Resumo: As alterações nas relações familiares apontam para a valorização do afeto em detrimento das determinações biológicas. Ao longo do tempo, a família patriarcal e rígida foi sendo substituída por formas múltiplas de núcleos familiares. Constatou-se que o afeto, sendo um sentimento, não comporta determinismos legais e consagra relações que o têm como base, mesmo que essas não estejam dentro dos parâmetros do ordenamento jurídico. A contrário senso, se o afeto não surge e cresce espontaneamente não há como impô-lo. Recentes questionamentos judiciais parecem ir de encontro à valorização do afeto ao determinar que os pais teriam a obrigação de amar seus filhos, sob pena de serem responsabilizados civilmente. Poderia a ausência de afeto ser considerada um ato ilícito?
Palavras-chaves: Família, valorização, afeto, responsabilidade, civil
Abstract: Changes in family relationships point to the appreciation of affection at the expense of biological determinations. Over time, the rigid patriarchal family was being replaced by multiple forms of family units. It was found that the affection, being a feeling, it does not subordinate to established rules and devote relations that are based, even if these are not within the parameters of the law. The opposite sense, if not the affection appears and grows wild there is no way to impose it. Recent legal questions seem to go against the appreciation of affection to determine that parents have the obligation to love their children, under penalty of being held liable civilly. Could the absence of affection be considered an illegal act?
Keys words: Family, appreciation, affection, liability, civil
Sumário: 1. Introdução; 2. Breve Histórico das Mudanças na Estrutura Familiar. 2.1. Mudanças na estrutura da família brasileira. 2.2. A família nas Constituições Brasileiras. 2.3. O Código Civil Brasileiro de 2002. 3. A Valorização do Afeto nas Relações Familiares. 4. Responsabilidade Civil. 4.1. Elementos da responsabilidade civil. 4.1.1. A conduta humana. 4.1.2. O dano. 4.1.3. Nexo de causalidade. 4.2. Responsabilidade subjetiva. 4.3. Responsabilidade objetiva. 4.4. Função da responsabilidade civil. 5. Dano Moral. 5.1. O princípio da dignidade da pessoa humana e o dano moral. 6. Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo
1 INTRODUÇÃO A família, por sua importância social na formação do cidadão, foi alçada a base do Estado Democrático de Direito do Brasil por previsão constitucional expressa.
Com o passar dos anos, a família foi sofrendo alterações em seus contornos, indo de patriarcal e hierarquicamente rígida a formas flexíveis e múltiplas.
Apontado com um dos responsáveis por essa transformação, o afeto, ao ser tido como indispensável na configuração das relações genuinamente familiares, permitiu, como exemplos, o reconhecimento da união estável, a igualdade entre os filhos e a filiação sócio-afetiva, situações inimagináveis em um passado não muito distante.
Nas conquistas referidas verifica-se que o afeto pré-existente foi protegido ao ter sua importância reconhecida em leis e decisões judiciais.
No entanto, recentes questionamentos judiciais procuram afirmar o caminho inverso: ao invés de proteger uma relação pautada no afeto, busca-se responsabilizar aquele que supostamente deveria dedicar comportamento afetuoso ao outro.
Em outras palavras, há situações, mormente a relação paterno-filial, que têm como base o amor, o afeto. Caso ele não ocorra, é possível reprimir civilmente aquele que não dedica o sentimento amoroso comumente esperado?
Para melhor elucidar a questão e emanar conclusões é imprescindível que se conheça as alterações históricas do contorno familiar, o sentido do afeto e os elementos da responsabilidade civil, como adiante será demonstrado.
2 BREVE HISTÓRICO DAS MUDANÇAS NA ESTRUTURA FAMILIAR
As mudanças estruturais nos vínculos familiares condicionam ou revelam as transformações radicais ocorridas no curso da História.
A origem da palavra família vem do vocábulo Fámulus que, em Latim, significa escravo doméstico e família, primordialmente, seria o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem.
O termo família, do modo como o conhecemos hoje, teria surgido em Roma, indicando um novo organismo social cujo chefe tinha sob suas ordens a mulher, os filhos e um certo número de escravos, submetidos ao poder do pater com
2.1 Mudanças na estrutura da família brasileira
Alguns traços da organização familiar vieram com os portugueses, parte de sua herança cultural, como o poder do patriarca, a submissão e reclusão da mulher.
“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade protetiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o Rei de Portugal quase que reina sem governar.”[1]
O sistema familiar brasileiro seguiu o modelo tradicional, revestindo-se de cunho patriarcal: a direção da sociedade conjugal cabia ao marido, com inúmeras restrições quanto à posição da mulher casada, que só se envolvia com afazeres domésticos e não tinha condições de realizar sozinha, sem a autorização do marido, qualquer tipo de negócio jurídico.
Pelas Ordenações Filipinas, a mulher necessitava de permanente tutela, porque tinha ‘fraqueza de entendimento’. O marido podia castigar sua companheira, ou matar a mulher, acusada de adultério.
“Se é verdade que ‘a escravidão permitiu o latifúndio’, não é menos certo que o latifúndio permitiu a família patriarcal que, sem ele, não teria base econômica para prosperar.”[2]
O monopólio da família sobre a vida de seus membros foi reforçado, durante séculos, pelo seu caráter exclusivamente rural e pelo isolamento dos núcleos urbanos no interior do país, favorecendo uma vida reclusa no latifúndio, estimulando a endogamia, os casamentos entre parentes, o que era, por sua vez, fator de fortalecimento social, político e econômico das famílias.
O casamento muitas vezes não se originava da vontade dos nubentes e sim, do interesse de suas famílias em formarem alianças .
Durante o governo Imperial, começa-se a notar a transição da família patriarcal para os embriões da família urbanizada. A mudança social acarretada pela decadência do latifúndio, pelo processo de urbanização e pela multiplicidade de novos tipos sociais foi desintegrando a família patriarcal.
