Estado, mídia e a criminalização dos movimentos sociais e sindicais


Em reportagem na edição 492 da revista Carta Capital, o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, manifestou que “há um sentimento generalizado de que todo trabalhador é inimigo”. Tal constatação decorre de uma crescente tentativa de criminalização dos movimentos sociais e sindicais por parte de setores conservadores de nossa sociedade, traduzido no descrédito do sistema democrático para com o povo brasileiro, resultante do ideário neoliberal aplicado em nosso país desde a década de 90, que prega o Estado Social Mínimo, porém um Estado Penal Máximo.


A ação da Polícia contra os movimentos populares e sindicais lembra, por vezes, os piores momentos do Regime Militar. Em 14 de março último, sete professores, entre eles três dirigentes do CPERS, foram detidos pelo Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar por “desacato à autoridade” durante uma manifestação pacífica no Centro Administrativo do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. O ato reivindicava reajuste do piso salarial da categoria e questionava medidas de enturmação e fechamento de escolas. Os manifestantes foram liberados após acordo entre o Governo do Estado e o Comando do Policiamento.


Em Confresa (MT), 14 trabalhadores foram presos pelo Polícia Militar daquele Estado em 27 de Junho de 2006, em protesto pelo atraso no pagamento de salários a 417 pessoas que laboravam no cultivo de cana para uma Usina de propriedade do grupo EQM, do empresário Eduardo de Queiroz Monteiro. Conforme o noticia o site www.reporterbrasil.com.br, o padre Alex Venâncio Gonçalves, que visitou os detidos na Delegacia, confirma que muitos deles têm escoriações nos braços, nas costas e no rosto: “Eles contaram que foram arrastados e pisados pela polícia.” Os manifestantes foram enquadrados no artigo 202 do Código Penal, qual seja, “invadir ou ocupar estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, com o intuito de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho, ou com o mesmo fim danificar o estabelecimento ou as coisas nele existentes ou delas dispor”, com pena de reclusão de um a três anos, e multa.


O incidente mais grave registrado recentemente foi a morte do sindicalista Jair Costa, representante dos trabalhadores na indústria coureiro-calçadista de Sapucaia do Sul (RS), durante ato público no dia 30 de Setembro de 2005, em defesa da manutenção de postos de trabalho do setor. Após o fim do protesto, Policiais Militares partiram para cima dos manifestantes. Jair foi imobilizado, tendo sido asfixiado até a morte. Pelo ocorrido, o Governo do Estado foi denunciado pela CUT à Organização Internacional do Trabalho, por atentar contra o direito de livre manifestação dos trabalhadores. Até hoje, ninguém foi julgado pelo crime.


Neste processo de marginalização do trabalhador, chama a atenção a atuação da Grande Imprensa, que para Emir Sader, representando um “monopólio da informação”,


“é hoje a negação da democracia. Reduzidos ao tilintar dos cifrões dos seus patrocinadores, via de regra bancos e cartéis transnacionais, meia dúzia de famílias detentoras desses meios prostitui a informação, e a transforma em mercadoria, numa violação à verdadeira liberdade de imprensa.”


No dia 09 de abril último, o Jornal Nacional apresentou tendenciosa reportagem referente à ocupação de linhas férreas da Vale, em um ato de protesto contra a privatização da empresa, em 1997, que inclusive está sendo questionada judicialmente, pelo exíguo valor pago pelos ativos da mineradora. Como constatou o jornalista Marcelo Salles, no artigo “Os novos terroristas da mídia”, publicado em 10 de abril de 2008 no saite www.observatoriodaimprensa.com.br:


 “Nos dois minutos e vinte e quatro segundos da matéria busca-se a criminalização dos camponeses; para tanto, imagens e palavras são cuidadosamente articuladas para transmitir ao telespectador a idéia de que os militantes do MST é quem são os responsáveis por todo o medo que ronda os paraenses.”


Tais atos estão vinculados à jornada de protestos que o Movimento realiza desde 1997, batizado como “Abril Vermelho”, com o fim de chamar a atenção da opinião pública para os conflitos no campo e a situação da causa da reforma agrária no país. Pretende também lembrar o Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, quando 19 colonos foram mortos pela Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado do Pará.


