Hoje, em ‘plena modernidade’, vivenciamos o momento em que o mundo já se rende à “Era Biotecnológica”. Sendo oportuno dizer que o prefixo “BIO” é utilizado para associar ao termo seqüente ou subseqüente a idéia de vida, organismo vivo ou processo biológico existente. Assim, temos em fervura neste caldeirão de atualidades: Biodireito, Bioética, Biossegurança, Bioenergético, Biodiversidade, entre outras tantas performances admitidas ao contexto “BIO”.
De sorte, estamos presentes em um cenário sócio-cultural onde e quando todas as tendências são ou estão voltadas às variedades e variabilidades dos organismos vivos. Talvez, esta seja tão-somente mais uma, dentre outras tendências preexistentes, até porque, em todas as épocas antecessoras foram cultuados certos modismos, e nós, até então, “puramente humanos [?]”, estamos sempre propensos à adesão. Notadamente, nosso tema se desenvolve nos contornos da seara jurídica, porque estaremos tratando de questões pertinentes ao respeito aos limites impostos, em primeiro plano, pelas normas e, num segundo momento imposto pela Ética, que proeminente, deva existir em cada um de nós, como exigência básica da conduta humana. Todavia, estejamos traçando concomitantemente uma ótica psicanalítica do comportamento social, pois, os desvios no padrão de comportamento têm sido uma preocupação demasiadamente instigante aos estudiosos de quase todos os saberes científicos, e o mal-estar causado pela cultura é da ordem da psicanálise.
Comecemos pela simples colocação de Blaise Pascal, em “O homem perante a natureza”, em que observa ser oferecido ao homem em primeira instância, o fato de poder contemplar-se a si próprio, seu corpo, isto é, certa parcela de matéria que lhe é peculiar, bem como o modo com correlaciona esta verdade material ao universo incognoscível de possibilidades e oportunidades ao seu redor. E, a partir deste ponto, nos é propício citar Freud, pois, o grande pai da psicanálise, em 1913, já contextualizava algumas destas questões; fomentava seus diálogos a relação do homem com o seu meio, e com isto, atribuiu à cultura as grandes seqüelas havidas ou deixadas na sociedade, ou, parte dos recalques existentes em cada um de nós. Estes foram os parâmetros traçados em sua obra: Totem e Tabu; onde Sigmund Freud demonstra que a sociedade pode ir além das instituições criadas, pode agir e reagir fora dos ditames e além dos limites das normas e regras impostas, quando em verdade, deveria sua conduta acata-las com sujeição.
E assim, é que o “Ser Social” modifica a ordem coletiva, embora, saiba que não possa viver sem tais instituições ou fora dos padrões preestabelecidos para esta convivência, porque a “ordem existente” foi criada por sua abstração e evolução cultural, e só ela introduz instrumentos aptos a minimizar seu sofrimento; suprir suas necessidades e propiciar sua perpetuação como elemento humano.