A proclamação da República teve como um de seus principais efeitos a desvinculação do Estado em relação à Igreja.
Com o Decreto nº 181, de 24 de Janeiro de 1890, foi abolida a jurisdição eclesiástica, instituído o casamento civil e também a consagração do homem como o chefe da família, além de seu administrador e representante legal, com os direitos de fixar o domicílio, manter e educar os filhos, autorizar a mulher a exercer profissões e mais outras disposições discriminatórias.
O processo de urbanização, consideravelmente acelerado na República e depois da 1ª Guerra Mundial, exerceu ação diferenciadora sobre o grupo familiar.
A família definida pelo Código Civil Brasileiro de 1916 correspondeu ao modelo patriarcal tradicional, acrescido das influências da sociedade burguesa européia do final do século XIX e início do XX. Sua estrutura estava baseada em uma sociedade eminentemente rural, individualista e patriarcal. O conteúdo do Código demonstra claramente uma patrimonialização das relações jurídicas de família (o que pode ser constatado até quantitativamente, por haver mais artigos que disciplinam o interesse patrimonial do que os que disciplinam o interesse pessoal, dentro do próprio livro que trata do Direito de Família). Pode-se observar uma família preocupada principalmente com sua continuidade, relegando a segundo plano os interesses de seus membros.
Em sua estrutura original, o Código Civil impôs à mulher casada a condição de relativamente incapaz, fundou a família no casamento e cuidou apenas da chamada filiação legítima, vedando o reconhecimento dos filhos adulterinos e ilegítimos.
A família se constituía e se formava pelo casamento indissolúvel, tendo o marido como chefe da sociedade conjugal, sobrepondo-se à mulher e aos filhos. Nos casos em que o matrimônio se revelava mal sucedido, a principal alternativa era o desquite, que não atingia o vínculo jurídico, apenas colocava fim na vida em comum. O jurídico impunha-se sobre a realidade fática.
O Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121, de 27 de Agosto de 1962 (cuja disposição mais significativa foi a revogação da regra da incapacidade relativa da mulher casada), e a Lei do Divórcio, Lei nº 6.515, de 26 de Dezembro de 1977, iniciaram uma progressiva mudança para reverter o papel do homem como chefe da sociedade conjugal.
A Lei do Divórcio propiciou, de modo igualitário, a oportunidade dos cônjuges finalizarem o casamento e constituírem, livremente, nova família.
O desenvolvimento desigual por qual passou e passa o Brasil, permite que ocorra, ao mesmo tempo, uma gama variada de tipos familiares, desde o semipatriarcal até o grupo conjugal moderno desligado da tradição. Muitas vezes, o perfil das relações familiares reais se distancia dos modelos legais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990, respeitando o princípio da igualdade dos cônjuges, já normatizado na Constituição da República de 1988, estabeleceu que o pátrio poder poderá ser exercido em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, e que o dever de sustento, guarda e educação dos filhos cabe igualmente a ambos.
2.2 A família nas Constituições Brasileiras
“As Constituições brasileiras reproduzem as fases históricas que o país viveu, em relação à família, no trânsito do Estado liberal para o Estado social.”[3]
As Constituições Brasileiras de 1824 e 1891, de inspiração liberal, não fizeram qualquer referência à família. Na Constituição de 1891, havia um único artigo (art. 72, §4º) que se relaciona com a família, mas de forma indireta, ao prescrever que “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.”
Já em 1934, a Constituição dedicou um capítulo à família (arts. 144 a 147), sendo reconhecida somente a família legítima e prevendo-a como organismo social e jurídico, estabelecendo as regras do casamento indissolúvel. Como reflexo do Estado Social apareceu, pela primeira vez, a referência à ‘proteção especial do Estado’, que será repetida nas Constituições posteriores.
Da mesma forma como a anterior, a Constituição de 1937 (art. 124) restringiu a família à legítima. Impôs-se a educação como dever dos pais e os filhos naturais foram equiparados aos legítimos.
A de 1946 (art. 163 a 165) manteve a exclusividade da família legítima, acentuando o caráter indissolúvel do casamento ao prever que a “família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado”.
A Constituição de 1967 (art. 167) em nada alterou o tratamento já estabelecido.
Na de 1969, o art. 175 trouxe a noção de que a família é núcleo de comunhão de vida, instituído pelo casamento e merecedor da proteção do Estado. A Emenda Constitucional nº 9, de 28 de Junho de 1977, instituiu o divórcio.
Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo[4], a análise dos documentos produzidos durante toda a Assembléia Nacional Constituinte (para a elaboração da atual Constituição do Brasil) conduz à conclusão de que a proteção do Estado à família, sem qualificações ou restrições, aplica-se a qualquer tipo existente, e não apenas à legítima, e ainda que a família adquiriu claramente a posição de sujeito de obrigações e sujeito passivo de ação, ao lado do Estado.
A atual Constituição da República inovou ao retirar expressão da constituição anterior (Emenda nº1, de 1969, art.175) que só considerava família a constituída pelo casamento. Sendo assim, sem substituir a necessidade de casamento por qualquer outra característica restritiva, a Constituição pôs sob sua tutela qualquer tipo de família.
Inovou também ao garantir a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a paridade entre os filhos, a prevalência da afeição mútua nas relações de caráter pessoal, reconhecendo a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar.
Ao tratar da família, a Constituição da República deixa clara sua opção pela enumeração apenas exemplificativa dos ‘tipos’ familiares que merecem proteção estatal. Do princípio do pluralismo, decorre o da igualdade de importância entre as entidades familiares existentes.
2.3 O Código Civil Brasileiro de 2002
Em razão da grande transformação sofrida pela sociedade brasileira, as normas previstas no Código Civil de 1916 já não condiziam com a realidade.
Foi assim que na década de 60, iniciou-se um movimento para a elaboração de um novo Código Civil.
