1. Introdução
A discussão a respeito da revisão contratual por excessiva onerosidade apresenta-se relativamente nova nos sistemas jurídicos que serão analisados.
A revisão contratual pode-se dar por dois motivos: quando prestações excessivamente onerosas são levadas ao contrato, para um dos contraentes, no momento de sua formação, ou quando fatores supervenientes à contratação tornam prestações, anteriormente ajustadas, excessivamente onerosas para uma das partes. Em ambos os casos, a revisão do negócio visa a instaurar o equilíbrio contratual.
A revisão contratual por excessiva onerosidade no momento da contratação está contida nos ordenamentos contratuais contemporâneos, mas possui origem romana e remete seus estudiosos ao império de Justiniano, onde fora tratada de forma bem mais simples do que é em vários sistemas atuais.
Já a revisão contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação é formulação mais complexa e, em vários aspectos, consta positivada em codificações atuais de maneira revisitada, pois, em seu nascedouro, apresentava-se diferentemente. Sua origem remonta à Idade Média, quando surgiu, pela formulação de Andrea Alciato, com a denominação de cláusula rebus sic stantibus, que pode ser traduzida como estando assim as coisas. [1]
Posteriormente, a doutrina moderna chamou a cláusula de Teoria da Imprevisão, e desenvolveu várias digressões da teoria da modificação contratual baseada na imprevisibilidade dos acontecimentos supervenientes que geravam excessiva onerosidade para um dos contraentes.[2]
No mundo jurídico contemporâneo, já há previsão legal da revisão contratual por excessiva onerosidade posterior à contratação independente da imprevisibilidade do fato desencadeador da referida onerosidade.
Entre as legislações, objeto do estudo comparativo, estão o Código Civil Brasileiro de 2002, doravante (CCb/2002) e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor Brasileiro de 1990, doravante (CDCb/1990).
O CDCb/1990 merece uma contextualização pormenorizada. Trata-se de legislação, como o seu próprio nome indica, protecionista de uma parte contratual que se afigura apenas nas relações de consumo e cuja vulnerabilidade é reconhecida no mercado, como preconiza o art. 4º, I, da referida lei brasileira. A Constituição da República Federativa do Brasil, doravante (CRb/1988), previu, no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a elaboração de um código de defesa do consumidor. Mais: a CRb/1988 tratou a defesa do consumidor como direito fundamental previsto no art. 5º, XXXII, nos seguintes termos: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.” Além disso, a defesa do consumidor é princípio da atividade econômica, na forma do art. 170 da CRb/1988: “ A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado os seguintes princípios (…) V – defesa do consumidor.”
Em favor do consumidor – parte vulnerável da relação ajustada com o fornecedor – qualquer tipo de onerosidade poderá ser afastada na forma do art. 6º, V, que, concomitantemente, cuida da modificação contratual em caso de lesão e da revisão contratual por excessiva onerosidade posterior à contratação.
A revisão contratual positivada pelo CCb/2002, é categoria nova em face do CCb/1916, que vigorou até o final de 2002 e não fez referência a ela.[3]
Para finalizar, cumpre esclarecer que foram eleitas, como variáveis deste estudo, os seguintes tópicos: categorias jurídicas associadas à previsão normativa da revisão contratual por excessiva onerosidade, forma de disciplina das categorias jurídicas associadas à previsão normativa da revisão contratual por excessiva onerosidade, e efeitos acarretados pelas distintas categorias. Esse último item contém sub-tópicos que investigam o grau de subjetivismo ou de voluntarismo das categorias apontadas e o nível da conservação do contrato nelas.
2. Categorias jurídicas associadas à previsão normativa da revisão contratual por excessiva onerosidade:
Apesar de, em cada ordenamento jurídico, as categorias jurídicas associadas à previsão normativa da revisão contratual por excessiva onerosidade receberem denominações diferentes, consegue-se entrever, na essência, aproximações entre elas.
A revisão contratual poderá ocorrer: a) se a excessiva onerosidade se deu no momento da formação do contrato; b) se a excessiva onerosidade se deu no momento da execução do contrato e se as circunstâncias que a ocasionaram eram imprevisíeis; c) se a excessiva onerosidade se deu no momento da execução do contrato, independente da imprevisibilidade das circunstâncias que a ocasionaram.
O CCb/2002 prevê as hipóteses a e b. O CDCb/ prevê as hipóteses a e c.
