. 17 e art. 29.
Cada um desses artigos aborda uma forma de ofensa ao consumidor mas o que é uma constante é que “em todos ele, o que se percebe é a desnecessidade da existência de um ato de consumo (aquisição ou utilização direta), bastando para incidência da norma, que esteja o sujeito exposto às situações previstas neste Código, seja na condição de integrante de uma coletividade de pessoas (art. 2º, parágrafo único), como vítima de um acidente de consumo (art. 17), ou como destinatário de práticas comerciais, e de formação e execução do contrato (art. 29).
4.2 A criança pode ser consumidora ?
Pelo conceito de consumidor padrão a criança não pode ser consumidora, haja vista que pela definição apresentada de consumidor padrão tem que ser aquela pessoa que adquire o produto ou serviço.
Esse “adquirir” passa necessariamente pelo conceito de contrato e de negócio jurídico e um dos elementos para que esse contrato, esse negócio jurídico tenha validade é que o agente seja capaz de realizá-lo.
No caso específico, a criança, menor de doze anos, é considerada absolutamente incapaz pelo Código Civil e dessa feita não há que se falar em realizar contratos ou negócios jurídicos, já que pelo nosso ordenamento jurídico se isso viesse a ocorrer esse contrato é nulo de pleno direito.
Logo a criança não pode ser considerada como consumidor padrão, porém, poderá ser considerada consumidora por equiparação já que pode sofrer os efeitos das relações de consumo.
4.3 Vulnerabilidade
Ao analisarmos o CDC verificamos no art. 4º, I que o consumidor é vulnerável. Isso decorre do reconhecimento de que o consumidor é a parte mais vulnerável – fraca, da relação de consumo.
Doutrinariamente há divergência com relação às espécies de vulnerabilidade. Assim temos Rizzatto Nunes que reconhece a existência de duas espécies de vulnerabilidade: sendo uma de ordem técnica enquanto que a outra é de cunho econômico, vejamos:
O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação e distribuição de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido. (…)
O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, por via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor. É fato que haverá consumidores individuais com boa capacidade econômica e às vezes até superior à de pequenos fornecedores. Mas essa é a exceção da regra geral.[17]
Cláudia Lima Marques além de nomear a vulnerabilidade técnica e a vulnerabilidade sócio-econômica ou fática, como denomina, apresenta uma terceira forma de vulnerabilidade que se refere ao aspecto jurídico.
Assim, a vulnerabilidade jurídica decorre do desconhecimento dos termos jurídicos e da estrutura jurídica existente nos contratos.[18]
Por sua vez Paulo Valério Dal Pai Moraes nos apresenta seis espécies de vulnerabilidade, vejamos[19]:
– Vulnerabilidade Técnica: decorre do fato do consumidor não possuir conhecimento sobre os produtos/serviços que está sendo colocado no mercado de consumo, ficando dessa forma sujeito aos imperativos do mercado tendo que se sujeitar ao contrato baseado na confiança e boa-fé por parte do fornecedor.
– Vulnerabilidade Jurídica: Essa vulnerabilidade se apresenta em decorrência do consumidor apresentar dificuldades para promover a defesa dos seus direitos, seja na esfera judicial ou meramente administrativa. Como vimos anteriormente, o conceito de vulnerabilidade jurídica para Cláudia Marques Lima difere da conceituação apresentada por Paulo Valério Dal Pai Moraes.
– Vulnerabilidade Política ou Legislativa: Essa vulnerabilidade decorre da falta de organização do consumidor brasileiro, já que são raras ou inexistentes associações ou órgãos que seja efetivamente capazes de influenciar na criação de políticas que venham a frear os abusos nas relações jurídicas. Já os fornecedores dispõem de lobby atuando no Congresso Nacional. Assim, essa disparidade é presente no trâmite das normas que envolve as relações de consumo.
– Vulnerabilidade Psíquica ou Biológica: Existem diversos estímulos que estão sendo utilizados para criar no consumidor o desejo de adquirir o produto ofertado. Assim, por meio de motivação cultivada ou diante dos apelos do Marketing que direcionam para a aquisição de produtos, que nem mesmo o consumidor sabe porque que quer adquiri aquele produto.
– Vulnerabilidade Econômica e Social: Diante da disparidade entre o consumidor e fornecedor, sendo que este, em razão de seu poder econômico impõe ao consumidor, que de regra é inferior a ele, a assinatura do contrato de adesão.
