Resumo: Da análise do sistema jurídico brasileiro, observa-se a existência do sistema de súmulas como precedentes de julgados ou como vinculantes, na forma estabelecida pela Emenda Constitucional 45 de dezembro de 2004. Todavia, tal sistema não se confunde com o stare decisis do sistema norte-americano onde o precedente é formado como conseqüência de um julgamento ao invés de ser tratado como fator necessário para que se venha a proferir determinado julgado. O sistema brasileiro acaba gerando um sistema de precedentes que autoriza que decisões sejam proferidas motivadas na existência do mencionado enunciado, revelando-se como ofensa à Jurisdição Constitucional e, por conseqüência ao Estado Democrático de Direito.
Sumário: 1. Introdução; 2. Antecedentes históricos; 3. Quanto ao formato da súmula; 4. O modelo do “stare decisis”; 4.1 A Análise do sistema brasileiro frente ao Norte americano; 5. A Discricionariedade; 6. Considerações Finais
1. Introdução
Com a Emenda Constitucional n. 45 foi inserido na sistemática Constitucional Brasileira, por meio do art. 103-A[1], a possibilidade de edição pelo Supremo Tribunal Federal das chamadas Súmulas Vinculantes.
Apenas exemplificando, o Supremo Tribunal Federal, em 30 de maio de 2007, editava os primeiros enunciados de súmulas[2] que cuidaram respectivamente: da ofensa a garantia constitucional por decisão que desconsidera os termos da Lei Complementar n. 110/2001; que tratou do sistema de loterias e bingos e da ampla e contraditório perante o Tribunal de Contas da União.
Na lição de Melo[3] o termo Súmula Vinculante tem a sua origem etimológica no seguinte:
“Súmula (de Summula) expressa o diminutivo, o resumo, a menor parte de summa, que significa soma. A soma é a jurisprudência, no sentido do Civil Law (precedentes reiterados de um tribunal para casos iguais). A súmula vinculante é a mínima parte da jurisprudência dominante da Suprema Corte, que prende ou amarra a obediência dos juizes e tribunais (vinculum = laço, atilho, liame). O termo vinculante provém da expressão latina que marca a Chiesa di San Pietro in Vincoli, mandada erigir por Leão I Magno, no século V, para abrigar parte das correntes que prendiam São Pedro na Prisão Mamertina.”
Tratando como visto de um forma de “guiar” as decisões das instâncias inferiores pela forma estabelecida na jurisprudências dominante da Corte Suprema.
Melo ainda alerta que há uma impropriedade no mencionado art. 103-A da CF/88, posto que este se refere a aprovação de Súmula, quando deveria se referir a aprovação de enunciado, posto que a súmula é perene e o enunciado passível de aprovação, reforma ou cancelamento.
2. Antecedentes históricos
A origem das súmulas vinculantes na visão de Espinosa[4] remonta aos assentos da Casa d`el Rei da Casa de Suplicação ou Mesa Grande, da monarquia absolutista de Portugal. A Lei da Boa Razão datada de 18 de agosto de 1769, marco legislativo do reinado de Dom José, da lavra do Marques de Pombal, trazia em seu parágrafo quarto[5] que a sumula vinculante era o resultado de reiteradas jurisprudências da Casa de Suplicação.
O art. 861 do Decreto-Lei 1.608/39 (Código de Processo Civil de 1939[6]) estabelecia a possibilidade de manifestação do Tribunal sobre assunto que estivesse em divergência com decisões entre suas turmas ou câmara, inaugurando a questão da uniformização de jurisprudência.
Por sua vez o art. 902[7], em sua redação original, do Decreto-lei 5.452/43 (Consolidação das Leis do Trabalho) criava os chamados prejulgados dando a possibilidade da existência previa de decisões formatadas segundo a direção da jurisprudência do Tribunal. O art. 902 teve sua redação original alterado pelo Decreto-Lei 8737/46, que manteve a possibilidade da edição prejulgados, agora sem a necessidade de manifestação do procurador da Justiça do Trabalho. A lei 7.033/82 alterou novamente o referido art. 902.
Neste ínterim é interessante notar que o Supremo Tribunal Federal ao decidir sobre a recepção do prejulgado pela Constituição Federal de 1946 (Representação 946, relator Min. Xavier de Albuquerque) considerou que a referida Constituição e as que a sucederam não recepcionaram o prejulgado, vez que somente o STF teria competência para processar e julgar representação interpretativa de lei. Além disso, a figura do prejulgado mitigava o princípio da separação de Poderes consagrado na Constituição de 1.946[8], Constituição de 1967[9] e na Emenda Constitucional n. 1 de 1969.
