Estado Laico versus direito constitucional à liberdade de crença religiosa – Uma análise crítica acerca da imposição de data e horário de provas, exames e concursos público em colidência com crenças religiosas

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Resumo: A Constituição da República Federativa do Brasil prescreve que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5º, inciso, VI, da CF). O Texto constitucional, disciplina, também, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”(artigo 5º, inciso, VIII, da CF). Ocorre que a Administração Pública não entende afrontar os ditames constitucionais acima mencionados a designação de datas para provas, exames e concursos públicos que colidam com dogmas religiosos. Destarte, é preciso conciliar o caráter laico do Estado com o direito fundamental à liberdade de crença. Esses são os pontos abordados no presente trabalho.


Sumário: 1 – Direito constitucional à inviolabilidade de crença religiosa; 2 – Direito constitucional à proteção de privação de direitos por motivo de crença religiosa; 3 – Caráter laico do Estado brasileiro e sua conciliação com o direito à inviolabilidade de crença religiosa; 4 – Conciliação da conveniência da Administração Pública em dispo a melhor data de provas, exames e concursos públicos com a proteção constitucinal proibição de privação de direitos por motivo de crença religiosa; 5 – Conclusão.


A Constituição da República Federativa do Brasil prescreve que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5º, inciso, VI, da CF).


O Texto constitucional, disciplina, também, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”(artigo 5º, inciso, VIII, da CF).


Conforme se pode depreender dos postulados constitucionais acima aludidos, o nosso Estado Democrático de Direito assegura como um de seus valores fundamentais a pluralidade religiosa e o livre exercício dos cultos religiosos.


Não se pode tolher direitos ou impor obrigações a quem professe qualquer espécie de religião, sendo que a imposição de data e horário de provas, exames e concursos públicos, em colidência com a crença religiosa de qualquer pessoa, afronta direitos fundamentais insculpidos nos incisos VI e VIII do artigo 5º de nossa Carta Magna.


Frisa-se que os direitos fundamentais acima mencionados estão protegidos pela cláusula da imutabilidade prevista no artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF, constituindo-se, pois, em verdadeiros pilares da República Federativa do Brasil.


O princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, mais do que norma positivada no artigo 5º, § 1º, da CF, constitui-se em norma de hermenêutica constitucional que visa privilegiar os direitos humanos, dando-lhes a maior eficácia possível.


Segundo o abalizado magistério de Gomes Canotilho, o princípio da máxima efetividade “é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”[1]


Adverte, também, Carlos Maximiliano que: “o Código fundamental tanto prevê no presente como prepara o futuro. Por isso ao invés de se ater a uma técnica interpretativa exigente e estreita, procura-se atingir um sentido que tornem efetivos e eficientes os grandes princípios de governo, e não o que os contrarie ou reduza a inocuidade.”[2]


Não serve como escusa para a Administração Pública o argumento de que não se pode privilegiar determinados estudantes, concedendo-lhes horário próprio para realização de prova, em desfavor dos demais candidatos.


O argumento acima apontado, corriqueiramente utilizado pela Administração Pública para negar os legítimos pedidos de alteração de datas ou horários de provas a candidatos que professem religião cujos dogmas determinem o resguardo ao sábado, em verdade, viola a isonomia, pois trata de forma igual pessoas que professam religiões diversas e, portanto, encontram-se em situações distintas.


Nesse diapasão, oportuno trazer a lume os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello ao tratar sobre a isonomia, assinalando que: “não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações sem ofensa à isonomia. Também não é suficiente o poder-se argüir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário”[3].


Nessa ótica, plenamente amparado pela Constituição, no artigo 5º, incisos, VI e VIII, o discrímen utilizado para diferenciar a situação dos candidatos em provas, exames ou concursos públicos que professem religião cujos dogmas determinem o resguardo ao sábado, com relação aos demais candidatos que realizarão esse hipotético certame e que não professem religião que possua tal dogma.


Destarte, para que não haja  transtorno à Administração Pública e aos demais candidatos, é recomendável que as provas, exames ou concursos públicos não sejam realizadas em dias ou em horários que, de antemão, já se saiba que confronta determinado dogma religioso.


Não se pretende subordinar o Estado e à Administração Pública a determinado dogma religioso, mas sim usar de cautela e de bom senso para que se concilie princípios fundamentais da Constituição da República, tais como a liberdade de crença religiosa, o acesso aos níveis mais elevados do ensino e o livre acesso aos cargos públicos.


Como medida alternativa, caso não seja possível a alteração da data de realização da prova, exame ou concurso público, afigura-se-nos que a melhor medida a ser tomada pela Administração Pública será a alteração de horário para a realização das provas pelos candidatos em situação distinta dos demais, disponibilizando sala própria, com monitor, para que o início da realização das provas seja compatível com a doutrina religiosa seguida pelo candidato. Dessa forma, não se causará prejuízo para a realização das provas, para o candidato em situação excepcional em razão de sua doutrina religiosa, nem aos demais candidatos do certame.