O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984. Mas, somente em 11 de Janeiro de 2002, foi editada a Lei n° 10.406, que institui o então Novo Código Civil Brasileiro, confirmando todas as inovações trazidas ao Direito de Família pela Constituição da República.
A supremacia masculina no casamento foi substituída pela direção conjunta do homem e da mulher que deverão concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos de seu trabalho, para o sustento da família e educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial.
Esse histórico da família, relatando as alterações ocorridas em sua estrutura, mostra que o determinismo biológico para configurar uma família encontra-se ultrapassado. A nova feição da família apresenta uma realidade fundada no afeto.
3 A VALORIZAÇÃO DO AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES
As transformações ocorridas na estrutura familiar são reflexos de um ‘movimento’ conhecido como valorização do afeto.
Valorizar o afeto significa dar maior importância ao vivido factualmente em decorrência dos laços de amor. É proteger a situação construída sobre uma base afetiva, mesmo que essa seja contrária ao imposto legalmente ou ao determinado biologicamente.
Por meio dessa tendência pode-se perceber que o afeto não é ‘controlável’ pela razão ou por ‘determinismos’ externos a ele.
O próprio significado original da palavra afeto denota a sua característica de voluntariedade, típica dos sentimentos amorosos, estando acima de qualquer imposição legal.
“Entre as tribos, na origem do povo romano, a atração natural de um indivíduo a outro se dizia affectio ou affectus, palavras compostas da preposição ad (= para) e de uma forma nominal do verbo facere (= fazer). Literalmente, affectio e affectus traduzem a idéia de ser feito um para o outro.”[5]
No final do século XIX, ainda sob a ótica do liberalismo, a família era uma estrutura hierarquizada, que privilegiava o patrimônio, sendo este o quadro familiar normatizado pelo Código Civil Brasileiro de 1916.
Essa visão foi sendo superada ao longo do século XX, dando lugar à valorização do afeto nas relações familiares.
A Constituição da República, com o tratamento destinado à família, consolidou o afeto como o elemento de maior importância para estabelecer as relações protegidas como familiares.
Assim, passou-se a entender que o afeto é o determinante das verdadeiras relações familiares, sendo ainda o objetivo final destas.
Esta valorização não quer significar que os vínculos biológicos devam ser postos à margem. Não; o que se busca é uma mudança de foco e não eliminação do biológico.
Os laços biológicos não necessariamente determinam os laços afetivos. Não se trata aqui de relação física de causa e conseqüência. Os laços de afeto derivam da convivência familiar e não do sangue.
Para haver família é preciso o afeto conjugal, este não no sentido do binômio homem – mulher, mas em sua acepção etimológica de “pessoas conjugando suas vidas intimamente, por um afeto que as enlaça especialmente, quanto aos fins e aos meios de vivência, convivência e sobrevivência.”[6]
Formada e unida pelo afeto, a família é instrumento para o desenvolvimento do indivíduo. Caso contrário, em nada contribui querer-se impor uma relação de liame biológico, se essa não subsiste como liame afetivo.
A família, hoje é “mais que fotos nas paredes, quadros de sentidos, possibilidades de convivência.”[7]
A valorização do afeto permitiu que fosse dada primazia à realidades outrora subjugadas ao friamente disposto em lei.
A filiação sócio-afetiva é um dos exemplos mais claros dessa valorização. Com ela foi possível enxergar que pai é aquele que educa, que ama, que contribui na formação da personalidade de seu filho. Esse é o verdadeiro vínculo entre pai e filho.
A filiação não é somente fundada no laço de sangue. Ao lado desse, desponta a importância do laço que surge entre pai e filho em momento posterior ao da concepção biológica. Ele vem da convivência, do respeito e amor mútuo.
“É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um dado ou um determinismo biológico, ainda que seja da natureza do homem o ato de procriar. Em muitas das vezes, a filiação e a paternidade derivam de uma ligação genética, mas esta não é o bastante para a formação e afirmação do vínculo; é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo elo, dia após dia.”[8]
Assiste-se, hoje, a ‘desbiologização’ da paternidade, sobrepondo-se a paternidade sócio-afetiva sobre as paternidades biológica e jurídica.
Dessa tendência pode-se concluir que para a formação da relação entre pai e filho, construída sobre a base do afeto, é necessário o desejo de ambos para que ela aconteça. Em uma relação que envolve amor não cabe imposição ou vontade de apenas uma pessoa.
Sonho que se sonha só é apenas um sonho, já dizia o poeta.
Porém, o afeto, de sentimento que une pessoas e como tal foi valorizado, passa a ser visto como fundamento para nova hipótese de responsabilidade civil, como pode-se colher do seguinte acórdão:
“INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.”[9]
Ação análoga foi julgada na 31ª Vara Cível de São Paulo sendo dado como procedente pelo juízo o pedido de responsabilização paterna por ausência de vínculo afetivo com o filho. Da referida sentença colhe-se:
“Vê-se, portanto, que não há fundamento jurídico para se concluir, primeiro, que não haja dever do pai de estabelecer um mínimo de relacionamento afetivo com seu filho …”[10]
Seria a responsabilidade civil instituto adequado para minorar ou superar o vazio deixado pela ausência de afeto?
4 RESPONSABILIDADE CIVIL
Responsabilidade deriva do vocábulo latino respondere, responder a alguma coisa. Em sentido amplo, representa a noção de se atribuir a uma pessoa o dever de assumir as conseqüências de um ato.
Do ponto de vista jurídico significa ser obrigado a responder, ser obrigado a reparar um dano, obrigação de assumir as conseqüências de um fato, “ter alguém se constituído garantidor de algo”[11].
No âmbito da responsabilidade civil o que interessa é saber identificar a conduta da qual reflete a obrigação de indenizar, que irá subjugar o patrimônio do ofensor ao seu cumprimento.