E, foi também sobre este aspecto que David Hume, sabidamente, dedicou seus estudos e sedimentou grande parte de sua obra; foram seus estudos delineadores ou decodificadores da natureza humana; com isto, nos fornece agora uma “justificativa” para esta tendência aos modismos, ou melhor, para estas inclinações comportamentais e ideológicas. E neste sentido, nos revela:
“Separar aquilo que pertence ao acaso daquilo que é causalidade dependerá em cada caso particular da sagacidade de cada um. Mas se eu tivesse que expor uma norma geral para auxiliar-nos a aplicar a distinção entre acaso e causalidade, seria a seguinte: Aquilo que dependa de poucas pessoas é, em grande medida, devido ao acaso, ao segredo ou a causas desconhecidas; aquilo que surja de um grande número pode, por via de regra, ser analisado através de causas determinantes e conhecidas[…] Do mesmo modo, quando algumas causas propiciam uma inclinação particular ou determinada paixão, em determinado tempo e entre certo povo, embora saibamos que um grande número de pessoas lhe pode escapar e ser dominado por outras paixões pessoais, contudo, é certo que a multidão (cultura das massas) será atingida pela afecção comum que a governará em todas as ações”.[1] (Inserção e Grifo nosso)
É certo que, independentemente da assertiva de estarmos ou não, experenciando um modismo, indubitavelmente, apreendemos através das ciências e das artes em geral, ou seja, da experiência cultural do momento, que estamos em verdade, galgando espaços e rumos do pós-humano. E foi neste sentido que Robert Foley, concluiu em obra de destaque sobre o tema, tratando minuciosamente de nossa evolução biológica e comportamental: “Nosso mundo político repousa numa essência humana de que somos dotados por natureza. Podemos estar perto de ingressar num mundo pós-humano, onde a tecnologia nos dará a capacidade de alterar essa essência” [2]. Sem o intuito de nos aprofundarmos na discussão se nós nascemos humanos, ou de modo contrário, se somos tão-somente organismos vivos, e de tal modo, nos humanizamos gradativa e progressivamente sob influência da convivência social. Digamos que a aceitação da cultura existente em nosso meio nos é imposta, não há uma facultatividade, não há uma escolha determinante; somos seres vivos à mercê de nosso tempo e espaço. E, estes são fatores que nos inserem no âmbito e no contexto da experiência social que nos é ofertada desde o nascimento.
Nesta órbita, seria significativo ou significante pensar que, nascemos desumanos, ou então, nos tornamos desumanos ao passo que perdemos nossas características essenciais, aquelas que seriam capazes de nos catalogar com inteireza dentro da classe, categoria ou espécie humana. Ao menos, de momento, é possível assegurar que há uma inclinação bastante atual que aponta para isto. Noutras palavras, o homem enquanto ‘ser’ perdeu seu enquadramento lógico, ou até, porque não dizer, seu modelo comportamental adequado, razão pela qual fala-se tanto em humanização.
A questão da humanização ganhou espaço, gera debates, tem sido discutida por todos os setores da sociedade, tornou-se, inclusive, programa de governo, com isto, tornou-se também política pública aplicada no sentido de alcançar um resultado efetivo na área do restabelecimento de certos valores sociais, conseqüentemente, humanos. De qualquer modo, se pensarmos semanticamente sobre o assunto, desde logo, nos reportaremos ao entendimento do que pode significar “Humanização”. Humanização seria um processo capaz de devolver ao homem características e caracteres que o confirmam, e ao mesmo tempo revelar os atributos basilares que o diferenciam das demais espécies, reconhecendo a ele certos valores humanos, os mais comuns e peculiares, tais como: capacidade de pensar, de aprender, de ser generoso, afetivo, verdadeiro, simples ou complexo. Daí porque, torna-se óbvia a concepção de que, tudo que precisa transformado, perdeu sua formatação natural, inerente, adequada. Ou seja, só se humaniza aquilo que não é humano, desumano, ou ainda, inumano. Não estaríamos nós, através do uso exacerbado da “afamada” tecnologia gerando seres quase andróides? Hoje, reconhecidamente, através das técnicas contemporâneas somos seres híbridos, completos e repletos de artificialidades, e, evidentemente, esta se torna a principal característica deste novo período pós-humano. E, por ora, não queremos arrastar o debate para a legalidade ou ilegalidade dos atos sublinhados, a título tão-somente de ilustração, lembramo-nos de que o Art. 13, da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o atual Código Civil, dispõe:
Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Segundo Domenico De Masi, há uma modificação no foco dos objetivos sociais, não foram banidas as potencialidades humanas, tampouco, as possibilidades científicas, contudo, elas variam de acordo com a determinação de sua época e lugar. Para De Mais, hoje, de fato a humanização é uma escolha política ou governamental, fugiu à facultatividade individual, e ainda, deixou de ser essencialmente social no sentido lato da palavra, o termo social aplicado por De Masi ganha uma conotação política, norma programática manipulada pelo processo de tomada de decisão. E assim afirma:
“Pela primeira vez na história da humanidade o futuro é um problema social, não um problema natural […] Hoje, ao contrário, trata-se de exercer esta influência na sede onde são tomadas as decisões estratégicas, onde, por exemplo, se escolhe se e como devem ser produzidas mais bactérias para fins bélicos, ou mais proteínas para fins nutritivos”. [3]
Porém, este contexto exige um posicionamento jurídico quanto ao fato de se reconhecer os limites. Ou ainda, a dotação de uma postura ética, onde “Ética Volitiva” aponta para um ‘agir’, todavia, esta ‘ação’ requer para sua configuração uma condição determinada, ou seja, que se empreenda por uma maneira apropriada ou adequada, e, independe, se atende à necessidade individual ou se às exigências feitas pelas circunstâncias.
