Evolução histórica e legislativa da família e da filiação

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Resumo: No presente artigo analisa-se a evolução histórica e legislativa da família desde os primórdios até a contemporaneidade, uma vez que essa trajetória se confunde com os próprios direitos conquistados. Na antiguidade o sacramento matrimonial era a única forma de iniciar uma família era indissolúvel, tornando as entidades familiares severas e sem vínculo de afeto. O modelo hierarquizado, conservador e patriarcal foi desastroso e gerou uma proliferação de uniões extramatrimoniais, abalando a estrutura familiar da época. Contudo, a família contemporânea é caracterizada pela diversidade, justificada pela incessante busca pelo afeto e felicidade. A ampliação do conceito de família acabou permitindo o reconhecimento de outras entidades familiares, como a uniões de pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento da filiação socioafetiva entre outros avanços. Essas novas relações levam a busca e inserção de soluções práticas no âmbito do Direito das Famílias.[1]


Palavras chave: Família; Afetividade ; Evolução; História; Legislação.


Sumário: Introdução. 1 Evolução da Família e da Filiação. 1.1 Evolução Histórica da Família. 1.1.1 A Família no Direito Romano. 1.1. 2 A Família no Direito Canônico. 1.1.3 Família na Pós-Modernidade. 1.2 Evolução Legislativa da Família e da Filiação. 1.2.1 Família e Filiação antes da Constituição de 1988. 1.2.2 Família e Filiação após a Constituição de 1988. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.


INTRODUÇÃO


A família ao longo da História da humanidade passou por uma profunda transformação. Esse processo evolutivo inseriu inúmeras situações na seara jurídica, do qual o Direito ainda não obtém entendimento pacificado, como o abandono afetivo paterno-filial. Antes de enfrentar essa discussão, faz-se necessário percorrer alguns períodos históricos para que se possa compreender a evolução histórica e legislativa da família e da filiação. Primeiramente, pretende-se demonstrar a evolução conceitual e a modificação do modelo de família até chegar à atualidade. Em seguida, detalhar-se-á a evolução legislativa intrínseca ao assunto, desde o advento do Código Civil de 1916 até a vigência do novo Código Civil brasileiro.


1 EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA E DA FILIAÇÃO


1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA


A família, primeira célula de organização social, vem evoluindo gradativamente, desde os tempos mais remotos até a atualidade. Noé Medeiros[2] afirma que a família, por ser mais antiga que o Estado, constitui-se como célula germinal da comunidade estatal.


Rodrigo da Cunha Pereira[3] explica a evolução da família fazendo menção a três fases históricas, sendo elas: o estado selvagem, barbárie e civilização.


“No estado selvagem, os homens apropriam-se dos produtos da natureza prontos para serem utilizados. Aparece o arco e a flecha e, consequentemente, a caça. É aí que a linguagem começa a ser articulada. Na barbárie, introduz-se a cerâmica, a domesticação de animais, agricultura e aprende-se a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano; na civilização o homem continua aprendendo a elaborar os produtos da natureza: é o período da indústria e da arte.”


Friedrich Engels[4] analisa as fases pré-históricas até a civilização, descrevendo primeiramente o estado selvagem, dividindo-o em três fases. Na fase inferior, o homem vivia em árvores e lutava pela sobrevivência em meio a feras selvagens. Sua alimentação era à base de raízes e frutos. Na fase média, o homem começou a agregar à sua alimentação frutos do mar, e caracterizou-se pelo surgimento do fogo, a maior descoberta da humanidade. Em virtude de tal descoberta, o homem buscou aprimorar sua alimentação com tubérculos, caça e farináceos cozidos com cinzas quentes. Por fim, o autor destaca a fase selvagem superior, a qual ocorreu quando o homem despertou para as invenções de armas usadas na caça de animais. As residências fixavam-se em aldeias e os homens passavam a desenvolver atividades como construção de utensílios feitos de madeira e tecidos confeccionados a mão.


Quanto à fase da barbárie, Friedrich Engels[5] divide seu estudo também em três fases idênticas às acima mencionadas. Primeiramente a fase inferior, quando da descoberta da argila e da utilização da mesma para revestir cestos e vasos para torná-los refratários. Outra característica importante dessa fase foi que o homem passou a produzir o seu próprio sustento, através do cultivo doméstico de plantas e da criação de animais. O mesmo autor[6] descreve algumas características importantes desse período:


“Viviam em casas de tijolos secados ao sol ou pedra, casas em forma de fortalezas, cultivavam em terrenos irrigados artificialmente o milho e outras plantas comestíveis, diferentes de acordo com o lugar e clima e que eram sua principal fonte de alimentação. Haviam chegado até a domesticar alguns animais: os mexicanos, o peru e outras aves; e os peruanos, a lhama. Além disso, sabiam trabalhar os metais, exceto o ferro, razão pela qual não conseguiam ainda prescindir das armas e instrumentos de pedra”.


Percebe-se que nesse momento histórico o homem despertou para o cultivo de produtos agrícolas e para a domesticação de animais, passou a viver em casas e a conviver em grupos, nas chamadas aldeias. E, na fase superior da barbárie, o homem inventou a escrita e despertou para a fundição do minério de ferro.


No que diz respeito especialmente à evolução da família, Noé de Medeiros[7] elenca algumas teorias:


“Basicamente a família segundo Homero, firmou sua organização no patriarcado, originado no sistema de mulheres, filhos e servos sujeitos ao poder limitador do pai. Após surgiu a teoria de que os primeiros homens teriam vivido em hordas promíscuas, unindo-se ao outro sexo sem vínculo civis ou sociais. Posteriormente, organizou-se a sociedade em tribos, evidenciando a base da família em torno da mulher, dando origem ao matriarcado. O pai poderia até ser desconhecido. Os filhos e parentes tomavam as normas e nome da mãe”.


Desse modo, conforme o autor, a família inicialmente foi chefiada pela mulher, mas por um período muito curto, pois, em seguida o homem assumiu a direção da família e dos bens. Neste diapasão, Friedrich Engels,[8] ao estudar a família, divide sua evolução em quatro etapas: família consanguínea, família punaluana, família pré-monogâmica e a família monogâmica.


