Resumo: Este artigo apresenta ferramentas hermenêuticas que auxiliam o magistrado a decidir as lides oriundas dos contratos sem que esteja preso ou dependente de normas positivas para cada caso concreto, considerando que o universo dos fatos jurídicos da vida quotidiana jamais poderá ser completamente regulado pelo legislador.
Palavras-chave: Princípios. Hermenêutica contratual. Magistrado. Aplicação.
Abstract: This article presents hermeneutical tools that assist the magistrate to decide the labors of the coming contracts without being arrested or dependent on positive norms for each case, considering that the universe of the legal facts of everyday life can never be completely controlled by the legislature.
Keywords: Principles. Hermeneutics contract. Magistrate. Application.
No passado, foi notória a influência da intangibilidade dos contratos, em decorrência de sua força obrigatória, nos doutrinadores e nos julgados do século XIX e do início do século XX. Assim, qualquer perspectiva de intervenção do Estado na economia contratual era repudiada de modo veemente. Com isso, chegou-se ao extremo de se interpretar o Código Napoleônico com a finalidade de se equiparar o contrato à lei, em idêntica importância. Era uma lei privada mas, ainda assim, era uma lei.
Contemporaneamente há o pluralismo jurídico, pela crítica do conteúdo valorativo das normas jurídicas e pelo destaque dos princípios gerais de direitos, voltados para a realização da justiça social e a realização do ser humano.
Na época de Comte, o positivismo foi marcado pela defesa das leis em uma concepção puramente formal ou legalista, sem direcionamento com a efetivação da justiça social. Entretanto, como notamos, está declínio tal acepção.
“Os princípios fundamentais que regem os contratos deslocam seu eixo do dogma da autonomia da vontade e de seu corolário da obrigatoriedade das cláusulas, para considerar que a eficácia dos contratos decorre da lei, a qual, sanciona porque são úteis, com a condição de serem justos…” (Superior Tribunal de Justiça, Rel. Ministro Barros Monteiro, Resp. n.º 45.666-5/SP, 17/05/1994).
Chaim Perelman, citado por Lídia Reis de Almeida Prado (in O juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica Jurídica, 3ª ed. Campinas, SP: Millennium, 2005), lecionou:
“Enquanto a século XIX se caracteriza pelo predomínio do formalismo jurídico e de uma concepção legalista do direito, o século seguinte é a época do realismo e do pluralismo jurídicos, em que os princípios gerais do Direito têm uma importância cada vez maior, graças à influência de considerações de índole sociológica e metodológica. Para ele, a teoria do Direito característica do século XX favorece a concepção tópica do raciocínio jurídico, contrária ao formalismo, conduzindo ao reconhecimento do papel do juiz na elaboração do Direito e à prevalência da eficácia da lei sobre sua validade.”
No velho positivismo, o juiz sempre foi um servo da lei, que desenvolvia um raciocínio jurídico para elaborar uma sentença como mero silogismo matemático, mesmo que implicasse em “pretexto para a imposição de injustiças legalizadas” (cf. Dalmo de Abreu Dallari, A hora do Judiciário. Revista da Escola Nacional da Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiros. Ano I, número 1, Brasília: Escola Nacional da Magistratura, 2006).
Por sua vez, a autonomia da vontade contratual alimentava o princípio da obrigatoriedade das avenças. Tal diretriz era bem representada pelo “pacta sunt servanda”, significando a intangibilidade ou irretratabilidade do acordo de vontades. Contratou, tem que cumprir; de onde “nenhuma consideração de eqüidade justificaria a revogação unilateral do contrato ou alteração de suas cláusulas, que somente se permitem mediante novo concurso de vontades”, bem assim a impossibilidade de revisão pelo juiz, ou de liberação por ato seu. (cf. Orlando Gomes. Contratos. Atualização de Humberto Theodoro Júnior. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 36).
Segundo Miguel Reale (in Filosofia do Direito, 20ª edição, São Paulo, Saraiva, 2002), a idéia de contrato surgiu a partir do momento em que o homem passou a ser orgulhoso de sua força racional e de sua liberdade, sendo capaz de constituir por si mesmo a regra de sua conduta.
Para Reale (op. cit.), o problema das relações entre a moral e o direito acha-se intimamente vinculado à problemática política, implicando questões de conteúdo social e econômico. Trata-se de assunto que não pode ser examinado segundo meros critérios formais, suscitando uma série de perguntas que se situam no âmago do processo histórico-cultural.
Luiz Edson Fachin (in Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 318) após cuidar da boa-fé objetiva, propôs a consideração dos princípios da tutela da confiança e da lealdade, que influenciariam no direito dos contratos: “A fidelidade, de modo geral, é teleológica. Quando se pergunta pela fidelidade se quer saber, a rigor, a quais fins os contratos se dirigem. É nessa perspectiva que também emergem idéias da noção do cumprimento contratual. Valorando um comportamento, há a entrada de tal aferição na economia das relações jurídicas, ou seja, no núcleo da equação econômico-financeira do contrato. Desequilíbrio e proporção ligam-se ao conceito de fidelidade a partir do momento em que se interroga sobre os fins a que se destina uma obrigação assumida…”
Pragmaticamente, o perfil político ideológico das leis passou de liberal para o social, com a utilização das técnicas legislativas mistas, principalmente pela adoção das chamadas cláusulas gerais: função social e boa-fé objetiva. Para sua existência, validade e eficácia, fala-se, ainda, em fins econômico-sociais no campo dos contratos.
Consoante Ronald Dworkin, (in Levando os direitos a sério, Trad. Nelson Boeira, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 39) o positivismo não conseguiria fundamentar as decisões de casos complexos para os quais o julgador não identificou nenhuma regra jurídica aplicável à espécie, a não ser por meio da utilização do recurso à discricionariedade judicial. Isso ocorre porque essa teoria concebia o direito como um sistema composto exclusivamente de regras determinadas. Assim, caberia ao juiz criar um direito novo.
Os princípios, como mandados de otimização do ordenamento, possuem uma função saneadora, por meio da qual as normas jurídicas concretizam os valores incrustados nos princípios que as inspiram (cf. Robert Alexy, “Teoría de los Derechos Fundamentales”, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2002, p. 83).
Para Alexy (op. cit.), as normas de direito fundamental possuem uma fundamentação correta e se situam na categoria de princípios jurídicos. Esses direitos não seriam universais nem perenes, não se tratando de jusnaturalismo, mas da positivação em nível constitucional das garantias à preservação do conceito de dignidade da pessoa humana.
O princípio da proporcionalidade possui relação com a idéia de justiça e serviria para estabelecer o equilíbrio de interesses contrapostos, com base no menor prejuízo possível ao devedor, segundo Karl Larenz (in Metodologia da Ciência do Direito, Trad. José Lamego, 3ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p 674.), que desenvolveu a teoria da base objetiva.
O texto das normas necessita de interpretação ou mediação de um intérprete em virtude de seu caráter alográfico, segundo Eros Roberto Grau (in Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, Malheiros Editores, 2ª Ed.): o direito é alográfico porque o texto normativo não se completa no sentido nele impresso pelo legislador. A completude do texto somente seria atingida quando o sentido por ele expressado fosse produzido pelo intérprete como nova forma de expressão.
O contrato como lei entre as partes foi um princípio consagrado no Código Francês, de origem romana, anterior à Lei das XII Tábuas, e repetido por outras legislações. Esse princípio é a consagração suprema da autonomia da vontade, do poder da autonomia privada na criação de relações jurídicas civilísticas. Era a chamada “lex privata”.
Mesmo as legislações que não se referiram ao princípio da lei privada expressamente, o fizeram de forma implícita ao obrigar a parte a cumprir a obrigação na forma pactuada, sob pena de responder pelas perdas e danos causados. Mas o mais importante nesta regra não era o fato de o Estado se limitar a regular as relações jurídicas entre as partes: esta norma era muito mais profunda, pois representava uma renúncia do Estado para interferir na liberdade individual em matéria de conteúdo dos atos, que ficavam no arbítrio dos particulares.
Pela regra vista, o Estado reconhecia um limite à sua interferência, embora ele pudesse depois fiscalizar os efeitos desses atos e disciplinar estas consequências de acordo com os interesses públicos.
Hoje, o dirigismo contratual tenta infirmar, gradualmente, o princípio da obrigatoriedade dos pactos, mas a vida diária nos mostra que os particulares desconhecem os princípios estatais em muitas áreas, continuando a fazer pactos como se as limitações constitucionais não existissem, principalmente quando elas impostas pelas instituições mais fortes.
A teoria do negócio jurídico girava em torno da liberdade individual, sendo que esta matéria não pertence apenas ao campo do Direito Civil, mas está vinculada a aspectos verdadeiramente políticos.
Com o tempo, o princípio da obrigatoriedade foi enfraquecido pela crescente intervenção estatal com o fito de inibir excessos, uma vez que, no caminho da evolução social, restou claro que a autonomia da vontade não se sustenta quando as partes são desiguais (uma delas hipossuficiente), levando, na maioria das vezes, a que os economicamente mais fortes possam impor as suas condições para aqueles premidos pela necessidade.
Assim, norteado pela eticidade e sociabilidade, o legislador moderno tem consignado como cláusula geral em seus dispositivos a função social do contrato e da propriedade, a boa fé objetiva, a teoria da imprevisão, a vedação ao abuso do direito, a lesão, e aos contratos firmados em estado de perigo que tragam, assim, prejuízo para a parte tolhida pela urgência.
O princípio da obrigatoriedade dos contratos significava que o contrato fazia lei entre as partes. Uma vez livremente consentido, o contrato não podia ser revogado unilateralmente por nenhuma das partes, nem podia o juiz alterá-lo para harmonizar a situação jurídica de qualquer delas. À liberdade de contratar correspondia a obrigação de cumprir literalmente o que foi contratado. Antes de contratar, qualquer pessoa podia recuar ou arrepender-se e não assumir o compromisso do contrato. Uma vez celebrado, o contrato não podia ser descumprido a pretexto de ser por demais leonino. A palavra empenhada tinha de ser respeitada, sob pena de insegurança na vida jurídica.
Antes, os princípios de eqüidade não podiam ser invocados para tangenciar ou amenizar a execução de cláusulas que passavam a valer como se fossem preceitos legais de ordem imperativa.
Esse vetusto princípio não está totalmente revogado, persistindo a obrigatoriedade dos contratos, mas encontra-se amenizado pela necessidade de justiça social. Excepcionalmente, o Estado intervém para evitar o abuso do princípio da obrigatoriedade em determinados contratos, mas o princípio continua firme, adaptado às realidades sociais de novos tempos, sem o caráter totalmente absoluto que antes se atribuía e que serviu para garantir privilégios.
A teoria da imprevisão está hoje em dia vitoriosa em muitos tipos de contratos, vindo a permitir a revisão judicial em favor da parte que seria onerada injustamente em virtude de acontecimentos extraordinários.
Bittar (Carlos Alberto Bittar (coord.), in Contornos atuais da teoria dos contratos. São Paulo: RT, 1993, pp. 116-117.) considera a teoria da imprevisão como sendo uma construção intelectual fundamentada na seguinte idéia:
“radical modificação do estado de fato do momento da contratação (base objetiva do negócio) determinada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, dos quais decorra onerosidade excessiva no cumprimento da obrigação e, assim, a possibilidade de revisão contratual”.
Para Arnoldo Medeiros da Fonseca (in Caso fortuito e teoria da Imprevisão. 3ª ed. revista e atualizada, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 244):
“Consagrada uma tal regra no direito positivo, ter-se-ia concedido ao juiz o meio de evitar a iniqüidade temida, sem quebra dos princípios tradicionais. E assim se chegaria a atender, em tal caso, á impossibilidade subjetiva ou à onerosidade excessiva da prestação.
Tratar-se-ia, entretanto, de norma absolutamente excepcional, que somente estaria destinada a operar em benefício do devedor e quando concorrerem esses três elementos: a) a alteração radical no ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato, decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis; b) onerosidade excessiva para o devedor e não compensada por outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperáveis, diante dos termos dói ajuste; c) enriquecimento inesperado e injusto para o credor, como conseqüência direta da superveniência imprevista.”
A revisão judicial do contratos nasceu a partir da concepção da teoria da imprevisão, que sustentou o direito de o contratante excessivamente onerado na sua prestação, por efeito de transformações econômicas imprevisíveis no momento em que o contrato foi realizado, de pedir judicialmente a resolução do mesmo, ou a mudança eqüitativa das condições de execução (prorrogação de obrigação, redução de importâncias, reajustes etc.).
A teoria da imprevisão significava o corolário da cláusula “rebus sic stantibus”. Este brocardo constitui o princípio da imprevisão, aplicável nos contratos de execução diferida, durante o qual se percebem alterações necessárias nos objetos das prestações.
O ordenamento jurídico anterior opunha-se ao princípio da imprevisão, que era, não obstante, aceito pela jurisprudência em muitos casos, inclusive no campo do Direito Administrativo. A nova ordem jurídica nacional recepcionou essa diretriz, que admite a alteração contratual ou mesmo a resolução do pacto. Outrossim, a regra encontra-se também espelhada no microssistema consumerista.
Os contratos de execução sucessiva ou de trato sucessivo são aqueles que permitem prestações periódicas, que não extinguem a obrigação de imediato. A teoria da imprevisão se aplica aos contratos de execução sucessiva ou continuada, considerando-se a sua dilatação no tempo, podendo haver transformações de ordem econômica que tornem impossível a prestação sem que uma das partes seja excessivamente onerada.
Renan Lotufo (in Código Civil comentado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1, p. 441), apreciando o problema da mensuração do desequilíbrio, afirmou que o nosso sistema abandonou a técnica romana de tarifar a desproporção entre as prestações, como ocorre no Direito Italiano, julgando que “no nosso novo Código caberá ao juiz, diante do caso concreto, averiguar essa desproporção, partindo do acentuado desnível entre as prestações devidas pelos contratantes”.
A imprevisão, segundo a doutrina clássica, apresentava-se como uma causa de resolução dos contratos ou como um fator de revisão contratual. Ruy Rosado de Aguiar Júnior (in Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). São Paulo: Aide, 1991, p. 65) tratou a matéria nos seguintes termos:
“O ato anulável também contém vício congênito, mas é eficaz até sua decretação pelo juiz. (…) Não podendo ser declarada de ofício, a anulabilidade fica dependente da impugnação daquele em favor de quem foi estabelecida a regra. O resultado, porém, é o mesmo: (a) a desconstituição do próprio ato, com extinção ex tunc dos seus efeitos, uma vez que a sua passagem para o plano da eficácia foi apenas provisória.”
Com a evolução política e social, as normas positivadas, como os microssistemas jurídicos e os códigos, passaram a ser sistemas móveis. Eles não devem ser nem sistemas abertos e nem fechados; devem ser dotados de flexibilidade, de modo a ensejar o seu constante aperfeiçoamento por intermédio do exercício, da aplicação e da hermenêutica das chamadas cláusulas gerais pelos operadores do direito.
Nosso sistema jurídico tem evoluído, optando por ser móvel e não fechado, adotando as cláusulas gerais, os conceitos legais indeterminados e os conceitos determinados pela função, como elementos integradores da unidade e da ordenação do sistema jurídico.
Há muito tempo a legislação já conhecia a técnica da utilização das cláusulas gerais, que suscitavam desconfiança em razão do alto grau de discricionariedade atribuída ao juiz. Antes, ou se tornavam letra morta ou dependiam de construção doutrinária capaz de atribuir um conteúdo menos subjetivo às sentenças. Esse medo pode ser percebido ainda hoje nos críticos ao chamado Direito Alternativo.
As cláusulas gerais são normas, diretrizes dirigidas ao juiz vinculando-o e ao mesmo tempo dando liberdade para decidir. E os princípios gerais de direito são regras de conduta que norteiam o hermeneuta na interpretação da norma aplicável ou do negócio jurídico avençado. Esses princípios não se encontram positivados: são regras estáticas que carecem de concretude.
Quando o sistema jurídico inclui um princípio geral no direito positivo, passa-se a caracterizar o instituto como uma cláusula geral (princípio positivado). As cláusulas gerais têm conteúdo normativo mais denso e são fonte criadora de direitos e de obrigações.
Por sua vez, os conceitos legais indeterminados são palavras indicadas pela lei de conteúdo e de extensão altamente vagos, imprecisos, genéricos, abstratos e lacunosos. Nestes casos, cabe ao intérprete preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto. O juiz, nesses casos, não exerce uma função criadora. É a lei quem dá as conseqüências advindas do conceito indeterminado.
A indeterminação dos conceitos deve ser preenchida pelo hermeneuta por meio de valores éticos, morais, sociais, econômicos e jurídicos, o que os transforma em definições determinadas pela função, que têm de exercer no caso concreto. Esses conceitos abertos propiciam e garantem a aplicação correta, eqüitativa do preceito aos casos particulares.
Por seu turno, as cláusulas determinadas pela função devem ser resultado da valoração dos conceitos legais indeterminados pela utilização pelo juiz das cláusulas gerais.
Os conceitos legais indeterminados diferem das cláusulas gerais porque os primeiros têm solução pré-estabelecida. Esses institutos diferem pela sua finalidade e por sua eficácia. As cláusulas gerais preenchem claros com valores para o caso para que o juiz dê a solução mais justa. Elas concretizam o previsto nos princípios gerais do direito e nos conceitos legais indeterminados. Com isso, elas abrandam as desvantagens de abstração e generalidade das normas legais.
As cláusulas gerais passam pelos conceitos determinados pela função. As cláusulas gerais têm função instrumentalizadora: são mais concretas e efetivas do que os princípios gerais do direito e dos que os conceitos legais indeterminados. São normas de ordem pública e que devem ser aplicadas de ofício pelo pretor, independente de pedido da parte. Nesses casos, o juiz preenche o conteúdo da cláusula geral dando a conseqüência que a situação reclama.
O Superior Tribunal de Justiça, utilizando-se da técnica das cláusulas abusivas, já atribuiu caráter de ordem pública para as matérias relativas à revisão contratual: “O STJ tem preconizado a possibilidade de rever, de ofício, cláusulas contratuais consideradas abusivas, para anulá-las, com base no art. 51, IV, do CDC”. (Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. AgRg no Resp n.º 655.443/RS. Rel. Ministro Fernando Gonçalves. Data de julgamento 05/042005, DJU 02/05/2005, p. 372)
Cláudia Lima Marques (in Notas sobre o sistema de proibição de cláusulas abusivas no Código Brasileiro de Consumidor. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma, vol. 1, p. 13-58, jan./mar 2000) propõe que o tratamento das cláusulas abusivas está diretamente afetado por três primados fundamentais: princípio da vulnerabilidade; princípio da boa-fé objetiva; e o princípio do equilíbrio ou equidade contratual.
Em se aplicando o princípio da vulnerabilidade, está-se dando eficácia ao primado constitucional da isonomia, tratando-se desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. (Nélson Nery Júnior. Princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, vol. 3, p. 5-26, set/dez 1992)
Para Cláudia Lima Marques (op. cit., p. 29), o princípio da boa-fé objetiva revela-se como um “standard” e um padrão hermenêutico a guiar o sistema de consumo sob a égide da lealdade e da cooperação e a violação de deveres anexos (cuidado, cooperação, informação, proteção e segurança), sendo sensível no campo contratual.
Por sua quadra, o primado do equilíbrio ou eqüidade contratual revela-se na manutenção do sinalagma inerente aos contratos bilaterais.
A evolução constitucional determinou que a função social dos contratos deve ser dita pelo julgador. Com isso, o magistrado deve observar os usos e costumes locais atendendo às expectativas da sociedade. Por maio da técnica da cláusula geral, o sistema jurídico torna-se vivo e sempre atualizado, prolongando a aplicabilidade das normas com o passar do tempo. Neste campo, o princípio da boa-fé também é um dos meios de integrar os contratos.
No caso dos conceitos legais indeterminados, a própria norma prevê as conseqüências jurídicas esperadas. Quando o juiz cria a solução para o caso concreto, por meio da utilização da técnica hermenêutica da cláusula geral, essa função integrativa tem como fruto uma sentença de natureza determinativa.
O conceito de boa-fé, por exemplo, apresenta diversas facetas: depende do contexto de fato. Quando a boa-fé servir de interpretação torna-se princípio geral do direito. Se a boa-fé for solução prevista em lei, configura-se um conceito legal indeterminado. Se a boa-fé estiver inserida na solução específica criada pela mente do juiz, torna-se cláusula geral.
É por meio das decisões judiciais que as cláusulas gerais são retiradas do abstrato para se concretizarem, criando direito entre os contratantes. Essa atividade integrativa é semelhante ao processo de jurisdição graciosa. Com isso, são múltiplas as possibilidades que se oferecem como soluções ao problema do desatendimento à cláusula geral (ou princípio) da função social do contrato, gerando uma sentença determinativa.
A função social dos contratos coaduna-se e compatibiliza-se com a autonomia privada, quando estão presentes os interesses metaindividuais ou o interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana (princípio constitucional). Também, a função social da propriedade é garantia fundamental e princípio da ordem econômica, de magnitude constitucional.
A visão social do contrato, como a utilidade pública, constitui abrandamento do princípio da relatividade dos efeitos do contrato. Hoje em dia, a conservação dos contratos requer a manutenção e a continuidade de execução, observados as regras de eqüidade, do equilíbrio contratual; da boa-fé objetiva e da função social do contrato.
A função social do contrato deve assegurar prestações úteis e justas. Como o contrato é instrumento de realização do bem comum e sendo útil, deve ser justo. A cláusula geral da função social do contrato permite ao juiz fazer a lei entre as partes. O contrato é instrumento de convívio social e de preservação de interesses da coletividade onde encontre a sua razão de ser e de onde extrai a sua força. Tal norma interessa a toda a sociedade contemporânea.
Inclusive, a boa-fé objetiva (concepção ética da boa-fé) decorre da função social do contrato. Por sua vez, a boa-fé subjetiva (concepção psicológica), baseada em crença ou ignorância (entendimento equivocado) da parte ou do contratante, protege o contratante que atua com confiança no negócio aparente (teoria da aparência). A boa-fé subjetiva tem natureza de regra de interpretação da manifestação de vontade unilateral.
Com isso, a boa-fé objetiva impõe um agir com correção, segundo os usos e costumes da sociedade. A cláusula geral de boa-fé objetiva se particulariza por circunstâncias: a indeterminação e a referência, não a preceitos, mas a mandamentos (lealdade e boa-fé) ou critérios (usos e costumes) sociais e metajurídicos. A boa-fé objetiva impõe um padrão de conduta como ser humano reto, com probidade, honestidade e lealdade (homem comum), atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar.
Conclui-se que a utilização de princípios no campo contratual permite ao juiz se afastar da convenção das partes para determinar a sua própria concepção de equilíbrio. E a progressiva limitação da autonomia privada (“pacta sunt servanda”) significou absoluta abertura e quebra das amarras que o liberalismo clássico impôs no campo do Direito Brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Silvestre Gomes dos Anjos
Membro do Ministério Público junto ao TCE/GO. Especialista em Direito (UnB, UGF e Emab)