“O respaldo de tal obrigação (a responsabilidade), no campo jurídico, está no princípio fundamental da ‘proibição de ofender’, ou seja, a idéia de que a ninguém se deve lesar _ a máxima neminem laedere, de Ulpiano _ limite objetivo da liberdade individual em uma sociedade civilizada.”[12]
A natureza jurídica da responsabilidade civil é sancionadora. Em termos gerais, infringida a norma, decorre a responsabilidade civil como sanção, com caráter reparatório ou compensatório.
Dentro do instituto da responsabilidade civil há a divisão entre responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva.
O Código Civil Brasileiro de 2002 traz, como uma de suas maiores inovações, a consagração das possibilidades de reparação por dano exclusivamente moral e da responsabilidade objetiva, embora permaneça, ainda, a responsabilidade subjetiva como princípio geral.
4.1. Elementos da responsabilidade civil
Três podem ser considerados os elementos ou pressupostos gerais da responsabilidade civil: a conduta humana voluntária, o dano e o nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores.
A culpa não pode ser considerada elemento geral tendo-se em vista a responsabilidade objetiva, que prescinde desse elemento.
4.1.1 A conduta humana
A conduta humana, por ser voluntária, é o único ato capaz de ensejar responsabilidade, por não ser possível atribuir obrigação de reparar em decorrência de fato da natureza.
Na responsabilidade subjetiva, a conduta humana ensejará obrigação de reparar porque o infrator agiu com imprudência, negligência ou imperícia. Portanto, agiu com culpa por não ser diligente em seus atos, infringindo o dever geral de não prejudicar o outro. O indivíduo pode ser também obrigado a reparar por ter agido com dolo, ou seja, ter desejado aquele prejuízo à vítima.
Na responsabilidade objetiva, embora não presente o elemento culpa, está presente a vontade em agir daquela maneira; a vontade de executar alguma atividade considerada de risco ou mesmo uma atividade prevista em lei da qual um possível prejuízo a outrem desencadeará a obrigação de indenizar.
Para que enseje obrigação de indenizar, a conduta deve ser, regra geral, contrária ao direito; um ato ilícito, conforme dispõe o caput do art. 927 do Código Civil. No entanto, ressalte-se, é somente regra geral, pois o próprio parágrafo único da norma retrocitada prevê a possibilidade de uma conduta não contrária ao direito resultar em um dano ensejador de obrigação de reparar.[13]
A responsabilidade decorrente de ato ilícito baseia-se na idéia de culpa; a decorrente de ato lícito ou conduta não-culposa funda-se no risco da atividade do agente.
4.1.2 O dano
Somente se falará em responsabilidade civil se o ato provocar um dano a um bem jurídico.
O dano é a lesão a um interesse jurídico tutelado, um prejuízo, causado por conduta voluntária do infrator ao patrimônio de outrem.
“E o ‘interesse jurídico’ é sempre aquilo que determinada comunidade considera digno de tutela jurídica, razão pela qual, se modificado o que, na pessoa e em sua personalidade, considera-se digno de interesse, haverá imediato reflexo no conceito de dano.”[14]
Para haver responsabilização é necessário que haja um dano para cuja recomposição ou compensação necessite o lesado de buscar o Poder Judiciário.
“A materialização do dano ocorre com a definição do efetivo prejuízo suportado pela vítima.”[15]
O interesse atingido pode ser moral e material. Em termos de reparabilidade, o enfoque deve estar no dano causado, no reflexo sentido no patrimônio do lesado e não na natureza do direito atingido. Isto porque um prejuízo a um único bem pode acarretar dano material e moral, dependendo da posição e importância que tal bem ocupa na vida do lesado.
O dano material reflete no patrimônio de uma pessoa dotado de economicidade; o dano moral reflete no patrimônio sentimental, intelectual e social do indivíduo.
Os danos refletidos em bens de conteúdo econômico devem ser ressarcidos, procurando-se retornar ao status quo ante ou, não sendo isso possível, reparar o prejuízo com uma indenização. Os atos atentórios à personalidade, pela própria característica do interesse protegido, devem ser reparados por meio de compensação à vítima e sanção ao lesante.
Contudo, nem todo dano ocorrido é reparável. Para sê-lo, preciso é que seja um dano injusto.
4.1.3 Nexo de causalidade
Para que se configure o dever de indenizar não basta que uma pessoa tenha cometido um erro de conduta ou exerça uma atividade de risco e a vítima tenha sofrido um prejuízo. É necessário um nexo de causalidade entre esses elementos. Necessário que o erro de conduta (no caso da responsabilidade subjetiva) seja a causa do prejuízo.
O nexo causal permite apontar o responsável pelo dano e atribuir-lhe dever de indenizar.
Cabe ao lesado provar este nexo. Disso decorrem duas questões: a dificuldade de provar o nexo e a possibilidade da causalidade múltipla.
A primeira se deve à máxima de que cabe a quem alega o dever de provar o sustentado. A segunda se refere à situação que, à primeira vista, um elo de circunstâncias levaram ao prejuízo. Resta, então, saber qual foi a causa determinante do prejuízo.
É considerada causa aquela condição sem a qual o dano não teria ocorrido.
4.2. Responsabilidade subjetiva
A responsabilidade civil subjetiva é conseqüência de dano causado em função de ato (culposo ou doloso) ilícito.
Para Rui Stoco “a culpa, stricto sensu, é o agir inadequado, equivocado, por força de comportamento negligente, imprudente ou imperito, embora o agente não tenha querido o resultado lesivo, desde que inescusável.”[16]
Segundo Caio Mário, a culpa seria “um erro de conduta, cometido pelo agente que, procedendo contra o direito, causa dano a outrem, sem a intenção de prejudicar, e sem a consciência de que seu comportamento poderia causá-lo.” [17]
A culpa seria, a princípio, um erro de conduta; uma violação a um dever preexistente, quer seja este uma cláusula contratual, quer seja o dever geral de respeito à pessoa e aos bens alheios.
O agente descumpre uma norma de conduta causando uma desarmonia social que, se tiver como conseqüência um dano a outrem, ensejará a responsabilidade civil.
Em se tratando de conceituar o que se entende por ato ilícito, diz-se que este “é o praticado culposamente em desacordo com a norma jurídica, destinada a proteger interesses alheios; é o que viola direito subjetivo individual, causando prejuízo a outrem, criando o dever de reparar tal lesão.”[18]
A responsabilidade subjetiva exige prova da ação ou omissão do agente, do dano experimentado pela vítima, da relação de causalidade entre um e outro e a prova da culpa com que agiu o agente.
4.3. Responsabilidade objetiva
Na responsabilidade objetiva não se cogita do elemento culpa, e ainda se a conduta do sujeito é lícita ou ilícita.
Para que possa ser imputada responsabilidade civil objetiva é necessária a expressa previsão legal que se aquele determinado ato, desencadear prejuízo a outrem, ensejará obrigação de indenizar, ou então, ser o prejuízo da vítima decorrente de atividade de perigo exercida por terceiro causador do dano.
Firma-se a autoria de um fato lesivo, sem ter a necessidade da ocorrência de um erro de conduta. ‘Dispensa-se’ o elemento culpa diante de situação socialmente relevante, na qual a prova da culpa do causador do dano pela vítima seria extremamente difícil.
“Ao invés da responsabilidade assentar numa relação causal entre a culpa e o dano, simplifica-se nesta outra, entre o fato e o dano (entre le fait et le dommage).”[19]
A responsabilidade objetiva decorre da relativização da máxima pela qual não haveria responsabilidade sem culpa. Isso ocorreu para que pudesse ser sempre assegurada uma reparação à vítima de um ato danoso.
4.4. Função da responsabilidade civil
Uma das funções da responsabilidade civil é restabelecer a ordem social existente antes da ocorrência do dano. Tendo como foco a pessoa da vítima, seguindo a orientação atual, a função da reparação civil é restabelecer a situação pessoal daquela ou, no mínimo, minorar o prejuízo suportado.
Em relação à sociedade, a função é mostrar que aquela conduta lesiva punida não deverá se repetir. “Por isso, a lei possui um sentido tríplice: reparar, punir e educar.”[20]
Sob a influência norte-americana[21], cristaliza-se a orientação jurisprudencial de que a fixação do valor da reparação civil deve servir como desestímulo a novas ações agressoras. A reparação deve ser uma advertência para o punido e para a sociedade.
“… forma-se mais recentemente entendimento jurisprudencial, mormente em sede de dano moral, no sentido de que a indenização pecuniária não tem apenas cunho de reparação do prejuízo, mas tem também caráter punitivo ou sancionatório, pedagógico, preventivo e repressor: a indenização não apenas repara o dano, repondo o patrimônio abalado, mas também atua como forma educativa ou pedagógica para o ofensor e a sociedade e intimidativa para evitar perdas e danos futuros.”[22]
5 DANO MORAL
A reparabilidade civil abarca danos de índoles diversas, em razão da complexidade da vida em sociedade.
O fundamento da reparabilidade do dano moral está em que, ao lado do patrimônio (em sentido material) de um homem, há também outros direitos a serem defendidos.
“Qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social).”[23]
O fato gerador do dano moral é uma ação humana que cause dano injusto a outrem. O lesante fez aquilo que não lhe era permitido ou devia ter feito aquilo pelo qual se comprometeu. Cabe à vítima provar que o lesante agiu com culpa.
Em sentido lato, Savatier coloca que dano moral é “qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária”[24].
Dano moral é, então, a lesão que repercute nos direitos da personalidade, direitos de conteúdo não pecuniário, considerados essenciais à pessoa. Ele está ligado aos sentimentos pessoais, aos ânimos psíquico, moral e intelectual da vítima.
“E para que facilmente os reconheçamos, basta que se atente, não para o bem sobre que incidiram, mas, sobretudo, para a natureza do prejuízo final.”[25]
Constatado o dano moral, segue-se a etapa de estabelecer o quantum devido à vítima. Este deve ser de maneira tal que não apenas compense a vítima pelo mal sofrido, mas também sirva para coibir a reincidência do infrator e ações semelhantes que porventura pudessem ser praticadas por outros.
“Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: ‘caráter punitivo’ para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou, e o ‘caráter compensatório’ para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido.”[26]
A indenização, neste caso, não reparará o dano sofrido, mas o compensará. O que se busca com o valor pecuniário é atenuar a dor sofrida, haja vista que impossível retornar ao status quo ante.
5.1 O princípio da dignidade da pessoa humana e o dano moral
O homem, razão e origem dos princípios constitucionais, tem como atributo inerente a dignidade. Assim, nada mais lógico que alçá-la a direito fundamental.
O princípio da dignidade da pessoa humana foi consagrado no inciso III do art. 1° da Constituição como fundamento da República.
O conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana deve ser buscado, sobretudo, na filosofia. Ele não é criação do Direito, embora seja por ele protegido. Da filosofia pode-se apreender que ser humano é ser racional. Logo, seria contrário à dignidade qualquer ato que transformasse a pessoa em objeto.
Os princípios da igualdade, integridade física e moral, liberdade e solidariedade são os conteúdos do princípio da dignidade da pessoa humana.[27]
“A dignidade é composta por um conjunto de direitos existenciais compartilhados por todos os homens, em igual proporção.”[28]
Este princípio, consagrado em grande parte das constituições atuais, permitiu uma releitura do que se entende por pessoa, tendo grande aplicação na relação entre particulares.
O termo pessoa, com a valorização deste princípio, perde a conotação individualista liberal, rumo à tentativa de igualdade entre as pessoas e sagração dos direitos humanos. São, principalmente, nas relações afetivas que o indivíduo encontra lugar para a construção e solidificação de sua dignidade e, em momento posterior, para realização e gozo dessa.
A família, por ser núcleo de afeto, é o lugar onde as pessoas, primordialmente, encontram base para formação e garantia de sua dignidade.
Ao tentar concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana é necessário compatibilizá-lo com a dignidade do outro. Disso decorre que algum ponto da dignidade de uma pessoa poderá ficar prejudicado ao ter que conviver com a dignidade do outro.
Há situações que, à primeira vista, poder-se-ia considerar clara a configuração de atentado à dignidade da pessoa humana. No entanto, é necessária prudência para que não se cometa o equívoco de, ao tentar reparar o dano à dignidade de uma pessoa, ferir em igual proporção, ou até mesmo maior, a dignidade do outro.
Assim, um dano à dignidade da pessoa humana pode ser fato gerador de repercussões em seu patrimônio moral. Mas este não é um postulado absoluto, pois é necessário sopesar a dignidade das pessoas envolvidas.
6 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO
Do acórdão proferido pelo então Tribunal de Alçada de Minas Gerais, já mencionado, colhem-se as seguintes passagens:
“A relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade possui fundamento naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.
Esclareço, desde já, que a responsabilidade em comento deve cingir-se à civil e, sob este aspecto, deve decorrer dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial, levando-se em consideração os conceitos da urgência da reparação do dano, da re-harmonização patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face de circunstâncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis.
No seio da família da contemporaneidade desenvolveu-se uma relação que se encontra deslocada para a afetividade. Nas concepções mais recentes de família, os pais de família têm certos deveres que independem do seu arbítrio, porque agora quem os determina é o Estado.
Assim, a família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção.
Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. (…)
O princípio da efetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. (…)
Neste contexto, ainda que pese o sentimento de desamparo do autor em relação ao lado paterno, e o sofrimento decorrente, resta a A., para além da indenização material pleiteada, a esperança de que o genitor se sensibilize e venha a atender suas carências e necessidades afetivas. (fls.74).
Assim, ao meu entendimento, encontra-se configurado nos autos o dano sofrido pelo autor, em relação à sua dignidade, a conduta ilícita praticada pelo réu, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e educação, a fim de, através da afetividade, formar laço paternal com seu filho, e o nexo causal entre ambos.
Desta forma, fixo a indenização por danos morais no valor equivalente a duzentos salários mínimos, ou seja, R$ 44.000,00.”
Em data anterior ao acórdão transcrito acima (16 de setembro de 2003), o juiz de Direito Mário Romano Maggioni da Comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, proferiu sentença com teor semelhante ao exposto acima, no processo nº 141/1030012032-0, fixando também a indenização em 200 salários mínimos. Nesta lide, o pai foi revel, não havendo, portanto, recurso contra a decisão de 1ª instância.
Em uma terceira ação, o juiz da 31ª Vara Cível de São Paulo condenou o pai a pagar além da indenização por danos morais o tratamento psicológico da autora.
Para que se configure a responsabilidade civil imprescindível é a presença, no mínimo, dos elementos conduta humana voluntária, dano e nexo de causalidade.
“Para, no entanto, chegar-se à configuração do dever de indenizar, não será suficiente ao ofendido demonstrar sua dor. Somente ocorrerá a responsabilidade civil se se reunirem todos os seus elementos essenciais: dano, ilicitude e nexo causal.” [29]
De pronto, deverá ser afastada a perquirição por um possível caso de responsabilidade civil objetiva, já que não se está diante de hipótese de conduta prevista em lei ou atividade de risco.
Desta feita, a responsabilidade, in casu, só poderá ser considerada subjetiva devendo estar presente, então, a culpa.
O elemento conduta humana pode ser facilmente constatado. No entanto, a presença da culpa é controvertida.
Agir com culpa é agir contra um dever geral de cautela. Para afirmar que o indivíduo agiu com culpa é preciso poder afirmar que seria possível exigir-lhe conduta diversa.
“Logo, para haver responsabilidade, será imprescindível a prática ou ocorrência de um ato dominável ou controlável pela vontade do imputado”.[30]
Porém, trata-se aqui de relacionamentos humanos. É cediço que o amor é ilógico, é espontâneo e não controlável. Poder-se-ia, então, atribuir culpa àquele que não ama?
O elo biológico entre pai e filho não é capaz de, sozinho, criar uma relação de afeto entre eles.
“É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos.”[31]
No senso moral comum é indubitável que os pais amam seus filhos e vice-versa. Mas, há exceções.
É ilógico querer culpar alguém por não amar. Não há um dever geral de amar em sintonímia com o dever geral de cautela.
“Na culpa ocorre sempre a violação de um dever preexistente.”[32]
O ideal seria que a relação de amor entre filho e pai sempre ocorresse. Mas, isto é apenas um ideal, por vezes, inatingível.
“Cada um de nós guarda dentro de si próprios pecados – não outra a razão da admoestação cristã: ‘aquele que não tiver pecado que atire a primeira pedra’. E somos imperfeitos porque somos humanos. A imperfeição é parte de nossa humanidade e, portanto, parte de nossa essência. Não há pais perfeitos, nem mães perfeitas, nem filhos, homens, mulheres ou crianças; não há deuses entre nós.” [33]
Portanto, perquirir culpa de um pai por não amar o filho, ou o filho por não amar o pai, é inócuo; é querer que o Direito determine o amor, o que é, no mínimo, um contra-senso. O amor esperado pelo senso-comum é apenas uma expectativa, não uma realidade.