A família consanguínea foi a primeira etapa da família. “Nela, os grupos conjugais se separam por gerações. Todos os avôs e avós, dentro dos limites da família, são em seu conjunto, marido e mulher entre si”. [9]


Nessa espécie de família, seus membros se relacionavam sexualmente, entre si: irmãos com irmãs, marido e mulher. Esse modelo de família, no entanto, acabou desaparecendo, dando lugar ao modelo de família punaluana, excluindo a prática da relação sexual entre os membros da própria família, sendo que em seu auge, foi determinada a proibição do casamento entre primos de segundo e terceiro graus.


Friedrich Engels[10] enfatiza como era a relação materno-filial, nas famílias formadas por grupos:


“Em todas as formas de famílias por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe. Muito embora ela chame seus filhos a todos da família comum e tenha para com eles deveres maternais, a verdade é que sabe distinguir seus próprios filhos dos demais. É claro, portanto, que, em toda a parte onde subsiste o casamento por grupos, a descendência só pode ser estabelecida do lado materno e, portanto, reconhece-se apenas a linhagem feminina. De fato é isso que ocorre com todos os povos que se encontram no estado selvagem e no estado inferior da barbárie.”


Pelo fato das famílias viverem em grandes grupos, era normal que as mulheres se relacionassem com diversos homens, dificultando a identificação do pai, porém a mãe estava sempre certa, vez que estava vinculada à gestação. A partir da proibição do casamento entre seus membros, a família foi se fortalecendo enquanto instituição social e religiosa.


Na família pré-monogâmica, a mulher deixa de relacionar-se com vários homens para ser de propriedade de um só, enquanto que ao homem era permitido a prática da poligamia. Se fosse constatado o adultério, por parte da mulher, ela era castigada de forma cruel.


Nas formas anteriores de família, o homem nunca sentira dificuldade em encontrar mulheres, podiam optar por uma ou mais, porém na família pré-monogâmica esses hábitos tornaram-se raros, sendo necessário procurá-las. Friedrich Engels[11] afirma: “por isso começam com o casamento pré-monogâmico, o rapto e a compra de mulheres, sintomas bastante difundidos, mas nada mais que sintomas de uma transformação muito mais profunda que se havia efetuado”.


O casamento passou a ser uma forma de manter para si uma esposa, já que eram raras, dando origem à família monogâmica, caracterizada pelo casamento e pela procriação.


Conforme o mesmo autor, somente ao homem era concedido o direito de romper o casamento ou então repudiar sua mulher, em caso de traição ou esterilidade. A lei da época, o Código de Napoleão, permitia que o homem fosse infiel desde que não levasse a sua concubina para o lar conjugal.


No mesmo sentido é o entendimento de Fustel de Coulanges:[12]


“Tendo sido o casamento contratado apenas para perpetuar a família, parece justo que pudesse anular-se no caso de esterilidade da mulher. O divórcio, para este caso, foi sempre, entre os antigos, um direito; é mesmo possível tenha sido até obrigação. Na Índia, a religião prescrevia que “a mulher estéril fosse substituída ao fim de oito anos”. Nenhum texto formal nos prova ter sido este mesmo dever obrigatório, igualmente na Grécia e em Roma. Todavia, Heródoto cita-nos dois reis de Espanha que foram obrigados a repudiar as suas mulheres porque estas se mostravam estéreis.”


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A mulher além de ser propriedade do marido era obrigada a dar-lhe filhos, podendo ser anulado o casamento nos casos de esterilidade. Por outro lado, não se cogitava a hipótese do homem ser infértil.


Com o passar do tempo a família deixou de conviver em grandes grupos para aos poucos se individualizar, fortalecendo seus laços. Nessa trajetória muitos foram os motivos que uniram a família. Na Antiguidade houve épocas, como o estado selvagem, onde era a busca pela sobrevivência que unia a família. No entanto, com sua evolução o que realmente passou a uni-la foi a religião. De acordo com Fustel de Coulanges,[13] se nos reportarmos aos nossos antepassados, encontraremos em cada lar um altar, no qual se cultuavam oferendas e cultos aos mortos e aos deuses. A família reunia-se ao redor do altar a cada manhã para iniciar o dia com orações, e à noite para ofertar preces de agradecimentos. Sob esta argumentação, pode-se dizer que foi a religião que transformou a família em um corpo.


Outra característica da Antiguidade, merecedora de destaque, é a ausência de laços afetivos entre os membros da família. Nesse sentido, Philippe Airés[14] destaca:


“Essa família antiga tinha por missão – sentida por todos – a conservação dos bens, a prática comum de um ofício, a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem, e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver, e ainda nos casos de crise, a proteção da honra e das vidas. Ela não tinha função afetiva. […] o sentimento entre os cônjuges, entre os pais e filhos, não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família: se ele existisse, tanto melhor.”


Era a busca pela procriação e a necessidade de conservar os bens que induziam as pessoas a constituir família. Quanto aos filhos, quando crianças, não viviam a infância, pois logo que adquirissem porte físico para trabalhar, misturavam-se aos adultos e partilhavam dos afazeres domésticos. Ainda segundo Philippe Aires,[15] os filhos desde muito cedo viviam praticamente independentes e tudo que aprendiam era observando os adultos.


Fustel de Coulanges[16] menciona que o pai era sinônimo de autoridade, homem forte protegendo os seus, “o pai é, além disso, o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos avós, o tronco dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração. Toda a religião reside no pai”.


O mesmo autor, lembra que na Antiguidade os filhos eram diferenciados. Prova disso é o fato de que a filha quando casava deixava de fazer parte da família de origem. Um pai podia amar sua filha, mas seus bens só podiam ser delegados aos filhos homens.


 Contudo, no decorrer dos séculos, a família passou por uma transformação marcante na sua constituição. Por isso, faz-se necessário analisar alguns períodos da História para compreender quão profunda foi a mudança na estrutura familiar.


