Os fatos econômicos, eleitos pelo legislador como veículos de incidência tributária, nem sempre estão distantes e inconfundíveis uns dos outros acarretando o risco de bitributação, que a Constituição veda. Às vezes são confrontantes, isto é, contíguos uns dos outros. Situam-se esses fatos geradores em uma zona cinzenta difícultando a identificação do sujeito ativo do tributo, elemento subjetivo do fato gerador. Nem sempre é fácil identificar, por exemplo, se determinada atividade insere-se na competência impositiva municipal (ISS), ou na competência da União (IPI) e do Estado-membro (ICMS). Vejamos alguns casos concretos que têm desafiado a inteligência dos intérpretes.
Na chamada industrialização por encomenda grava controvérsia acerca da incidência do ISS, ou da incidência do IPI e do ICMS.
O Ato Declaratório Interpretativo da Receita Federal do Brasil de nº 20, de 13-12-2007, para fins de apuração do IRPF e da base de cálculo CLSS, prescreveu que “considera-se prestação de serviço as operações de industrialização por encomenda quando na composição do custo total dos insumos do produto industrializado por encomenda houver preponderância dos custos dos insumos fornecidos pelo encomendante”.
Assinale-se, desde logo, que é irrelevante saber quem forneceu os insumos, mas, sim saber o que é produto industrializado à luz da legislação aplicável. Importante é examinar o fato gerador de cada imposto.
Só que ante os fatos geradores confrontantes – fato gerador do ISS e fatos geradores do IPI e do ICMS – cumpre ao intérprete afastar esse aparente conflito de normas, porque o princípio constitucional de discriminação de impostos impede a bitributação jurídica[1].
De um lado, a insegurança jurídica na identificação do fato gerador de cada imposto reside na confusão conceitual. Por exemplo, no passado, era comum a confusão entre o serviço de comunicação, tributado pelo ICMS, com o serviço de publicidade, tributado pelo ISS. Outras vezes, confundia-se a prestação do serviço de comunicação, com a comunicação em si, esquecido do caráter mercantil do imposto. Como se sabe, muita tinta foi gasta em torno da tributação dos provedores da Internet pelo ICMS até chegar à conclusão de que os provedores prestam serviços de comunicação de valor adicionado.
Na área do ISS perdura, até hoje, confusão generalizada entre prestação de serviço enquanto obrigação principal, com prestação de serviço enquanto atividade-meio implicando invasão de esfera de competência impositiva estadual.
De outro lado, a clássica distinção – ICMS incide sobre circulação de bens corpóreos (mercadorias), enquanto que o ISS incide sobre circulação de bens incorpóreos (serviços) – não é mais suficiente para distinguir um imposto do outro. É que a Constituição Federal alargou o conceito tradicional de mercadoria, ditado pelo direito comum, ao prescrever a incidência de ICMS sobre a venda de energia elétrica, que é um bem incorpóreo. Outrossim, os avanços tecnológicos ensejaram o aparecimento de várias mercadorias virtuais, de sorte a exigir a inclusão de bens incorpóreos na conceituação de mercadorias.
A fronteira entre o IPI e o ISS, também, não é sempre clara. Não basta o simples esforço humano aplicado sobre bens móveis de qualquer natureza, resultando no acréscimo ou modificação de sua utilidade pela alteração de algumas de suas características, para afirmar que houve industrialização a legitimar a incidência do IPI.
A moderna doutrina não dispensa do conceito de industrialização a produção de bem material em grande escala, em série, pela transformação e pelo aproveitamento de matérias-primas.
Na chamada produção por encomenda, feita a partir das especificações ditadas por determinado cliente, sobressai-se a característica de ser o produto encomendado o único do mesmo gênero, ou seja, a produção encomendada é personalizada. Não se presta à exposição para venda ao público em geral. São os casos, por exemplo, de cartões de visita e de softwares específicos para uso em determinada empresa. Nesses casos, há incidência do ISS, pouco importando quem tenha fornecido a matéria-prima, porque a feitura do cartão de visita ou do softwar específico expressa uma obrigação de fazer, e não, obrigação de dar, que enseja a incidência do ICMS.
É a partir das distinções entre obrigações de dar e de fazer que identificamos as hipóteses de incidência do ISS, do ICMS e do IPI. Conforme escrevemos:
“a) o ISS só pode incidir sobre prestação de serviço, assim entendida o produto de esforço humano que se apresenta sob forma de bem imaterial, ou no caso de implicar utilização de material preserve a sua natureza no sentido de expressar uma obrigação de fazer, isto é, ter como objeto da prestação a própria atividade;
b) o ICMS incide sobre circulação de bens corpóreos e incorpóreos, mas a que expressa uma obrigação de dar, cujo objeto da prestação é uma coisa ou direito, algo já existente;
c) o IPI, apesar de a industrialização envolver um ‘fazer’, só pode ter por fundamento uma obrigação de dar, porque, por expressa definição legal, é um imposto que incide sobre a venda, importação ou arrematação de produto industrializado” (Cf. nosso ISS doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2008, p. 39).
No caso de produção por encomenda, pergunta-se, o que está sendo vendido? O produto em si, ou o serviço de personalização do produto? Traduz obrigação de dar, ou corresponde à obrigação de fazer?
Nesse caso haverá sempre uma obrigação de fazer algo, traduzida por um determinado serviço. E para cabal cumprimento dessa obrigação de fazer deverá ocorrer a entrega do produto personalizado, sem que esse fato implique reconhecer a existência de uma obrigação de dar, ensejando a incidência do IPI e do ICMS. É que essa obrigação de fazer só pode ser adimplida mediante a entrega do produto encomendado.
Concordamos com o Ato Declaratório Interpretativo nº 20/07 da Receita Federal do Brasil, que conferiu uma interpretação possível e razoável no uso regular de sua atribuição, para vincular os órgãos administrativos sob sua jurisdição, visando uniformização da atuação fiscal. Não vincula, por óbvio, os contribuintes, que podem dele discordar se quiserem.
Só não concordamos com a referência à preponderância dos custos dos insumos fornecidos pelo encomendante que nada tem a ver com o fato gerador do ISS ou do IPI. Se a procedência do insumo utilizado na industrialização por encomenda tivesse relevância jurídica não se explicaria a incidência do ISS na execução de serviços gráficos por encomenda do cliente, como tem proclamado a jurisprudência de nossos tribunais: RREE ns. 102.482; 102.608; 102.948; 11.566; 113.114 e Súmula 156 do STJ. Ao que saibamos ninguém fornece a matéria-prima quando se encomenda esses produtos. O que é relevante para a identificação da ocorrência do fato gerador do ISS é que o produto da industrialização por encomenda é destinado somente ao autor da encomenda. Por isso, esse produto não se presta à produção em escala industrial para ser comercializado, hipótese em que haverá incidência do IPI e do ICMS. A empresa que promove a industrialização por encomenda (prestador de serviço) encerra sua atividade com a entrega do produto industrializado ao encomendante (tomador do serviço), que dará a destinação que lhe aprouver. Se o serviço prestado nessa operação de industrialização (atividade-fim) estiver elencado na lista de serviços será ela tributada apenas pelo ISS. Nesse sentido aponta a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (Resp nº 888.852-ES, Relator Min. Luiz Fux, DJ de 01-12-2008).
Nota:
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.