– Vulnerabilidade ambiental: Essa espécie de vulnerabilidade decorre do consumo em massa de nossa sociedade, assim, como o homem está inserido no meio ambiente fica portanto sujeito as diversas alterações ocorridas no meio ambiente em decorrência do uso descontrolado dos recursos naturais ainda existentes. Nas palavras de Miriam de Almeida Souza
“… Uma visão sistêmica do direito do consumidor, em que todos habitam o mesmo planeta, faz deste direito o reverso da moeda do direito ambiental. Ou seja, o ‘consumerismo’ destrutivo do meio ambiente é inerente ao modelo vigente da indústria e agricultura, em que todos têm participação em diversos graus através da sociedade de consumo, e todos sofrem prejuízos biológicos em diversos fraus por causa do abuso do meio ambiente”. [20]
4.4 A vulnerabilidade agravada por ser criança
Como colocamos anteriormente a proteção da criança e do adolescente encontra-se respaldo no art. 227 da Constituição Federal e estamos nos referindo à proteção integral.
Além disso, no art. 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente encontramos o direito ao respeito, abrangendo, dentre outros a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente.
Pelos estudos desenvolvidos recentemente constatou-se que a publicidade é o que faz com que os filhos venham a pedir determinada marca, demonstrando que no Brasil 83% das entrevistadas apontou que adquirem determinadas marcas em decorrência da escolha realizada por seus filhos[21]. Enquanto isso outra pesquisa realizada no Brasil “aponta que as crianças influenciam em 92% das compras de produtos alimentícios, tendo como fatores determinantes para a escolha, em ordem de colocação: a publicidade na televisão, a presença de personagem famoso como referência do produto e a embalagem”[22]
Dessa forma, as crianças e adolescentes são importantes para a definição dos hábitos de consumo dos adultos, seus pais e familiares, num primeiro momento. E independe se esses produtos sejam destinados às crianças ou aos adultos, a influência que é exercida abarca essas duas possibilidades.[23]
Verificando o conceito de vulnerabilidade percebemos que ele se diferencia do conceito de hipossuficente, sendo que podemos considerar todo consumidor como vulnerável, enquanto que a hipossuficiência é atribuída a determinados consumidores em decorrência de sua idade – os idosos, as crianças, os índios, os doentes, os rurícolas, os moradores da periferia. Dessa feita podemos perceber que a vulnerabilidade é um conceito objetivo enquanto que a hipossuficiência é analisada de forma subjetiva.[24]
“A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educados ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal, limitada a alguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os consumidores. A utilização, pelo fornecedor, de técnicas mercadológicas que se aproveitam da hipossuficiência do consumidor caracteriza a abusividade da prática. A vulnerabilidade do consumidor justifica a existência do Código. A hipossuficiência, por seu turno, legitima alguns tratamentos diferenciados no interior do próprio Código, como por exemplo, a previsão de inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII)”.[25]
Como podemos perceber além da característica de vulnerabilidade a criança encontra-se como hipossuficiente já que não apresenta ainda mecanismos de defesa contra as informações oriundas da publicidade direcionada a ela.
4.5 Propaganda, publicidade e publicidade sensível
Doutrinariamente há divergência com relação aos termos publicidade e propaganda.
Para Rizzatto Nunes, propaganda e publicidade são palavras que podem ser usadas como sinônimos[26]. Isso porque na visão desse doutrinador a etimologia dessas palavras no permite isso, já que propaganda vem de propagare ou seja, coisas que devem ser propagadas enquanto que publicidade aponta para a qualidade daquilo que é público ou do que é feito em público.[27]
Analisando a Constituição Federal percebe-se que nossa carta magna não faz distinção entre estes termos e na legislação infraconstitucional também não há distinção entre esses termos.
Por sua vez localizamos o conceito de propaganda na Lei 4.680 de 1965 que no seu art.5º nos trata que propaganda é qualquer forma remunerada de difusão de idéias, mercadorias ou serviços, por parte de um anunciante identificado. Enquanto que quando analisamos o conceito de publicidade nos remetemos à ideia do que é público, e especificamente observamos o princípio da publicidade que se encontra insculpido em nossa Constituição Federal.
Para Carlos Ferreira de Almeida a publicidade é a “informação dirigida ao público com o objetivo de promover directa ou indirectamente uma atividade econômica”[28] ou na visão de Paulo Vasconcelos Jacobina na qual temos a publicidade como sendo a “arte de criar, no público a necessidade de consumir”[29].