1.1.1 A Família no Direito Romano


No Direito Romano, a família era uma entidade que se organizava em torno da figura masculina, muito diferente da contemporaneidade. Em Roma, reinava o autoritarismo e a falta de direitos aos componentes da família, principalmente no que diz respeito aos filhos e à mulher. Existia uma concentração de poder e quem o detinha era a figura do pater.[17]


Orlando Gomes[18] define a família romana, como sendo um “conjunto de pessoas sujeitas ao poder do pater familias, ora grupo de parentes unidos pelo vínculo de cognição, ora o patrimônio, ora a herança”.


Fustel de Coulanges[19] faz menção ao fato de que ao estudar a família romana, fica evidente que o afeto nunca foi uma de suas características, enquanto que a autoridade do homem sobre a mulher e os filhos foi seu principal fundamento.


A família era uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional ao mesmo tempo. Quanto aos bens, “[…] inicialmente, havia um patrimônio só que pertencia à família, embora administrado pelo pater. Numa fase mais evoluída do Direito Romano, surgiram patrimônios individuais, como os pecúlios, administrados por pessoas que estavam sob a autoridade do pater”. [20]


A mulher, não tinha direito a possuir bens, não possuía capacidade jurídica, a ela apenas cabia os afazeres domésticos, dependendo inteiramente do marido.


Conforme salienta Engels,[21] o homem possuía muito mais liberdade do que o restante da família, seja ela civil ou moral. Assim, atitudes que para a mulher eram encaradas como crimes e penalizadas severamente, para o homem era algo considerado honroso, ou, quando muito, uma leve mancha moral que carregava com satisfação, como era o caso do adultério.


Ademais, em virtude do absolutismo do homem, a paternidade não podia ser questionada, a não ser nos casos em que fosse comprovado não ter havido a coabitação ao tempo da concepção. Desta forma, “a família romana, longe de ser uma organização democrática alicerçada no princípio ético da afeição, tal qual a moderna, apresenta antes as características de uma entidade política, fundada no princípio da autoridade”.[22]


Para os romanos, era obrigatório ter filhos para se perpetuar os cultos religiosos, mas não bastava apenas ter filhos, era necessário que esses fossem frutos do casamento. Fustel de Coulanges[23] complementa que os filhos que não fossem gerados pela esposa não podiam fazer parte do culto e oferecer refeições fúnebres. Todavia, a falta de filhos declinavam consequências cruéis aos considerados estéreis, de regra, atingindo somente às mulheres por estarem estas ligadas à gestação e não haver na época formas de provar a esterilidade masculina, aplicando como sanção à anulação do casamento e à exclusão da sociedade.


Em vista disso, surgiu o instituto da adoção, favorecendo os casais que realmente não pudessem ter filhos, vez que, não se tratava de uma opção, em ter filhos e sim uma exigência.Fustel de Coulanges[24] menciona que com o passar dos anos a mulher passou a desempenhar papel importante na família romana:


“A mulher tem direitos porque tem seu lugar no lar, sendo a encarregada de olhar para que não se extinga o fogo sagrado. É a mulher, sobretudo, que deve estar atenta a que este fogo se conserve puro, invoca-o e oferece-lhe sacrifícios. Tem pois também o seu sacerdócio. Onde a mulher não estiver, o culto doméstico acha-se incompleto e insuficiente. Grande desgraça para os gregos é ter o “lar sem esposa”. Entre os romanos a presença da mulher é de tal modo indispensável ao sacrifício que o sacerdote, ficando viúvo, perde o seu sacerdócio.”


A mulher aos poucos foi conquistando seu espaço no lar e na sociedade. Aos poucos, passou a ser responsável pela manutenção do culto, iniciando assim, uma nova fase, e mesmo sem autonomia, começou a cumular funções, através de seu sacerdócio doméstico.


 O Direto Romano marcou de forma expressiva o Direto de Família. Os conceitos de família e filiação eram alicerçados no casamento e no autoritarismo, imposto pela figura do pater, dando origem ao termo pátrio poder, hoje denominado poder familiar. Esses conceitos incorporaram-se ao antigo Código Civil brasileiro, sendo que ainda hoje se percebe a sua influência e seus resquícios na legislação vigente.


 1.1.2. A Família no Direito Canônico


O Direito Canônico, diferentemente do Direito Romano, foi marcado pelo advento do cristianismo. A partir desse momento só se instituíam famílias através de cerimônia religiosa.


Desta forma, o Direito Canônico pode ser compreendido como “o ordenamento jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana […] a denominação ‘canônico’ deriva da palavra grega Kánon (regra, norma), com a qual originariamente se indicava qualquer prescrição relativa a fé ou à ação cristã […]”. [25]


De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira,[26] o casamento sofreu uma grande variação em sua essência, pois o cristianismo elevou o casamento à sacramento. “[…] O homem e a mulher selam a sua união sob as bênçãos do céu, transformando-se numa só entidade física e espiritual e de maneira indissolúvel”. O sacramento do casamento não poderia ser desfeito pelas partes, somente a morte separaria a união indissolúvel entre um homem e uma mulher, simbolizada através da troca de alianças.


Segundo José Russo,[27] o surgimento dessa nova concepção ocorreu devido à decadência do Império Romano. Para ele “essa nova família veio alicerçada no casamento, sob a concepção de sacramento consolidada na livre e espontânea vontade dos nubentes. A mulher mereceu um lugar próprio, passando a ser responsável pelo governo doméstico e pela educação dos filhos”.


Com o fortalecimento do poder espiritual, a Igreja começou a interferir de forma decisiva nos desígnios familiares. De acordo com Caio Mário da Silva Pereira,[28] a partir desse momento a Igreja passou a empenhar-se em combater tudo o que pudesse desagregar o seio familiar:


“O aborto, o adultério, e principalmente o concubinato, nos meados da Idade Média, com as figuras de Santo Agostinho e Santo Ambrósio; até então o concubinatus havia sido aceito como ato civil capaz de gerar efeitos tal qual o matrimônio. Os próprios reis mantiveram por muito tempo esposas e concubinas e até mesmo o clero deixou-se levar pelos desejos lascivos, contaminando-se em relações carnais e devassas, sendo muito comum a presença de mulheres libertinas dentro dos conventos.”