3. Forma de disciplina das categorias jurídicas associadas à previsão normativa da revisão contratual por excessiva onerosidade:
i. Solução apontada pelos ordenamentos analisados para o caso de excessiva onerosidade no momento da contratação
Para o CCb/ 2002, se o advento da prestação manifestamente desproporcional ocorre na formação do contrato, ele poderá ser modificado com base na lesão contratual, conforme disposto no § 2º do seu art. 157.
Para o CDCb/1990, na forma disposta pelo art. 6º, V, o contrato será modificado por lesão contratual se cláusulas contratuais estabelecerem prestações desproporcionais.
ii. Solução apontada pelos ordenamentos analisados para o caso de excessiva onerosidade posterior à contratação com base na Teoria da Imprevisão
Para o CCb/2002, se a onerosidade excessiva ocorre na execução do contrato, por motivos supervenientes à contratação, o contrato poderá ser revisado ou resolvido com base na Teoria da Imprevisão disciplinada pelos arts. 317 e 478. O contrato ainda poderá ser modificado conforme disposição do art. 479, por oferecimento da parte que não sofre onerosidade excessiva.
Em nenhum momento, o CDCb/1990 cogita da imprevisibilidade como requisito necessário à revisão contratual ocasionada por excessiva onerosidade posterior à contratação.
iii. Solução apontada pelos ordenamentos analisados para o caso de excessiva onerosidade posterior à contratação sem base na Teoria da Imprevisão
Para o CDCb/1990, na forma disposta pelo art. 6º, V, o contrato será revisado pela excessiva onerosidade superveniente à contratação, dispensando o requisito da imprevisibilidade dos fatos que ocasionaram a onerosidade excessiva.[4]
4. Efeitos acarretados pelas distintas categorias
i. Excessiva onerosidade na formação do contrato
Ao tratar de onerosidade na formação do contrato, o art. 157 do CCb/2002 dispõe:
“Ocorre lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
§ 1º Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2º Não se decretará a anulação do negócio se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”
Diante do exposto, averigua-se como efeito que só haverá modificação contratual na hipótese do § 2º, ou seja, se for oferecido suplemento pela parte favorecida, ou se ela concordar com a redução do proveito. Caso contrário, o efeito ao qual o art. 157 alude para o caso de lesão contratual é a anulação do negócio.[5]
Mas o art. 6º, V, do CDCb/1990, dispõe que é direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, cujo efeito é a revisão contratual em favor do consumidor se o contrato contiver prestações desproporcionais em seu desfavor.
ii. Excessiva onerosidade superveniente à formação do contrato baseada na Teoria da Imprevisão
O art. 317 do CCb/2002 dispõe:
“Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor das prestações devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
Como efeito, nota-se que poderá haver revisão contratual desde que provada a imprevisibilidade da desproporção entre as prestações, a pedido da parte que sofre essa desproporção manifesta.
Já o art. 478 do CCb/2002 dispõe: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
Complementando o art. 478, art. 479 dispõe: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.”
O efeito do art. 478 é dar ao excessivamente onerado o direito de decidir pelo pedido da resolução do contrato ao invés da revisão, prevista no art. 317. E o efeito do art. 479 é permitir que, mesmo em casos de pedido de resolução contratual pelo contraente excessivamente onerado, o outro tente evitá-la, propondo modificar eqüitativamente as condições contratuais.
O que se observa é que o onerado por prestação que se tornou desproporcional na execução do contrato pode pedir sua revisão, com base no art. 317 do CCb/2002. Todavia, ao excessivamente onerado por circunstâncias supervenientes à contratação também é conferida a opção de requerer judicialmente a resolução do contrato, na forma do art. 478. No entanto, até esse requerimento judicial pode ser obstado pela parte que não sofre a excessiva onerosidade se, na forma do art. 479, ela se oferece para modificar eqüitativamente as condições do contrato.