Em 1961 foi apresentado anteprojeto de Lei por Haroldo Valadão com a pretensão de se transformar na Lei de Aplicação das Normas Jurídicas. No referido anteprojeto, que não prosperou, era proposto que:
“(…) uma vez afixada interpretação da lei federal pelo Tribunal Pleno, em três acórdãos, por maioria absoluta, torná-la-ia pública, na forma e nos termos determinados no Regimento, em resolução que os tribunais e os juizes deveriam observar enquanto não modificada segundo o mesmo processo, ou por disposição constitucional ou legal superveniente.”
Com o Código de Processo Civil de 1973, nos artigos 476 e 479 fica institucionalizada a chamada incidente de uniformização de Jurisprudência, segundo o qual o Tribunal dará seu entendimento sobre determinado tema com a finalidade de desfazer divergência existente entre seus órgãos fracionários.
A Emenda Constitucional n. 7, de 13 de abril de 1977, instituiu na alínea `l` do inciso I do art. 114 da Constituição Federal de 1967 a competência originária do STF para processar e julgar representação do destinada a interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual.
Segundo Melo neste instituto, revogado pela CF/88, se encontra a “raiz” vinculante da súmula, que convertia o STF em legislador positivo, dado que o Congresso produzia o que ele chama de `quase-lei`, posto que a lei real somente viria da interpretação do STF[10].
A mesma Emenda n.7/77 também incluiu na alínea `o` ao inciso I do art. 119, segundo o qual o STF teria a possibilidade de suprimir instância de julgamento, decidindo em única e última instância questão que tivessem um imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas.
3. Quanto ao formato da Súmula
A súmula, uma que pretende dizer a interpretação sobre determina tema, deve ter um enunciado claro, curto e direto, sob pena da própria interpretação (enunciado normativo da súmula) necessitar de interpretação.
Nos termos do art. 103-A da Constituição Federal de 1988 o enunciado normativo da súmula depende de voto de 2/3 dos Ministros para sua aprovação. Essa configuração gera certo descompasso com a própria finalidade de criação da súmula, isso porque se a súmula pretende dizer sobre questões sujas teses são pacificas, há a necessidade de que a aprovação seja pela unanimidade e não por 2/3. Ora, se a tese é pacifica é a unanimidade dos votos que a pacifica, se por outro lado 1/3 dos ministros diverge da referida tese não há nada de pacifico e, portanto haverá uma contradição essencial no próprio fundamento de criação do instituto.
Há também a necessidade de que o enunciado normativo da Súmula verse sobre polêmica atual e que acarrete grave insegurança jurídica e possibilidade de multiplicação de recursos sobre questões idênticas.
A iniciativa para criação, revisão ou cancelamento de súmula caberá aos legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade.
A súmula tem o objetivo de verificar a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas entre órgãos do Poder Judiciário ou entre esses e a Administração Pública.
Para o caso de descumprimento de súmula poderá ser apresentada reclamação para o STF que poderá anular o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
A possibilidade de reclamação direta ao STF, nos parece, abre nova possibilidade de congestionamento da Corte Suprema, posto se tratar de competência exclusiva do STF e tendo em consideração o tamanho do País e as diferentes possibilidades de interpretação e aplicação da lei pelo Judiciário de primeira e segunda instâncias.
4. O modelo do `Stare decisis`.
Na visão de alguns autores, o sistema da sumula vinculante no Brasil tende a utilizar o sistema do stare decisis do sistema americano.
Este sistema segundo Capelletti[11]:
“Em outras palavras, o princípio do stare decisis opera de modo tal que o julgamento de inconstitucionalidade da lei acaba, indiretamente, por assumir uma verdadeira eficácia erga omnes e não se limita então a trazer consigo o puro e simples efeito da não aplicação da lei a um caso concreto com possibilidade, no entanto, de que em outros casos a lei seja, ao invés, de novo aplicada. Um vez que não aplicada pela Supreme Court por inconstitucionalidade, uma lei americana, embora permanecendo “on the books”, é tomada “a dead law”, uma lei morta (…)”
E ainda continua:
“Mas eis, ao invés, que, mediante o instrumento do stare decisis, aquela “mera não aplicação”, limitada ao caso concreto e não vinculatória para os outros juízes e para os outros casos, acaba, ao contrário, por agigantar os próprios efeitos, tornando-se, em síntese, uma verdadeira eliminação, final e definitiva, válida para sempre e para quaisquer outros casos, da lei inconstitucional: acaba, em suma, por tornar-se uma verdadeira anulação da lei, além disso, com efeito, em geral, retroativo.”