Nesta fase, as mulheres deixaram de ser raras, como outrora, mas por outro lado, a supremacia do casamento fez com que o adultério fosse abominado pela sociedade, sendo praticado de forma discreta, ou seja, os homens mantinham suas concubinas escondidas da família e da sociedade.


Na Grécia existia um machismo muito evidente e o catolicismo fortaleceu a autoridade do homem, dentro da célula familiar, tornando-o chefe absoluto. Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira[29] acrescenta:


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“A influência ou autoridade da mulher era quase nula, ou diminuída de toda a forma: não se justificava a mulher fora de casa. Ela estava destinada a inércia e a ignorância. Tinha vontade, mas era impotente, portanto, privada de capacidade jurídica. Consequentemente, na organização familiar, a chefia era indiscutivelmente do marido. Este era também o chefe da religião doméstica e, como tal, gozava de um poder absoluto, podendo inclusive vender o filho ou mesmo matá-lo.”


A mulher estava condenada aos afazeres domésticos e ao cuidado com os filhos, não podendo se ausentar do lar sem o consentimento do marido. O cristianismo acentuou a autoridade do homem, tornando-o chefe do lar e sacerdote da família, com poderes sobre a vida e morte de seus integrantes.


Contudo, com o passar do tempo nasceu um novo conceito de família, ou seja, aquela formada não unicamente pelo sacramento do casamento, mas pelo elo do afeto, surgindo assim, a família da pós-modernidade, o qual será analisado a seguir.


1.1.3 Família na Pós-Modernidade


Inicialmente é salutar diferenciar dois períodos da História: o período da modernidade e da pós-modernidade.


Eliane Goulart Martins Carossi[30] explica que a modernidade nasceu pela nova consciência, trazida através da Revolução Francesa em 1789, sendo que a forma da sociedade moderna foi marcada pela Revolução Industrial no final do século XVIII. “Portanto, para ser uma sociedade moderna deveria ser necessariamente, uma sociedade industrial. A partir de então, o mundo vive em processo de crise e renovação permanente”.


 A autora conceitua o termo pós-modernidade citando Krishan Kumar: [31]


“O pós-modernismo nasceu da ruptura com a era moderna ou clássica no último quartel do século XIX. Enquanto, na era moderna, as características principais eram a crença no progresso e na razão; a era pós-moderna é marcada por um caráter romântico e sentimental, tido como irracional e indeterminado, ligado à sociedade de massa e à cultura de massa.”


A partir do século XIX a família começou a voltar-se à afeição, deixando de ser uma instituição voltada a manter os bens e a honra. O modelo de família da atualidade, já não é mais a do autoritarismo, nem a que se forma pelo instituto do casamento, mas sim, àquela que se funde pelos laços de afeto.


Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka[32] enfatiza:


“Na idéia de família, o que mais importa – a cada um de seus membros, e a todos a um só tempo – é exatamente pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças e valores, permitindo, a cada um, se sentir a caminho da realização de seu projeto pessoal de felicidade.”


A família da pós-modernidade é marcada pelo afeto entre seus membros e a constante busca pela felicidade. Segundo Pedro Belmiro Welter,[33] a partir desse momento histórico a família se abre para configurar-se em um mundo cruel, uma forma de abrigo, um pouco de calor humano, um lar onde entre seus membros se pratique a solidariedade, a fraternidade, e acima de tudo, os laços de afeto e amor. Esse é o sentido da família na atualidade.


Cumpre destacar que o Direito de Família, dentre todos os ramos do Direito, é o que mais avançou nos últimos tempos, visto que seu objeto são as relações interpessoais e que estas acompanham os passos da evolução social.


Rodrigo da Cunha Pereira[34] faz menção que a evolução da estrutura jurídica familiar desencadeou-se a partir da evolução científica, dos movimentos sociais e o crescente fenômeno da globalização. Para ele essas profundas mudanças possui suas raízes atreladas a alguns acontecimentos como: à Revolução Industrial, à redivisão do trabalho e à Revolução Francesa, tendo como ideais a liberdade, a igualdade e a fraternidade.


Para Eliane Goulart Martins Carossi,[35] a família iniciou sua passagem para a contemporaneidade com o ingresso da mulher no mercado de trabalho por volta de 1950 e com a conquista da igualdade entre os cônjuges. A partir da descoberta da pílula anticoncepcional, em meados de 1967, a família deixou de ser uma entidade econômica e o casamento passou a ser alicerçado no amor e não mais em um contrato econômico.


A família contemporânea caracteriza-se pela diversidade e segundo Maria Cláudia Crespo Brauner,[36]os métodos contraceptivos trouxeram a possibilidade de se organizar os nascimentos com autonomia, deixando de ser a procriação um dos motivos para a união entre um homem e uma mulher:


“Os esposos, cônjuges ou companheiros se devem reciprocidade antes de tudo, afeição, dedicação e assistência mútua. Pode-se afirmar que, no presente, um casal se une para buscar a felicidade por meio de relações de afeição e solidariedade, que significam os pilares de base para a existência da família moderna. Chega-se assim a uma concepção nuclear de família.”


O afeto passou a ser um elemento essencial para a união entre pessoas, tornando-as cúmplices do amor e da felicidade, formando assim, entidades familiares diversas, tuteladas ou não pelo Direito. Atualmente, têm-se famílias com filhos, sem filhos, homossexuais, produto de reprodução artificial, entre outras. “Os avanços da ciência e da tecnologia criaram novas expectativas sociais e novas possibilidades para o Direito de Família, que não tem alternativa, senão sensibilizar-se com essas novas formas de organização social”. [37]


A família contemporânea é caracterizada pela diversidade, justificada pela incessante busca pelo afeto e felicidade. Dessa forma, a filiação também tem suas bases no afeto e na convivência, abrindo-se espaço para a possibilidade da filiação não ser somente aquela que deriva dos laços de sangue, mas também do amor e da convivência, como é o caso da filiação socioafetiva.


