Resumo: Este ensaio analisa o papel da tutela inibitória na proteção dos direitos de personalidade, especialmente quando, no caso concreto, ocorre a colisão com outros direitos fundamentais como a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. Comumente, a tutela inibitória em face dos meios de comunicação é taxada como censura. Tal situação é reflexo do trauma ainda latente pelo regime ditatorial que perdurou no Brasil entre 1964 e 1985, quando a sociedade e os meios de comunicação viram-se privados de alguns direitos fundamentais. Entretanto, o advento de novas mídias e da internet determina a busca de novos paradigmas no que concerne à liberdade de imprensa e aos direitos de personalidade. Por fim, pretende-se demonstrar que a prestação da tutela inibitória parece ser de grande relevo para a proteção dos direitos fundamentais na sua forma específica, além de não configurar hipótese de censura prévia como se possa acreditar.
Palavras-chave: tutela inibitória, direitos de personalidade, liberdade de imprensa, direitos fundamentais, censura.
Abstract: This essay examines the role of supervision in the inhibitory protection of personality rights, especially when, in the hard cases, the collision occurs with other fundamental rights such as freedom of the press and freedom of expression. Usually, the inhibitory protection face of the media is labeled as censorship. Such situation reflects the trauma still latent because the dictatorship regime that lasted in Brazil between 1964 and 1985, when the society and the media found themselves deprived of some rights. However, advent of new media and the Internet provides the search of new paradigms in regard to freedom of press and rights of personality. Finally intended to show that the provision of protection inhibition seems to be of great importance for the fundamental rights protection in its specific form, and does not represent censorship hypothesis as can believe.
Key-Words: inhibitory guardianship, personality rights, press freedom, fundamental rights, censorship.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os Direitos de Personalidade. 2.1. Fundamentos Históricos. 2.2. Conceitos, Classificação e Característica. 2.3. Direitos de Personalidade Como Direitos Fundamentais. 2.4. Direito Geral de Personalidade, Distinções Conceituais Entre Intimidade, Honra, Imagem e Vida Privada e Suas Fronteiras. 2.5. Distinção Entre Direito Público e Privado e as Transformações do Direito Civil. 3. A Liberdade de Imprensa. 3.1. Fundamentos Históricos. 3.2. Novos paradigmas. 3.3. Fronteiras éticas, legais e constitucionais. 4. A importância da tutela inibitória na proteção dos direitos de personalidade. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo visa identificar os fundamentos dos direitos da personalidade, em especial a vida privada e a intimidade, para em seguida demonstrar que o remédio processual da tutela inibitória vem se revestindo em verdadeiro aliado na proteção daqueles em sua forma específica.
Por conta de atributos e características específicas dos direitos de personalidade, uma vez violados, a sua reparação se dá meramente pela via da tutela reintegratória, mais especificamente pela indenização por danos morais. Ocorre que, na sistemática da proteção dos direitos fundamentais deve-se buscar a tutela específica dos mesmos, evitando-se, tanto quanto possível, a mera reparação em pecúnia.
A problemática ganha relevo constitucional quando a violação, ou até mesmo a iminência de ato ilítico contra a intimidade e a vida privada, é intentada pelos meios de comunicação social, portadora e paladina da liberdade de imprensa, outro direito fundamental de especial importância, erigido como cláusula pétrea pelo legislador constituinte.
Embora o hipotético conflito de direitos fundamentais só possa ser solucionado no plano prático, na demonstração de um caso concreto, sob a orientação da hermenêutica constitucional e da utilização de critérios e standarts de ponderação de interesses, não se pretende neste artigo fazer tal exercício de balanceamento ou de sopesamento. O objetivo deste esboço é outro, como já foi exposto supra.
Portanto, estudando as origens, os conceitos e as classificações basilares de cada instituto aqui tratado (direitos de personalidade, liberdade de imprensa e tutela inibitória), buscar-se-á uma conclusão baseada na racionalidade lógico-jurídica para entender que a tutela inibitória da vida privada e da intimidade não se traduz em censura à liberdade de imprensa, mas um meio de proteção específica daqueles direitos de personalidade, evitando-se a sua mera liquidação em dinheiro.
2. OS DIREITOS DE PERSONALIDADE
2.1. Breve Evolução Histórica
Historicamente, cumpre assinalar que o estudo e a sistematização dos direitos de personalidade ganhou relevo a partir das revoluções burguesas do século XVIII. Entretanto, podemos identificar que a sua proteção já existia desde a idade média, encontrando no direito romano, por exemplo, a figura da actio injuriarum aestimatoria que visava proteger o indivíduo em face de injúrias e difamações irrogadas em face da sua honra.[1]
No Império Romano, o conceito de pessoa baseva-se na aferição do seu status libertatis, status civitatis e status familiae, sendo certo que apenas aqueles que gozassem da inteireza destas três condições teria direitos reconhecidos. Com o advento do cristianismo, ressalta-se a ideia do homem como servo de Deus, personificação do seu criador, conforme o Gênesis bíblico.
Sem embargo, o advento da dicotomia entre as escolas do direito natural e do direito positivo contribuiu bastante para o desenvolvimento da noção de personalidade humana. Enquanto para os jusnaturalistas a personalidade advinha da própria natureza humana, de maneira absoluta, para os positivistas seria a atribuição pela lei de um caráter concreto a fim de positivar tais atributos humanos.
Entretanto, é com o advento do racionalismo do final da idade média, que a personalidade humana ganha relevo, sobretudo pelas ideias iluministas e liberais. Assim, tal como a liberdade de imprensa, os direitos de personalidade são classificados pela doutrina publicista como sendo direitos de 1ª geração ou direitos civis e políticos, positivados originariamente pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e Declaração de Direitos da Virgínia (1769).
Traçando um sintético e elucidativo panorama histórico dessa evolução dos direitos de personalidade, Roxana Borges assevera que:
“dentre os primeiros direitos da personalidade reconhecidos como direitos fundamentais, estão o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à integridade física. Foram reconhecidos a partir da oposição entre indivíduos e Estado, visando proteger a pessoa contra as intervenções arbitrárias deste. Com o aumento populacional das cidades, com o crescimento dos veículos de comunicação de massa, com o aumento do desequilíbrio nas relações econômicas e com o avanço tecnológico, outros direitos da personalidade emergiram, desta vez não apenas para proteger o indivíduo contra o Estado, mas para protegê-lo também contra a intervenção lesiva de outros particulares.”[2]
Alguns pensadores como Ennecerus, Jellinek, Unger, Oertmann, Ravà, Orgaz e Von Thur, não admitindo direito do homem sobre a própria pessoa (ius in se ipsum), negavam a existência dos direitos da personalidade. Na corrente oposta, mais recente e de maior prevalência, é reconhecida e defendida a existência destes direitos, por nomes de escol como Adriano De Cupis, Ruggiero, Planiol, Ripert, Antunes Varela, Limongi França e Orlando Gomes.[3]
2.2. Conceitos, Classificação e Características
Inaugurando a tentativa de conceituar o instituto, contamos com a explanação de Orlando Gomes, para quem “nos direitos da personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade”.[4] Ainda na lição do civilista baiano, esses direitos constituem-se como “bens jurídicos em que se convertem projeções físicas ou psíquicas da pessoa humana, por determinação legal que os individualiza para lhes dispensar proteção”.[5]
Para a professora Maria Helena Diniz, os direitos da personalidade são os
“subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato ou intimidade, segredo pessoal, doméstico e profissional, imagem, identidade pessoal, familiar e social).”[6]
Já em lição de Carlos Alberto Bittar, tais direitos seriam “próprios da pessoa em si (ou originários), diante da dignidade humana ou referentes às suas projeções para o mundo externo (ou seja, à pessoa como ente moral e social, em suas interações da sociedade”. [7]
Os direitos da personalidade possuem algumas características peculiares em relação aos demais direitos. Para grande parte da doutrina eles seriam absolutos, inatos, essenciais, além de intransmissíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, inexpropriáveis, extrapatrimoniais, indisponíveis e vitalícios.[8] O Código Civil (Lei 10.406/2002) em seu art. 11 prestigiou duas características especiais, quais sejam: a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade. Assim, disciplinou, in verbis, que:
“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” [sem grifo no original]
Embora a lei e a doutrina tracem diversas características dos direitos de personalidade, tais como intransmissibilidade, irrenunciabilidade, indisponibilidade e ilimitabilidade, os fatos cotidianos e a práxis levam a conclusão de existe a possibilidade de uma certa disponibilidade de tais direitos, levando-se em conta a autonomia jurídica individual e a autonomia privada. Dessa forma, analisar-se friamente as características do direito de personalidade, admitindo-las como absolutas e intangíveis, é não enxergar a realidade social.