Para os especialistas na área de publicidade verifica-se que o fenômeno da publicidade encontra-se relacionada como cinco os objetivos a serem alcançados pelo anúncio publicitário, que são elas:
Em primeiro lugar o anúncio publicitário deve chamar atenção, em seguida despertar o interesse, e com isso estimular o desejo, para criar a convicção da necessidade e com isso induzir a ação desejada.[30]
Assim, o objetivo dessa linguagem é convencer o público a adquirir o produto, a sentir a necessidade de obter aquele produto ou serviço que foi anunciado.
Além do conceito de propaganda e publicidade precisamos conhecer uma classificação específica que é a publicidade sensível.
Cristiano Aguiar, no estudo apresentado em abril de 2010 sobre o tema nos traz o termo “publicidade sensível” que é aquela que pode trazer algum tipo de dano à sociedade, e pode ser classificada em três categorias:
a) Quanto ao produto anunciado: Publicidade sensível nesse caso refere-se àqueles anúncios de produtos possivelmente danosos, como por exemplo, o tabaco e o álcool, entre outros.
b) Quanto ao tipo de mensagem: A publicidade sensível nesse caso é aquela que se utiliza de algum recurso retórico que possa causar um impacto negativo a um segmento da sociedade, como por exemplo quando há um forte apelo à violência ou à sexualidade.
c) Quanto ao público a que se destina: Aqui a publicidade sensível se faz presente quando ela está direcionada ou voltada a grupos que não têm a plena capacidade de análise e entendimento de conteúdos publicitários, encontramos nesse grupo as crianças e os adolescentes.[31]
Com relação ao produto anunciado temos de forma expressa a vedação de que esses produtos, no caso, álcool, tabaco, arma e munições, sejam inseridas publicidade referente a esse tema nas revistas direcionadas ao público infanto-juvenil.[32] O nosso legislador, à época, foi tímido em expressar vedação às demais hipóteses, apresentando assim uma lacuna legislativa, que pode vir a ser suprida pela análise sistemática da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Defesa do Consumidor, em decorrência dos princípios ali apontados.
Assim a publicidade sensível, a direcionada para as crianças e adolescentes, que é a que estamos tratando no presente texto é aquela que traz dano as nossas crianças e aos nossos adolescentes.
Assim, essa forma de publicidade não pode ser veiculada de forma alguma, já que pelo princípio da proteção integral essas crianças e adolescentes precisam estar à salvo de qualquer forma de dano que possa vir a sofrer.
A publicidade tem como objetivo cultivar hábitos de consumo. Conforme a teoria comunicacional do cultivo, quanto mais tempo os indivíduos passam consumindo conteúdos midiáticos, mais propensos eles estão a desenvolver hábitos e costumes que reflitam os valores que estão sendo transmitidos pela mídia.[33]
Como as crianças são pessoas em formação e as crianças brasileiras encontram-se expostas à programação por cerca de 4 horas por dia logo, a inserção dessas informações em nossas crianças é facilmente verificável.
O Conselho Federal de Psicologia nos traz que a publicidade dirigida à criança
As autonomias intelectual e moral são construídas paulatinamente. É preciso esperar, em média, a idade dos 12 anos para que o indivíduo possua um repertório cognitivo capaz de liberá-lo, tanto do ponto de vista cognitivo quanto moral, da forte referência a fontes exteriores de prestígio e autoridade.[34]
Assim, como as crianças e adolescentes estão em processo de formação de seus valores, a sua autonomia encontra-se ainda prejudicada, e eles não conseguem perceber que aquela vontade, aquele desejo que estão sentindo foram plantados, cultivados em sua mente. Sobressair-se na escola, no meio de seus amigos, porque a publicidade disse que ele será um herói se possuir determinado produto e fazer com que os valores sejam trocados o SER pelo TER. E quando ele não tiver aquele produto, ele não será o herói sonhado… não será nada.
E quando esse pai, essa mãe não consegue comprar o produto, acaba existindo entre eles um desentendimento plantando e incentivado por essa publicidade sensível, que acaba por macular a célula base da sociedade que é a família.