Contudo, estas premissas nos trazem ou nos levam até novas indagações, assim como é pertinente a indagação que nos foi colocada pelo vanguardista Eduardo Kac, sendo um ícone das artes pláticas transgênicas[4], nos pergunta: ”Estamos humanizando as máquinas ou maquinizando os corpos?” A propósito, esta já não é uma discussão recente, nem mesmo para o artista. Posto que, foi tema central do 8º Simpósio Internacional de Arte Eletrônica, realizado em Chicago, em setembro de 1997, do qual participou.[5] Onde Laurie Anderson afirmava que estamos sofrendo uma espécie de intoxicação tecnológica. Sim, não é um questionamento recente, tampouco, que fuja à realidade de nossos dias. Efetivamente, desde os idos da década de 90, tudo e todos ventilam e propagam idéias que reflitam uma aproximação ao tecnológico. Hoje, o homem e a máquina, a vida em si, tudo ao nosso redor é uma questão afeita à “biotecnológica ou à Cibercultura”.
Mas, onde estariam as humanidades [?], as questões outrora centrais, aquelas que de fato são humanizantes. De modo contrário, nada mais humaniza, ou melhor, só desumaniza. E nem a apreensão do mundo através da ordem sinestésica se faz imprescindível, ou, vulgarmente necessária. É como se os sentidos humanos pudessem ser substituídos por ficções, por objetos virtuais ou puras abstrações do imaginário. Há uma ênfase neste “imaginário” e, um desprezo generalizado ao simbólico e ao real. E falando desta questão lacaniana, dissertando sobre os sentidos e atribuição de valores ao imaginário, Maria Helena R. Junqueira, tece uma verdadeira definição e nos transmite claramente esta idéia de alienação das idéias:
“Termo derivado do latim imago (imagem), imaginário designa aquilo que provém da imaginação, com a capacidade de representar coisas em pensamento, independentemente da realidade. O imaginário é a matéria-prima do trabalho de psicanalistas, poetas, artistas, sendo um conceito caro a todos os ofícios dependentes da criação, da criatividade. De certo modo, podemos supor que todos os fazeres humanos dependem de uma instância imaginária, na trajetória de transformação de idéia em ato, na criação de um sentido […] Define-se o imaginário, ainda segundo Lacan, como sendo o lugar do eu por excelência, com seus efeitos de ilusão e engodo. O eu engana-se por crer ser o que não é, o que conduz à constatação de que o eu é uma construção imaginária. Isto caracteriza o eu em sua precariedade, num contínuo processo de identificações, identificações parciais”. [6]
Contudo, sob este aspecto, torna-se bastante perigosa esta primazia imaginária dentro da vivência humana, pois, acabamos por nos afastar daquilo que realmente nos humaniza, que nos confirma como seres dotados de virtudes e vícios. O homem é um ser único, fenômeno que não se repete. Não obstante, há nas palavras de Huisman e Vergez uma fabulosa compreensão de que o homem é um indivíduo único dentro do cenário universal, descrito por eles como um ser extraordinário, único capaz de interrogar-se quanto sua própria natureza, único também em constituir-se objeto de discussão. É um animal técnico; que fala e gesticula; é social, cria e obedece a regras; deixa de ser um “ser” meramente biológico, porque é capaz de condutas desinteressadas, efetua experimentos inúteis; é o único ser vivente capaz de atitudes altruístas, age fora do comando das afeições instintivas, e, assim, realiza atos que biologicamente seriam inconcebíveis.[7] Verificamos haver uma reiteração das características basilares à humanização.