1.2 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DA FAMÍLIA E DA FILIAÇÃO


No âmbito familiar, as sucessivas mudanças legislativas iniciaram na metade do século passado e culminaram com o advento da Constituição Federal de 1988. A partir daí, surgiram inúmeras leis tentando adequar-se às novas perspectivas da família e da sociedade.


Em virtude da evolução da humanidade e do próprio pensamento, o que era aceitável antigamente, hoje, passa a ser abominado pela sociedade, como por exemplo, o poder do pai sobre a vida e a morte dos filhos, ou ainda, a possibilidade de anular o casamento se constatada a esterilidade. Dentro dessa caminhada evolutiva o Direito precisa necessariamente acompanhar os anseios sociais, sob pena de transformar-se em letra morta.


Em virtude dessas mudanças, muitas situações foram surgindo e aspirando respaldo legal, tais como a união estável, a adoção, a investigação da filiação, a guarda e o direito de visitas.


1.2.1 Família e Filiação antes da Constituição de 1988


As leis que surgiram antes da Constituição Federal brasileira de 1988 buscavam sistematizar o modelo da família patriarcal, privando da tutela jurisdicional as demais espécies de entidades familiares e os filhos que não fossem havidos na constância do casamento.


O grande marco histórico no que concerne à legislação foi a promulgação da Lei nº 3.071,[38] de 1º de janeiro de 1916 (antigo Código Civil). Este Código, projeto de Clóvis Beviláqua, é uma obra de seu tempo, iniciada em abril de 1889 e concluída em novembro do mesmo ano, a qual só foi aprovada em 1912 pelo Senado Federal, entrando em vigor a partir 1° de janeiro de 1917. [39]


Luiz Edson Fachin[40] enfatiza que o sistema adotado pelo Código Civil de 1916 tratava de um sistema fechado que abordava apenas disposições que favoreciam à classe dominante. Desta forma, não foram codificados institutos que a sociedade da época não queria ver disciplinados, como o modo de apropriação de bens e a vida em comunhão.


O mesmo autor afirma que, frente o Código de Beviláqua, ser sujeito de direito significava ser “sujeito de patrimônio”, ou seja, ter muitos bens. Para tanto, precisava comprá-lo, sendo em igual medida “sujeito do contrato”, bem como, sujeito de família, recebendo o Código a designação de o ‘Estatuto Privado do Patrimônio’, exatamente porque se coloca como a constituição do homem privado titular de um patrimônio, idéia projetada, em parte, para o CCB de 2002.


Nesta esteira, a legislação cível daquela época, totalmente patrimonialista, valorizava mais o “ter” do que o “ser” e direcionava-se aos grandes proprietários, sendo que a maioria das pessoas não sabiam de seus direitos e, muito menos, que podiam invocá-los.


Guerreiro Ramos[41] aduz que, à época no Brasil havia uma população extremamente agrícola, aproximando-se dos dez milhões de habitantes, sendo que destes, mais ou menos, um milhão e meio eram escravos, um milhão de índios, cinco milhões de agregados em fazendas e engenhos e trezentas ou quatrocentas mil pessoas pertenciam às famílias de proprietários de escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho.


Isso justifica a legislação ser voltada para uma pequena parte da sociedade, possuindo como enfoque, a família, a propriedade e o contrato, conforme destaca a seguir Luiz Edson Fachin:[42]


“Os três pilares fundamentais, cujos vértices se assenta a estrutura do sistema privado clássico, encontram-se na alça dessa mira: o contrato, como expressão mais acabada da suposta autonomia da vontade; a família, como organização social essencial à base do sistema, e os modos de apropriação, nomeadamente a posse e a propriedade, como títulos explicativos da relação entre as pessoas sobre as coisas.”


Na época, a família patriarcal posicionava-se como pilar central da legislação, exemplo disso foi a indissolubilidade do casamento e a capacidade relativa da mulher. O artigo 233 do Código Civil de 1916[43] designava o marido como único chefe da sociedade conjugal. Ademais, à mulher era atribuída apenas a função de colaboração no exercício dos encargos da família, conforme artigo 240[44] do mesmo diploma legal.


Neste diapasão, Eliane Goulart Martins Carossi[45] afirma que a legislação cível trouxe para a época uma codificação totalmente preocupada com a conservação do casamento, dedicando-lhe uma parte especial. Cuidadosamente, foram disciplinados os impedimentos para a sua realização, suas formalidades, direitos e deveres dos cônjuges, regimes de casamento, entre outros.


No que diz respeito à filiação, havia evidente distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, naturais e adotivos, registrado no assento de nascimento a origem da filiação. Quanto aos bens, conforme se observa o disposto no artigo 377, do mesmo Código: “Quando o adotante tiver filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de adoção não envolve a de sucessão hereditária”. Outro exemplo claro é o fato de que “o filho ilegítimo, reconhecido por um dos cônjuges, não poderia residir no lar conjugal sem o consentimento do outro”, conforme preceitua o artigo 359.


Quanto ao instituto da guarda, Maria Alice Zaratin Lotufo[46] lembra que o Código Civil de 1916 atribuía a guarda ao consorte não culpado pelo desquite, sendo que, somente em situações gravíssimas a perdia. Portanto, tal instituto estava atrelado à culpa na separação e não no bem-estar da criança.


Em 27 de agosto de 1962 foi publicada a Lei nº 4.121,[47] que dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada, denominado Estatuto da Mulher Casada. Essa lei revogou vários dispositivos do Código Civil de 1916,[48] e dentre outros direitos, a mulher obteve o direito de exercer o poder familiar, mesmo constituindo novo casamento. Igualmente, passou a ter direito de participar conjuntamente com o marido no exercício do poder familiar, podendo exercê-lo completamente na ausência deste, contudo, ainda prevalecendo a vontade do homem, conforme redação do parágrafo único do artigo 380 do Código Civil de 1916 (Redação esta determinada pela Lei 4.121 de 1692): “divergindo os genitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para a solução da divergência” .


Apesar disso, a mulher mudou sua posição dentro da entidade familiar, passando a participar efetivamente da administração do lar. Essa lei representou uma das maiores conquistas da classe feminina perante a legislação brasileira.