iii. Excessiva onerosidade superveniente à formação do contrato que não se baseia na Teoria da Imprevisão
O CDCb/1990, em seu art. 6º, V, dispõe que é direito do consumidor a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
O efeito desse dispositivo é dar ao consumidor o direito de requerer o revisionismo contratual se fatos supervenientes tornarem a prestação contratada, ao longo da execução negocial, excessivamente onerosa.[6]
4.1 – O grau de subjetivismo ou de voluntarismo das categorias analisadas[7]
i. Excessiva onerosidade na formação do contrato
Relata-se que a lesão é um instituto jurídico que remonta ao Direito Romano:[8] “na fase imperial do ius romanum é que se aponta o monumento fundamental do instituto da lesão.”[9]
Relaciona-se o surgimento da lesão com dois fragmentos do Código do Imperador Justiniano, que faziam menção a duas Constituições, de Diocleciano e Maximiliano,[10] prendendo-se, especificamente, a um texto que, ao responder consulta realizada por alguém chamado Lupos, criava o que hoje se chama de lesão objetiva.[11]
O critério para se verificar a ocorrência da laesio enormis no Direito Romano, no período Justineaneu, era objetivo:[12] se a venda fosse efetuada por quantum menor que a metade do valor do bem, estaria configurada a lesão, que daria ao lesado o direito de rescindir o contrato, obtendo de volta a coisa, ou de receber o seu valor restante.[13]
Contemporaneamente, o CCb/2002 trata da lesão de maneira subjetiva, pois ela só ocorre e produz seus efeitos, na forma do art. 157, se dois elementos subjetivos – a premente necessidade ou a inexperiência do lesado – forem constatados.
De maneira oposta e mais próxima das raízes romanas da lesão, o CDCb/1990 cuida dela de maneira objetiva. Assim, o art 6º, V, do CDCb/1990 prevê a modificação contratual em favor do consumidor por onerosidade presente na formação do contrato se as cláusulas contratuais estabelecerem prestações desproporcionais. Não há um elemento subjetivo na hipótese analisada. Basta comprovar a desproporcionalidade entre as prestações negociais e a lesão estará presente para que o consumidor possa, por meio dela, modificar o contrato.[14]
Verifica-se que o CCb/2002 necessita de elementos subjetivos para configurar excessiva onerosidade na formação do contrato. Para configurar a lesão, na forma do CDCb/1990, basta a comprovação de um elemento objetivo: a excessiva onerosidade na formação do contrato.
O CDCb/1990 possui uma regulamentação cujo objetivo precípuo é defender o consumidor. Trata-se de lei protecionista da parte mais fraca nas relações contratuais travadas com o fornecedor. Para que o consumidor supere sua vulnerabilidade na relação se consumo, o CDCb/1990 intervém para tentar instituir uma igualdade material numa relação de mercado em que a desigualdade entre ambas as partes é evidente. Já que, no âmbito econômico e social, o consumidor apresenta-se mais frágil do que o fornecedor, que exerce a iniciativa privada segundo as leis do mercado, a CRb/1988 elevou a defesa do consumidor à categoria de princípio fundamental da República com o objetivo de lhe oferecer situação jurídica privilegiada, por meio do implemento da igualdade material nas relações consumeristas. Nesse sentido, a interpretação do CDCb/1990 à luz da CRb/1988 ocorre sem maiores discussões, afinal, o legislador constituinte previu a criação de um código para o consumidor e deu a ele a titularidade de um direito subjetivo de índole fundamental. Observa-se que, na maioria das vezes, os princípios e as regras do CDCb/1990 encontram abrigo nos dispositivos as CRb/1988, afinal, ela foi a responsável pela criação dele, que se inspira nos valores dela.
ii. Excessiva onerosidade superveniente à formação do contrato baseada na Teoria da Imprevisão
A previsibilidade ou não de um acontecimento posterior à contratação, que vá desequilibrar o sinalagma contratual, também relaciona-se com o valor atribuído à vontade manifestada pelo contraente, ou seja, com o grau de voluntarismo, pelo qual o ordenamento jurídico opta em casos de desequilíbrio contratual.
Se o ordenamento apega-se mais ao princípio da autonomia da vontade, a previsibilidade do acontecimento ulterior à contratação, que gerou desequilíbrio contratual, será requisito essencial para os efeitos de resolução ou revisão. [15]
Por outro lado, quanto menos o ordenamento se apega à imprevisibilidade de um acontecimento pós-contratação, que cause desproporção entre as prestações antes ajustadas – para possibilitar sua resolução ou revisão – mais significa que deu proeminência ao princípio do equilíbrio contratual.