O “Abril Vermelho” também é alvo da grande mídia. A edição de 17 de abril do “Estado de São Paulo”, publicou “MST radicaliza ´abril vermelho` e invade até área do Exército” .Tal ocorreu em Santa Catarina. A área é reivindicada para fins de Reforma Agrária desde os anos 60. Porque ocupar terreno militar é “radicalizar”? As Forças Armadas são instituições nacionais, permanentes e regulares, sob a autoridade do Presidente da República, conforme prevê o artigo 142, caput da Constituição de 1988. Desta forma, seus bens são de propriedade da União. Outras áreas públicas já foram ocupadas, com o fim de realização de protesto pacífico, sem que este fosse considerado um “ato radical”. Visível a intenção de enfatizar negativamente a manifestação, dando uma conotação marginal (crime contra a Segurança Nacional?) à ação.


O Editorial do jornal “O Globo”, em 05 de maio de 2007, não podia ser mais descarado neste sentido:


“As ações do MST exigem a presença enérgica e duramente repressiva do poder público. Isso cabe basicamente às forças estaduais, mas em qualquer hipótese é o Estado brasileiro, como um todo, que não pode tolerar esse desafio. Muito menos deve o governo persistir no aparelhamento de órgãos oficiais, e ainda concedendo financiamentos a grupos cuja atividade é, cada vez mais, abertamente criminosa”.


A reiterada aplicação da Lei Penal aos movimentos reivindicatórios é preocupante. “Questão social é caso de polícia”, já dizia o presidente Washington Luis, no contexto da Crise de 1929. Numa análise mais profunda, o começo do grande fosso social de nosso país data de 1532, pela forma de colonização implementada pela Coroa Portuguesa, que dividiu o território que lhe cabia em 14 Capitanias Hereditárias e 15 Lotes, e distribuídas a 12 donatários, oriundos da pequena nobreza lusitana. Desse processo, obviamente, foram alijados os índios, que já habitavam essa terra, e representavam uma população estimada entre 2 e 3 milhões de habitantes.


Quinhentos anos depois, cerca de trezentos proprietários detém uma área igual aos Estados do Paraná e São Paulo. 1,7% das propriedades rurais do país são latifúndios (mais de mil hectares), e ocupam 55,0% das terras cultiváveis, de acordo com pesquisa realizada pelo INCRA (disponível em http://www.incra.gov.br/arquivos/0142901395.pdf).


Dados de 2006 demonstram que 50% da renda do país está na mão dos 10% mais ricos. Aos 90% mais pobres, resta sobreviver com seus parcos salários, pensões ou programas assistenciais do Estado (estes ainda questionados pelas classes mais abastadas, que os chamam de “gorjeta”).


O direito à resistência é legítimo. Norberto Bobbio ensina que “a resistência compreende todo tipo de ruptura contra a ordem instituída, que põe em crise o sistema pelo fato de produzir-se, como acontece em um tumulto, uma sublevação, uma rebelião, uma insurreição, até o caso limite da revolução” (apud Carvalho, Salo. Penas e Garantias: 2ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, página 242). Na Declaração Universal dos Direitos Humanos encontramos a legitimação dele no prólogo: “Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.


O Estado brasileiro não pode se curvar à regra nefasta de neutralização via sistema penal das classes trabalhadoras organizadas. Tem por dever respeitar direitos e garantias individuais e sociais, bem como buscar os objetivos fundamentais da República constitucionalmente previstos: garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


À imprensa cumpre mediar o fato jornalístico ao leitor, não necessariamente de forma imparcial (a neutralidade é uma postura ideológica impossível, ao nosso entendimento), mas atendendo aos Princípios da Cidadania, da Dignidade da Pessoa Humana e do Pluralismo Político, eleitos como fundamentais à República Brasileira. Sua função de expor o pensamento e a opinião é assegurada pela mesma Declaração que garante o direito aos grupos discordantes se mobilizarem para reivindicar.


E ao povo, duplamente vitimado tanto pela visão paleojurídica do sistema penal como instrumento de controle das massas, como pela atuação oligopolista e corporativa da grande mídia, cabe elaborar um raciocínio crítico acerca da realidade de seu país. Do mais humilde bóia-fria ao mais graduado executivo de empresa multinacional, temos que lutar pela valorização do trabalhador, pois é o esforço conjunto de todos que constrói e desenvolve um país.



Informações Sobre o Autor

Vicente Cardoso de Figueiredo

Advogado, Especialista em Direito Penal e Processual Penal


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