“Realmente, o Direito não tem o poder de criar afetividade. Sentimentos naturais não decorrem de legislações, mas de vivência cotidiana informada pelo respeito, diálogo e compreensão.”[34]
Com relação ao dano, é inegável que o abandono de um filho pelo pai provoca conseqüências irradiáveis para diversos aspectos da vida daquele, assim como o abandono de um pai pelo filho (situação comum dos idosos em asilos). Mas, esse dano é injusto e certo, características necessárias para gerar indenização?
Tal dano não foi provocado por conduta ilícita do pai, pois afeto, carinho são dados e conseguidos de maneira espontânea. Nenhum sentimento pode ser imposto, assim, não há como falar em uma conduta ilícita ensejadora de dano injusto.
O dever de visita pode até ser imposto por decisão judicial, mas presença não significa afeto. O fato do pai ser presente não significa que será estabelecida relação amorosa entre pai e filho. A simples presença paterna não garante boa formação psicológica de um filho; pode, até mesmo, ser fator de deteriorização da formação filial, dependendo das características do pai.
Por outro lado, é inconcebível, como já afirmado alhures, que uma decisão judicial queira impor o dever de amar.
Quanto à característica de ‘certo’ necessária para um dano indenizável, é preciso enxergar que, se o dano realmente foi desencadeado pela falta de amor esperado, ele não terá um ponto final. O dano não terá cessado no momento da propositura da ação e, provavelmente, poderá até aumentar com o decorrer do tempo.
Para um dano desse tipo seria necessário inventar uma indenização ad aeternum, quase uma prisão perpétua aplicada ao Direito Civil.
No momento da propositura da ação não é possível mensurar o dano pois ele não tem começo, nem fim.
Outro aspecto desse dano é a impossibilidade de determinar qual seria o momento de sua ocorrência, para que então possa ser determinado o marco inicial da prescrição.
Segundo o parágrafo 3º do inciso V do artigo 206 do Código Civil, o prazo prescricional para as ações relativas a dano moral é de 3 anos.
“… o Código Civil estabeleceu prazo único para as ações com pretensão de reparação civil, seja para o dano material ou moral, decorrente de ato ilícito ou de relação contratual.”[35]
Mesmo a classificação desse dano como sendo moral pode ser considerada temerária. Dano moral é aquele que traz repercussões ao patrimônio afetivo da vítima.
À primeira vista, poder-se-ia afirmar que se trata, in casu, de dano moral. Porém, alargar o conceito de dano moral para atingir um dano provocado pela expectativa de amor entre duas pessoas é querer que o direito interfira em um campo completamente alheio à razão humana.
Por outro lado, um vazio provocado por falta de amor não é, nem mesmo, ‘compensável’. Poder-se-ia argumentar que a discussão sobre a patrimonialização de determinados bens já está superada.
No entanto, o amor é algo muito mais além. Nada compensa um vazio deixado pelo amor; uma decisão judicial não tem força para imprimir que este dano seja diminuído.
Somente a presença do amor buscado poderia diminuir o prejuízo sofrido pelo filho. Porém, o amor é livre e não aceita determinações de qualquer monta.
Assim, para ser indenizado precisar-se-ia tratar de dano injusto e o amor, ou melhor, a falta deste, não comporta as características de justo ou injusto. Ele apenas acontece.
Em Dezembro de 2004, a Revista Época[36] publicou reportagem sobre as três ações judiciais propostas até então no Brasil versando sobre o tema em análise, acima referidas.
Em nenhum dos casos houve aproximação entre pai e filho após decisão favorável aos filhos. Assim, tais decisões quedaram-se inócuas pois os filhos, se realmente buscavam o amor paterno, continuarão a ter em suas vidas o abandono que ensejou a ação.
Um dos filhos que figura como requerente nas ações judiciais afirma que sua pretensão com a ação judicial teria sido chamar a atenção do pai e que mesmo sendo procedente seu pedido não desejava receber o dinheiro correspondente à indenização.
Ora, seria o Poder Judiciário a via adequada para responder os anseios desse filho? Seria o Poder Judiciário o caminho para a resolução de pendências de foro tão íntimo e subjetivo?
Ainda, se o que o Poder Judiciário pode oferecer aos requerentes é a indenização e isso não é por eles querido, qual a função desse tipo de ação judicial?
Em atenção ao nexo de causalidade poder-se-ia afirmar que a conduta do pai causou o dano psicológico ao filho? Afirmar com tal logicidade esta relação de causa e conseqüência é querer aplicar raciocínio físico ao amor.
A presença do pai garantiria formação psicológica perfeita ao filho? A ausência do pai sempre trará abalos psicológicos ao filho?
O abalo psicológico também pode ser desencadeado por fatores outros, que não a ausência paterna, sendo influenciáveis o meio onde vive o indivíduo, as outras pessoas com quem mantém relacionamentos, sua índole, seu jeito de ser, sua forma de amar.
“É preciso esteja certo que, sem este fato, o dano não teria acontecido. Assim, não basta que uma pessoa tenha contravindo a certas regras; é preciso que sem esta contravenção, o dano não ocorreria.”[37]
Ao tratar da função da responsabilidade civil é que se tem ainda mais claro o caráter de inutilidade da prestação jurisdicional em casos de não formação do vínculo afetivo entre pai e filho, pois se realmente há um vazio deixado pela expectativa de amor paterno, este não será compensado por dinheiro.
Também não restará configurada a função de ensinamento para a sociedade, pois nenhum amor verdadeiro surgirá pelo medo de reprimenda indenizatória.
“Multa e afeto destoam no contexto familiar, melhor dizendo, amor e dinheiro repulsam os relacionamentos erótico-afetivos e não são poucas, mas sempre uníssonas as autorizadas vozes desprezando qualquer forma de mensuração da afetividade e que se posicionam contra qualquer forma de reparação pecuniária das vibrações humanas de afeto. Afeto que deve ter manifestação espontânea, gerada por impulso natural de sentimentos que se estreitaram apenas por amizade, por vínculos de parentesco ou por qualquer outra modalidade com semelhante origem. Mas, sobretudo, afeto que jamais cogita qualquer forma de tarifação, porque respeita o afeto mecânico, com proteção sociocultural, envolvido por cristalina redoma, a permitir a visão ingênua e translúcida, do modo simples e milenar do ser humano expressar os seus sentimentos de amor.”[38]
Após uma pendência judicial qualquer tentativa de reaproximação amorosa será dificultada.