No CCb/2002, o art. 317 possibilita a correção de um desequilíbrio contratual judicialmente, se sobrevier desproporção manifesta por motivos imprevisíveis. Isto significa que se dá à vontade declarada contratualmente grande valor. Nesse caso, o revisionismo contratual ocorrerá porque, ao emitir sua vontade, o contratante prejudicado pela onerosidade superveniente à formação do contrato, não previa este acontecimento e só por isso contratou.
Da mesma forma, o art. 478 do CCb/2002 não prescinde de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários para o requerimento da resolução do contrato. Isto significa que, mais que imprevisíveis, os acontecimentos desencadeadores da onerosidade superveniente à formação do contrato devem estar fora da órbita do ordinário. Desse modo, como a vontade manifestada contratualmente não podia prever o imprevisível, quiçá o extraordinário, há razão para o contrato ser resolvido. Todavia, se a outra parte oferecer-se para modificar eqüitativamente as condições do pacto na forma do art. 479[16], ele poderá ser alterado.
Se os arts. 478 e 479 dispõem que, em princípio, o que se pode pleitear, quando em estado de excessiva onerosidade, é a resolução do contrato, dependendo do alvedrio do contraente não-onerado em excesso propor a modificação contratual, o art. 317 dá à parte prejudicada a possibilidade de pedir, diretamente ao juiz, a revisão contratual. Num primeiro momento, pode parecer que há uma antinomia entre o enunciado normativo do art. 317 e os dos arts. 478 e 479 do CCb/2002. Mas, por meio da metodologia civil-constitucional, essa aparente antinomia se desfaz. Numa leitura do CCb/2002, à luz dos princípios da CRb/1988, o contraente excessivamente onerado só vai usar da hipótese do art. 478 quando preferir a resolução do contrato à sua revisão, já que, se preferi-la, possui a via do art. 317. E o art. 479 deve ser utilizado apenas pela parte que não sofre a excessiva onerosidade se, não satisfeita com o pedido de resolução, tomar a dianteira a fim de modificar eqüitativamente as condições do contrato, conservando-o.
Como a CRb/1988 elegeu a proteção da dignidade da pessoa humana em seu art. 1º, III, a busca da solidariedade social, na forma do art. 3º, I, além da igualdade em sentido substantivo, a despeito das desigualdades sociais de fato, na forma do mesmo art. 3º, III e IV, como princípios fundamentais da CRb/1988, o artigo que deve guiar, prioritariamente, a interpretação da revisão contratual de pactos de natureza civil não abarcados pelo CDCb/1990 é o art. 317 do CCb/2002.
O princípio da dignidade da pessoa humana é compatível com a busca do equilíbrio contratual pela parte que sofre a excessiva onerosidade, numa atitude ativa e não passiva, de esperar do contraente que não sofre a excessiva onerosidade o oferecimento da possibilidade de revisão, na forma do disposto no art. 479 do CCb/2002. Ademais, os princípios da igualdade substancial e da solidariedade social possibilitam que a vítima do desequilíbrio contratual os conclame em seu próprio benefício, a fim de destituí-la de uma situação jurídica de desigualdade, por meio da solidariedade da outra parte no âmbito contratual.
De todo modo, infere-se que, pelo fato de o art. 317 do CCb/2002 basear-se na Teoria da Imprevisão para possibilitar a revisão contratual, o pêndulo que tem de um lado o princípio da autonomia da vontade e, em nível constitucional, o princípio da liberdade e, de outro, o princípio do equilíbrio contratual, em nível constitucional, representado pelo princípio da solidariedade social, pesa mais para o lado da liberdade contratual. A busca do equilíbrio contratual não é totalmente afastada, pois a alteração de um contrato pela ocorrência de fato ulterior à contratação, que, sendo imprevisível, o torna por demais oneroso, é, de certa maneira, manifestação do princípio da solidariedade na órbita contratual. O que ocorre no CCb/é que os princípios do equilíbrio contratual e da autonomia da vontade convivem, mas ao segundo atribui-se proeminência.
