Tomando por base o pensamento de Rousseau e a construção da teoria marxista, o autor discorre sobre a idéia de cidadania que leva em consideração seus elementos integrantes, etimológica e historicamente a luz da jusfilosofia. A partir daí, a cidadania é refletida na ótica da filosofia jurídica como sendo uma garantia de direito fundamental que requer do cidadão a participação ativa na sociedade.
Introdução
A noção de cidadania enquanto participação cívica da população nos negócios públicos, como momento de deliberação das questões que dizem respeito a toda coletividade será objeto de reflexão neste trabalho a partir do pensamento dos jusfilósofos Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx.
Em certos aspectos, Rousseau como Marx comungam do mesmo pensamento, como na divisão política imposta pela economia para que se gerencie as relações sociais e os meios de produção, mas a construção da cidadania é um fenômeno que pressupõe a garantia de certos direitos fundamentais. Para tanto, a concepção de cidadania marxista e rousseauniana tem como objetivo a exaltação dos direitos do homem em sociedade, deliberando sobre os assuntos que dizem respeito à coletividade.
1.1. O que é cidadania?
A cidadania, como fenômeno social de relevante importância, tem suscitado acaloradas discussões em diversos seguimentos da sociedade. Com efeito, a preocupação em construir conceitualmente a cidadania é extremamente importante porque elege os elementos necessários para a compreensão dos direitos do cidadão.
Assim sendo, inicialmente a noção de cidadania, em linhas gerais, compreende os aspectos da vida em sociedade como um todo, na medida que representa tanto o direito ao sufrágio do voto como a possibilidade de colaborar, seja direta ou indiretamente, nos destinos da sociedade através da participação cívica.
A idéia de cidadania sugere que se leve em consideração seus elementos integrantes, etimológica e historicamente, conforme assinala Manzini Covre (2003, p.11) no que:
[…] penso que a cidadania é o próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos do atendimento às necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do(s) homem(s) no Universo.
Etimologicamente, o termo cidadão é entendido como habitante da cidade. Assim como cidadania é o exercício indistinto daquele que habita a cidade, ou seja, o cidadão. O termo assumiu um sentido político, social e jurídico à medida que os habitantes da cidade assumiram a luta pela consagração de certos direitos e garantias ao longo da história.
Sendo assim, a cidadania é entendida como sendo o próprio direito à vida em plenitude, conforme sugere Rousseau (1991), que acaba incorporando elementos como liberdade, dignidade e participação cívica ao exercício de direitos, bem como a mobilização social em nome da melhoria da qualidade de vida, desde a salvaguarda dos direitos civis e políticos em um determinado Estado até o desempenho dos direitos e deveres reservados aos cidadãos, por exemplo, através do sufrágio do voto nas eleições, da reivindicação por políticas públicas eficazes, pelo direito à greve e pela iniciativa popular na sugestão da elaboração de legislações ao Congresso Nacional (art.14, III, Constituição Federal).
Dessa forma, cidadão constitui no entendimento de Pinsky (2003), aquele que é possuidor do direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, enfim dos direitos civis. Da mesma forma, quem participar dos destinos da sociedade, votando e sendo votado, traduz os direitos políticos. Sendo que os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva.
Por conseguinte, a cidadania plena construída historicamente pelos indivíduos deve comportar os direitos civis, políticos e sociais. Observa ainda Pinsky (2003, p. 9) que:
Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço. […] Mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao longo dos últimos duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para sua população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam.
Para tanto, a noção de cidadania enquanto participação cívica da população nos negócios públicos, como momento de deliberação das questões que dizem respeito a toda coletividade, se refere a luta pelo saneamento básico, acesso à escola, seguridade social, lazer, dentre outros aspectos da vida social, que contribuem para uma melhor qualidade de vida e que necessitam fundamentalmente da participação e fiscalização dos cidadãos para sua efetiva aplicabilidade.
1.2. Abordagem jusfilosófica da cidadania
A cidadania pressupõe a idéia de salvaguarda de direitos e deveres, bem como da participação ativa para que estes não se tornem letra morta. Sendo assim, a concepção de cidadania pode ser fundamentada em dois dos mais conhecidos pensadores políticos da história, indistintamente comunistas, cada um fundamentado segundo sua teoria filosófica.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), defensor da democracia direta através do contratualismo social e Karl Marx (1818-1883), articulador do comunismo, tendo como rito de passagem a fase da ditadura do proletariado para se chegar ao comunismo maduro, onde será aplicado o princípio “de cada um segundo suas possibilidades, cada um segundo suas necessidades” (LOWY, 1988, p. 63).