Se é verdade que as idéias de estado passam por Hobbes, Locke e Rosseau e que o sistema da Common Law buscou na idéias de Locke a sua fundamentação, forte na idéia de Judiciário ativo e interventivo, e o sistema de Civil Law buscou em Rosseau a sua inspiração tendo na supremacia da Lei e do Poder do Povo como seu fundamento, a instituição da súmula com ares de imposição constitucional vedando inclusive a produção legislativa sobre tema sumulado nos leva a uma situação hipotética perdida em Locke e Rosseau, algo indefinido.
Todavia, acerca dessa aparente proximidade salienta Streck[12] que em virtude da filiação ao sistema romano-germânico, as súmulas no Direito brasileiro não são precedentes tampouco se regulam pelo mencionado stare decisis.
4.1. A Análise do sistema brasileiro frente ao Norte americano.
Cumpre-se a necessidade de realização de uma análise acerca da utilização das súmulas nos sistemas da common Law e da civil Law, e nesse ínterim podemos trabalhar com os exemplos do sistema norte americano e do sistema brasileiro. Destarte, algumas peculiaridades saltam-nos os olhos de forma a estabelecer sistemáticas totalmente distintas, dando azo inclusive à contextualização de críticas acerca do sistema.
Assim Streck[13] noticia a existência de um perigoso ecletismo. No Direito norte americano as decisões são proferidas para solucionar a situação em concreto. O fato de se gerar o precedente acaba sendo considerado como conseqüência de sua existência. Assim, a decisão proferida deve vir acompanhada de uma fundamentação.
Na construção comparativa, argumenta o autor que no sistema da civil law a decisão deverá ser tomada em consonância com a lei. A crítica que se faz em relação ao sistema brasileiro é voltada para o fato de que no Direito brasileiro, muito embora saibamos da necessidade de motivação dos atos, bem como da necessidade de julgamento conforme a lei basta que a decisão esteja em consonância com uma súmula. Tal construção é corroborada pelo próprio texto legal, conforme se depreende do caput do artigo 557 do digesto processual civil[14].
Estranheza maior nos parece quando da leitura do parágrafo primeiro “A” do dispositivo citado anteriormente, que dá existência à expressão “jurisprudência dominante”, mas sem esclarecer o sentido da mesma[15].
Não obstante às considerações tecidas acerca da súmula vinculante observa-se que mesmo não se tratando da súmula vinculante, tal como discutida e criada pelo Supremo Tribunal Federal, outros enunciados dos Tribunais chamados de súmulas, orientações jurisprudenciais dentre outras podem dar azo a julgamentos desprovido de motivações, acentuando ainda mais a discricionariedade dos órgãos julgadores.
Não se pode, contudo, relegar-se o papel das súmulas no ordenamento jurídico. As mesmas possuem um papel significativo da interpretação das leis. O que deve ser evitado é o papel de padronização do Direito.
5. A Discricionariedade
Na análise comparativa realizada anteriormente entre o sistema de precedentes norte-americano e as súmulas no Direito brasileiro, infere-se que uma das maiores críticas em terra brasilis situa-se no fato de lidarmos com decisões ausentes de motivações, de forma que a existência uma súmula, por si só, já justificaria a emissão de um julgamento.
Tal situação revela a existência de uma absurda discricionariedade, que conforme apontada anteriormente, trata-se de prática autorizada pelo próprio texto legal. O que dizer da autorização para que o juiz julgue de acordo com seu livre convencimento?
Acerca da referida temática Streck[16] cita Ernani Fidelis dos Santos que chega ao extremo de dizer que para assegurar sua imparcialidade o juiz é completamente independente e de que no exercício da jurisdição o mesmo se sobrepõe inclusive à lei.
Tal discricionariedade reiteradamente é trazida em acórdãos até mesmo do Superior Tribunal de Justiça e, de certa forma nem mesmo estranheza nos causa quando continua sendo contemplada no texto do anteprojeto do Código de Processo Civil.
6. Considerações Finais
As considerações tecidas acerca do sistema de precedentes brasileiros e do sistema de stare decisis revelam que em nossa atual sistemática, em completa contraposição ao sistema norte americano faz revelar que nosso julgamento conforme as súmulas alimentam um regime discricionário que, por sua vez, “legitima” a vertente de julgamentos proferidos sem motivação.
Tais julgamentos devem ser enxergados como uma verdadeira afronta à Constituição gerando aquilo que podemos enxergar como um ativismo judicial criador de um verdadeiro paradoxo que compromete o acesso à justiça.
Informações Sobre os Autores
Leonardo de Sá Jannotti
Mestrando em Direito pela UNESA, professor e coordenador do curso de Direito da Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora/MG
Wesllay Carlos Ribeiro
Doutorando em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito pela UNESA, Professor Assistente da Universidade Federal de Alfenas – Campus Varginha UNIFAL-MG