Assim, quanto maior se mostra a liberdade atribuída aos contraentes, mais responsabilidade há de cumprir o contrato tal como pactuado. Isso reforça o princípio da força obrigatória do contrato e de sua intangibilidadde, que decorre do princípio da autonomia da vontade privada. A regra é que pacta sunt servanda desde que rebus sic stantibus. Em outras palavras: a regra é que os pactos serão imutáveis e farão lei entre as partes estando as coisas da mesma maneira. Somente um acontecimento imprevisível, que muda o estado das coisas, dá ensejo à possibilidade de revisão contratual.
iii. Excessiva onerosidade superveniente à formação do contrato que não se baseia na Teoria da Imprevisão
O CDCb/1990 trata da revisão por onerosidade superveniente à formação do contrato de modo absolutamente objetivo em seu art. 6º, V. O voluntarismo e o princípio da autonomia da vontade cedem lugar ao princípio do equilíbrio contratual.
Portanto, nada importa a previsibilidade ou não do acontecimento pós-contratual, nem mesmo outras circunstâncias que poderiam ser pontuadas em caso de intervenção ulterior no conteúdo de um contrato válido. É motivo bastante para a revisão contratual a ocorrência de fatos supervenientes que tornem prestações pactuadas excessivamente onerosas. Nesse caso, o pêndulo entre a segurança jurídica da pacta sunt servanda e o equilíbrio contratual recai mais em favor desse último. Desse modo, torna-se mais fácil perseguir não só o direito à igualdade substancial, prevista pelo art. 3º, III e IV da CRb/1988, que objetiva erradicar a pobreza, a marginalização, as discriminções, bem como reduzir as desigualdades sociais e regionais, mas também o direito à justiça e à solidariedade social previstas no inciso I do mesmo artigo. O princípio da obrigatoriedade do contrato subsiste porém. Mas subsiste mitigado pelo princípio do equilíbrio contratual.
O CDCb/1990, descarta a imprevisibilidade como requisito para a resolução do contrato ou a sua modificação segundo juízos de eqüidade, se as circunstâncias que fizeram as partes fundarem a decisão de contratar tiverem sofrido alteração anormal. Dessa maneira, a formulação portuguesa aproxima-se, em larga medida, do princípio do equilíbrio contratual e se afasta, até certo ponto, do princípio da autonomia da vontade declarada no contrato.[17]
Rechaçar a imprevisibilidade do acontecimento ulterior que gera excessiva onerosidade ou alteração anormal no contrato para possibilitar sua revisão é condizente com o princípio da justiça contratual. Impõe-se, portanto, cooperação entre os contraentes para se atingir o adimplemento obrigacional pela conservação do contrato modificado que cumpre sua finalidade e não frustra as expectativas objetivas de ambas as partes.
Todavia, o fato de o art. 437º esclarecer que a exigência de que as obrigações assumidas pela parte que sofre pela alteração anormal não devem estar cobertas pelos riscos próprios do contrato possui viés voluntarista, pois obriga o contraente a prever riscos inerentes àquele contrato. Ora, de todo modo, qualquer contrato encontra-se sujeito a riscos pelo passar do tempo e pela modificação das circunstâncias existentes no momento de sua formação. Para que a formulação portuguesa fosse despida de todo voluntarismo, ela não deveria fazer menção aos tais riscos próprios do contrato, que devem ser previstos pelos contraentes de obrigações que se executam por meio de prestações a longo prazo.
4.2. O nível da conservação do contrato nas categorias traçadas[18]
i. Excessiva onerosidade na formação do contrato
Sabe-se que vários podem ser os efeitos da excessiva onerosidade nas relações contratuais. No momento da formação do pacto, a excessiva onerosidade da prestação para um contraente pode levar à invalidade do ajuste, declarado nulo. No CCb/2002, a lesão é tratada como defeito do negócio, que pode gerar sua anulabilidade, na forma do art. 171. A anulação não conserva o contrato, pelo contrário. Portanto, a lesão tem, não só, mas também o condão de impedir a validade do contrato e, como conseqüência, sua produção de efeitos.[19]
Por outro lado, um contrato lesivo também pode ser modificado e conservado. O § 2º do art. 157 do CCb/2002 dispõe que não se decretará a anulação do negócio se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito. Assim, percebe-se que, na hipótese de lesão, há alguma tendência a conservar o contrato. Atente, contudo, para a seguinte observação: buscar a conservação do contrato fica apenas a cargo da parte que não sofre a onerosidade excessiva.
O CDCb/1990 também fulmina de nulidade a lesão que recai sobre o consumidor, de acordo com seu art. 51:
“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou com a eqüidade.”
Malgrado, o § 2º do mesmo dispositivo diz que “a nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo para qualquer das partes”, ou seja, só se a preservação do contrato gerar ônus excessivo para qualquer uma das partes é que ele não será conservado. A regra é fazer com que a nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalide o contrato por meio dos esforços de integração. Ademais, o art. 6º, V, do CDCb/1990 dispõe que é direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.
Observa-se que o CDCb/1990, na hipótese de lesão, possui forte tendência à conservação do contrato.
ii. Excessiva onerosidade superveniente à formação do contrato baseada na Teoria da Imprevisão
Os efeitos do desequilíbrio contratual que ocorrem em contratos de longa duração, por circunstâncias supervenientes ao ajuste, dependem do que dispõem os ordenamentos jurídicos a que pertencem. Tais ordens jurídicas podem ignorar este tipo de desequilíbrio contratual, ou podem dar-lhe efeitos diversos como, por exemplo, a resolução ou a revisão do ajuste.
No CCb/2002, a onerosidade superveniente à formação do contrato baseada na Teoria da Imprevisão está contida nos arts. 317 e 478.
Para conservar o contrato, por meio da correção judicial de desproporção manifesta entre o valor das prestações, prevista pelo art. 317 do CCb/2002, o contraente que sofre a onerosidade superveniente à formação do contrato pode pedi-la. Para consegui-la, terá que provar a imprevisibilidade do fato posterior ao contrato que o onerou em demasia. O CCb/2002 adota abertamente a teoria da imprevisão, em contratos, a priori, considerados paritários, em que não haja um vulnerável e as partes tenham, supostamente, igual poder de barganha.
Numa leitura do CCb/2002 à luz da CRb/1988 e diante do disposto em seu art. 317, observa-se um posicionamento parcialmente favorável à conservação do contrato. O óbice inarredável ao qual o excessivamente onerado terá de se submeter, consiste na prova da imprevisibilidade dos motivos que fizeram sobrevir desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução.
Permite-se também, ao contraente excessivamente onerado, após provar a imprevisibilidade da prestação excessivamente onerosa, sua extraordinariedade e a extrema vantagem para a outra parte, pedir a resolução do contrato na forma do art. 478 do CCb/2002. Ainda assim, a resolução poderá ser evitada se a parte que não sofre a excessiva onerosidade se oferecer para modificar eqüitativamente as condições do contrato na forma do art. 479. Compreende-se, pelo exposto, que os arts. 317 e 479 do CCb/2002 contribuem, em certa medida, para que haja conservação contratual em caso de excessiva onerosidade superveniente à contratação, desde que os enunciados normativos dos arts. 317, 478 e 479 do CCb/2002 sejam interpretados de maneira teleológica e sistemática, a fim de conservar o vínculo negocial.
Essa interpretação coaduna-se com a interpretação dos arts. 317 e 479 do CCb/2002 conforme a CR/1988 que, ao se referir ao princípio da solidariedade em seu art. 3°, I, impõe solidariedade também nas relações contratuais, o que, por sua vez, implica esforços de ambas as partes visando à revisão e ao adimplemento contratual. Observe-se que, quando se impõe mais ônus ao contraente que queira resolver o contrato na forma do art. 478, tais como a prova da extrema vantagem para a outra parte, de acontecimentos que, mais do que imprevisíveis, sejam também extraordinários, privilegia-se seu pedido de revisão contratual na forma do art. 317, que não carrega esses ônus da hipótese do pedido de resolução. Sublinhe-se, portanto, que no CCb/2002, em alguma medida, há tendência à conservação do contrato.
iii. Excessiva onerosidade superveniente à formação do contrato que não se baseia na Teoria da Imprevisão
O CDCb/1990 dispõe, em seu art. 6º, V, que é direito básico do consumidor a revisão das cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Nota-se, pois, que o CDCb/1990 posiciona-se muito favorável à conservação do contrato em favor do consumidor, haja vista conceder-lhe, sem rodeios ou outras exigências, a revisão de seu contrato excessivamente onerado posteriormente à sua formação.
5- Conclusões
As conclusões formam analisadas junto ao estudo das variáveis e, pela delimitação do espaço pela “Âmbito Jurídico”, optou-se por não repeti-las nesse momento.
Informações Sobre o Autor
Fabiana Barletta
Professora do Departamento de Direito do Quadro Permanente da Universidade Federal de Viçosa (UFV- MG). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ).
Autora de artigos e livros, entre eles, Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, publicado pela Editora Saraiva.