Em certos aspectos, Rousseau como Marx comungam do mesmo pensamento, como na divisão política imposta pela economia para que se gerencie as relações sociais e os meios de produção, conforme destaca Machado (1991), mas sem dúvida, o tema da bondade natural é um aspecto dos mais comuns entre ambos, ressaltado nestes termos:
Marx sustenta que os membros da espécie humana são naturalmente propensos à cooperação, quando não afetados por relações alienantes. Essa tese, de inspiração rousseauniana (bondade natural do homem), é um dos fundamentos da teoria do proletariado como classe universal, cuja revolução conduzirá à superação da sociedade de classes, bem como à possibilidade de se constituir uma sociedade comunista, em que se superem todas as formas sociais de alienação (MACHADO, 1991, p.167).
É importante destacar que, suas principais idéias não ficaram apenas no plano teórico, já que o contratualismo rousseauniano serviu de fundamento aos ideais revolucionários franceses (1789) e às constituições democráticas modernas.
Dessa forma, Marx e Engels foram os responsáveis pelas idéias que serviram para a construção do modelo político-econômico-social do socialismo burocrático implementado na ex-União Soviética e demais países do bloco socialista.
A cidadania em Rousseau e Marx apresenta algumas distinções importantes a destacar, quanto a compreensão e a finalidade que são atribuídas ao Estado: direitos do homem, liberdade, cidadão, convenções sociais etc. Entretanto, o cerne da cidadania que é a participação ativa dos cidadãos e a co-responsabilidade mútua, estes concordam, “numa palavra, a sua tarefa consiste em tirar ao homem as suas próprias forças e dar-lhe em troca forças alheias que ele só poderá utilizar com a ajuda dos outros homens” (ROUSSEAU apud MARX, 1975, p.63).
1.3. Concepção rousseauniana
A figura mais singular do iluminismo francês, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é também autor do Contrato Social (1757), obra de natureza política que remete ao problema da conciliação entre a liberdade e autoridade, indivíduo e Estado. Na teoria contratual, o papel do Estado e da sociedade é tutelar os direitos e a liberdade do indivíduo na qual os homens tenham condições de expressar sua vontade comum.
Com efeito, a cidadania sustentada por Rousseau é um elemento que sofre diversas implicações do ponto de vista político-educacional e no campo dos costumes e da moral.
Assim sendo, a noção de cidadania, como concepção rousseauniana de direito político, é extremamente importante para uma reflexão de natureza jurídica, na medida em que os direitos do cidadão são compreendidos como uma prática efetiva (práxis), fruto da conscientização política e educacional do indivíduo, que dotado de direitos e deveres, pode coletivamente promover a justiça, a igualdade e a liberdade.
No Contrato Social, Rousseau acredita na necessidade da presença do cidadão para dar sua contribuição na constituição de um ente político no estado civil e suas implicações disso decorrentes para o fundamento legítimo da sociedade política.
O cidadão, na acepção corrente, é o habitante de uma cidade, o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado que precisa de identidade política. Porém, na concepção rousseuaniana, o cidadão adquire uma nova função na constituição do estado civil, pois ele é parte da história política, dado ser responsável pela elaboração das leis mediante uma consciência pública (coletiva). Isso se dá quando desvencilha de seus interesses privados em favor da vontade geral, ou seja, a socialização dos seus valores enquanto cidadão.
Tal impressão é percebida por Rousseau (1991, p. 120), pois segundo ele:
O cidadão conserva todas as leis, mesmo as aprovadas contra sua vontade e até aquelas que o punem quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral: por ela é que são cidadãos e livres. Quando se propõe uma lei na assembléia do povo, o que se lhes pergunta não é precisamente se aprovam ou rejeitam a proposta, mas se estão ou não de acordo com a vontade geral que é deles.
Nesse contexto da assembléia popular, a cidade é a associação organizada e transmissora da vontade geral e tem em cada cidadão uma tarefa imprescindível, qual seja, de desenvolvimento de sua liberdade em função dos outros associados pelo pacto social.
Para traduzir um novo conceito rousseauniano engendrado a partir da noção do homem-cidadão:[1] é a cidadania, idéia que representa por demais o exercício da cidade, da moral cívica e da virtude escondida em cada homem, que sonha em ser livre e gozar com os outros da soberania do bem comum, consagrando o sentimento da moralidade.
Com isso, cidadão e cidadania são elementos de uma virtude humana única: a moral cívica. É quando as relações sociais (convenções) deságuam no pacto social entre os homens,
tendo em vista aquela “segunda natureza” (estado civil) e incorporando novos conceitos, podem acolher a compreensão da liberdade civil e a constituição da liberdade moral como um acontecimento extraordinário nas relações humanas, acrescentando ainda a possibilidade do homem enquanto senhor de si mesmo, que incorpora as leis como suas, como identidade coletiva e ação libertária.
Nesse sentido, o exercício da cidadania está intimamente ligado a noção de vontade geral. Quanto a isto, Bobbio (1997, p. 1298) em seu Dicionário de Política, no verbete a vontade geral assim se expressa:
De fato, este, enquanto é participante da vontade geral, pode considerar-se soberano e, enquanto é governado, é súdito, mas súdito livre, por que, obedecendo a lei que ele ajudou a fazer, obedece assim a uma vontade que é também a sua autêntica vontade, o seu natural desejo de justiça. […] Somente assim o homem pode realizar sua virtude plena, tanto ética quanto civil. […] A vontade geral, mesmo sem ser a rigor a vontade de todos, declara-se, na prática, através da vontade de muitos, onde todos os cidadãos participam do direito do voto.
Então, a vontade geral é necessária devido a esse exercício prático, na sociedade, por parte de cada cidadão como compreensão do indivíduo, na cidade, que tem como dar legitimidade enquanto ação, participação, educação, justiça, política, liberdade civil etc.
Assim, a relação concreta do indivíduo (eu em si) com a vontade geral (eu comum) implica necessariamente num pacto social, ou seja, uma livre associação de seres humanos civitas (cidadãos) que, deliberadamente, desejam formar um tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência às leis. Ademais, os cidadãos devem ter como tarefa primordial a concretização de um modelo de sociedade em que eles estejam pactuados entre si nos moldes contratuais.
Na verdade, com o pacto social que se elabora com as disposições dos cidadãos dão-se os passos para o nascimento de uma nova entidade, ou seja, a instituição de um corpo moral e coletivo, cuja unidade não é mais o eu em si (indivíduo isolado), trata-se do eu comum, que não é simples agregação de homens, mas a polis (cidade), isto é, os cidadãos que vivem cidadania quando da instituição do corpo político.
O Contrato Social, nesses termos, concretiza a vontade geral como a única forma legítima para a comunidade viver a experiência da cidadania de acordo com os pressupostos da liberdade convencional e civil. A autoridade que advém da vontade geral é resultado da associação por todos os membros do corpo político, moralmente falando, como também adquirem liberdade, obedecendo à lei que prescrevem para a cidade que lhes dá cidadania através da interação com os outros associados.
Finalmente, o que acaba sendo imprescindível destacar na trajetória da cidadania rousseauniana é a possibilidade do homem-cidadão ser livre e, com essa liberdade poder desfrutar das virtudes mais lapidares (honestidade, bondade, moralidade etc.), da condição humana que acabam por remeter a felicidade não só de um indivíduo, mas de todos os associados no pacto social.
Sendo assim, existem quatro principais pontos no tocante a formação da cidadania, que merecem destaque pelo valioso respaldo teórico que representam para o exercício da cidade, que são, status na polis; ter direitos de legislar; mudança moral e civil, e, o status de cidadão que é exercido por qualquer membro do Estado justo.
Com efeito, é fundamental para a noção rousseauniana de cidadania os títulos de citoyen e citoyenne, que acabam sendo o cerne da participação ativa na concretização do Contrato Social, nestes termos, os quatro principais pontos dizem (DENT, 1996, p. 63):
São quatro os principais pontos a assinalar no tocante à cidadania. Primeiro, ser cidadão é possuir um certo status ou posição no Estado. É ter certos direitos e qualificações (assim como deveres e responsabilidades) conferidas à pessoa pelas leis positivas do Estado, para cujo tranqüilo gozo está dirigida toda a força do corpo político. Segundo, para a cidadania propriamente dita, conforme a entende Rousseau, um direito ocupa uma posição central: é o de participação na formação ou ratificação, de legislação soberana […] Terceiro, a aquisição do status de cidadão introduz nas pessoas, diz Rousseau, uma ‘mudança moral’, a qual se refere nos atos
de indivíduos que estavam até então apenas ‘naturalmente’ relacionados.[…] e tem justificação moral e civil para as ações […]. Tais ações não expressam somente desejo; elas consubstanciam projetos racionalmente justificados tendo atrás de si o peso da razão legitima. Quarto, Rousseau sustenta que em qualquer estado justo e bem ordenado o status de cidadão é desfrutado de modo precisamente idêntico por todos os membros do Estado, sem exceção; e esse é o mais importante status de que qualquer indivíduo pode gozar. Uma pessoa pode ocupar outras posições no Estado, mas nenhuma delas lhe dá o direito de anular os títulos de cidadania de outrem.
O título de cidadão é condição compartilhada igualmente por todos, nessa perspectiva, não requer nenhum tipo de servidão, exploração ou dominação e, é somente com base nessa igualdade que a posição da cidadania contemplada em Rousseau pode ser verdadeiramente estabelecida.
1.4. Concepção marxista
O teórico do pensamento socialista científico ou marxismo, Karl Marx (1818-1883) é o idealizador da teoria revolucionária que entende os acontecimentos políticos e ideológicos (superestrutura) condicionados aos elementos econômicos (infra-estrutura) sendo que, o motor desses acontecimentos seria a materialismo histórico, que de certo modo constitui o ponto em que se fixa cientificamente o sistema socialista.
Essa luta pela existência une os grupos de igual situação para formar as classes sociais, as quais lutam entre si pela existência, ou seja, a luta de classes. O objeto dessa luta é a exploração da classe operária pelas classes que detêm o status quo, a burguesia. No que ficou convencionado chamar àquela de teoria da luta de classes e, esta de teoria da exploração, respectivamente.
Entretanto, dentro da literatura marxista não se encontra um estudo específico sobre o Direito ou a cidadania, mesmo sabendo que seus trabalhos são perpassados por questões que dizem respeito a temática do direito do homem.
Diante dessa aparente dificuldade de investigação, não há que se perder de vista a importância que o marxismo atribui ao Direito enquanto superestrutura ideológica e disciplinar, Reale (1998) destaca em sua obra que o materialismo histórico atribui ao Direito,enquanto uma superestrutura governada pela infra-estrutura econômica, uma relação entre o Direito e a economia, no sentido de que o Direito é um conjunto de regras coercitivas destinadas a servirem a classe dominante, que possui os meios de produção.
Quanto a questão da cidadania marxista, cuja natureza está intimamente ligada aos direitos do homem, sua obra intitulada. A Questão Judaica (1843) faz referência a temática dos direitos e da liberdade dos judeus na Alemanha feudal.
Assim, Marx analisa a influência que o Estado e conseqüentemente o Direito alemão recebiam do modelo teocrático (cristão), que submetiam a segundo plano os direitos e a liberdade dos judeus.
De fato, a idéia central da crítica marxista ao capitalismo é sua concepção de alienação sócio-econômica, isto é, a separação que o modelo de exploração dispõe entre o homem e as relações de forças sociais.
Nesse sentido, Marx (1975) destaca quatro modalidades da alienação sócio-econômica: a separação entre o homem e o trabalho, privando-o de controle sobre o que faz; a separação entre o homem e o produto de seu trabalho, privando-o de controle sobre o que faz; a separação entre o homem e seu semelhante, com competição em vez de cooperação; a separação entre o indivíduo e a espécie, ou seja, a vida da espécie humana se convertendo em meio de vida para o indivíduo.
Sendo assim, a idéia de alienação que se constitui na separação entre o homem e seu semelhante, que tem na competição e no individualismo a força motriz das relações sociais, acaba desvirtuando as idéias de cidadão e cidadania. Marx (1975, p. 37) sugere que “temos de emancipar-nos a nós próprios antes de podermos emancipar os outros”. Essa emancipação constitui para o judeu alemão ou mesmo para qualquer individuo que almeja seus direitos reconhecidos uma tarefa árdua e persistente, na medida que para o marxismo, a emancipação do homem exige deste suprimir todas as forças que alienam e atrapalham sua liberdade de cidadão.
Ao destacar uma destas forças[2] que alienam o Estado e o homem, Marx (1975, p. 42-43) assim se expressa:
A emancipação política do judeu, do cristão – do homem religioso em geral – é a emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo e à religião em geral. O Estado emancipa-se da religião à sua maneira, segundo o modo que corresponde à sua própria natureza, libertando-se da religião de Estado; quer dizer, ao não reconhecer como Estado nenhuma religião e ao afirmar-se pura e simplesmente como Estado. […] O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade humana.
Com essa defesa da emancipação do homem, não está em jogo suprimir toda e qualquer religião, muito pelo contrário, o que o marxismo propõe é a transferência das instituições religiosas do domínio público para introduzi-las na esfera privada, dando ênfase ao Estado laico e a confissão da fé sem que esta ou aquela religião interfira nos assuntos públicos que dizem respeito aos cristãos, judeus, ateus, enfim a todos. Com isso, a separação da pessoa pública e pessoa privada é uma idéia que visa a emancipação política, no sentido que “a emancipação política não abole, nem sequer procura abolir, a religiosidade real do homem” (1975, p. 48).
Desta feita, ao constituir o direito do cidadão uma emancipação política, o modelo de Estado democrático é o mais apropriado para que os direitos do judeu sejam os mesmos direitos do cristão, direitos do homem, que se conquistam pela luta contra as tradições históricas em que a sociedade foi formada.
Nestes termos, a concepção de cidadania marxista pode ser entendida como o momento de exaltação dos direitos do homem em sociedade, deliberando sobre os assuntos que dizem respeito à coletividade. Essa cidadania coletiva pressupõe a desmistificação do direito do homem isolado, que possui as garantias consagradas pelas declarações de direito, burguesa, salvaguardadas na igualdade, liberdade, segurança e propriedade, enquanto garantias que tutelam o isolamento do homem em relação aos seus semelhantes. Isto é, direito à liberdade
individualista (liberdade, fruto do sistema capitalista), e não necessariamente de convivência entre os homens.
Por conseguinte, afirma Marx (1997, p.56-57) que: “É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo. A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito da propriedade privada”.
Na verdade, a cidadania, na perspectiva marxista, deve pautar pela emancipação do citoyen (cidadão), em relação ao homem egoísta, pois somente o homem, livre de seus egoísmos e convivendo comunitariamente com os outros homens em sua comunidade, pode tornar-se citoyen como “homem verdadeiro e autêntico” (MARX, 1975, p.59).
Assim, Marx (1997, p. 63) afirmar quanto ao direito do cidadão, por conseguinte a cidadania, que estas constituem uma atitude de superação e emancipação política e social, conforme entendimento a seguir:
A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstracto; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política.
Com efeito, a emancipação humana constitui atitude de pertença e autonomia própria que fica evidenciada como sendo uma desmistificação das forças que atrapalham a relação de superação do homem em comunidade, enquanto ser que dispõe da força social e da força política como cidadão para efetivo exercício da cidadania.
Considerações finais
A cidadania constitui o exercício dos direitos civis e políticos que o individuo dispõe, juntamente com as prerrogativas sociais para salvaguardar seu bem mais valioso: a vida, segundo o pensamento de Rousseau e Marx.
Nessa acepção jusfilosófica de atribuição da cidadania, o cidadão que estiver no gozo dos direitos cívicos (jus civitatis), bem como no exercício do direito de vontade ou eleição (votar e ser votado), para ocupar cargos públicos e para manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado pode assegurar a prerrogativa de reivindicar direitos sociais, pois estas garantias são conquistas históricas de lutas em defesa dos interesses e dos direitos difusos da população, constituindo-se assim, numa ordem valorativa para todos, erga omnes.
Na verdade, a cidadania é um exercício de participação dos cidadãos nos negócios públicos, tendo a democracia (demo – povo cracia – governo) como fundamento para deliberação dos interesses comuns por todos os cidadãos, trata-se do consensus omnium (consenso de todos), para que a democracia e, conseqüentemente a cidadania atinjam a todos participativamente, por intermédio de garantias legais e políticas sociais eficazes.
As idéias que surgem com os iluministas franceses, mais tarde com os socialistas utópicos e os marxistas são de respaldo para construção da cidadania e da nacionalidade como elementos determinantes para o respeito a dignidade humana, no âmbito político, social e econômico.
[1] Rousseau explica a sua noção de cidadão como um de seus temas essenciais a respeito da posição das pessoas como membros de uma sociedade civil, em C.S., Livro I, Cap. 6, 175. Da formação de uma sociedade civil diz ele: “[…] quanto aos que nela estão associados, recebem eles coletivamente o nome de povo e chamam-se, em particular, cidadãos, enquanto participes da autoridade soberana, e súditos, enquanto submetidos às leis do Estado”. Cf. (DENT, 1996, p. 63).
Informações Sobre o Autor
Marcelo Alves Pereira Eufrasio
Professor da Faculdade de Direito de Patos (FADIP)
Aluno Especial do Doutorado em Sociologia – UFPB/UFCG
Mestre em Ciências da Sociedade – UEPB
Pós-Graduado Lato Sensu em História da Filosofia – UFPB