Aproveitar-se dessa capacidade reduzida de compreensão da criança e do adolescente, que não consegue perceber o que é realidade, do que é ficção é fazer com que essas crianças sejam manipuladas pela publicidade sensível, principalmente com relação a crianças com menos de 8 anos de idade, que não conseguem perceber a diferença entre a publicidade e a programação infantil. E mesmo quando a criança é um pouco maior, que reconhece a peça publicitária não consegue perceber que aquela vontade nasceu da publicidade, ou seja, que foi induzida por ela – publicidade – e não que tenha nascido de forma espontânea na criança.[35]
4.6 O Princípio da Boa-fé e o Dever de Informar
Dentre eles podemos destacar o princípio da boa-fé.
Considerados por diversos doutrinadores como o princípio basilar do direito do consumidor, e de forma geral, de todo o direito privado. Esse princípio encontra-se expresso no CDC, no art. 4º., III.
Conforme Karl Larenz
O princípio da boa-fé significa que cada um deve guardar fidelidade com a palavra dada e não frustrar a confiança ou abusar dela, já que esta forma a base indispensável de todas as relações humanas.[36]
Atualmente o Código Civil de 2002 adota a dimensão pós-moderna da boa-fé, como já se fazia o Código de Defesa do Consumidor em seu art. 4º, III:
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da CF), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
O Enunciado 27 do CJF/STJ nos traz que:
Na interpretação da cláusula geral da boa-fé objetiva, deve-se levar em conta o sistema do CC e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos.
Essa posição decorrência da tese do diálogo das fontes.
E assim, se posicional Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Acerca desse novo contrato, então – instituto eternamente presente na triangulação básica do Direito Civil, ao lado da propriedade e da família – seria desejável referir, prioritariamente, às denominadas cláusulas gerais, que constituem uma técnica legislativa característica da segunda metade deste século, época na qual o modo de legislar casuisticamente, tão caro ao movimento codificado do século passado – que queria a lei clara, uniforme, e precisa (…) – foi radicalmente transformado por forma a assumir a lei característica de concreção e individualidade que, até então, eram peculiares aos negócios privados. A mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a da boa-fé objetiva nos contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e de desvantagens que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de direito, provavelmente a cláusula da boa-fé objetiva, nos contratos, seja mais útil que deficiente, uma vez que, por boa-fé, tout court, se entende que é um fato psicológico e uma virtude que é moral.
Ainda analisando o Princípio da Boa-fé prevista em nosso ordenamento jurídico temos que o STJ recentemente reconheceu
O direito à informação, abrigado expressamente pelo art. 5º, XIV da Constituição Federal, é uma das formas de expressão concreta do Princípio da Transparência, sendo também corolário do Princípio da Boa-Fé Objetiva e do Princípio da Confiança, todos abraçados pelo CDC (STJ, REsp 586.316, Rel. Min Herman Benjamin, DJ 19/03/09).
O dever de informar é, portanto, uma imposição moral e jurídica da obrigação de comunicar à outra parte todas as características e circunstâncias do negócio e, bem assim, do bem jurídico, que é seu objeto, por ser imperativo de lealdade entre os contratantes.
A informação é fundamental no sistema do consumo. Informação falha ou defeituosa gera responsabilidade. A omissão de informação pode caracterizar publicidade enganosa. É dever do fornecedor fazer chegar ao consumidor, de forma simples e acessível as informações relevantes relativas ao produto ou serviço, Desse modo, o Código de Defesa do Consumidor assegura, expressamente, ao consumidor a informação correta, clara e precisa do preço dos produtos, inclusive para os casos de pagamento via cartão de crédito (STJ, REsp 81.269 Rel. Min. Castro Filho, 2ª Turma, 25/06/01)
Mais recente tal orientação foi reafirmada
Não é razoável que se exclua do conceito de serviço adequado o fornecimento de informações suficientes à satisfatória compreensão dos valores cobrados na conta telefônica. Consectário lógico da consagração do direito do consumidor à informação precisa, clara e detalhada é a impossibilidade de condicioná-lo à prestação de qualquer encargo. O fornecimento da fatura há de ser, portanto gratuito. (STJ, REsp 684.712 Rel. Min José Delgado, 1ª. Turma DJ 23/11/06)
O STJ já decidiu que informação adequada, nos termos do art. 6º., III, do CDC é aquela que se apresenta simultaneamente completa, gratuita e útil, vedada, neste último caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo uso de informações soltas, redundantes ou destituídas de qualquer serventia para o consumidor (STJ REsp, Rel. Min Herman Benjamim, 2ª. Turma, DJ 12/03/09) Se ao fornecedor fosse dado esconder a informação útil (porém potencialmente contrária aos interesses comerciais do fornecedor) no meio de uma multidão de informações inúteis, esvaziado estaria o direito subjetivo do consumidor de ser informado com clareza e exatidão.
Assim, pelo princípio da informação o consumidor tem o direito de receber a informação de forma clara, precisa e verdadeira baseada na boa-fé e na lealdade.
4.7 Princípio da Identificação da Mensagem Publicitária
Esse princípio decorre da previsão expressa no art. 36 do CDC que estabelece que a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor fácil e imediatamente, a identifique como tal.
Esse princípio, também derivado do princípio da boa-fé objetiva, nos estabelece que o fornecedor deverá demonstrar ao consumidor que o que ele está fazendo é uma publicidade, ou seja deve ser claro para o consumidor reconhecer que o que está sendo veiculado é uma peça publicitária.
Quando se trata de crianças, principalmente as menores, como verificamos anteriormente, elas não consegue perceber essa identificação, já que o seu amadurecimento não as permite identificar que se trata de uma mensagem publicitária, dessa forma, toda e qualquer mensagem publicitária direcionada para as crianças ofende esse princípio, e o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor.
4.8 Princípio da Veracidade
Por esse princípio, também inserido no Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo único do art. 36 temos que o fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.
Dessa forma, se o anúncio publicitário para a ideia de que a boneca irá voar sozinha, que a criança conseguirá realizar coisas diferentes por estar usando um determinado produto então, nesse caso há ofensa a esse princípio, já que as características técnicas do produto não condiz com o que foi veiculado.
4.9 Princípio da não-abusividade da publicidade
Por esse princípio temos que a publicidade não pode ser abusiva. O conceito de publicidade abusiva encontra-se expresso no Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo 2º, do art. 38, vejamos:
É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, que incite a violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
Conforme Bruno Miragem temos que o caráter abusivo da publicidade pode ser analisado sob dois ângulos:
1º aspecto: A mera ilicitude, derivada da contrariedade direta a norma, como por exemplo, o art. 3º, IV e 5º. Caput da Constituição que estabelecem expressa vedação à discriminação de qualquer natureza.
2º aspecto: Aquela que contraria à boa-fé ou aos bons costumes, incita comportamento prejudiciais ao indivíduo ou à comunidade. Nessa hipótese nos deparamos com o caráter abusivo que se caracteriza pela violação dos valores social ou juridicamente apreciados e protegidos, bem como se aproveitando da condição de vulnerabilidade agravado do consumidor.[37]
Especificamente a publicidade direcionada ao público infantil, a publicidade sensível, conforme visto anteriormente, acaba se aproveitando da condição de criança e que não tem ainda autonomia para perceber que está sendo cultivado aquele desejo para ter aquele produto ou serviço, assim, o valor jurídico de proteção integral à criança acaba sendo ofendido, simplesmente pelo fato de ter sido direcionado para um público que não consegue distinguir que se trata de publicidade ou não, e ainda que acaba ofendendo a sua integridade – psicológica e social.
4.10 A Publicidade Restrita
Além da publicidade considerada ilícita também devemos nos preocupar com a publicidade considerada restrita, onde a veiculação da publicidade, deve levar em consideração determinados requisitos, ou simplesmente não pode acontecer, como no caso do já citado art. 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente que proíbe a veiculação de publicidade em revista infanto-juvenil que verse sobre bebida alcoólica ou tabaco, dentre outros. Ou exemplo se refere à lei 11.265/2006 que tem por objetivo promover o aleitamento materno dos recém-nascidos e assim veda a promoção comercial dos produtos que contenham fórmulas infantis para lactantes e fórmulas infantis de seguimento para lactentes de nutrientes apresentada ou indicada para recém-nascidos de alto risco, bem como mamadeiras, bicos e chupetas. E podemos encontrar diversos outros exemplos.
Assim, a publicidade sofre restrição em diversos momentos em nosso ordenamento jurídico. Logo não há que se falar em ofensa à liberdade de expressão comercial, já que para a preservação dos demais princípios é necessário que a liberdade de expressão também seja limitada. Afinal, dentro do nosso sistema jurídico todos os princípios devem conviver de forma harmônica, não podendo um se sobrepor ao outro ao ponto ofendê-lo e ele perder a sua força e sua existência.