Em meados de 1949 entrou em vigor a Lei nº 883,[49] que trata sobre o reconhecimento dos filhos ilegítimos, permitindo seu reconhecimento, através de ação de reconhecimento de filiação, tendo direito inclusive a alimentos provisionais, se lhe for favorável a decisão de primeira instância, devendo para isso estar dissolvida à sociedade conjugal.


Aos filhos, foi reconhecida a igualdade de direitos, independente da natureza da filiação, inclusive o direito à herança, como também o direito do filho, mesmo ilegítimo, poder acionar o pai à prestação de alimentos, em segredo de justiça. O grande avanço desta legislação foi a proibição de qualquer menção à filiação ilegítima no registro civil, deixando de lado a postura preconceituosa do qual o legislador se fez valer no texto da Lei nº 3.071 de 1916.


Mais tarde, no ano de 1977, entrou em vigor a Lei nº 6.515,[50] que regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos e dá outras providências, denominada Lei do Divórcio. A Lei do Divórcio teve grande significado, vez que concedeu o direito à mulher poder optar ou não pelo uso do nome de família de seu marido. Outra mudança foi o Regime Parcial de Bens ser elevado a status de regime legal e a possibilidade dos vínculos familiares se encerram com o divórcio.


Além disso, a referida lei permitiu o reconhecimento dos filhos ilegítimos, mesmo na vigência do casamento, reconhecendo estes como titulares de direitos, sendo que na vigência da Lei 883 de 1949, somente poderiam ser reconhecidos os filhos adulterinos se a sociedade conjugal fosse extinta. Desta feita, a Lei do Divórcio representou grande avanço na conquista dos direitos dos filhos, vez que lhes conferiu o direito de serem reconhecidos, independente do estado civil dos genitores e, ao mesmo tempo, conferiu-lhes direitos sobre o patrimônio do pai.


Apesar das modificações mencionadas, manteve-se a culpa como motivo para o deferimento da guarda dos filhos menores a ser atribuída ao cônjuge não culpado pela separação. Conforme Maria Alice Zaratin Lotufo [51] os filhos menores ficariam com o cônjuge que não houvesse dado causa á separação. Se, no entanto, ambos fossem culpados, os filhos ficariam com a mãe.


Posteriormente, aprovou-se a Lei nº 6.697, de 1979, que regulava a assistência, à proteção e à vigilância a menores, denominada como Código de Menores. Eliane Goulart Martins Carrosi[52] afirma que essa lei criou a adoção plena, reconhecendo os direitos sucessórios ao adotado e adoção simples, deferindo ao adotado metade dos bens que coubesse ao filho legítimo. O Código de Menores foi criado com o objetivo primordial de regularizar a situação dos meninos e meninas encontrados nas ruas dos grandes centros urbanos. Estes eram considerados menores irregulares. Dessa forma, a aprovação da referida lei esteve atrelada a questões de segurança pública e não na proteção integral às crianças que se encontravam em situação de risco.


O referido código tratava de uma legislação discriminatória, onde seus dispositivos faziam punir os denominados “menores delinquentes”, pois se acreditava que estes não poderiam se adaptar à vida em sociedade, devendo ser afastados.


 Antes da Constituição Federal de 1988, os filhos classificavam-se em: biológicos, legítimos, ilegítimos, naturais, espúrios, adulterinos, incestuosos e adotivos. Conceitos totalmente retrógrados e preconceituosos, que levaram muitas décadas para serem abandonados pelo legislador.


1.2.2 Família e Filiação após a Constituição de 1988


A partir da Carta Magna de 1988 a família recebeu novos contornos, vislumbrando princípios e direitos conquistados pela sociedade. Diante da nova perspectiva da família, o modelo de família tradicional passou a ser mais uma forma de constituir um núcleo familiar, que em conformidade com o artigo 266 passa a ser uma comunidade fundada na igualdade e no afeto:


Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. 

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. 

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
 
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

§ 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”
(grifos nossos) 

A Constituição Federal de 1988 propiciou uma profunda mutação na estrutura social e familiar, por isso foi denominada como “Constituição Cidadã”. Uma nova base jurídica foi lançada visando auferir o respeito aos princípios constitucionais, tais como a igualdade, liberdade, e acima de tudo o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.[53]


Vários princípios constitucionais foram adotados pelo Direito de Família e a partir deles foi transformado o conceito de família, passando esta a ser considerada uma união fundada no amor recíproco.


Sobre as inovações Belmiro Pedro Welter[54] pronuncia-se:


“Na leitura dos dispositivos constitucionais que albergam os interesses da família, a Constituição Federal, ao contrário da visão moderna de proteção exclusiva da entidade familiar, permitiu que se reconhecessem constitucionalmente, em perspectiva pós-moderna, dois princípios eventualmente, considerados antagônicos: proteção à unidade familiar e o de proteção aos filhos, considerados em sua individualidade.” (grifo nosso)


O legislador mudou o enfoque da legislação, deixando de oferecer proteção especial ao casamento, aos filhos legítimos, para priorizar a proteção da família à pessoa dos filhos de forma igualitária.


 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior Nunes[55] enfatizam que as inovações da Constituição em conceder proteção integral às crianças deve-se ao fato de que, “o país vivia (e ainda vive) um momento social difícil, em que havia marginalização da criança, que era colocada de lado, no processo de integração social. Tal preocupação fez com que o constituinte de 1988 destinasse longo capítulo à família, à criança, ao adolescente e ao idoso”.


No dia 20 de novembro de 1989 foi instituída a Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre os direitos da criança e do adolescente, aprovada em assembléia geral, ocorrida em Nova Iorque e ratificada pelo Brasil, através do Decreto de nº 99.710/99. Dessa feita, surgiu uma nova visão de responsabilidade e no intuito de positivá-la em 1990 foi editada a Lei 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que representou um grande avanço no reconhecimento dos direitos dos mesmos.


Antonio Ezequiel Inácio Barbosa[56] informa que com o vigência do ECA o reconhecimento do estado de filiação passou a ser direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.