Vale ressaltar que vários precedentes jurisprudenciais vem acolhendo os entendimentos adotados neste trabalho, prestigiando o direito fundamental de liberdade de crença religiosa, conforme se pode observar pelas ementas ora colacionadas:


“PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. INCISO VI DO ARTIGO 5º DA CF/88. VESTIBULANDOS. ADVENTISTAS DO 7º DIA. LIMINAR PARA GARANTIR A PARTICIPAÇÃO EM EXAME VESTIBULAR. PROVAS REALIZADAS EM HORÁRIO ESPECIAL. PRESENÇA DOS REQUISITOS CONSTANTES NO INCISO II DO ARTIGO 7º DA LEI Nº 1.533/51. CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR. I – Adventistas do 7º dia. Vestibular realizado em horário compatível com os preceitos religiosos dos impetrantes/agravados. Presença de relevância na fundamentação jurídica sustentada. Precedentes desta Corte Federal (V.g. AMS 1997.01.00.040137-5/DF, publicado em 28.09.2001). II – No Agravo de Instrumento deve ser aferida a presença dos pressupostos aptos a justificarem a concessão da medida liminar, o que ocorre in casu. Logo, neste pormenor, não merece censura a decisão recorrida. III – Agravo de Instrumento desprovido.(TRF 1ª Região, Segunda Turma, AI 2001.01.00.050436-4/PI, de minha lavra, DJ 09/09/2002, p.41)


“PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. INCISO VI DO ARTIGO 5º DA CF/88. VESTIBULANDOS. ADVENTISTAS DO 7º DIA. LIMINAR PARA GARANTIR A PARTICIPAÇÃO EM EXAME VESTIBULAR. PROVAS REALIZADAS EM HORÁRIO ESPECIAL. PRESENÇA DOS REQUISITOS CONSTANTES NO INCISO II DO ARTIGO 7º DA LEI Nº 1.533/51. CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR. I – Adventistas do 7º dia. Vestibular realizado em horário compatível com os preceitos religiosos dos impetrantes/agravados. Presença de relevância na fundamentação jurídica sustentada. Precedentes desta Corte Federal (V.g. AMS 1997.01.00.040137-5/DF, publicado em 28.09.2001).


MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. INCISOS VI E VIII DO ARTIGO 5º DA CF/88. ADVENTISTAS DO 7º DIA. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA PARA ASSEGURAR A REALIZAÇÃO DA PROVA EM HORÁRIO ESPECIAL. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Candidato/impetrante membro da Igreja Adventista do 7º dia, que tem como um de seus pilares a guarda do sábado, restando ferido seu direito constitucional de liberdade de consciência religiosa, previsto nos incisos VI e VIII do art. 5º da CF, se imposta a realização da prova nesse dia. Além do mais, o condutor monocrático ao deferir a liminar determinou que os impetrantes chegassem no horário normal de realização das provas e ficassem incomunicáveis em sala diversa dos demais candidatos até às 18 horas, quando lhe seria facultada a realização da prova objetiva 1, com término às 22h do mesmo dia. (grifou-se). 2 Não afeta direito de terceiro ou o interesse público, permitir a realização de prova de concurso público no dia seguinte àquele que, por imposição de fé religiosa, não pode participar de atividades civis, profanas, no dia do sábado. Precedente da Corte Especial: MS 2007.01.00.043148-4/DF, Rel. Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, Corte Especial,e-DJF1 p.22 de 05/05/2008. 3. Apelação e remessa, não providas. (APELAÇÃO NO MANDADO DE SEGURANÇA Nº. 2004.34.00.008688-1/DF).


MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. INCISOS VI E VIII DO ARTIGO 5º DA CF/88. ADVENTISTAS DO 7º DIA. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA PARA ASSEGURAR A REALIZAÇÃO DA PROVA EM HORÁRIO ESPECIAL. SEGURANÇA CONCEDIDA. I – Candidato/impetrante membro da Igreja Adventista do 7º dia, que tem como um de seus pilares a guarda do sábado, restando ferido seu  direito constitucional de liberdade de consciência religiosa, previsto nos incisos VI e VIII do art. 5º da CF, se imposta a realização da prova nesse dia. II – Não afeta direito de terceiro ou o interesse público, permitir a realização de prova de concurso público no dia seguinte àquele que, por imposição de fé religiosa, não pode participar de atividades civis, profanas, no dia do sábado. III – Mandado de Segurança concedido, confirmando a medida liminar anteriormente deferida. (MS 2007.01.00.043148-4/DF, Rel. Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, Corte Especial,e-DJF1 p.22 de 05/05/2008.).


À guisa de conclusão, parafraseando Daniel Sottomaior[4], ressaltamos que “o Estado laico deve ser um árbitro que garante a todos a liberdade religiosa plena”, haja vista que “laico significa ser a favor do respeito pleno a todas as religiões, sem exceção, assim como à ausência delas”, há que se compatibilizar, portanto, o caráter laico do Estado brasileiro com o direito fundamental à liberdade de crença religiosa, pois, consoante determina a Constituição da República, ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.


 


Notas:

[1]  J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e teoria da Constituição, 6ª edição, p. 227

[2]  Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19ª edição, p. 250.

[3]  Celso Antônio Bandeira de Mello.  O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ª edição, p. 43.

[4]  SOTTOMAIOR, Daniel. O Estado verdadeiramente laico e a retirada de símbolos religiosos de repartição pública. Jus Navegandi, Teresina, ano 13, n. 2260, 8 set. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrona/texto.asp?id=13465>. Acesso em: 11 jan. 2010.


Informações Sobre o Autor

Jair Soares Júnior

Defensor Público Federal, chefe da Defensoria Pública da União no Mato Grosso do Sul, pós-graduado em Direito das Relações Sociais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público/MS e pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco/RJ