Decerto, o “homem” tem sido transmutado em um objeto cibernético, mais propriamente, tecnológico. Hoje, já não é preciso “falar” para se viver em sociedade, podemos substituir nossa fala por mensagens eletrônicas, previamente, preparadas. E o exemplo disto, nos é trazido novamente por Eduardo Kac, ao comentar a questão dos táxis de Nova York, onde vozes famosas convidam os passageiros a colocar o cinto de segurança e pegar o seu recibo. “A ‘utilidade’ da introdução desse novo “gadget” é inequívoca: o motorista não precisa mais falar com você”. [8]
Deste modo, percebemos que resta abolida a mais importante das capacidades eminentemente humanas, a fala. E, já não sendo preciso falar, torna-se ato conseqüente que não seja necessário “tocar”, sim, resta totalmente desprezível o toque. Tanto que, na órbita da Cibercultura[9], até o sexo pode ser eletrônico. São duas ou mais pessoas interligadas por uma conexão de rede[10], onde através de uma tela com exposição de imagens, que necessariamente, não se constata serem reais, e às vezes, são acrescidas pela inserção de textos ‘estimulantes’, assim, chega-se ao ápice do “amor”, ou, simplesmente, do “sexo”, sem se quer ter a certeza de qual é o rosto, o tom da fala, ou, o nome de quem está na outra ponta desta conexão. Seria a telepresença um jogo escuso? Uma opção feita no escuro, pois, não se sabe ao certo, se nosso parceiro é do sexo masculino ou feminino, ainda que, nesta altura dos acontecimentos o sexo anatômico, ou a distinção biológica, não nos importe. Porquanto, de repente, sem nos darmos conta, podemos estar mudando até mesmo nossa opção sexual, se considerarmos que, aqueles momentos de ‘fictício’ prazer, possam nos ter sido ofertados em uma relação duvidosa, sabe-se lá, se hétero ou homossexual. Mas, fictícia ou não, as relações cibernéticas se viabilizam hoje, e no mundo jurídico há aceitação de sua existência, tanto que, que podem fundamentar o delito de adultério.
Estas são questões intrigantes, a abolição da fala, do toque, da presença… Parece-nos ocorrer um isolamento programado; não aceito, mas aderido. Seria até coerente pensar que, a tecnologia acabou ilhando o homem em um universo imaginário, egocêntrico e fractal.
Decididamente nos tornamos seres cibernéticos, artificiais ou artificializados. A engenharia genética nos propicia técnicas de reprodução assistida, é possível fertilizar ou fecundar “in vitro”[11]; ter filhos no auge da maturidade, gonotrofinas fazem com que as mulheres tenham mais óvulos por mês, injeção intracitoplasmática fazem com que os homens produzam mais espermas por mililitro. Porém, se necessário, e a situação econômica do “desejante” possibilitar, até os óvulos e os espermatozóides podem ser adquiridos, hoje, existem Bancos de Criopreservação de sêmen; células germinativas; óvulos; embriões; tecidos testiculares e ovarianos; que os mantém congelados em nitrogênio líquido por tempo indeterminado, no aguardo de um bom comprador. E num grau ainda mais avançado, podemos ir além, e até escolher o sexo; a cor dos olhos; a estatura aproximada que este ‘filho’ irá atingir. Ou seja, depois de Louise Brown, em julho de 1978, filhos encomendados em laboratório, desde que, se possa arcar com os custos, virou literalmente, brincadeira de criança.