É notório ressaltar que antes da promulgação do ECA, as crianças eram marginalizadas e ficavam à mercê do amparo social e jurisdicional. Após a vigência dessa lei, foi instaurado o princípio da proteção integral dos menores, conforme prescreve o artigo 4º do referido diploma legal:[57]


Art. 4. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:


a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;


b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;


c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;


d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.” (grifo nosso)


Nessa linha de pensamento foi necessário buscar unir esforços entre a família, a comunidade e o poder público, com o objetivo de efetivar os novos direitos prescritos pelo ECA. Hoje, vê-se em bairros e comunidades pobres programas do governo sendo implantados, Organizações não Governamentais (ONGs), que buscam arrecadar renda e propiciar cursos profissionalizantes e retirar os jovens da clandestinidade, dando-lhes uma oportunidade. [58]


Torna-se de fundamental importância trazer à baila a inovação contida na Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992,[59] que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. O presente diploma concedeu legitimidade ao Ministério Público para ingressar com ação de investigação de paternidade, quando conste no registro civil apenas a filiação materna, e que hajam elementos suficientes para se obter o reconhecimento da paternidade. Luiz Edson Fachini[60] evidencia que, “esta Lei representa um avanço no sentido de viabilizar o direito de toda a criança de ter um pai e uma mãe e de incumbi-los da responsabilidade de criá-los, ou de pelo menos, colaborar com o sustento e sua educação”.


A Lei 10.406 de 2002, que institui o Novo Código Civil brasileiro, é fruto do projeto de lei 634/75, a qual teve como relator o parlamentar Ricardo Fiúza. A mesma, foi aprovada e entrou em vigor após sua publicação no Diário Oficial da União, no dia 11 de janeiro de 2002. A presente lei foi sancionada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso no dia 10 de janeiro de 2002. Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama,[61] a redação inicial aprovada pela casa de origem, foi profundamente alterada, desde sua apresentação até sua apreciação no Senado, sendo que decorreu período superior há vinte anos.


Dessa forma, temos um Código que apesar de novo, na época de sua vigência já estava desatualizado. Tendo em vista que a sociedade é mutável e que a legislação precisa acompanhar essa evolução, o lapso temporal de vinte anos representou grande perda na conquista de novos direitos. Os direitos que seriam novos, já haviam sido contemplados pela Constituição Federal, não representando grande avanço e sim, em alguns aspectos, um retrocesso.


Gisele Leite,[62] no texto “O Novo Direito de Família” elenca algumas mudanças significativas na legislação. Para ela é evidente a mudança na estrutura do Código em relação ao Direito de Família, pois diferentemente de outrora, atualmente divide-se em direito pessoal, patrimonial, união estável, tutela e curatela. No antigo Código, dividiam-se em casamento, relações de parentesco e institutos protetivos da tutela, curatela e ausência.


Maria Alice Zaratin Lotufo[63] lembra que foi a partir do Código Civil de 2002, que o legislador voltou-se para o bem-estar do menor e para a satisfação de seus reais interesses. Dessa feita, desvinculou-se o instituto da guarda à questão da culpa dos pais na separação, conforme artigo 1.584 do referido diploma legal:


“Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe […]”.


Apesar dos avanços, em alguns aspectos, o legislador optou por se omitir, como é o caso da ausência de dispositivos que regulamentasse o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou segundo a autora, a proibição quanto à celebração não solene do casamento tratando-o inexistente.


Além disso, Maria Alice Zaratin Lotufo[64] destaca que o legislador omitiu-se na regulamentação, no que diz respeito à família monoparental, apesar das estatísticas mostrarem que vinte e seis por cento dos brasileiros vivem dessa forma. Outro destaque é no que se refere à exigência mantida e contida no artigo 1.566, do Código Civil, que firmou o dever de fidelidade conjugal, um dos mais importantes deveres elencados.


Nesse sentido, Gisele Leite[65] ressalta a mais importantes das alterações, codificadas, como sendo,


“[…] aquela que diz respeito à isonomia conjugal, consagrando que pelo casamento homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, ou companheiros, e são responsáveis pelos encargos da família (a saber: a fidelidade recíproca, a vida em comum no domicílio conjugal ou more uxório, a mútua assistência e o sustento, guarda e educação dos filhos, com o acréscimo do respeito e consideração mútuos)”.


Conforme anteriormente mencionado, o novo Código Civil só veio regulamentar direitos já tutelados pela Constituição Federal e leis esparsas editadas antes de sua vigência.


Considerações Finais


O grande marco histórico, na conquista de direitos da família e da filiação, foi a promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir desta foi reconhecida a união estável, como entidade familiar tutelada jurisdicionalmente e também ficou vedada qualquer discriminação em virtude da origem da filiação. Igualmente, a família incorporou o pensamento da contemporaneidade (igualdade e afeto), à luz dos princípios trazidos pela Magna Carta e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, objeto de estudo no próximo capítulo.


 


Referências Bibliográficas

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Notas:

[1] Texto elaborado como resultado  do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Direito, na área de Direito de Família, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, no Núcleo Universitário de Guaporé, da Universidade de Caxias do Sul, em  julho de 2009.

[2] MEDEIROS, Noé. Lições de Direito Civil: Direito de Família, Direito das Sucessões. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições, 1997. p. 24.

[3] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 12.

[4] ENGELS, Friedrich. A origem da família da propriedade privada e do Estado: Texto Integral. Traduzido por Ciro Mioranza. 2. ed. rev. São Paulo: Escala, [S.d]. p. 31-7. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, v.2).

[5] ENGELS, op. cit., p. 34-5.

[6] Idem, ibidem.

[7] MEDEIROS, op. cit.,  p. 31-2.

[8] ENGELS, op. cit., p. 47.

[9] Idem, ibidem.

[10] Idem, p. 49.

[11] ENGELS, op. cit., p. 58.

[12] COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. Traduzido por Fernando de Aguiar. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 47.

[13] Idem, p. 35.

[14]ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Traduzido por Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1978. p. 10-1.

[15] ARIÉS, op. cit., p. 11.

[16] COULANGES, op. cit., p. 36

[17] Pater familias era o mais elevado estatuto familiar (status familiae) na Roma Antiga, sempre uma posição masculina. O termo Latim significa, literalmente, “pai da família”. O termo pater se refere a um território ou jurisdição governado por um patriarca. O uso do termo no sentido de orientação masculina da organização social aparece pela primeira vez entre os hebreus no século IV para qualificar o líder de uma sociedade judaica; o termo seria originário do grego helenístico para denominar um líder de comunidade.

[18] GOMES, Orlando. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 33.

[19] COULANGES,  op. cit., p. 36.

[20] WALD, Arnoldo. O novo direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 10.

[21] ENGELS, op. cit., p. 81.

[22] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento da paternidade e seus efeitos. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 7.

[23] COULANGES, op. cit., p. 36.

[24] Idem, p. 99.

[25] WALD, op. cit.,  p. 53-4.

[26] PEREIRA, Rodrigo da Cunha,  2003, op. cit.,  p. 25.

[27] RUSSO, José. As Sociedades Afetivas e Sua Evolução. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v.7, n. 32,  p. 43, out – nov. 2005.

[28] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 3v. p. 16 -7.

[29] PEREIRA, Rodrigo da Cunha, 2003, op. cit.,  p. 61.

[30]CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no século XXI. Revista Faculdade de Direito, Caxias do Sul. v. 12, p. 55, 2003. 

[31]KUMAR, Krishan. Da sociedade pós- industrial à pós moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 79-111. Apud. CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no século XXI. Revista Faculdade de Direito, Caxias do Sul. v. 12, p. 55, 2003. 

[32] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 8, abr-jun. 1999.

[33] WELTER, Pedro Belmiro. Igualdade entre filiação biológica e socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 31.

[34] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família, direitos humanos, psicanálise e inclusão social. Revista Brasileira de Direito de Família.  Porto Alegre, v. 4, n. 16, p. 05, jan-fev-mar. 2003.

[35] CAROSSI, op. cit., p. 49.

[36] BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. O direito de família: descobrindo novos caminhos. São Leopoldo: Edição da Autora, 2001. p. 10.

[37] ALDROVANDI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O direito de família no contexto das organizações socioafetivas: Dinâmica, Instabilidade e Polifamiliaridade. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, v. 7, n. 34, p. 6, fev-mar. 2006.

[38] BRASIL. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916: Código Civil Brasileiro. In: Código Civil. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1.118 -1453.

[39] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no direito obrigacional. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 259.

[40] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 298.

[41] RAMOS, op. cit., p. 46.

[42] FACHIN, 2003. op. cit., p. 12-3.

[43] Art. 233.  O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251). Compete-lhe:

I – a representação legal da família;

II – a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido incumbir administrar, em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial (arts. 178, § 9°, I, c, 274, 289, I e 311);

III – o direito de fixar o domicílio da família, ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao juiz, no caso de deliberação que a prejudique;

IV – prover a manutenção da família, guardadas as disposições dos arts. 275 e 277.

[44] Art. 240.  A mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta.

Parágrafo único.  A mulher poderá acrescer aos seus os apelidos do marido.

[45] CAROSSI, op. cit., p. 66.

[46] LOTUFO, Maria Alice Zaratin. A guarda e o exercício do direito de visita. Revista do Advogado. São Paulo, v. 27, n. 91, p. 95, maio, 2007.

[47] BRASIL. Lei n. 4.121, 27 de agosto de 1962: Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada: Código Civil Brasileiro. In: Código Civil. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 502.

[48] Segundo disposto no artigo 1º da referida lei, os artigos 6º, 233, 240, 242, 246, 248, 263, 269, 273, 326, 380, 393, 1.579 e 1.611 do Código Civil e 469 do Código do Processo Civil, passam a vigorar com nova redação.

[49] BRASIL. Lei n. 833, de 21  de outubro  de 1949: Dispõe sobre o reconhecimento dos filhos legítimos. In: Código Civil. 19 ed. São Paulo: Sariva, 2004.

[50] _______. Lei n. 6.515, de 26  de dezembro  de 1977: Dispõe os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências. In: Código Civil. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 623-30.

[51] LOTUFO, op. cit., p. 95.

[52] CAROSSI, op. cit., p. 51. 

[53] O princípio da dignidade humana será objeto de estudo no capítulo 2, item, 2.1.1, quando será abordado os princípios norteadores da família e da  filiação. Vide pg. 33.

[54] WELTER, op. cit., p. 68.

[55] ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES, Vidal Serrano Júnior. Curso de direito constitucional. 1. ed. rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 511.

[56] BARBOSA, Antonio Ezequiel Inácio. Ao encontro do pai. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, v. 4, n. 16, p. 60, jan-fev-mar. 2003.

[57] BRASIL. Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990: Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. In: BRASIL. Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004.

[58] Um exemplo de mobilização nacional em prol de arrecadar fundos e implantar projetos com vistas às crianças e adolescentes, é o programa anual da emissora rede globo de televisão, “Criança Esperança”.

[59] BRASIL. Lei n. 8.560, de 29  de dezembro  de 1992: Dispõe sobre a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. In: Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 821-2.

[60] FACHINI, Luiz Edson (coord.), comentários á Lei nº 8.560/92. Averiguação Oficiosa e investigação de paternidade. Curitiba: Gênesis, 1995. In: BRAUNER, Maria Crespo. O direito de família: descobrindo novos caminhos. São Leopoldo: Edição da Autora, 2001. p. 14.

[61] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Reprodução assistida heteróloga sob a ótica do Novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v.. 5, n. 19, p. 43, ago-set. 2003.

[62] LEITE, Gisele. O Novo Direito de Família. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre, v. 9, n. 49, p. 112-20, ago-set. 2008.

[63] LOTUFO, op. cit., p. 95.

[64] Idem, ibidem.

[65] LEITE, 2008, op. cit., p. 120.


Informações Sobre os Autores

Michele Amaral Dill

Mestre em Desenvolvimento pela UNIJUÍ, Professora do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul/UCS

Thanabi Bellenzier Calderan

Advogada, Funcionária Pública, Mestranda em Ambiente e Desenvolvimento pela UNIVATES


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