Alguns atributos da personalidade, tais como a imagem, a intimidade, a voz, partes do corpo, por exemplo, que, por suas características, podem interessar ao tráfego econômico e jurídico e, portanto, gozar de uma diposição relativa. Por isso, Gilberto Haddad Jabur, explica que
“a relatividade desse entendimento, temperado e adequado às exigências dos costumes da vida moderna, prestigiando, de mais a mais e na medida do dever de proteção ao indivíduo, a liberdade que lhe é imanente, permite a limitada disposição.”[9] [sem grifo no original]
De maneira elucidativa se posiciona Roxana Borges para quem “os atos de disposição dos direitos de personalidade não negam a característica da indisponibilidade (…) se tais atos não tiverem finalidade translativa ou extintiva”. Obtempera no sentido de aceitar como mais adequadas a autorização ou cessão parcial por estas não privarem o titular dos direitos de personalidade de seu uso, seja pela transmissão, seja pela extinção, além de permitir a fruição econômica daqueles. Para a autora existe, portanto, “uma margem de liberdade para o exercício ativo dos direitos de personalidade, assim como para a realização de negócios jurídicos sobre esses direitos. A principal premissa é a inafastabilidade da liberdade como requisito para o livre desenvolvimento da personalidade”. [10]
Outra característica bastante prestigiada é de que os direitos da personalidade são absolutos, pois são oponíveis erga omes, submetendo quem quer que seja à sua carga de eficácia irradiada. A relação jurídica estabelecida envolve um sujeito passivo universal, indeterminado, porém, determinável quando há violação deste direito absoluto no caso concreto.[11] Quando se caracterizam os direitos de personalidade como absolutos, não se quer passar a noção de não comportam limites ao seu exercício, mas sim, de que podem ser alegados por seu titular em desfavor de qualquer um que os viole.
Admite-se serem os direitos da personalidade extrapatrimonais, pois não figuram no patrimônio do seu titular tal como um imóvel. Entretanto, “não há de se confundir o direito de personalidade com o seu conteúdo que se pode traduzir em elemento de grande valor econômico”.[12] A mesma relatividade desta característica é enaltecida por Gagliano e Pamplona Filho que ponderam não haver impedimento para que “as manifestações pecuniárias de algumas espécies de direitos possam ingressar no comércio jurídico”,[13] podendo haver mensuração econômica, principalmente em caso de violação. Já Sérgio Cruz Arenhart, reafirmando a extrapatrimonialidade dos direitos da personalidade, traz interessantes argumentos, como o da falácia da função reparadora do dano moral, que em verdade seria, tão só, uma punição ou sanção exemplar para o ator do ilícito.[14]
São imprescritíveis pela razão de estarem no rol dos direitos potestativos e não a uma prestação. Sendo seu exercício atemporal, poderá o titular, a qualquer tempo, impedir que alguém invada a sua privacidade, viole a sua imagem ou macule a sua honra. Porém, muito se discute a respeito do caso em que o dano já tenha ocorrido. Há entendimento doutrinário de que não haveria prazo prescricional para ingressar com o pedido de reparação por dano moral, porém entendemos que, em questão não está o direito personalíssimo, mas sim a pretensão à reparação civil, esta sim, sujeita a prazo prescricional.
São inclusive vitalícios, pois “seguem a pessoa, aderem ao indivíduo até o seu leito de morte, chegando a lei a proteger o morto, que não é mais sujeito de direito do vilipêndio”.[15] Esta característica fora consagrada pelo art. 12, parágrafo único do Código Civil de 2002, ao estatuir legitimação ao “cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau” para requerer medida inibitória ou reparatória contra atentado à memória do de cujus.
São inexpropriáveis, porque nem mesmo o Estado poderá privar o indivíduo desta faculdade. Entretanto, a questão da pena de morte torna o tema discutível em função de que isto seria uma expropriação do direito à vida pelo Estado. Ao nosso sentir, acreditamos ser a pena capital uma grave violação aos direitos humanos.
Em conclusão, verifica-se que a maioria das características dos direitos de personalidade reconhecidas pelas fontes formais e materias do direito, são voltadas a sua proteção em face de terceiros, de forma passiva ou negativa. Entretato, deve-se prestigiá-los também de forma ativa, através do exercício positivo que deriva justamente do poder da pessoa humana e em dispor de expressões daqueles direitos com “o fim que melhor se adequar à realização de sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”.[16] O exercício positivo pode ser condensado pela expressão “eu posso”, enquanto o exercício negativo pela expressão “você não pode”.
2.3. Direitos de Personalidade Como Direitos Fundamentais
Os direitos da personalidade como enuncia Sidney Guerra, citando Carlos Alberto Bittar, são também conhecidos por diversos outros termos tais quais: “direitos do homem, direitos fundamentais da pessoa, direitos humanos, direitos inatos, direito essenciais da pessoa, liberdades fundamentais”.[17]
Essa dificuldade em estabelecer uma distinção entre e direitos fundamentais do homem e direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas é também afirmada por José Afonso da Silva, quando diz haver uma variedade de expressões, e uma dificuldade de conceituação e sintetização precisa devido a “ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico”.[18]
Entretanto, os direitos da personalidade e as liberdades públicas encontram-se em planos diversos, como enuncia Carlos Aberto Bittar:
“As liberdades públicas distanciam-se dos direitos do homem, com respeito ao plano, pois, conforme se expôs, os direitos inatos ou direitos naturais situam-se acima do direito positivo e em sua base. São direitos inerentes ao homem, que o Estado deve respeitar e através do direito positivo, reconhecê-los e protegê-los. Mas esses direitos persistem, mesmo não contemplados pela legislação em face da noção transcendente da natureza humana. Já por liberdades públicas, entendem-se os direitos reconhecidos e ordenados pelo legislador: portanto, aqueles que, com reconhecimento do Estado, passam do direito natural para o plano positivo”.[19]
Ada Pellegrini Grinover adota a mesma diferenciação entre liberdades públicas e direitos do homem, salientando que
“o plano é diverso, porque os direitos do homem indicam conceito jusnaturalista, enquanto as liberdades públicas representam um reconhecimento dos direitos do homem através do direito positivo. Os direitos do homem constituem conceito que prescinde do reconhecimento e proteção do direito positivo, existindo ainda que a legislação não os estabeleça nem os assegure. As liberdades públicas, bem pelo contrário, são direitos do homem que o Estado, através de sua consagração, transferiu do direito natural ao direito positivo”.[20]
Portanto, imperativo concluir que os direitos de personalidade, como vida privada e intimidade são tutelados pela ordem jurídica constitucional, expressão de sua característica de direitos fundamentais positivados como liberdades públicas. Assim como tais direitos, a liberdade de expressão, configurada na sua faceta de liberdade de imprensa, parece ser consagrada da mesma maneira, ainda que tenha sofrido evolução distinta.
A professora Mônica Aguiar assinala que os direitos da personalidade, embora nasçam “como direitos subjetivos, com escopo no âmbito do direito privado (…) ao serem constitucionalizados enquanto direitos fundamentais passam, inegavelmente, a deter essa natureza jurídica”.[21]
Em vista do quanto exposto, interessante fazer algumas reflexões, no próximo item, acerca da dicotomia (se ainda existente) entre Direito Público e Privado, bem como acerca da constitucionalização, descentralização e descodificação do Direito Civil.
2.4. Distinção Entre Direito Público e Privado e As Transformações do Direito Civil.
O movimento de codificação do Direito Civil surge no seio da revolução francesa do século XVIII, para atender os anseios da classe burguesa em ver limitado o poder do Estado, estabelecendo uma lei única para reger e proteger as relações privadas. Assim, o Código Civil francês de 1804 foi o grande marco da codificação do direito civil e consistiu na consolidação de uma legislação uniforme de cunho liberal, que solidificasse as relações jurídicas, fortalecendo a liberdade contratual, a propriedade individual e a acumulação de capital nas mãos da burguesia em detrimento do jugo estatal.