“No Direito o desamor, por si só, não é causa de aplicação dos princípios da responsabilidade civil, já que, mesmo ao acarretar sofrimento ou dano moral ao desamado, não se constitui em ato ilícito, por não contrariar qualquer norma jurídica, faltando-lhe, portanto, requisito essencial da reparação civil.”[39]
O amor não é determinado pelo elo biológico; não pode ser imposto pelo Estado. A relação de afeto entre pai e filho é alimentada a cada dia; se esta não acontece é porque algum ponto do amor falhou, e só este é capaz de reconstruí-la.
Pode-se perceber que as relações familiares estão, hoje, determinadas pelos sentimentos entre as pessoas e não por aquilo que o Estado determina, como outrora podia ser constatado. Assim, não mais existem razões para justificar a excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas. Pretender estatizar o afeto seria um erro.
“A vitimização é uma das mais tristes características de nosso tempo e a responsabilização excessiva é a outra face desta moeda.”[40]
Apesar de ter encontrado defensores de renome e ter sido estabelecida em decisões judiciais de primeira instância, a responsabilidade civil por abandono afetivo não foi consagrada nas decisões do Superior Tribunal de Justiça e dos diversos Tribunais de Justiça estaduais.
O STJ firmou entendimento que o abandono afetivo não configura ato ilícito que enseja responsabilidade civil.[41]
Na primeira oportunidade em que o STJ decidiu o tema, restou asseverado pelo Min. Fernando Gonçalves que
“No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral.
Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso. (…)
Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido. Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.”[42]
Em voto proferido no Recurso Especial acima mencionado, o Min. Cesar Asfor Rocha ressaltou quão temerário seria “quantificar o preço do amor”:
“Ao ser permitido isso, com o devido respeito, iremos estabelecer gradações para cada gesto que pudesse importar em desamor: se abandono por uma semana, o valor da indenização seria “x”; se abandono por um mês, o valor da indenização seria “y”, e assim por diante.”[43]
Na linha decidida pelo STJ seguem os acórdãos mais recentes proferidos pelos Tribunais Estaduais:
“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – ABANDONO AFETIVO – ATO ILÍCITO – INEXISTÊNCIA – DEVER DE INDENIZAR – AUSÊNCIA. A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização.”[44]
“2. O pedido de reparação por dano moral no Direito de Família exige a apuração criteriosa dos fatos e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui situação capaz de gerar dano moral, nem implica ofensa ao (já vulgarizado) princípio da dignidade da pessoa humana, sendo mero fato da vida. 3. Embora se viva num mundo materialista, nem tudo pode ser resolvido pela solução simplista da indenização, pois afeto não tem preço, e valor econômico nenhum poderá restituir o valor de um abraço, de um beijo, enfim de um vínculo amoroso saudável entre pai e filho, sendo essa perda experimentada tanto por um quanto pelo outro.”[45]
No afã de verem seus problemas resolvidos, a população busca o Poder Judiciário com uma idéia falsa de seu real papel. Não se está aqui olvidando do princípio constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário; o que busco esclarecer é que alguns conflitos não devem ser dirimidos pelo Poder Judiciário.
O amor, como sentimento humano que é, não comporta determinismos de nenhuma espécie. Ele simplesmente acontece; e é nisso que está sua grandeza.
O afeto que comumente abarca a relação pai e filho é especial; é base para vida de ambos e apoio para todas as situações. Porém, o elo biológico entre pai e filho pode não ter um correspondente elo afetivo, seja por parte do genitor, seja por parte do filho. E isso não é uma situação rara que pode ser provocada pelos mais diversos fatores, por vezes inalcançáveis pela razão humana.
Quem é capaz de responder por que ama, ou não, alguma pessoa?
Já se disse que o coração tem razões que a própria razão desconhece.
Assim, como querer que a ausência do afeto seja fator que justifique a imposição de responsabilidade civil? Causa espanto a afirmação que se estaria promovendo com tal obrigação de reparar a valorização do afeto.
Não acredito que a falta de amor possa ser compensada com valor pecuniário. Comumente, os filhos que estão afastados dos pais já recebem destes valores em dinheiro, na forma da pensão alimentícia devida.
Assim, entendo a dor dos que sofrem a falta de amor paterno, o dano existente. Mas, o que quis demonstrar é que uma ação judicial não é meio para a resolução deste conflito, pois esta não poderá trazer nenhum fator útil que possa modificar o vazio sentido pelo filho.
Maria Celina Bodin de Moraes, em discussão sobre a possibilidade de reparação por dano moral decorrente de traição de um dos cônjuges fez uma assertiva que cabe de maneira exata na pretensão aqui discutida. Ao responder qual seria o benefício que uma indenização poderia representar para a parte prejudicada e para as relações familiares, ela responde magistralmente: “nada. Apenas uma certa visão estreita de logicidade entre causa e conseqüência, e a interpretação literal da concepção de que quem sofre um dano, acontecimento de tristeza e humilhação, de vexame e outras dores, terá direito à uma compensação pecuniária.”[46]
Infelizmente (ou, felizmente, talvez!) ninguém tem um direito ao amor. Este é uma aspiração de qualquer ser humano, mas que depende do acaso. Não se pode exigir o não concretizado, porque não é da índole do amor a sua obrigatoriedade; ele não pode ser objeto de troca.
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”.[47]
Informações Sobre o Autor
Celina Gontijo Leão
Procuradora da Fazenda Nacional. Pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho