Guerra Fiscal. Limites constitucionais para vedação e anulação do crédito do ICMS


A Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, parcialmente recepcionada pelo art. 155, XII, g, da CF, dispôs que as isenções só podem ser concedidas e revogadas por convênios firmados por todos os Estados- membros e pelo Distrito Federal, nos temos do seu art. 1º.


O parágrafo único desse artigo determina a aplicação do caput às seguintes hipóteses:


“I -à redução da base de cálculo;


II – à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros;


III – à concessão de créditos presumidos;


IV – à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiros- fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dois quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus”.


O art. 8º dessa LC nº 24/75, por sua vez, prescreve:


“Art. 8º. A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:


I – A nulidade do ato e a ineficiência do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;


II – A exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.


Parágrafo único. Às sanções previstas neste artigo poder-se-ão acrescer a presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspensão do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos referidos nos itens VIII e IX, do artigo 21 da Constituição Federal”.


Com base nesse art. 8º, o fisco paulista vem exigindo o estorno do crédito e pagamento do ICMS em relação às mercadorias procedentes de Estados-membros que concedem incentivos fiscais.


O Comunicado CAT n º 36, de 29-7-2004, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo colocou nada menos do que 11 Estados-membros na lista negra. As mercadorias procedentes desses Estados-membros não têm os créditos do ICMS reconhecidos, devendo o destinatário (comprador) paulista recolher os impostos, que os remetentes deixaram de pagar.


Mais recentemente, o Comunicado CAT nº 14, de 24-3-2009 veio a dispor sobre incentivo fiscal do denominado “Pró-Emprego” instituído pelo Estado de Santa Catarina, também, prejudicando os contribuintes paulistas.


Entendo que apenas os incentivos fiscais consistentes na isenção e na não-incidência expressa podem dar ensejo à vedação da compensação com o montante devido nas operações subseqüentes, bem como, acarretar a anulação do crédito relativo às operações anteriores, nos exatos termos do art. 155, § 2º, II da CF. Aliás, esse dispositivo é uma transposição do que estava prescrito na Emenda Passos Porto, EC nº 23/83, que veio à luz para derrubar três teses do STF. Uma delas dizia respeito ao direito de crédito na importação de bens de capital. E a Lei Complementar nº 24/75 é anterior à EC nº 23/83, cujos textos foram incorporados na Constituição de 1988 no que diz respeito à flexibilização do princípio constitucional da não- cumulatividade do ICMS.


Diante disso, pergunta-se, pode a lei complementar, convênios, leis ordinárias, portarias, comunicados do CAT introduzir novas hipóteses de vedação e anulação do crédito do ICMS?


A resposta é não. Nada pode se sobrepor ao princípio da supremacia de Constituição. A Constituição elegeu o princípio da não-cumulatividade como regra geral, sendo exceção as duas hipóteses elencadas, de forma taxativa, no inciso II, do § 2º, do art. 155 da CF: a ocorrência da isenção e da não-incidência expressa, em uma das etapas de circulação da mercadoria ou do serviço.


Logo, os inúmeros incentivos fiscais previstos na LC nº 24/75, como redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, incentivo financeiro ou quaisquer outros incentivos que resultem na redução ou eliminação direta ou indireta do encargo tributário, não foram recepcionados pela Constituição de 1988, aliás, nem pela EC nº 23/83. Portanto, esses incentivos não podem implicar estorno de crédito do ICMS.


Decisões do STF amparam esse nosso entendimento.


EMENTA: ICMS- PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE – MERCADORIA USADA- BASE DE INCIDÊNCIA MENOR- PROIBIÇÃO DE CRÉDITO- INCONSTITUCIONALIDADE. Conflita com o princípio da não-cumulatividade norma vedadora da compensação do valor recolhido na operação anterior. O fato de ter-se a diminuição valorativa da base de incidência não autoriza, sob o ângulo constitucional, tal proibição. Os preceitos das alíneas “a” e “b” do inciso II do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal somente têm pertinência em caso de isenção ou não-incidência, no que voltadas à totalidade do tributo, institutos inconfundíveis com o benefício fiscal em questão (RE nº 161.031-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 6-6-1997).


No caso, houve o voto vencido do Min. Ilmar Galvão, que equiparava a redução da base de cálculo à isenção parcial de sorte a ancorar a exigência do estorno de crédito do ICMS no inciso II, do § 2º do art. 155 da CF.


 “EMENTA: Constitucional. Tributário. ICMS. Base de cálculo. Redução. Crédito. Princípio da não-cumulatividade da CF, art. 155, § 2º, I.


I- O princípio da não-cumulatividade consiste no realizar o abatimento, na operação posterior, do imposto incidente e pago na operação anterior. C.F, art. 155, § 2º, I. Impossibilidade da vedação do crédito em razão da redução da base de cálculo do imposto”


II- RE provido. Não provimento do agravo” (RE nº 355.422-MG, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 28-10-2004).


“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL. REDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. BENEFÍCIO FISCAL. CRÉDITO. VEDAÇÃO. PRINCÍPIO DA NÃO- CUMULATIVIDADE. OBSERVÂNCIA.


Lei estadual. Benefício fiscal outorgado ao contribuinte. Crédito decorrente da redução da base de cálculo do tributo. Vedação. Impossibilidade. A Constituição Federal somente não admite o lançamento do crédito nas hipóteses de isenção ou não- incidência. Precedente do Tribunal Pleno.


Agravo Regimental não provido” (RE nº 240.395-RS, Rel. Min. Maurício Correa, DJ de 2-8-2002).


EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICM. LEI ESTADUAL: REDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO: BENEFÍCIO FISCAL. CRÉDITO: PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE. C.F., art. 155, § 2º, I. VEDAÇÃO DO CRÉDITO PELA LEI ESTADUAL: IMPOSSIBILIDADE. Precedentes do STF. Agravo não provido” (RE nº 367.504-RS, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 26-03-2004).


No mesmo sentido: RREE 355.422 e 298.941.


É verdade que há uma tendência em equiparar a redução da base de cálculo à redução de alíquota com o fito de legitimar o estorno do crédito do ICMS, sob o fundamento de que desobedeceu a alíquota mínima interestadual, que tem natureza constitucional (art. 155, § 2º, IV da CF).


A exemplo da equiparação da base de cálculo à isenção parcial, voto vencido no Plenário da Corte Suprema, essa equiparação à redução de alíquota não deve, também, prevalecer. Não se pode definir as categorias jurídicas ou institutos jurídicos, como queiram, a partir dos efeitos produzidos, sob pena de ferir o princípio constitucional da segurança jurídica (art. 5º da CF). Não se cria, nem se majora tributo por analogia, matéria sob reserva de lei em sentido estrito, pelo que repudiamos, também, a instituição ou majoração de tributo por Medida Provisória.


O disposto no inciso II, do § 2º, do art. 155 da CF é uma exceção ao princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS. Por tal razão, deve ser interpretado restritivamente. É a regra elementar de hermenêutica.


Se formos equiparando à isenção total ou parcial toda a gama de incentivos previstos na Lei Complementar nº 24/75 acabaremos por transformar o ICMS em um tributo cumulativo em que a não- cumulatividade será uma exceção. Haverá inversão do princípio constitucional.


Se o legislador constituinte utilizou-se dos institutos da isenção e da não-incidência expressa, em sua conceituação tradicional, para limitar o direito ao crédito do ICMS, os conceitos desses institutos não podem ser alterados por legislação infraconstitucional e muito menos pelo aplicador do direito. Nenhuma decisão judicial pode elastecer o conceito tradicional de isenção definido no art. 175 do CTN como forma de extinção do crédito tributário, pois, é sabido que o Judiciário não pode agir como legislador positivo. E mais, o art. 111 do CTN determina interpretação literal de norma que disponha sobre isenção, donde a impossibilidade de ler isenção parcial onde está escrito redução da base de cálculo. Nem se pode ler redução de alíquota onde está prescrita a redução da base de cálculo.


Aliás, tanto são diferentes a base de cálculo e a alíquota, embora ambas integrem o aspecto quantitativo do fato gerador, que o § 1º, do art. 153 da CF, nos chamados impostos regulatórios (II, IE, IOF e IPI) faculta ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites fixados em lei, alterar as alíquotas. Não pode o Executivo alterar a base de cálculo dos impostos referidos a pretexto de que provoca idêntico efeito da alteração de alíquotas.


Os contribuintes paulistas, que estão sendo punidos por causa desses incentivos fiscais outorgados por outros Estados-membros, sem que nenhuma responsabilidade possa ser-lhes imputada à luz dos textos constitucionais e do próprio art. 128 do CTN devem questionar na Justiça a exigência de estorno e pagamento do ICMS.


Outrossim, seria desejável que o STF mudasse a atual orientação de aplicar o art. 12 da lei de regência de matéria nas Adins versando sobre inconstitucionalidade dos incentivos fiscais concedidos unilateralmente por diversos Estados-membros.


A concessão de liminar suspendendo no nascedouro o incentivo fiscal inconstitucional, certamente, provocará uma reorientação política dos governantes que passarão a agir dentro do permitido por normas constitucionais e complementares.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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