R.C. Van Caenegem explica que no Iluminismo, a simplificação das normas foi uma tônica com as codificações, para produzir um direito uniforme, claro e certo para todos. Neste período ainda não havia um direito europeu, nem códigos nacionais, nenhum sistema jurídico era dominante, sendo o direito eclético e plural. Os juristas extraiam princípios de variadas fontes (direito romano, canônico, costumes, legislação real, municipal, direito estrangeiro). Isso gerou a uma proliferação de fontes, que foi combatida no século XVIII, que introduziu os códigos como instrumento de modernização aptas a garantir o desenvolvimento econômico e social assegurando clareza e certeza jurídicas.[22]
A doutrina acreditava ser o Direito Civil um ramo do direito altamente consolidado, que surgiu com o direito romano e que demonstrava sofrer poucas influências por parte das transformações políticas do curso histórico. Por ser um conjunto de normas que regem as relações individuais, tutelando interesses particulares e protegendo direitos básicos como a propriedade, tendo servido de direito-informador aos novos direitos (trabalho, consumidor), grande parte da doutrina ainda resiste a ideia de que o direito civil está suscetível a mudanças radicais.
Como afirma Paulo Luiz Netto Lobo
“os códigos tornaram-se obsoletos e constituem óbices ao desenvolvimento do direito civil. Com efeito, a incompatibilidade do Código Civil com a ideologia constitucionalmente estabelecida não recomenda sua continuidade. A complexidade da vida contemporânea, por outro lado, não condiz com a rigidez de suas regras, sendo exigente de minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil. São dessa natureza os novos direitos, como o direito do consumidor, o direito do meio ambiente, o direito da criança e do adolescente. A Revolução Industrial, os movimentos sociais, as ideologias em confronto, a massificação social, a revolução tecnológica constituíram-se em arenas de exigências de liberdade e igualdades materiais e de emersão de novos direitos, para o que a codificação se apresentou inadequada”.[23]
A constitucionalização do Direito Civil consistiu em alçar certos direitos de gênese no direito civil à condição de direitos constitucionais e também fundamentais. Ademais, significa também interpretar o Direito Civil sob um novo prisma, uma vez que as Constituições são normas hierarquicamente superiores às leis, tais como o Código Civil. Dessa forma, os valores insertos na carta constitucional devem nortear a interpretação da legislação civil em vigor. Assim, temos como exemplo, o antigo direito absoluto de propriedade, que hoje deve harmonizar-se com o princípio constitucional da função social.
Entretanto, adverte Luis Edson Fachin que
“não basta, por certo, pelo simples desvio do enfoque de modelos codificados para modelos constitucionalizados. O que se deve é examinar as possibilidades concretas de que o Direito Civil atenda a uma racionalidade emancipatória da pessoa humana que não se esgote no texto positivado, mas que permita, na porosidade de um sistema aberto, proteger o sujeito de necessidades em suas relações concretas, independente da existência de modelos jurídicos.”[24]
Para Rodrigo Mazzei a CF/88 influenciou a arquitetura do Código Civil de 2002 de modo que, na relação subjetiva, ficasse preservado o conteúdo social ditado constitucionalmente. Entretanto, não retirou do Código Civil o status de diploma catalisador para legislar sobre as relações privadas. O novel diploma civil tem a possibilidade de recodificar o direito privado de acordo com a ordem constitucional e permite a fixação de elementos de orientação para os microssistemas, além da sua função mais importante: dar efetividade às diretrizes constitucionais.[25]
Para Roxana Borges a diferença entre Direito Público e Privado ainda hoje persiste, embora suavizada, demonstrando sua importância para o exercício dos direitos de personalidade e o livre desenvolvimento da personalidade humana. Segundo a autora:
“não há critérios satisfatórios para a distinção entre direito privado e direito público. Constatou-se, porém, que esses dois ramos considerados fundamentais não são completamente opostos e separados, mas são distintos. Eles se relacionam, embora ainda existam âmbitos que são da incidência exclusiva do direito privado, assim como há setores a serem regulamentados exclusivamente segundo os princípios que informam o direito público […] a distinção entre o público e privado, embora não seja completamente satisfativa, é importante, pois garante à pessoa um âmbito de vida privada que nem a sociedade nem o Estado, inclusive por meio da elaboração de leis, devem atingir”. [26]
Pergunta-se então: seria certo concluir que o enquadramento dos direitos da personalidade no âmbito dos direitos fundamentais se dá em função de critérios jurídico-positivos e que, antes da ordem constitucional institucionalizada em 1988, a tutela dos mesmos estava restrita ao direito privado? Vejamos a norma insculpida no art. 5º, §2º, da CF/88:
“Art. 5º […]
§2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição ao excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Da interpretação do citado dispositivo conclui-se, assim como Dirley da Cunha Júnior[27], que não apenas os direitos e garantias elencados e descritos na Constituição gozam do sistema de proteção às liberdades públicas, pois a Carta adotou cláusula aberta ou de não tipicidade consoante a teoria material dos direitos fundamentais. Valendo-nos de lição da doutrina italiana, afirmamos que os direitos fundamentais garantidos à liberdade humana não precisam de uma específica previsão positiva, pois são paradigmas gerais que englobam várias possibilidades materiais nas quais se possa realizar a ação humana.[28]
Conforme assevera Roxana Borges, “os direitos de personalidade não são numerus clausus. O catálogo dos direitos de personalidade está em contínua expansão, constituindo uma série aberta”.[29]
Segundo Baldassare houve uma mudança do conceito de pessoa, de uma noção liberal para outra democrática. Assim, os direitos invioláveis são reconhecidos à pessoa individual e também às formações sociais em que a pessoa desenvolve sua personalidade. Há a tutela da pessoa enquanto tal e a tutela da pessoa como membro de uma formação social. A tutela da pessoa, como é reconhecida na constituição italiana, não mais significa um princípio em si, mas se exterioriza como condição essencial para o desenvolvimento da personalidade. Assim, parece haver direitos fundamentais cujo exercício só se pode realizar em forma coletiva. As formações sociais surgem como meio ou instrumento para o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Estas formações sociais são mediatamente titulares de direitos invioláveis. Se faltarem os direitos invioláveis, logo a democracia não é possível. Existe, em verdade, a superação do individualismo e a afirmação do pluralismo. Dessa forma, os direitos invioláveis representam a categoria a priori da democracia. [30]
Impende fazer também um último questionamento: liberdade de imprensa é direito da personalidade? Como alguns autores defendem, a liberdade é primordialmente um atributo da personalidade. O ser humano privado da liberdade tem sua dignidade restringida. Por seu turno, os direitos da personalidade e a liberdade de pensamento e de expressão deste pensamento parecem ter gênese semelhante, o que leva a concluir serem frutos de uma mesma árvore. Se considerarmos vida privada e intimidade como direitos da personalidade, não nos deve escapar também a inclusão da liberdade.
2.5. Direito Geral de Personalidade, Distinções Conceituais Entre Intimidade, Honra, Imagem e Vida Privada e Suas Fronteiras
Existe uma divergência doutrinária acerca da existência de direitos de personalidade ou um de um direito geral de personalidade. Para a teoria pluralista, existe uma lista de direitos autônomos de personalidade (intimidade, honra, vida privada, direito a partes do corpo), enquanto a teoria monista visualiza um direito geral que tem como conteúdo a pessoa humana em seus vários aspectos, mas reunidos numa unidade.
Roxana Borges comenta que para Pietro Perlingieri “há um direito geral de personalidade que protege a pessoa como um valor unitário, sem subdivisões. Por isso, ele sustenta que a personalidade corresponde à unidade de valor que a pessoa representa em nosso ordenamento jurídico. Essa unidade de valor não pode, assim, ser dividida em diferentes interesses, bens ou ocasiões, pois a pessoa é um todo, não partes acrescidas umas às outras”.[31]
Inobstante essa divergência doutrinária, o importante é reconhecer que não pode existir uma lista fechada, de “numerus clausus”, que descreva os direitos da personalidade, limitando-os como aqueles previstos na Constituição e no Código Civil, já que os atributos da personalidade humana estão em constante mutação, tal como a própria sociedade pós-moderna.
A Constituição Federal de 1988 consagrou a proteção dos direitos da personalidade em seu art. 5º, inciso X, que estampa o seguinte:
“Art. 5º (…)
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Ainda que resguardados pela mesma norma constitucional, imagem, honra, vida privada e intimidade, possuem, sobretudo, dimensão, conceito, conteúdo e diferentes características. Dessa forma impende analisar-los em separado para uma melhor compreensão de cada um desses direitos ou atributos da personalidade humana.
Parece haver uma tênue separação entre intimidade e vida privada. Ao que parece, embora derivarem do instituto da privacidade, a intimidade parece ser mais restrita do que a vida privada e significa a esfera mais profunda do indivíduo consigo mesmo. É aquele espaço impenetrável do sujeito onde residem as suas fantasias, sonhos, segredos, desejos e ambições que talvez ele sequer possa partilhar com alguém, mas tão só consigo mesmo, através de um diário, por exemplo. O indivíduo, dentro de si mesmo, tem plena e total liberdade para pensar o que bem quiser, ainda que isso seja antijurídico, ilícito e culpável, pois não estará cometendo crime. Liberdade de pensamento e intimidade estariam totalmente conectadas.[32]
Para Maria Isabel de Azevedo Souza os primórdios do desenvolvimento da doutrina da intimidade, expressada pelo “right to be let alone” ou direito de estar só, que foi desenvolvido a partir do direito americano. Segundo a autora “o reconhecimento do direito a um modo exclusivo de ser no âmbito da vida privada ampliou-se”, notadamente pelo advento da diversas declarações universais de direitos humanos e de tantas outros tratados e convenções internacionais e legislações alienígenas até o advento, entre o direito brasileiro, da Constituição Federal de 1988. Explica ainda que, em virtude do advento de novas tecnologias que, sobremaneira, interferem no direito à intimidade, “o princípio da exclusividade torna-se então um dos pilares do direito privado, erguendo barreiras ao avanço da intromissão indevida na órbita individual”.[33]
Quando se viola a vida privada ou a intimidade, não existe a figura da retratação ou do direito de resposta, como na violação à honra. Ao se revelar um segredo íntimo de alguém não há como se voltar atrás, como por exemplo, na hipótese da calúnia. Entretanto, revelar que um determinado desportista é homossexual, sem o seu consentimento é atitude na qual, nem mesmo a indenização, irá reparar ou restabelecer o status quo antem.
A honra prescinde de todo e qualquer rótulo social, econômico, político, ideológico, motivo pelo qual, ao nosso entender, deva estar imbricada com outro direito fundamental: a dignidade da pessoa humana. Ainda que o sujeito tenha dilapidado a sua honra, não pode jamais ser privado de sua dignidade humana, que será protegida pelo Estado, sempre.
A imagem, segundo divisão adotada por grande parte da doutrina se divide em imagem-atributo e imagem-retrato. Esta seria a expressão física do indivíduo, enquanto aquela se exteriorizaria como o conjunto de características apresentados socialmente por ele. Embora aparentemente possa-se confundir imagem e honra – em especial honra objetiva e imagem-atributo – pois fruto de idéias semelhantes, tais institutos guardam diferenças conceituais importantes. É possível violar-se a imagem, resguardando a honra, bem como o inverso parece também ser plausível. As pessoas jurídicas detêm esse direito de personalidade.
Os direitos da personalidade podem encontrar na liberdade de informação jornalística suas fronteiras. A liberdade de imprensa parece não violar os direitos da personalidade quando presentes os seguintes fatores: a) interesse científico e cultural; b) informação de relevância pública; c) atos e locais públicos; d) atos praticados por pessoas célebres e notórias. Entretanto, tais disposições são relativas, devendo atender-se as peculiaridades do caso concreto.[34]
Manoel Jorge e Silva Neto conclui que “as colisões entre o direito à intimidade e a garantia fundamental do acesso à informação se operam quase que exclusivamente no âmbito dos indivíduos considerados notáveis”.[35] Dessa forma, o autor vislumbra ser admissível tornar do conhecimento público “aventura amorosa de expressiva liderança política, não para fazer que contra ele se insurja a opinião pública, mas para integrar ao domínio público um fato ligado à esfera íntima da personalidade política”.[36] Assim, também, enxerga possível a divulgação de notícias “sobre enfermidades, curáveis, ou não, porque o povo, ao escolher o mandatário pressupõe o cumprimento integral do mandato, o que poderá ser obstado por doenças”.[37]
Gilberto Haddad Jabur também enaltece restrições impostas pela notoriedade ostentada por determinado indivíduo. Leciona o autor que “a pessoa notória tem sua circunscrição privada naturalmente diminuída pelo reconhecimento que alcançou perante o público ou certa comunidade”. Entretanto, afirma não ser “qualquer motivo, fato ou notícia que legitima a quebra, mesmo que parcial, da privacidade” devendo aquela “estar necessariamente ligada, umbilicalmente jungida, a um dado ou aspecto pessoal responsável pela celebridade alcançada”.[38]
Remete aquele autor à sentença do Tribunal Supremo alemão que declara que: “os acontecimentos da vida privada não chegam, sem mais, a serem acontecimentos da vida pública apenas porque se referem a pessoas que estejam na vida pública”.[39] É necessário haver uma separação, ainda que difícil, da vida pública e privada da pessoa notória, justificando-se a invasão desta, apenas quando presente interesse público. E não se confunda esse conceito com mera curiosidade ou interesse, frise-se, do público. O verdadeiro interesse público conecta-se à noção de relevância social da informação veiculada.
Aliás, como ressalta Manoel Jorge e Silva Neto:
“Encontram-se, em tema de direito à informação jornalística, em posições diametralmente opostas o interesse do público e o interesse público, sendo que os órgãos de comunicação, a pretexto de viabilizar o acesso à informação, não podem embaralhar o que seja um e outro.”[40] [sem grifo no original]
Paulo José da Costa Junior, citando Henkel explica que o homem
“enquanto indivíduo que integra a coletividade, precisa aceitar as delimitações que lhe são impostas pelas exigências da vida comum. E as delimitações de sua esfera privada deverão ser toleradas tanto pelas necessidades impostas pelo estado, quanto pelas pessoais dos demais concidadãos, que poderão perfeitamente conflitar ou penetrar por ela.”[41]
Portanto, já foi visto que a imagem de determinados indivíduos que gozam de notoriedade podem ser publicadas sem autorização, guardados necessários requisitos. Entretanto, a inviolabilidade da esfera da vida privada dos cidadãos comuns também pode ser relativizada em caso de autorização judicial para quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico, etc. Portanto, no receio de que, sob o manto do direito à privacidade, estejam sendo cometidos crimes, é justificável a sua invasão. É o que se depreende do aresto abaixo colacionado:
“Inexiste a alegada inconstitucionalidade do artigo 235 do CPM por ofensa ao artigo 5º, X, da Constituição, pois a inviolabilidade da intimidade não é direito absoluto a ser utilizado como garantia à permissão da prática de crimes sexuais.” (HC 79.285, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 12/11/99) [sem grifo no original]
É importante esclarecer que, em verdade, não ocorre uma “quebra” do sigilo de quem esteja sendo investigado, mas apenas uma “transferência” do órgão detentor do segredo para o Poder Judiciário. Portanto, não é apenas pelo fato de haver a “quebra” do sigilo, para utilizarmo-nos de expressão difundida, que se possa noticiar e transmitir o conteúdo deste segredo por meio dos veículos de comunicação. Deve haver uma responsabilidade conjunta do Poder Judiciário e da mídia para que este direito à privacidade, ainda que mitigado, não seja totalmente dilacerado.
Por fim, concluímos em adesão à tese de Roxana Borges para quem não há “uma cláusula geral de restrição de direitos da personalidade, nem que a moral ou os bons costumes possam, a priori, ser colocados como limites ao exercício positivo desses direitos”.[42] Ainda segundo a autora:
“Na interpretação das normas constitucionais que podem restringir o exercício positivo dos direitos de personalidade se devem observar sempre os valores da alteridade, da tolerância e critérios de proporcionalidade, proibindo-se o excesso na restrição, buscando-se a otimização da tutela ao livre desenvolvimento da personalidade. “[43]
Dessa forma, analisar a zona limítrofe entre liberdade de imprensa e direitos de personalidade não pressupõe imposição de limites a nenhum dos direitos fundamentais a priori, mas a análise do conflito destes no caso concreto.
3. A LIBERDADE DE IMPRENSA
3.1. Fundamentos Históricos
A imprensa surge antes mesmo da discussão acerca da sua liberdade. Na antiguidade, servia como mera informadora de atos oficiais do Governo, sendo, em verdade, parte dele. Foi com a influência do pensamento liberal, que se assegurou inicialmente a liberdade de expressão do homem e, conseqüentemente, a sua utilização pela imprensa, que se exterioriza como instrumento daquela. [44]
A imprensa surge no Brasil a partir da chegada da família real em 1808, fato que dá início a uma série de transformações na sociedade brasileira. Foi ela quem divulgou e noticiou a revolução política vinda da Europa, o que pressionou o Reino de Portugal a permitir a independência da colônia.
A imprensa teceu severas críticas ao regime político brasileiro na fase do império e da regência, o que ensejou tentativas de controle da sua liberdade através de leis e da própria Constituição de 1824. Neste contexto, diversas eram as publicações de cunho panfletário que bradavam pela independência da colônia, pelo fim da escravidão, e por uma Constituição essencialmente brasileira. [45]
Já no período de proclamação da república foi visível o processo de profissionalização da imprensa, com a formação de algumas empresas jornalísticas. O advento da nova Constituição, em 1891, entretanto, em poucos aspectos inovou a tutela da manifestação do pensamento, trazendo apenas como novidade a vedação do anonimato, de forma a possibilitar a punição daqueles que extrapolassem os limites impostos pelas leis vigentes.
Sob o pretexto de reprimir as ameaças de cunho socialista e anarquista, os Governos, em diversos períodos, se utilizaram da medida constitucional de exceção denominada Estado de Sítio, que restringia as liberdades, inclusive as de expressão, de pensamento e de imprensa.
Ao final da década de 20 do século XX, cresce a insatisfação do povo com a República, entoada pelas manifestações da imprensa. Enquanto no cenário mundial ganha força a Revolução Russa, cresce no Brasil o medo de revoltas de cunho comunista, o que induz uma grande parte da sociedade a simpatizar com o movimento de 1930.
A chegada ao poder de Getúlio Vargas assinala um período de abruptas mudanças no regime republicano brasileiro. Em 1934 é promulgada uma nova Constituição que, embora zelosa pela liberdade de expressão e pensamento, conflitava com as práticas do varguismo, que continuava a impor censura à imprensa. Já em 1937 é instituído o Estado Novo, que recrudesceu as práticas de censura e tornou a imprensa “função de caráter público”, estando ela sujeita aos desmandos e ao controle do aparelho estatal.
Posteriormente, com a redemocratização e a conseqüente promulgação do texto constitucional de 1946, houve fortalecimento da liberdade de imprensa, que culminou numa grande mudança dos paradigmas da informação no Brasil.
Entretanto, seguindo o ciclo da história, marcado por ápices democráticos e depressões repressoras, a mídia conservadora e a sociedade atemorizada com a ameaça comunista, ofereceram terreno fértil e legitimidade à “revolução de março de 1964”, que inicia restrições às liberdades públicas.
O regime ditatorial, que perdurou no país entre 1964 e 1985, privou a sociedade de direitos e garantias fundamentais, a exemplo da livre manifestação de idéias e opiniões, ensejando, posteriormente, a luta pelo restabelecimento da democracia e das liberdades.
Em 05 de outubro de 1988, a nação brasileira recebeu, com esperança, a apelidada “Constituição Cidadã” que alterou de forma substancial o ordenamento jurídico, equiparando em igualdade de condições os três poderes e fortalecendo a democracia no Estado brasileiro.
3.2. Novos Paradigmas
O atual panorama da liberdade de imprensa no Brasil e no mundo pós-moderno exibe uma nova face dos veículos difusores de informação. Enquanto se descortina a revolução promovida pela internet e a consolidação da Era da informação digital, constata-se também o aumento do poder das grandes empresas de mídia, em grande maioria, pertencentes a políticos que exercem o monopólio das telecomunicações.
Tais empresas se encarregaram, hoje, de exercitar a Nova Ordem Constitucional posta no tocante à liberdade de informação. Como assinala Serrano Neves: “de idealista, a imprensa se transformou, no mundo inteiro, em fonte de renda”. E citando Alberto Romero, conclui que “o proprietário de um jornal passou de jornalista a homem de empresa”. [46]
Esses fatores tornaram-se nos últimos tempos determinantes e imperativos para a sobrevivência das empresas de comunicação, o que gera um questionamento acerca da sua imparcialidade. Para Pieranti e Martins
“atualmente, a liberdade de imprensa caracteriza-se por seu caráter praticamente desregulado, sem que o Estado consiga estabelecer limites para o conteúdo a ser difundido. Depende esse conteúdo, hoje, basicamente do bom senso dos responsáveis por sua divulgação, confundindo-se, na prática, a liberdade de imprensa com a de empresa.”[47]
A simples narração de fatos do cotidiano, como vista em tempos de outrora, deu lugar, paulatinamente, a um jornalismo opinativo e crítico, que se anuncia como independente. Num segundo momento, passaram os meios de comunicação a experimentar o chamado jornalismo investigativo, justificado pela falência do Estado em cumprir com o seu papel de propiciar a cidadania e a dignidade.
Nessa esteira, surgiu também a produção de periódicos voltados a acompanhar a vida e a intimidade das celebridades. O jornalismo sensacionalista, voltado substancialmente para uma maior venda de exemplares ou a atingir grandes índices de audiência, esquece de sua função social informativa para prestigiar o mero deleite ao alarde e ao escândalo.
O comprometimento da imprensa com interesses econômicos e a prática do jornalismo denuncista geraram, então, um cenário onde o pleno exercício da liberdade de comunicação choca-se com garantias como a integridade moral, a privacidade, a imagem e a intimidade dos indivíduos.
É impossível entender-se a liberdade de imprensa como direito fundamental sem associá-la à idéia de democracia e à evolução dos direitos sociais. Em meio a essa discussão, citando Hanna Arendt contida em Celso Lafer, assinala-se que:
“A liberdade de informação deixa de ser propriedade particular do empresário, direito privativo de uns poucos, e passa a ser patrimônio da sociedade, com funções sociais bem marcadas, inteiramente úteis e imprescindíveis. Os meios de comunicação se transformam, assim, na instituição imprensa. Desta forma, há uma inversão de valores no sentido de buscar-se alcançar a liberdade apregoada pelos antigos. Assim, o tesouro da teoria e da tradição democrática provém precisamente da reflexão provocada pela possibilidade do exercício da liberdade antiga. Ou seja, de uma liberdade participativa com a presença de todos os cidadãos.”[48]
O fim do período ditatorial, marcado por censuras políticas e ideológicas estatais, repristinou a idéia liberalista clássica de que “tudo é permitido”. O jornalismo, agora mais visto sob o caráter empresarial, recém saído da regulação atroz do Período Militar, se deparou com um dispositivo normativo que homenageava o Estado Democrático de Direito, repulsando a prática de medidas que viessem a tolher a plena liberdade de comunicação.
Desta forma, os meios de imprensa, a todo o tempo propugnam o livre exercício da liberdade de expressão jornalística de forma plena e sem embaraços ou entraves, qualificando as decisões judiciais inibitórias como censura prévia.[49]
Entretanto, na incipiente experiência do Estado Democrático Brasileiro, que com menos de duas décadas de vida ainda aprende a livrar-se no ranço do colonialismo e da arbitrariedade, a mídia já vislumbra uma mudança de paradigma, como pontua Luiz Gustavo Grandinetti em sua dissertação:
“A liberdade de imprensa surgiu com um caráter individualista. Mas vem sofrendo uma mudança de paradigma, uma vez que, no seu bojo, impregna-se de um conteúdo social, imbuindo-se de um interesse público. Assim, não é mais aquela liberdade semelhante à propriedade absoluta. Os meios de comunicação, desta forma, deixam de pertencer só a seu proprietário. E, uma vez posto em circulação, o veículo da imprensa assume um sentido público, adquire asas próprias e passa a voar na mesma direção do vento que a sociedade sopra.”[50]
Ante tais conclusões, verifica-se que a imprensa reveste-se de um caráter dúplice. Ao passo em que os meios de comunicação são regidos por normas de direito privado, já que são constituídas como empresas, revestem-se de um forte interesse público, pois são símbolos da democracia e da liberdade de expressão.
3.3. Fronteiras Éticas, Legais e Constitucionais
A liberdade de imprensa segue o critério material de identificação dos direitos fundamentais, estando protegida pela condição de cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, da CF/88). Segundo a doutrina alemã, a liberdade de imprensa estaria inserida no contexto das garantias institucionais, pois garantem a instituição de uma imprensa livre em prol da preservação dos direitos difusos, que tem como seu titular a sociedade.
A liberdade de imprensa se origina de outras garantias fundamentais como a liberdade de pensamento e expressão, e dá origem à liberdade de informação. Portanto, a liberdade de imprensa, ou como preferiu o legislador constituinte, liberdade de informação jornalística, é na verdade um direito instrumental da liberdade de expressão. Já a liberdade de informação é direito público subjetivo, difuso e coletivo de buscar, receber e divulgar informações livremente.
Garantir a informação a todos é corolário do princípio da isonomia, na medida em que entendemos informação como poder. Para efetivar-se tal princípio, deve-se garantir ao cidadão, em primeiro lugar, o acesso à educação, meio pelo qual este estará habilitado a poder informar-se. Uma sociedade com altos níveis de escolaridade está mais apta a exercer o seu direito de informação.
Os direitos, liberdades e garantias fundamentais, como pensamento, expressão, imprensa, informação, foram contemplados em diversos tratados, pactos, declarações e acordos internacionais celebrados, o que denota a sua importância para sociedade global.
Não existem direitos sem fronteiras. Outorgar liberdade plena a quem quer que seja é sinônimo de ofertar-lhe poder ilimitado para que faça o que bem entender arbitrariamente. É não submetê-lo aos regramentos da ordem jurídica, lhe permitindo insubordinação ao sistema constitucional e colocando-o acima do Estado Democrático de Direito.
O Professor de Harvard Frank Michelman, analisando a relação entre liberdade de expressão e democracia defende que o Estado pode restringir tal liberdade para garantir o direito de todos e impedir, por exemplo, o preconceito racial ou contra grupos étnicos. Para o professor americano, deve-se atingir o conceito denso ou democrático e não tênue e meramente formal de liberdade de expressão, observando que deve ser
“observada a proporcionalidade entre a proteção das liberdades subjetivas dos indivíduos de se expressarem como desejam e a promoção de uma igualdade básica entre as pessoas no que concerne a ter uma justa oportunidade de ter suas percepções, opiniões e vontades ouvidas e avaliadas nos canais e fóruns de discussão da sociedade.”[51]
Perfilhando entendimento semelhante, Mônica Aguiar defende que no tocante à liberdade de imprensa, esta poderá e deverá ser controlada de modo a “salvaguardar o direito alheio ou proteger outros bens jurídicos, cuja garantia exija inescusavelmente essa limitação”.[52]
Existem fronteiras constitucionais, legais, doutrinárias e éticas a serem demarcadas à liberdade de imprensa. Alguns exemplos são encontrados no art. 5º da Constituição Federal, tais como: a vedação do anonimato (inciso IV); garantia ao direito de resposta e proibição do dano moral, material e à imagem (inciso V); proteção da intimidade, honra, vida privada e imagem (inciso X); resguardo ao sigilo da fonte (inciso XIV). Também o art. 221, especialmente em seu inciso IV, ao impor diretrizes como “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa da família”, é fronteira à plena liberdade de comunicação.
O valor ético e social da pessoa, primordialmente aludido, insere-se no contexto do respeito à dignidade da pessoa humana, princípio constitucional corolário do Estado Democrático de Direito, cravada no pórtico da Constituição Federal (art. 1º, III).
São exemplos de fronteiras infraconstitucionais as propugnadas pelo Código Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente, além do Código Civil.
Assim como o direito de propriedade foi direcionado a atender sua função social, o direito fundamental à liberdade de imprensa não deve escapar de balizamento similar. De acordo com a teoria da função social, o meio de comunicação social não pode se valer apenas da sua autonomia privada de noticiar ou fornecer entretenimento, usando, gozando e dispondo da liberdade que exerce ao seu talante. A mídia deve garantir o pluralismo de idéias, contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária e prezar pelo interesse público. Frise-se que os meios de comunicação social exercem um múnus publico, por meio de concessão governamental.
Entretanto, as fronteiras à liberdade de imprensa, sejam elas éticas, legais ou constitucionais, não podem ser confundidas com a censura ou licença, vedadas pelo art. 5º, IX. A liberdade deve ser tutelada no sentido de ser protegida pelo ordenamento jurídico, mas não delineada e pré-moldada. Porém, profanar que exista uma liberdade de imprensa incondicionada é ferir de morte este mesmo princípio.
4. A IMPORTÂNCIA DA TUTELA INIBITÓRIA NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE
A tutela inibitória possui algumas características peculiares, de importância fundamental à proteção dos direitos da personalidade: em primeiro lugar prescinde da verificação do dano na esfera jurídica do titular, sendo suficiente a ameaça; o ato ilícito se caracteriza normalmente por uma atividade continuada ou por uma pluralidade de atos suscetíveis de repetição. É possível também situação de iminência de um ato ilícito, hipótese principal da atuação da tutela inibitória. A ameaça a direito é elemento necessário porque faz relação à possibilidade de prevenir; a ação ilícita deve ser suscetível de ser detida em seus efeitos futuros, seja evitando que se produzam novos danos ou diminuindo os já produzidos; a culpa não tem nenhuma relevância na disciplina inibitória, já que não é possível avaliar o elemento subjetivo de uma conduta antijurídica futura; é habitual que haja referência a bens não fungíveis, porque neles se revela claramente a necessidade de prevenção. [53]
Nas palavras de Joaquim Guilherme Spadoni:
“O ajuizamento de uma ação inibitória visa evitar a violação de um direito do autor, pelo réu, a ser efetivada pelos atos que estejam em desacordo com o existente dever de conduta. Tem em vistas atos futuros do sujeito passivo da obrigação, desejando que esses atos, quando praticados, o sejam na forma devida legal”.[54]
Historicamente, grande parte da doutrina liberal clássica repugnou a atuação judicante antes da violação da norma. Conceber-se a possibilidade de uma tutela puramente preventiva, era considerada medida das mais enérgicas e das mais preocupantes, pois existia um “temor de se dar poder ao juiz, especialmente poderes executivos para atuar antes da violação do direito”.[55] O magistrado como integrante de um dos poderes estatais era visto com muita ressalva pelos liberalistas, e sua atuação deveria ser restrita a reproduzir fielmente as leis.
Assim, a ciência processual que se desenvolveu a partir deste determinado momento histórico, vislumbrava que as condenações civis fossem resolvidas em perdas e danos, devendo haver o ressarcimento do direito pelo seu equivalente em dinheiro. Essa visão monetarista da tutela reparatória causou uma série de distorções que, na atualidade, foram atenuadas para dar lugar a uma legislação que priorizasse, cada vez mais, a tutela específica dos direitos e não a sua mera restituição pelo equivalente em pecúnia. Recorrendo às palavras de Marinoni:
A ação inibitória é conseqüência necessária do novo perfil do Estado e das novas situações de direito substancial. Ou seja, a sua estruturação, ainda que dependente de teorização adequada, tem relação com as novas regras jurídicas, de conteúdo preventivo, bem como com a necessidade de se conferir verdadeira tutela preventiva aos direitos, especialmente aos de conteúdo não-patrimonial.”[56]
Entretanto, ressoam ainda pensamentos retrógrados tendentes a separar o direito processual do direito material, sem enxergar que a construção de um depende do outro. Em verdade, o sistema trinário de classificação das sentenças elaborado pela doutrina processual clássica, não consegue abarcar a proteção específica aos direitos fundamentais, especialmente os de natureza não patrimonial. Como uma sentença meramente declaratória da existência do direito à intimidade impediria à sua violação? Seria necessária a espera da fase de execução, onde haveria possibilidade de imposição de multa, para a sua tutela? São questões que, se não foram resolvidas, ao menos caminharam para uma melhor solução, após a sucessivas reformas ao Código de Processo Civil brasileiro.
Os novos anseios da sociedade exigem, portanto, uma resposta mais célere, objetiva e eficaz do Estado. A Era da positivação dos direitos fundamentais parece dar lugar, agora, a uma nova fase: a da efetivação destas normas, pois ao cidadão não basta o hipotético mundo do dever-ser criado pelos juristas; ele anseia pela concretização e pela materialização do quanto lhe foi garantido. Essas são as bases do real princípio ao acesso à justiça.
A tutela inibitória, antes da nova redação dada ao art. 461, era impossível de ser efetivada, pois o art. 287, fundamento da antiga ação cominatória, não permitia à doutrina construir uma ação que culminasse em sentença mandamental e admitisse tutela antecipatória.[57] Ou seja, para impedir que alguém praticasse um ilícito era necessário esperar o reconhecimento do direito (na fase de conhecimento) para a sua posterior efetivação (na fase de execução). As multas que hoje são possíveis em qualquer caso de descumprimento à ordem judicial eram somente aplicadas quando prolatada a sentença condenatória, que não raro resolvia a tutela dos direitos em meras perdas e danos.
A mudança de enfoque da tutela reintegratória para a tutela preventiva passa a ocorrer no momento em que a Constituição italiana, em seu art. 24, positiva o princípio da efetividade, garantindo a todos uma tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva. Em especial, o art. 156 da Lei sobre Direito de Autor italiana, também prevê medidas de atuação judicial prévias ao ato ilícito, tendo ocorrido neste país o maior desenvolvimento doutrinário acerca da tutela inibitória, como se observa da obra de Cristina Rapisarda.[58] Já o Código Civil alemão (BGB – §1.004) prevê hipóteses de tutela inibitória, além de ações fundadas na iminente ameaça ao direito (Rechtgefährdung – ZPO §259).[59] O direito anglo-americano também desenvolve mecanismos processuais de inibição do ilícito através da ação intitulada “quia timet injuction”. [60]
O Código de Processo Civil de 1973, em sua origem, embora negasse a existência de uma ação de conhecimento para evitar o ilícito, relegando às ações cautelares esta função, previu dois procedimentos especiais que parecem atuar com função tipicamente preventiva, quais sejam: a nunciação de obra nova e o interdito proibitório, previstos nos arts. 934 e 932 do CPC, respectivamente. Interessante notar que estes dois institutos protegem o direito de propriedade, mas os direitos da personalidade são olvidados pela norma processual.
Por fim, a Constituição Federal de 1988 fornece matriz para a tutela inibitória em art. 5º, inciso XXXV, que prevê:
“Art. 5º (…)
XXXV – Nenhuma lei excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça a direito” [sem grifo no original]
Especialmente, na proteção aos direitos da personalidade, previu o novo Código Civil brasileiro, em seu art. 12, caput, hipótese de tutela inibitória e também de remoção do ilícito, além, é claro, da tutela ressarcitória, que não é objeto de nosso estudo. É o que se depreende da leitura da citada norma, in verbis:
“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.” [sem grifo no original]
Embora seja vista com muita reserva por alguns, outras modalidades de tutela de urgência são previstas em lei. É o caso da figura do desforço in continenti previsto no art. 1.210, §1º do Código Civil brasileiro, que autoriza aquele se vê na iminência da perda da posse que se utilize de força própria para impedi-la. Assim, preleciona a lei civil:
“Art. 1.210. […]
§1º O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.”
Da mesma maneira o Código Penal em seu art. 23, inciso II, exclui de culpabilidade o agente que comete fato típico quando este seja praticado em legítima defesa. Para o art. 25 do mesmo diploma:
“Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Assim, percebe-se que a tutela inibitória, ainda que medida enérgica para evitar-se o ilícito, não chega a ser uma “ultima ratio”, pois que submetida ao crivo do processo judicial – e de todos os princípios e garantias a ele inerentes – e não ao mero arbítrio do particular.
Em termos práticos a tutela inibitória é vista quando, por exemplo, uma determinada pessoa, no receio de sofrer lesão ao seu direito, demanda ao Poder Judiciário para que o impeça. Mas não só no âmbito do direito privado ela se exterioriza. É também muito comum em causas ambientais e consumeristas, que envolvem direitos difusos e coletivos. Tanto é que as modernas legislações que tratam do tema criam diversas hipóteses autorizadoras para inibir-se o ato ilícito, que pode acarretar em danos irreparáveis a uma massa de cidadãos.
Desta forma, o art. 84 do Código de Defesa do Consumidor em conjunto com o art. 461 do CPC, alterado pela reforma processual da Lei 8.952/94, instituíram um micro-sistema que proporcionou uma grande autonomia dos poderes executórios do juiz, visando a tutela específica dos direitos fundamentais. Para exemplificação do quanto exposto, transcrevemos a norma contida no diploma processual que tem redação similar, porém mais completa, à do CDC:
“Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).
§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.”
A tutela inibitória é uma faceta da tutela mandamental, especialmente ligada às obrigações que impõem um comando de fazer ou um não-fazer. Dessa maneira, o objetivo desta proteção (tutela) dos direitos é impedir, inibir e coibir o ato ilícito (ou mesmo a sua repetição ou continuação), de modo que este não cause sequer (ou volte a causar, ou continue causando) lesão ao direito. É um mecanismo que tem seus efeitos visando uma ação futura, sendo antagônico ao mecanismo da tutela ressarcitória que visa uma ação pretérita.
A ação que visa impedir a violação aos direitos da personalidade por parte da imprensa seria inviabilizada se fosse adotada como verdadeira a premissa de que todos os direitos fundamentais são absolutos e ilimitados. Em que pese não se possa estabelecer uma cláusula geral de aplicação de um direito fundamental, poderá haver preponderância de um sobre outro no caso concreto.
O juiz, ao analisar a situação de colisão posta, deve atentar para os métodos hermenêuticos, bem como a ponderação de interesses, pois não há uma fórmula pronta. As decisões devem ser balizadas, principalmente, no sopesamento da proporcionalidade. Portanto, é a proporcionalidade que vai reger a interpretação constitucional, respeitando o núcleo essencial desta norma. O julgador deve encontrar a solução que menor restrição imponha a um direito fundamental.
Portanto, deve-se desmistificar a idéia de que o instituto, em sede de colisão entre liberdade de imprensa, intimidade, vida privada, honra e imagem é um instrumento de censura estatal. Inicialmente, remete-se ao magistério de Vicente Greco Filho para quem “o direito não existe somente para resolver conflitos de pessoas ou entre pessoa, mas também para evitar que ocorram, prevenindo-os”.[61]
Como observa Jaqueline Sarmento Dias “a tutela dos direitos da personalidade se dá, praticamente, por três âmbitos: constitucional, penal e civil”, explicando em seguida que
“No âmbito civil, que mais nos interessa, defrontamo-nos com a proteção privada. A tutela aqui reside na possibilidade de cessação da pratica ilícita e eventual condenação por danos sofridos, dentre outras possibilidades. Quando o sujeito toma conhecimento da lesão ou sabe que está na eminência de ter seu direito violado, recorrerá aos remédios oferecidos pelo ordenamento. Caberá a ele escolher o caminho que melhor lhe interessa: cessação da prática do ilícito, reparação de danos, apreensão do material, submissão do agente à cominação de pena etc”.[62]
O direito a informação, por outro lado, se justifica como meio de promoção da pessoa. Isto quer dizer que se qualquer direito ou garantia desanda e desborda, obviamente que o próprio sistema deve oferecer, como efetivamente oferece, a terapêutica jurídica necessária à cura do mal causado, não sendo rara a oferta legal de dispositivos voltados a prevenir, com a cautela, o mal potencial ou iminente.[63] Aliás, sempre que possível, o judiciário pode, presentes determinados pressupostos legais, antecipar a prestação jurisdicional reclamada pela via inibitória.
Para Gagliano e Pamplona Filho a proteção dos direitos da personalidade se dá nas seguintes modalidades:
“a) preventiva – principalmente por meio do ajuizamento de ação cautelar, ou ordinária com multa cominatória, objetivando evitar a concretização da ameaça de lesão ao direito da personalidade; e b) repressiva – por meio da imposição de sanção civil (pagamento de indenização) ou penal (persecução criminal) em caso de a lesão já haver se efetivado.”[64]
Carlos Alberto Bittar acena para a possibilidade de várias hipóteses de proteção dos direitos da personalidade,
“que permitem ao lesado a obtenção de respostas distintar, em função dos interesses visados, estruturáveis, basicamente em consonância com os seguintes objetivos: a) cessação de práticas lesivas; b) apreensão de materiais oriundos dessas práticas; c) submissão do agente à cominação de pena; d) reparação de danos materiais e morais; e) perseguição criminal do agente.”[65]
Ao nosso estudo interessa especialmente a proteção preventiva, exemplificada nos três primeiros modos de reação para a tutela dos direitos da personalidade.
Pedro Frederico Caldas explica que o controle judicial não tem natureza de censura, por não ser dotada de cunho artístico, ideológico ou político. O Poder Judiciário é formado por um quadro de técnicos, não retratando um poder hegemônico do momento como o Executivo e o Legislativo. Portanto, por mais que a posição jurisprudencial seja taxada como conservadora ou avançada, jamais pode ser considerada como elemento de ruptura das instituições e das liberdades. O Poder Judiciário tem o condão de resguardar o Direito e não escoimá-lo. Alega também que, a CF/88 em ser art. 5º, XXXV, não excluiu da apreciação do Poder Judiciário, qualquer lesão ou ameaça a direito. Para aquele autor “a apreciação judicial não é passiva, contemplativa, ao contrário, é dinâmica e se traduz no exercício do poder coativo estatal para dirimir a lide e restaurar a paz e o equilíbrio social onde houve a ruptura da ordem, agindo, inclusive, preventivamente para conjurar a ameaça a direito”. A intervenção judicial nesses casos, mesmo que vez ou outra atinja a liberdade de imprensa, não pode ser evitada nem temida, pois o Poder Judiciário atua como guardião da Constituição. Entretanto, a mátria está longe de ser pacificada e o STF, no momento, inclina-se por considerar a atuação judicial preventiva como forma de censura prévia.[66]
Para Gilberto Haddad Jabur “censura prévia pode significar sujeição preliminar, permissão ou autorização para difundir, ou em sentido mais atual, restrição, como limite que reduz ou cerceia a liberdade de veicular dos meios comunicacionais de massa”. E ensina que “empregam-se os termos para exprimir qualquer tipo de controle, vocábulo que não deixa de significar fiscalização”.[67]
A ingerência do Judiciário através da atuação preventiva sobre supostas veiculações atentatórias de outros direitos constitucionais é questão conflituosa. É preciso ter atenção para não confundir atuação preventiva do Poder Judiciário (controle judicial) com censura prévia (controle administrativo). Entender-los como sinônimos é admitir e postergar a intervenção do judiciário apenas para compor o dano, reconhecendo sua atuação puramente repressiva, negando-lhe a função de resguardar a tutela específica dos direitos e proporcionando um resultado rápido e eficaz do processo judicial.[68]
A intervenção prévia ao dano, pelo Poder Judiciário “não se trata de censura, quanto menos de fiscalização sumária”, pois não é intervenção do poder executivo para filtrar genericamente ao seu talante as publicações. O controle judicial não faz a democracia derrotada, pois “não é sacrifício de um direito em atributo ao outro, mas valoração, caso a caso, da potência que a lesão iminente, ou em curso, apresenta”.[69]
Segundo Jacqueline Sarmento Dias:
“Não podemos negar que o sujeito ativo do direito à imagem não possa ficar à espera do resultado da ação de ressarcimento enquanto a violação se propaga. Não se pode esperar. Vem daí a possibilidade das providências cautelares, na tentativa de suspender o ato ilícito enquanto a resolução da ação de ressarcimento não sai”.[70]
Também defendendo a tutela inibitória, distinguindo-a da censura, temos Luis Gustavo Grandinetti ao afirmar que:
“a proibição e censura dirige-se aos poderes administrativos e não ao Poder Judiciário, que não tem como exercer censura a priori, mas como é de seu ofício, compor interesses em conflito concretamente invocados”. Portanto, decisão judicial não seria ato de censura desde que atenta aos princípios que permitem a limitação à determinadas liberdades”.[71]
Gilberto Haddad Jabur ilustra com fartos exemplos de jurisprudência, doutrina e legislação estrangeiras a consagração da tutela inibitória. Para citar jurisprudência e doutrina francesas lembra Raymond Lyndon e Jean Carbonnier, que defendem ser melhor a reparação in natura que na forma de perdas e danos. Já o código civil francês, em nova redação do seu art. 9º, prevê essa intervenção preventiva do juiz, que pode “sem prejuízo da reparação de danos sofridos, determinar todas as medidas, tais como seqüestros e arrestos, entre outras, próprias a impedir ou fazer cessar um atentado à intimidade da vida privada; havendo urgência, essas medidas podem ser determinadas liminarmente”. Também a prevêem a tutela preventiva, tanto a Constituição italiana (art. 21, alínea II), quanto a Carta de Direitos e Liberdades da Pessoa, vigente na província canadense do Québec (art. 49, alínea I). O autor traz basilar jurisprudência da Suprema Corte Argentina que estabelece que a consciência da própria dignidade não se satisfaz “com indenizações pecuniárias, nem com publicações extemporâneas dispostas por sentenças inócuas, porque tardias. A crua noção anglo-saxônica de vindicar a honra by getting cash já mostrou que é insatisfatória para muita gente decente”.[72]
Assim é que não há outra conclusão senão a de propugnar a tutela inibitória como medida necessária para realização do princípio do acesso à justiça. Esta modalidade de tutela específica e preventiva visa resguardar o direito integralmente, admitindo a idéia de que a prevenção é melhor que o mero ressarcimento. Aliás, quando se fala em direito de conteúdo extrapatrimonial este ressarcimento é, em verdade impossível, pois o dano moral não consegue reintegrar totalmente o direito, aliviando, apenas pecuniariamente, a sua perda.
Em relação à proteção de direitos fundamentais como honra, imagem, vida privada e intimidade, a tutela inibitória é de valiosa importância haja vista conferir à decisão judicial executoriedade específica, preservando o direito de forma imediata. Por todo o exposto é que vislumbramos ser o instituto processual de importância vital para a tutela preventiva e específica dos direitos.
5. CONCLUSÃO
Por fim, o objetivo desse trabalho foi, a partir do estudo dos fundamentos dos direitos de personalidade, desmistificar a ideia de que a tutela inibitória, com vistas a protegê-los quando seja iminente a sua violação pelos meios de comunicação, é um instrumento de censura estatal. Primeiro, pois o Poder Judiciário não aprecia de forma regular, necessária e obrigatória todas as publicações e quando atua, o faz por eventualmente, provocado por impulso do autor da ação.
Frise-se ainda que a CF/88 em seu art. 5º, XXXV, não excluiu da apreciação do Poder Judiciário, qualquer lesão ou ameaça a direito. O controle judicial da liberdade de imprensa por meio da tutela inibitória, em tese, não se configura censura prévia, mas para que cumpra o seu papel constitucional deve atender a critérios de proporcionalidade sem que se aviltem os princípios democráticos.
Dessa forma, o papel da tutela inibitória na proteção dos direitos de personalidade é de suma importância, já que tem o objetivo de proteger tais direitos na sua forma específica, evitando-se a sua violação com a mera reparação em perdas e danos.
Entretanto, o magistrado deve balizar as suas decisões baseado em critérios claros e bem fundamentados, se possível utilizando-se dos métodos hermenêuticos de ponderação de interesses, balanceamento e proporcionalidade, de forma a evitar arbitrariedades e restrição indevida de algum desses direitos fundamentais.
ALBERT, Pierre; TERROU, Fernand. História da imprensa. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
Informações Sobre o Autor
Felipe Ventin da Silva
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia -UFBA