Se é possível que sejam vedadas publicidade sobre determinados produtos ou serviços em decorrência de um direito maior a ser preservado, então no caso em tela faz-se necessário que a publicidade direcionada ao público infantil também venha a sofrer restrição, com relação ao conteúdo que está sendo veiculado, com o horário que está sendo transmitido o anúncio publicitário, ou o meio em que esse anúncio está sendo transmitido.
5. A ofensa à família
Ao longo de nossa caminhada pudemos verificar que a publicidade direcionada ao público infantil é prejudicial à criança, tanto à sua saúde física, quanto social e psíquica, mas além disso acaba ofendendo à família.
A nossa Carta Magna nos traz que a família é a base da sociedade e que ela tem proteção especial do Estado, conforme o art. 226 da CF/88. Assim, a família goza de proteção especial do Estado devendo portanto ser protegida de qualquer ataque que venha a ofender a família.
Quando nos deparamos com a publicidade que cultivou na criança o desejo de obter aquele produto/serviço e a família não tem condições de arcar com aqueles valores, às vezes, já encontra dificuldade no próprio sustento. Então essa criança – que foi informada pela publicidade que para ser o herói, para ser a garota fashion precisa ter o produto/serviço e a sua família lhe diz não a mensagem que se passa é que a família não quer que aquela criança seja o herói da turma ou a garota fashion da turma de amigos.
Além do que qualquer ofensa à criança é também uma ofensa à sua família. Se o objetivo é proteger a família, proteger a criança a publicidade direcionada à ela e veiculada no horário em que essa criança está assistindo, acaba fazendo um desfavor na formação dessa criança e portanto, acaba prejudicando o desenvolvimento normal de nossas crianças.
6. Considerações Finais
Diante do aqui apresentado verifica-se que a vedação de publicidade direcionada ao público infantil encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico e se isso vier a ocorrer, que é o que se espera, estaremos apenas diante de mais uma hipótese de publicidade restrita.
Dessa feita, analisando o nosso arcabouço jurídico temos que o princípio da proteção integral, consagrado em nossa Constituição Federal, deverá prevalecer sobre a ideia de publicidade direcionada para a criança, já que como vimos qualquer publicidade que assim seja estará ofendendo os princípios específicos do Código de Defesa do Consumidor, especificamente o princípio da boa-fé, o princípio da transparência, o princípio da informação, o princípio da não-abusividade, o princípio da veracidade e o princípio da identificação da mensagem publicitária.
Dessa forma, o projeto de lei , que ora se encontra arquivado, deveria ser reanalisado pelos nossos parlamentares para vedar toda e qualquer publicidade direcionada ao público infantil, de tal sorte a proteger as nossas crianças de fornecedores que as estão manipulando.
A ideia de que os fins – vender o produto/serviço – justifica a manipulação das crianças – meio, não encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico e quando se analisa a ordem econômica percebemos que não podemos sacrificar a ordem social, é necessário que haja um equilíbrio e isso não ocorre diante desses anúncios publicitários. O princípio do melhor interesse do menor nos faz com que seja claro perceber que essas publicidades devem ser banidas, totalmente, e que os nossos publicitários devem se esforçar para conquistar o público adulto sem ter que manipular a criança da família.
A ofensa à proteção integral e à família é clara e não podemos permitir que para que alguns poucos fornecedores possam se desenvolver é necessário sacrificar a família e as nossas crianças. Outros países já perceberam isso, e nós precisamos perceber também.
Informações Sobre o Autor
Renata Malta Vilas-bôas
Advogada, Graduada em Direito pelo Uniceub – Brasília/DF, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, Autora dos Livros: Ações Afirmativas e o Princípio da Igualdade (América Jurídica), Introdução ao Estudo do Direito, Manual de Teoria Geral do Processo (já na sua 2ª. Edição), Metodologia de Pesquisa Jurídica e Docência Jurídica (Editora Fortium) e Hermenêutica e Interpretação Jurídica (Editora Universa). Autora do artigo: Cláusula Compromissória: Sua importância no âmbito da arbitragem in Dez Anos da Lei de Arbitragem: Aspectos Atuais e Perspectivas para o Instituto (Lumen Juris). Professora das disciplinas de Direito Civil, Processo Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre outras, na graduação, também lecionando na Pós-graduação. Membro do IBDFAM e membro da Comissão dos Direitos da Infância e da Juventude do IBDFAM-DF. Ex-Diretora do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília.