Autores:
Leandro Leonardo Videiro Araújo
Romulo Victor Coelho Silva
Resumo:
Este trabalho analisa a incompatibilidade entre a garantia provisória gestacional e o contrato de trabalho temporário, considerando seus impactos jurídicos e sociais. A pesquisa aborda como as mudanças na economia digital e a popularização de novas modalidades de trabalho, como motoristas de aplicativos, evidenciam lacunas no ordenamento jurídico brasileiro. Por meio de uma abordagem qualitativa e comparativa, são analisados aspectos legais da relação entre empregadores e trabalhadores no âmbito de contratos temporários e a ausência de proteção para categorias específicas, como gestantes, em tais relações. Além disso, o estudo explora experiências regulatórias internacionais, destacando como outros países têm conciliado inovação tecnológica, proteção social e segurança jurídica. O objetivo é propor diretrizes para regulamentação mais justa e eficiente no Brasil, alinhada às transformações econômicas e sociais, promovendo um equilíbrio entre progresso tecnológico e a garantia de direitos trabalhistas fundamentais.
Palavras-chave: Garantia gestacional; Contrato de trabalho temporário; Direito do trabalho.
Abstract: This study analyzes the incompatibility between gestational job security and temporary employment contracts, considering their legal and social impacts. The research explores how changes in the digital economy and the popularization of new work modalities, such as app-based drivers, highlight gaps in Brazilian labor laws. Through a qualitative and comparative approach, the study examines legal aspects of the relationship between employers and workers in temporary contracts and the lack of protection for specific categories, such as pregnant women, in such arrangements. Additionally, it reviews international regulatory experiences, showcasing how other countries have balanced technological innovation, social protection, and legal security. The objective is to propose guidelines for fairer and more efficient regulation in Brazil, aligned with economic and social transformations, fostering a balance between technological progress and the guarantee of fundamental labor rights.
Keywords: Gestational job security; Temporary employment contract; Labor law. Digital economy. Public policies.
1 INTRODUÇÃO
A evolução tecnológica e a popularização das plataformas digitais de transporte, como Uber e 99, trouxeram significativos avanços para a mobilidade urbana e novas oportunidades de trabalho em um contexto marcado por elevados índices de desemprego e precarização das relações formais de trabalho.
Contudo, a ausência de regulamentação específica para as atividades desempenhadas por motoristas de aplicativos no Brasil tem gerado um vazio legislativo que afeta diretamente os direitos desses trabalhadores e compromete a segurança e a qualidade do serviço oferecido aos usuários. Essa lacuna evidencia o descompasso entre o sistema jurídico e as transformações promovidas pela economia digital, contribuindo para a precarização do trabalho e a fragilidade das garantias sociais.
Diante disso, este artigo busca analisar os desafios e as perspectivas relacionados à regulamentação dos aplicativos de transporte no Brasil, destacando como esse processo pode proteger os direitos dos motoristas e equilibrar as necessidades de plataformas e usuários. Parte-se do questionamento central: de que maneira a regulamentação pode assegurar condições de trabalho dignas e a proteção social dos motoristas, sem desincentivar a inovação tecnológica e o crescimento econômico das plataformas digitais?
Para tanto, o estudo adota como hipótese que uma regulamentação equilibrada, adaptada ao contexto da economia digital, pode contribuir para a redução da precarização do trabalho, ao mesmo tempo em que preserva a flexibilidade e o caráter inovador dessas plataformas.
Os objetivos específicos incluem: (1) examinar legislações existentes e propostas em discussão no Brasil e em outros países para regular o trabalho em plataformas digitais; (2) avaliar as perspectivas dos principais atores envolvidos, como motoristas, plataformas, sindicatos e governo; (3) identificar os principais desafios enfrentados pelos motoristas de aplicativos no que se refere à segurança no trabalho e acesso a benefícios sociais; e (4) propor recomendações que promovam melhores condições de trabalho sem comprometer a inovação e a competitividade das plataformas.
A metodologia adotada é qualitativa, com abordagem indutiva, baseada em pesquisa bibliográfica e documental. A análise será organizada em três seções: a primeira aborda o marco regulatório das plataformas de transporte no Brasil e os esforços de regulamentação até o momento; a segunda discute os desafios enfrentados pelos motoristas de aplicativos, incluindo as condições precárias de trabalho e a ausência de proteção social; e a terceira apresenta uma análise das visões dos diferentes atores e propõe soluções viáveis para uma regulamentação mais justa e eficiente.
Com isso, o artigo busca contribuir para o debate sobre a modernização das legislações trabalhistas, considerando os impactos das novas tecnologias e formas de trabalho. Ao propor uma abordagem equilibrada, o estudo visa oferecer subsídios para a formulação de políticas públicas que garantam a proteção dos direitos sociais em um cenário cada vez mais digital e conectado.
2 HISTÓRICO LEGAL E CONTEXTO
A introdução de plataformas digitais de transporte no Brasil ocorreu em um momento de intensa transformação tecnológica e de mobilidade urbana. A chegada da Copa do Mundo de 2014 marcou a estreia da Uber no país, iniciando suas operações no Rio de Janeiro. A empresa apresentou-se como “uma plataforma tecnológica que conecta motoristas parceiros a usuários de maneira prática e acessível” (UBER, 2019).
Sua criação remonta a dezembro de 2008, quando Travis Kalanick e Garrett Camp, enfrentando dificuldades para encontrar um táxi em Paris, conceberam a ideia de um aplicativo que permitisse solicitar viagens com apenas um clique no celular. Assim nasceu a UberCab, inicialmente projetada como “um app de smartphone para chamar carros ao simples toque de um botão” (UBER, 2019).
O potencial econômico dessa inovação atraiu rapidamente investidores. Até 2015, a Uber já havia acumulado US$ 7 bilhões em aportes, cifra que cresceu para US$ 11 bilhões em 2017 (SLEE, 2017). No entanto, o mercado chinês revelou-se desafiador, levando à venda das operações da Uber para a Didi Chuxing em 2016, em um acordo avaliado em US$ 35 bilhões (DIDI, 2016). Em 2019, a Uber consolidou sua posição global ao iniciar seu processo de abertura de capital (G1, 2019).
A abrangência da Uber impressiona. Até março de 2019, a plataforma operava em 65 países, com mais de 75 milhões de usuários cadastrados e 3 milhões de motoristas parceiros, realizando cerca de 15 milhões de viagens diárias. Ao longo de sua trajetória, a empresa já acumulava 10 bilhões de viagens concluídas (UBER, 2019).
Embora tenha sido pioneira na introdução de tecnologia disruptiva no transporte individual, a Uber não foi a primeira plataforma do gênero no Brasil. Em 2012, Ariel Lambrecht, Renato Freitas e Paulo Veras, estudantes da Universidade de São Paulo, criaram o aplicativo 99 Táxis, que inicialmente conectava passageiros apenas a taxistas. Posteriormente, o serviço expandiu-se para incluir motoristas particulares com o lançamento do 99Pop, consolidando-se como um grande concorrente da Uber no Brasil (99, 2019).
O modelo de negócios da Uber é marcado pela simplicidade e acessibilidade. Os motoristas precisam apenas se cadastrar na plataforma, apresentando documentos básicos, como a Carteira Nacional de Habilitação com permissão para exercer atividade remunerada e o Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (UBER, 2019). As operações são gerenciadas por algoritmos que conectam motoristas e passageiros com base na proximidade, definem os valores das corridas e incentivam motoristas a atuarem em áreas de alta demanda.
Além disso, o sistema de avaliação dos motoristas, baseado em notas atribuídas pelos passageiros, permite à Uber monitorar a qualidade do serviço. Motoristas com notas médias inferiores a 4,4 podem ser descredenciados, evidenciando o controle rigoroso da plataforma sobre a prestação de serviços (LEME, 2017).
Apesar de sua inovação tecnológica, o modelo de negócios da Uber levanta questões sobre a regulamentação e a proteção dos direitos dos motoristas. Como aponta Carelli (2020), os motoristas arcam com todos os custos operacionais, enquanto a empresa fixa tarifas unilateralmente e não reconhece vínculos empregatícios. Essa dinâmica transfere os riscos empresariais para os trabalhadores, aprofundando a precarização (CARELLI, 2020).
A 99, maior representante brasileira do setor, foi criada em São Paulo, em 2012.Inspirada por experiências internacionais, conectava inicialmente apenas taxistas aos passageiros. Posteriormente, expandiu seus serviços com o 99Pop, que passou a incluir motoristas particulares. Hoje, a 99 conecta mais de 14 milhões de usuários a cerca de 300 mil motoristas cadastrados. A empresa foi a primeira startup brasileira avaliada em mais de US$ 1 bilhão e, posteriormente, adquirida pela chinesa Didi (UseMobile, 2021).
A Cabify surgiu em resposta à dificuldade de seu fundador, Juan de Antonio, em acessar táxis em países da América Latina e Ásia. Inicialmente focada em um público de alto padrão, a plataforma diversificou seus serviços com o CabifyLite, ampliando o alcance para usuários com diferentes perfis econômicos. Apesar de seu sucesso na América Latina, a Cabify encerrou suas operações no Brasil em 2021 (OverBr, 2021).
Fundada em 2009 por Garrett Camp e Travis Kalanick, a Uber surgiu de uma experiência frustrante ao tentar conseguir um táxi em Paris. Inicialmente concebida como um serviço de luxo, a empresa adaptou-se rapidamente ao mercado com o lançamento do UberX, que democratizou o acesso ao transporte individual (MachineGlobal, 2021).
A chegada e consolidação dos aplicativos de transporte no Brasil revolucionaram o setor de mobilidade urbana. Contudo, essas inovações também trouxeram desafios significativos, como a necessidade de regulamentação que equilibre o crescimento econômico, a inovação tecnológica e a proteção dos direitos trabalhistas. Este cenário exige um olhar atento para o impacto social e econômico dessas plataformas, especialmente em contextos urbanos marcados por desigualdades e precarização.
3 IMPACTOS DA FALTA DE REGULAMENTAÇÃO
A discussão sobre a existência de vínculo trabalhista entre os trabalhadores de aplicativos e as plataformas digitais, como Uber, iFood e similares, é complexa e varia conforme as regulamentações locais e decisões judiciais. Essa questão tem sido objeto de intenso debate jurídico, especialmente em um contexto onde as leis trabalhistas tradicionais muitas vezes não contemplam as especificidades da economia de plataformas.
Conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no Brasil, a caracterização de vínculo empregatício requer a presença de requisitos como habitualidade, pessoalidade, subordinação jurídica e onerosidade (BRASIL, 1943). O artigo 3º da CLT define o empregado como a “pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. No entanto, a aplicação desse conceito aos trabalhadores de aplicativos tem sido alvo de interpretações divergentes.
Segundo Nascimento (2005, p. 25), “a relação de trabalho compreende um universo de vínculos jurídicos nos quais o objeto predominante é a atividade da pessoa que presta serviços para outra, seja para uma empresa ou uma pessoa física”. Tal definição amplia a visão sobre as relações de trabalho, incluindo vínculos que não necessariamente se enquadram na relação tradicional de emprego.
No Brasil, os tribunais frequentemente analisam casos envolvendo plataformas digitais para determinar se há vínculo empregatício. Em alguns julgados, como no Tribunal Superior do Trabalho (TST), reconheceu-se a subordinação estrutural quando os trabalhadores estão integrados à atividade-fim da empresa e submetidos a controle indireto por meio de aplicativos (BRASIL, 2013).
O conceito de subordinação estrutural, conforme Delgado (2020, p. 354), considera subordinados aqueles que realizam trabalhos a distância, mas estão submetidos a sistemas informatizados de controle e supervisão. Essa perspectiva permite que trabalhadores de aplicativos sejam considerados empregados, mesmo sem a subordinação direta tradicional.
As plataformas digitais argumentam que atuam apenas como intermediadoras, conectando consumidores e prestadores de serviços, e que não exercem controle direto sobre os trabalhadores. Contudo, juristas apontam que o uso de algoritmos para gerenciar tarefas, definir preços e monitorar desempenho caracteriza um nível de controle significativo, o que pode configurar vínculo empregatício (CAMELO et al., 2022).
A Lei nº 13.429/2017, que regulamenta a terceirização no Brasil, permite a contratação de serviços por meio de empresas intermediadoras, desde que cumpridos os requisitos legais. Essa lei estabelece que empresas contratantes são responsáveis por condições de segurança, higiene e saúde dos trabalhadores terceirizados, mas não confere vínculo empregatício aos prestadores de serviço (BRASIL, 2017).
No Congresso Nacional, tramitam projetos de lei voltados à regulamentação dos trabalhadores de aplicativos. O Projeto de Lei nº 3754/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira, busca assegurar condições dignas de trabalho, incluindo segurança social e medidas de prevenção a riscos. O projeto reflete a necessidade de adaptação da legislação às novas realidades econômicas e sociais, mas ainda está em discussão (BRASIL, 2023).
A ausência de regulamentação clara cria um ambiente de insegurança jurídica tanto para trabalhadores quanto para plataformas. Por outro lado, regulamentar essas atividades apresenta desafios, como equilibrar os direitos trabalhistas com a flexibilidade que caracteriza o modelo de negócios das plataformas digitais.
Enquanto alguns tribunais reconhecem o vínculo empregatício, outros sustentam que a autonomia dos trabalhadores prevalece, mantendo-os na categoria de contratados independentes. Esse cenário reforça a necessidade de uma legislação que defina os direitos e obrigações das partes envolvidas, promovendo um ambiente de trabalho mais justo e equilibrado.
3.1. Direitos Trabalhistas e Precarização
No mercado de trabalho, uma ideia inovadora pode se transformar em um grande sucesso e gerar lucros expressivos. Quando o empreendimento facilita a vida do consumidor, seu impacto é ainda maior. É o caso dos aplicativos desenvolvidos para oferecer produtos ou serviços, como Uber, Lavô e Colmeia. Esses aplicativos conquistaram a preferência de quem valoriza praticidade, rapidez e qualidade. Para os prestadores de serviço, representam uma oportunidade de obter renda extra de forma flexível e adaptada aos seus horários (LIMA; GUEDES NETO, 2018, p. 90).
As relações de trabalho têm sofrido mudanças profundas com o avanço das tecnologias digitais. O modelo tradicional de emprego, baseado em vínculos formais entre empregadores e empregados, vem sendo transformado pela integração de smartphones e aplicativos no cotidiano. Um mercado bilionário surgiu a partir de ícones em nossos celulares, alterando não apenas a lógica do mercado, mas também facilitando o acesso a serviços e produtos. Plataformas como Uber e 99 revolucionaram o transporte, conectando motoristas e passageiros de maneira mais rápida e econômica, atuando como um elo eficiente entre prestadores de serviços e consumidores (LIMA; GUEDES NETO, 2018, p. 91).
A Uber, pioneira nesse setor e objeto de análise deste artigo, exemplifica essa transformação. A empresa, que opera em centenas de cidades ao redor do mundo, inspirou o termo “uberização”, utilizado para descrever a expansão de negócios baseados em plataformas digitais. Além do transporte, outras áreas também foram impactadas por esse modelo. Aplicativos como Airbnb, Ifood e Bilheteria Digital alteraram rotinas e movimentaram a economia global (LIMA; GUEDES NETO, 2018, p. 92). No caso da Colmeia, o aplicativo conecta professores e alunos, oferecendo aulas particulares com autonomia para os educadores, que podem aceitar ou recusar propostas, sem vínculo empregatício formal.
Outro exemplo é o Lavô, que conecta consumidores a profissionais de lavagem de carros. Funciona de forma semelhante à Uber, mas em vez de transporte, o usuário solicita a lavagem de seu veículo, realizada onde o carro estiver estacionado. Essas iniciativas evidenciam como o trabalho autônomo está se integrando a novas formas de organização, respaldado pelo artigo 12, inciso V, alínea “h” da Lei nº 8.212/1991, que define o trabalhador autônomo como “a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com ou sem fins lucrativos” (BRASIL, 1991).
A flexibilidade oferecida pelas plataformas digitais é evidente. Motoristas cadastrados na Uber, por exemplo, têm autonomia para decidir quando trabalhar, podendo ficar online ou offline conforme sua conveniência. Para se cadastrar, basta atender a requisitos mínimos, como apresentar certidão de antecedentes criminais, cadastrar um veículo compatível (mínimo de quatro portas, ar condicionado e ano de fabricação a partir de 2010) e participar de uma breve orientação sobre direção defensiva e atendimento ao cliente (LIMA; GUEDES NETO, 2018, p. 96). O preço das corridas, por sua vez, é calculado automaticamente pela plataforma, com base na distância e localização do passageiro.
Apesar da flexibilidade, a ausência de um vínculo formal traz controvérsias jurídicas. A Constituição Federal de 1988, a CLT e convenções internacionais garantem proteção ao trabalho e vedam condições precárias. Entretanto, como destaca Oliveira (2012, p. 129), “fora da noção clássica de subordinação jurídica, esses trabalhadores dependentes ficam excluídos da tutela legal da relação de emprego, embora enfrentem problemas de exploração semelhantes aos que deram origem ao Direito do Trabalho”.
A subordinação é um dos requisitos que define o vínculo empregatício, e a ausência desse elemento nos casos de motoristas de aplicativos tem sido ponto de divergência. Embora esses trabalhadores possuam autonomia em relação aos horários e à escolha das atividades, a falta de direitos trabalhistas básicos, garantidos no artigo 7º da Constituição Federal, como férias e 13º salário, levanta debates sobre precarização do trabalho.
Por outro lado, a natureza autônoma dessas atividades também reflete o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência, ambos protegidos pela Constituição (BRASIL, 1988). As plataformas operam com o objetivo de reduzir a intervenção
estatal, simplificar serviços e oferecer maior liberdade aos prestadores, que podem escolher quando e onde atuar, além de combinar essa atividade com outros trabalhos. Ao comparar motoristas de aplicativos com taxistas, observa-se que estes últimos estão subordinados a regulamentações mais rigorosas, como sindicatos, cooperativas e concessões públicas. Contudo, mesmo com essas regulamentações, os taxistas não estão plenamente amparados pelos direitos previstos no artigo 7º da Constituição, o que evidencia que a precarização não é exclusiva das plataformas digitais (LIMA; GUEDES NETO, 2018, p. 97).
Esses aplicativos refletem uma tendência de afastamento do controle estatal, promovendo maior autonomia aos trabalhadores. Contudo, essa autonomia tem um custo: a ausência de garantias trabalhistas formais. A crescente popularidade desses serviços destaca a necessidade de discutir e equilibrar aspectos como inovação, proteção ao trabalhador e competitividade no mercado (OLIVEIRA, 2012, p. 129).
4 COMPARAÇÃO INTERNACIONAL E PROPOSTAS PARA O BRASIL
O Brasil é um país de contrastes marcantes, onde avanços tecnológicos convivem com desafios socioeconômicos significativos. Apesar de uma renda média mensal per capita de apenas R$ 1.376 e um contingente de 11,3 milhões de pessoas desempregadas, o país se destaca como uma das nações mais digitalizadas do mundo, segundo pesquisa divulgada pela revista Veja (2023). Essa realidade paradoxal evidencia tanto o potencial quanto as dificuldades que o Brasil enfrenta ao adaptar-se às transformações globais, especialmente no que diz respeito à economia digital e à regulamentação de plataformas tecnológicas.
Em países como Espanha e Reino Unido, a regulamentação de aplicativos de transporte já alcançou estágios mais avançados. Na Espanha, o Tribunal Supremo determinou que motoristas de plataformas, como Uber e Cabify, são trabalhadores assalariados, garantindo-lhes direitos trabalhistas como férias remuneradas e aposentadoria. Esse reconhecimento foi fundamentado no controle que as plataformas exercem sobre a jornada e as condições de trabalho, características típicas de uma relação empregatícia (EL PAÍS, 2022).
No Reino Unido, a Suprema Corte decidiu, em 2021, que motoristas da Uber são “trabalhadores” e não contratados independentes. Essa classificação intermediária garante acesso a benefícios como salário mínimo, férias remuneradas e contribuições para a previdência social. A decisão foi baseada na constatação de que a Uber controla aspectos significativos das atividades dos motoristas, como tarifas e rotas, restringindo sua autonomia (BBC, 2021).
Já nos Estados Unidos, o debate varia de estado para estado. Em 2020, a Califórnia aprovou a Proposition 22, permitindo que as plataformas continuem classificando motoristas como contratados independentes, mas com algumas proteções trabalhistas, como pagamento mínimo e auxílio para seguro de saúde. Essa abordagem híbrida tenta equilibrar a flexibilidade oferecida pelas plataformas com direitos básicos para os trabalhadores.
No Brasil, a regulamentação de plataformas digitais ainda é incipiente e desigual. Embora a Lei nº 13.640/2018 tenha atribuído aos municípios a competência para regulamentar os aplicativos de transporte, muitos ainda carecem de regulamentações claras e abrangentes. Como resultado, motoristas permanecem em um limbo jurídico, sem acesso a benefícios trabalhistas ou a garantias de segurança social.
Além disso, a falta de uma legislação nacional específica para a economia de plataformas cria um cenário de insegurança jurídica para trabalhadores, empresas e consumidores. Como destaca a Organização Internacional do Trabalho (OIT), “a ausência de regulamentação clara perpetua a precariedade das condições de trabalho na economia digital” (OIT, 2022).
Para enfrentar esses desafios, é necessário que o Brasil desenvolva uma legislação específica que contemple os seguintes pontos: Definição de uma Categoria Intermediária de Trabalhadores: Assim como no Reino Unido, a criação de uma classificação jurídica específica para trabalhadores de plataformas pode garantir direitos básicos, como férias remuneradas, contribuição previdenciária e acesso ao sistema público de saúde, sem comprometer a flexibilidade que caracteriza o modelo de negócios.
Estabelecimento de Normas de Proteção Social: É fundamental que os motoristas tenham acesso a benefícios mínimos, como seguro de acidentes, auxílio- doença e contribuições ao INSS. Isso pode ser viabilizado por meio de uma colaboração entre plataformas e governos municipais.
Uniformização da Regulamentação Nacional: A criação de uma legislação federal padronizada reduziria as disparidades regionais, promovendo um ambiente jurídico mais estável e previsível para todos os envolvidos.
Incentivo à Sustentabilidade: Para mitigar os impactos ambientais causados pelo aumento da frota de veículos, poderiam ser incentivadas práticas sustentáveis, como o uso de veículos elétricos ou híbridos nas plataformas.
O Brasil possui condições para se tornar uma referência na regulamentação de plataformas digitais, mas isso exige esforços conjuntos do setor público, privado e da sociedade civil. A experiência internacional demonstra que é possível garantir direitos aos trabalhadores sem comprometer o dinamismo e a inovação característicos da economia digital. Assim, o país poderá equilibrar progresso tecnológico e justiça social, promovendo uma economia de plataformas mais inclusiva e sustentável.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução tecnológica, associada à popularização das plataformas digitais de transporte, como Uber e 99, trouxe impactos significativos para a mobilidade urbana e o mercado de trabalho. Embora essas inovações tenham promovido maior conveniência para os usuários e oferecido oportunidades de geração de renda para motoristas, elas também expuseram lacunas jurídicas e desafios regulatórios que ainda precisam ser enfrentados no Brasil.
O presente estudo destacou que a ausência de regulamentação específica para as atividades realizadas por motoristas de aplicativos contribui para a precarização das condições de trabalho e a exclusão desses profissionais do arcabouço protetivo previsto na legislação trabalhista. Essa lacuna coloca em evidência a inadequação do sistema jurídico atual para lidar com as dinâmicas da economia digital, que demanda flexibilidade, mas também exige a garantia de direitos sociais básicos.
A análise comparativa com outros países, como Reino Unido, Espanha e Estados Unidos, demonstrou que é possível alcançar soluções regulatórias que conciliem a proteção dos trabalhadores com a manutenção da competitividade e inovação das plataformas. Tais exemplos sugerem que o Brasil pode se beneficiar da adoção de uma abordagem equilibrada, que respeite as particularidades do mercado nacional e assegure o acesso a benefícios sociais sem inviabilizar o modelo de negócios das plataformas.
Entre os principais desafios identificados estão a necessidade de reconhecer as especificidades da economia de aplicativos, que se distancia do modelo de emprego tradicional, e a urgência de harmonizar as legislações municipais e federais para garantir maior segurança jurídica a trabalhadores, plataformas e consumidores. O estudo também destacou a importância de fomentar práticas sustentáveis, visando mitigar os impactos ambientais causados pelo aumento do uso de veículos.
Conclui-se que a regulamentação do setor de aplicativos de transporte é essencial para equilibrar o progresso tecnológico com a justiça social. Ao adotar políticas públicas inclusivas e sustentáveis, o Brasil pode se posicionar como referência na gestão da economia digital, promovendo um mercado mais justo, inovador e socialmente responsável. Essa evolução não apenas beneficiará os trabalhadores e usuários, mas também fortalecerá a economia como um todo, consolidando o país como protagonista no cenário global das plataformas tecnológicas.
REFERÊNCIAS
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