Há que se destacar, fala-se na singeleza da doação, contudo, é sabido que existe neste “doar” um cunho pecuniário, aliás, há também neste negócio jurídico denominado “compra e venda”(coisa, preço e consenso), algo que vai além do custo, que é a evidente discriminação racial, social e econômica, velada sob o título de seleção. Este é o foco enfatizado pelas pesquisas empreendidas por Rosely Gomes Costa, que no corpo de seu trabalho comenta:
“Mostro como é feita a seleção de doadores, são colhidas informações, tais como: tipo de sangue, Rh, raça, origem étnica, religião, cor da pele, cor e textura dos cabelos, cor dos olhos, altura, peso, constituição óssea, escolaridade, ocupação e hobby. E mais, país de origem dos pais, dos avós paternos e maternos. E, por isto, discuto as noções sobre raça presentes entre médicos e pacientes que esperam por uma doadora de óvulos ou um doador de sêmem. Considero que “raça” constitui-se numa noção das características fenotípicas, como: cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz, espessura dos lábios, entre outros, que são utilizadas como parâmetros para classificação[…]O sêmen de doador “negro” é menos requisitado porque as pessoas “negras” têm um nível socioeconômico mais baixo, não tendo, portanto, acesso à compra de sêmen por causa de seu alto custo.[12]
É interessante anotar que, todas essas características aparecem como podendo ser transmitidas hereditariamente. E Rosely Gomes Costa, acrescenta seus argumentos, mencionando Oracy Nogueira:
“Os limites entre as diversas categorias — brancos, mulatos claros, mulatos escuros, pretos — são indefinidos […] a identificação de um indivíduo quanto à cor ser influenciada pela associação com outras características de status, como o grau de instrução, a ocupação e hábitos pessoais, com tendência a se atenuar a cor de indivíduos socialmente bem-sucedidos”.[13]
E mais, as pesquisas empreendidas por Rosely G. Costa a fazem admitir:
“[…] é muito relevante e revelador que um filho “mais claro” que elas próprias possa ser aceito, enquanto um filho “mais escuro” é rechaçado. Parece que, em um processo de projeção reflexiva, uma criança mais clara é vista como podendo contribuir para “clarear” a própria mãe, a própria família.
De sorte, esta questão seja quase que puramente jurídica, se não fosse tanto quanto ética e moral; o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, através do parecer n.º 1756/88, considerou que, se as partes estiverem cientes e de acordo com as finalidades do processo, a inseminação com sêmen de doadores é considerada um procedimento ético.
Todavia, em contrapartida, em função da nova vida urbana e da incidência dos efeitos biotecnológicos, constatou-se conseqüências pesarosas. A poluição do ar, as substâncias químicas nos alimentos, o estresse e outros efeitos da urbanização estão interferindo na redução de espermatozóides e também na capacidade fértil da mulher, são fatores que estão intimamente relacionados com essa perda de fertilidade, é o que afirma Edson Borges Júnior, diretor do Centro de Fertilização Assistida do Hospital Albert Einstein em São Paulo.
Em conformidade com este propósito, Lucia Santaella retoma o tema, e nos fala do “homem robótico”, constituído por inúmeras próteses ou articulados equipamentos ou instrumentos extrassomáticos. E passa a nos descrever um ‘novo ser humano’, que se expressa e sente o mundo por outras vertentes, e assim nos ensina:
A consciência de um novo estatuto do corpo humano, que se ramifica crescentemente em variados sistemas de extensões tecnológicas, foi gradativamente emergindo até adquirir uma forma de expressão em atributos similares a este que escolhi empregar: “biocibernético” […] Em 1993, num artigo sob o título de “The desire to be wired”, Gareth Branwyn mencionava a emergência de uma tecno-mitologia[14] que consiste em “morfar”, “formatar” o corpo humano para que ele responda às exigências e às possibilidades de uma era pós-humana […] Se tudo aquilo que chamamos de vida só é vida porque está projetada como código, se sistemas de codificação estão na base daquilo que chamamos de cultura, o que sobra de natureza, sem cultura? […] As máquinas sensórias povoaram o mundo de imagens e sons, saturando-o de réplicas do visível e audível”.[15]
Lembramo-nos de que, a cultura tem por objetivo atender às necessidades imediatas dos indivíduos ou instituições, daí porque, sempre vislumbra caracterizar o esforço humano no sentido de um aprimoramento, quer intelectual, técnico ou artístico. Victor Hell atribui à cultura uma responsabilidade assustadora, quando a intitula como vetor que impulsiona a evolução de um regime político, porque se constitui como um lugar de interferência entre múltiplas atividades políticas e econômicas. Insiste em atribuir primazia à cultura, quando nos conduz à idéia de que a vida humana está pautada por necessidades biológicas básicas e dependentes da organização cultural da sociedade. Assim, Hell afirma:
Há uma oposição tradicional entre natureza e cultura, mas, não significa que o homem, que se acredita evoluído, tendo-se tornado sujeito pensante, possa se emancipar do ciclo biológico a que pertencem todos os outros seres vivos: comer, alimentar-se é um processo híbrido, biológico e cultural; uma cultura também é julgada em função do papel que atribui ao ato da refeição.[16]
Não seria precipitado afirmar que estamos vivenciando um momento de plena liberdade, conquanto, a liberdade aqui tem outros tons, outras conotações, talvez, semelhantes àquelas atribuídas por Nietzsche, quando afirmava haver um desprendimento de velhos valores, depreciação da moral e da verdade social, e, que seriam estes elementos substituídos por um potencial para ser o criador de valores próprios, bem como capacidade de ser inflexível e solitário, o homem compreendido por Nietzsche resiste ao sofrimento, porque ele próprio é o criador do bem e do mal. Assim, também é o homem entendido por Michel Quoist:
“Na medida em que pela ciência e pela técnica o homem vai se apoderando do universo, vai também perdendo o domínio do seu universo interior. […]O sonho do homem é ser totalmente senhor de sua existência. E tem razão, pois sua superioridade sobre o animal consiste em poder analisar-se, analisar o mundo, julgar e dirigir sua vida segundo as normas de seu ideal”. [17]
São estas as novas questões a serem discutidas pela ciência jurídica, até onde nos é permitido ou tolerável transpor os limites da ética, podemos romper com os deveres assumidos em prol da participação na vida social [?]. Mas, segundo observa Jeremy Rifkin, tudo isto retrata apenas uma parcela das novas celeumas que irão surgir em razão desta experiência biotecnológica:
“A forma como nos alimentamos, como namoramos e casamos, como temos nossos bebês, como criamos e educamos nossos filhos, como trabalhamos, como nos envolvemos na política, como expressamos nossa fé, como percebemos o mundo ao nosso redor e nossa posição nele – todas as nossas realidades, pessoais e coletivas serão profundamente tocadas pelas novas tecnologias do século biotecnológico. Essas tecnologias tão pessoais merecem, certamente, ser amplamente discutidas e debatidas pelo público em geral antes de ser tornarem parte de nossa vida diária”.[18]
Concluímos nosso trabalho discordando de Rifkin, no que diz respeito à esta nova realidade tornar-se definitiva em nossa vida diária, pois, debatemos questões e sublinhamos aspectos que demonstram que, doravante, só nos resta percorrer o caminho de volta, ou seja, o da humanização.
Informações Sobre o Autor
Suzana Joaquim de Oliveira Carmo
Funcionária Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC/SP e, em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP., pós-graduada em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura, também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP.