Resumo: O terceiro milênio não poderia se contentar com o sistema antigo e individualista que marcou o final do século XIX e início do século XX. A sociedade mudou e o Estado também, passando a ter uma visão social e preocupada com as desigualdades e também com as injustiças que uma igualdade absoluta poderia gerar. O Direito Civil – primeiro reflexo da evolução de uma sociedade – não poderia ser excluído desta mudança e passou a ganhar princípios gerais e cláusulas abertas que propiciassem a equidade e a razoabilidade dentro dos contratos privados. É nessa linha de raciocínio que surge a função social dos contratos e também a boa-fé objetiva, que merecerá detida análise no texto que se apresenta.
Palavras-chave: Contratos. Princípios. Boa-fé objetiva. Civil.
Abstract: The third millennium could fulfill itself with a model as antiquate and individualistic as that which marked the end of the nineteenth and beginning of the twentieth century. Both society and State changed – becoming more concerned with the social problems and injustices that “absolute equality” could generate. Civil Law – a mirror of society´s evolution – could not be kept apart from this change. Therefore, its contracts incorporated principles and clauses focused on equity. As a reflex of these changes, the “social function of contracts” and the principle of “objective good-faith” appeared. Both institutes are thoroughly analyzed in this study.
Sumário: Introdução. 1. Aplicação prática de princípios. 2. O princípio da boa-fé objetiva 3. Deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva 4. Integração e interpretação de contratos segundo a boa-fé objetiva. 5. Boa-fé objetiva como limitação aos direitos subjetivos 6. Boa-fé objetiva pré e pós contratual Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Ao se relacionar com seus pares, o indivíduo espera lidar com pessoas honestas, íntegras, de conduta honrada. Desde as mais singelas relações, passando pelos mais complexos contratos e até mesmo no matrimônio, as pessoas nutrem, naturalmente, tal esperança. Confiam que estarão lidando com pessoas de bem. Tratar com alguém de características diferentes destas soa como exceção e para esses casos existe a ultima ratio do Judiciário.
Tal esperança é fincada na correta constatação de que a maioria das pessoas assim atua na vida privada. Não condiz com a realidade presumir o contrário. Em geral o ser humano é reto, faz questão de honrar com os compromissos assumidos e sua palavra é digna de confiança e em muitos casos é mais forte do que o papel assinado e com firma reconhecida.
Daí o fato de a sociedade aplaudir pessoas de fino trato, probas, honestas e cumpridoras de sua palavra, que não se utilizam de ardis visando ludibriar o próximo ou em cima dele levar vantagens astronômicas em prejuízo alheio. Diante dessa constatação, só restou à lei homologar tal conduta, punindo civilmente os que agem de má-fé. Criou então normas, limitações e sanções dentro das relações humanas, mormente nas contratuais, visando coibir as praticas ilícitas daqueles que não atuam com a honestidade esperada.
Ocorre, todavia, que aquela minoria de má-fé conseguiu – com os mais variados artifícios – agir dentro do contrato, dentro das limitações legais impostas e mesmo assim prejudicar seus contratantes, frustrando aquela justa expectativa. Cumpria-se a lei, cumpriam-se os termos acordados, não havendo – diante da letra fria do contrato – nenhum inadimplemento, mas havia a frustração da outra parte que não via concretizada a sua expectativa de realizar um negócio justo e equânime para ambos. Faltava – não o cumprimento da lei ou do contrato – mas sim um padrão reto de conduta e zelo, uma atuação que obedecesse à lei maior da boa convivência humana e dos princípios que devem reger uma civilização. Novamente a lei foi chamada para tentar coibir tal prática e é nessa lacuna que entra a previsão da boa-fé objetiva.
1. Aplicação prática de princípios
Há uma tendência natural observada tanto entre estudantes de graduação quanto entre operadores do Direito pátrio que é a de dar pouca ou nenhuma importância aos princípios jurídicos que regem o sistema. Aulas e palestras versando sobre princípios quase nunca alcançam uma platéia cheia, o mesmo ocorrendo com livros e artigos do gênero.
Antes que se esqueça, os princípios constituem a base de todo o ordenamento, são os alicerces em que se fundam o direito pátrio. As aulas lotadas em que se analisam institutos de direito positivo estão sempre submetidas a tais pilares. Aquelas são perfeitamente alteradas com um quorum mínimo no Congresso Nacional. Esses constituem cláusula pétrea, não da Constituição, mas do ordenamento.
Exemplo vivo dessa espécie de submissão são as recentes decisões sabiamente tomadas pelo Superior Tribunal de Justiça[1] ao declarar como impenhorável o bem de família do fiador em contrato de locação, a despeito da expressa previsão contrária do art. 3°, VII da Lei 8.009/90. Decidiu-se contra a lei, mas em favor do princípio constitucional que prevê a moradia como direito social no art. 6º caput da Constituição Federal, com a redação da Emenda n.° 26 de 2000, que não teria recepcionado a permissão legal da penhora.
Os princípios não constituem letra morta no ordenamento. A dignidade da pessoa humana e os valores sociais da livre iniciativa não estão previstas no artigo inaugural da Constituição por acaso. Se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e a redução de desigualdades são objetivos da República, tanto as leis quanto as decisões do Poder Judiciário devem colaborar para a concretização deles. É sob essa óptica que o principio da boa-fé objetiva deve ser analisado. Se a propriedade obriga e se há nela uma função social, é também verdade que o contrato é a propriedade circulante e que ele também deve atingir tal função maior.
2. O princípio da boa-fé objetiva
Em primeiro lugar cabe uma distinção importante entre boa-fé objetiva e subjetiva. Esta última integra o ordenamento há muito tempo e sua previsão já remonta às origens do Direito positivo. A boa-fé subjetiva significa a ignorância de um vício que macula determinado fato jurídico. É um conceito que leva em conta o íntimo do agente, analisando se ele sabia – naquele caso concreto – de determinada irregularidade praticada. Caso haja ignorância quanto a isso, estará ele de boa-fé subjetiva e daí então ser merecedor do aplauso da lei que lhe resguarda alguns efeitos benéficos.
Assim atua o devedor que paga ao credor putativo, ignorando estar pagando errado (art. 309 do CC). É o caso, por exemplo, do locatário que paga todo mês diretamente nas mãos do seu locador durante anos. Com o falecimento deste, passa o locatário a pagar seus alugueres para o único filho conhecido do proprietário, o que realiza com tranqüilidade durante alguns meses. Tempos depois retorna de uma longa viagem o outro filho do locador – até então desconhecido do locatário – pleiteando metade do que foi pago ao seu irmão. Prestigiando a boa-fé subjetiva do locatário a lei considera plenamente válido o pagamento teoricamente equivocado.
O mesmo ocorre no casamento putativo (art. 1.561), onde a jovem casa-se com rapaz recém chegado a sua cidade, ignorando que ele já era casado em longínquo Estado da Federação. Prestigiando a boa-fé subjetiva da mulher, a lei confere alguns efeitos do casamento à mulher. O possuidor de boa-fé também recebe efeitos benéficos da lei (art. 1.201).
A boa-fé objetiva, por seu turno, não se revela por conta de uma investigação psíquica do indivíduo, não tem ligação com a ignorância ou ciência do agente em determinada relação. A boa-fé objetiva, ao contrário, é um padrão concreto de conduta reta, proba, íntegra, zelosa que os contratantes devem guardar entre si sob pena de – não o fazendo – estarem em última análise descumprindo o contrato. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery definem:
“A boa fé objetiva impõe ao contratante um padrão de conduta, de modo que deve agir como um ser humano reto, vale dizer, com probidade, honestidade e lealdade. Assim, reputa-se celebrado o contrato com todos esses atributos que decorrem da boa-fé objetiva. Daí a razão pela qual o juiz, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, deve dar por pressuposta a regra jurídica de agir com retidão, nos padrões do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar”.[2]
Numa relação contratual as partes devem agir com zelo, respeito e probidade, considerando não só a letra fria do contrato, mas o exercício regular dos direitos ali previstos, a função social das disposições, e os deveres de agir com retidão, segurança, consideração, informação plena e por vezes o sigilo, tão importante v.g., nas relações do advogado com seus clientes.
Uma forma prática de reconhecer se determinado sujeito agiu ou não de acordo com a boa-fé objetiva é imaginar um modelo de conduta, alguém que certamente possui os atributos decorrentes daquele princípio e fazer dele uma moldura. Diante do concreto, basta observar se nesta situação a pessoa enquadra-se ou não na moldura antes imaginada. Caso a resposta seja negativa, não há boa-fé objetiva. Imagine, por hipótese, um famoso artista que – logo após encerrado seu contrato de cessão de imagem para uma determinada marca – passa a ceder a imagem para a concorrente, difamando a anterior. Em tese há cumprimento puro e normal de um novo contrato, visto que o anterior já se extinguiu. Porém, tal conduta não se encaixa no paradigma de conduta que imaginamos e, portanto, não há boa-fé objetiva.
Em termos simples, normas de conduta que antes estavam confinadas ao âmbito da etiqueta e da boa postura social foram alçadas à categoria jurídica, ganhando reconhecimento legal. No direito alienígena, o principio já existe há um bom tempo, como é o caso dos Códigos Civis da Alemanha (parágrafo 242), Itália (art. 1337), Portugal (art. 227) e Espanha (art. 1.258). No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor já havia previsto o instituto no art. 4º, III.
3. Deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva
Uma clara implicação prática decorrente do princípio da boa-fé objetiva é a necessidade de as partes observarem os chamados deveres anexos ao contrato. Isso porque num contrato há as chamadas cláusulas centrais ou nucleares que nada mais são do que as principais obrigações das partes dentro do contrato. Desse modo, é dever nuclear do locador de um auditório ceder a posse direta da coisa locada, enquanto que ao locatário incumbe pagar a quantia fixada.
Ocorre que a boa-fé objetiva impõe às partes contratantes deveres que não são os centrais ou nucleares, mas que estão anexos, marginais, laterais ao contrato e que muitas vezes nem sequer foram redigidos. São obrigações decorrentes justamente daquela justa expectativa que existe em nossas relações sociais de sempre lidar com pessoas íntegras e probas. São deveres de proteção ao contratante.3[3]
São deveres que concernem principalmente à segurança do contratante, ao sigilo que resguarda a intimidade e a vida privada do cidadão, à plena informação dos termos contratados, evitando subterfúgios ou penumbras de interpretação no contrato, ao zelo e à lealdade que os contratantes devem guardar um em relação ao outro.
Interessantes exemplos podem surgir dessas observações. Repare, todavia, que em todos os exemplos a seguir demonstrados o contrato foi cumprido, ao menos em suas disposições centrais, mas ocorreu violação da boa-fé objetiva, um princípio maior do que as meras disposições contratuais.
Adalberto Pasqualoto[4] relata um interessante caso julgado por um Tribunal alemão que versava sobre “um jogador de bilhar, que atingiu com a parte posterior do taco a um jogador de cartas. O proprietário da casa de jogo foi condenado por não ter disposto as mesas de forma a evitar perigo”. A indenização parece correta, no sentido de que faltou ao estabelecimento o dever de segurança que deve guardar em face de seus clientes.
Falta com o dever de informação plena o locatário do auditório que não alerta os locatários (coordenadores de um curso) que na sala ao lado haverá a partir do meio dia uma grande confraternização de fim de ano, muito provavelmente rumorosa. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou conhecida indústria tabagista, baseando seu aresto no fato de que ocorrera violação do dever de informar os malefícios do cigarro.[5]
Fere o dever de lealdade o artista que passa a ceder sua imagem para empresa concorrente debochando da anterior a quer era vinculado. Não age de acordo com a boa-fé objetiva o advogado que divulga segredos do seu cliente obtidos por dever de seu ofício, violando o dever de sigilo.
O Conselho da Justiça Federal[6] manifestou-se no sentido de que […] a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa. Assim, a inobservância de qualquer dos deveres laterais decorrentes da boa-fé objetiva corresponde simplesmente a um inadimplemento por parte do contratante, passível, portanto de condenação no âmbito civil (art. 389).
4. Integração e interpretação de contratos segundo a boa-fé objetiva
Outra implicação prática da boa-fé objetiva constitui na possibilidade de – com base nela – proceder-se a interpretação e até mesmo a supressão de lacunas eventualmente ocorridas nos contratos. É muito comum o juiz se deparar com situações que não foram previstas no contrato e para esses casos deverá então raciocinar como se as partes – ao elaborar o contrato – estivessem de plena boa-fé. O magistrado então deverá raciocinar como que uma pessoa de boa-fé objetiva celebraria aquele contrato. Se o contrato não previu a taxa de multa para a hipótese de inadimplemento, caberá ao Juiz fazê-lo, inserindo no contrato uma taxa que pessoas de boa-fé fariam. Em situações de dúvida quanto à interpretação de cláusulas, a boa-fé objetiva também será de grande valia para o deslinde da questão.
5. Boa-fé objetiva como limitação aos direitos subjetivos
A boa-fé impõe aos proprietários de direitos subjetivos o dever de exercê-los de modo razoável, não podendo ser exercidos de modo abusivo, ilimitado, como se vivessem numa ilha, sem pares e sem cidadãos possuidores de outros direitos. O direito subjetivo sempre deve ser exercido de uma forma equânime, de acordo com seu contexto e mais tecnicamente de acordo com sua função social. Até mesmo o direito à vida é relativo, sendo certo que – de acordo com o instituto da legítima defesa – ela pode ser retirada caso coloque em risco a vida alheia.
O art. 187 do Código Civil de 2002 previu a figura do abuso de direito comparando-a com um ato ilícito, ensejando inclusive a reparação civil (art. 927). Comentando esse artigo, Ruy Rosado de Aguiar manifestou-se: “Essa talvez seja, do ponto de vista do Direito Obrigacional, a clausula mais rica do Projeto. Reúne […] princípios básicos […] o abuso de direito, o fim social, a boa-fé e os bons costumes”.[7]
O ato abusivo é o ato lícito no antecedente e ilícito no conseqüente, praticado dentro do direito do indivíduo, porém com excesso nos meios[8]. Fartos exemplos são encontrados nos direitos de vizinhança. Abusa de seu direito o vizinho que, dentro de um pequeno apartamento, cria dez cachorros de grande porte, abusa de seu direito o vizinho que cava desnecessariamente profundo poço, esgotando assim o manancial alheio. O exemplo clássico, entretanto, é de Planiol e Ripert, aludindo ao caso de um vizinho que – com lanças enormes – impedia o sobrevôo de balões, prática freqüente na região. Seu objetivo era vender o terreno com preço elevado aos praticantes do balonismo. O Tribunal de Compiègne (Clement Bayard) entendeu que tal atitude era considerada um ato ilícito posto abusivo, ordenando a retirada das lanças, ainda que dentro da propriedade privada.
O locador que recebe os alugueres fora do prazo combinado durante seguidos meses, sem cobrar multa, não pode querer cobrá-la repentinamente, pois – apesar de ser um direito subjetivo – está exercendo-o de modo abusivo. Até mesmo o artigo 330 do Código Civil prevê situação semelhante.
Desta limitação aos direitos subjetivos, decorrem algumas expressões latinas, derivadas da exceptio doli do Direito Romano[9] e que revelam comportamentos abusivos de titulares de direitos subjetivos. José Fernando Simão[10] explica que o “direito não pode privilegiar aquele que age com o intuito de enganar, ludibriar o outro contratante, ainda que tal conduta não se caracterize como vício do consentimento”.
A primeira delas é chamada de venire contra factum proprium no potest. Segundo tal raciocínio jurídico, não é dado ao agente alterar sua postura no decorrer de um negócio após se portar de um mesmo modo por determinado período. É uma restrição ao direito subjetivo do agente que não pode contrariar uma postura anterior que criou uma expectativa na parte contrária. Claudio Luiz Bueno de Godoy explica:
“[…] o venire contra factum proprium, de seu turno, representa máxima pela qual se evidencia, também, o princípio da boa-fé objetiva, na sua função restritiva de direito subjetivo, significando o exercitá-lo em contradição com o comportamento anterior, externado pelo próprio indivíduo. Procura-se, aqui, evitar a contrariedade e os efeitos dela decorrentes a outrem.”[11]
O art. 174 do CC traz um exemplo desse instituto. Ao tratar do negócio jurídico anulável, a lei proíbe a anulação do negócio pelo agente que já o cumpriu parcialmente ciente do vício que o inquinava. Isso porque o cumprimento parcial do negócio anulável gera no outro contratante uma justa expectativa que deve ser respeitada pelo ordenamento. A mesma orientação é seguida pelo Código Civil do Uruguai em seu art. 1.570. O art. 175 do CC brasileiro é ainda mais enfático ao dizer que nesta hipótese extinguir-se-ão “todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor”. Antonio Junqueira de Azevedo comenta a hipótese:
“(…) tanto a lei brasileira quanto a jurisprudência, ainda que sem referência nominal, consagram largamente a proibição de venire contra factum proprium. E o que se vê, por exemplo, com recurso a uma espécie de renúncia tácita, no art. 150 do CC brasileiro, ao vedar a lei o pedido de anulação de ato jurídico, ‘quando a obrigação já foi cumprida em parte pelo devedor, ciente do vício que a inquinava’.”[12]
Ainda decorrente desta limitação aos direitos subjetivos aparecem duas figuras que são verso e reverso uma da outra. Trata-se da suppressio e da surrectio. Tecnicamente a primeira revela-se por uma ineficácia do direito subjetivo em virtude de sua prolongada inércia, enquanto que a segunda é justamente o oposto, a aquisição da eficácia de um direito decorrente da inércia alheia. Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça bem aplicou os dois institutos. A lide envolvia um condomínio edilício que possuía uma isolada parte do terreno constituída de área comum, mas cuja utilização seria razoavelmente adequada apenas para dois condôminos. Durante muitos anos a área foi utilizada apenas por eles, inclusive com anuência dos condomínios em assembléia geral. Após muito tempo o condomínio decidiu solicitar novamente o referido terreno sem, entretanto, demonstrar a utilidade da área para si, fundamentando seu pedido apenas e tão somente no direito de propriedade. Como todos os demais, o direito de propriedade deve ser exercido de acordo com a sua função social e o STJ bem decidiu de acordo com o voto de seu relator:
“Para isso pode ser invocada a figura da suppressio, fundada na boa-fé objetiva, a inibir providências que já poderiam ter sido adotadas há anos e não o foram, criando a expectativa, justificada pelas circunstâncias, de que o direito que lhes correspondia não mais seria exigido. […] A suprressio pode ser bem aplicada neste caso, pois houve prolongado comportamento dos titulares, como se não tivessem o direito ou não mais quisessem exercê-lo; os condôminos ora réus confiaram na permanência desta situação. Ademais, a vantagem da autora ou do condomínio seria nenhuma, e o prejuízo dos réus considerável. Penso que, no caso, se pode fazer boa aplicação do princípio.”[13]
Aos dois condôminos que utilizavam a referida área configurou-se a surrectio por terem adquirido a eficácia de um direito pela inércia alheia. Se o condomínio demonstrasse uma utilização razoável do terreno, poderia fazer valer seu direito de propriedade sobre os condôminos, mas não foi o que restou demonstrados nos autos.
6. Boa-fé objetiva pré e pós contratual
Diferentemente do que o art. 422 do Código Civil brasileiro parece dizer, a boa-fé não pode se limitar à fase de execução do contrato. Na esteira do Código Civil português (art. 227), a boa-fé deve preceder o contrato e permanecer íntegra, mesmo após sua plena execução.
Durante as tratativas de uma negociação contratual, as partes já devem colocar em marcha todos os substantivos derivados da boa-fé objetiva. Imagine o cidadão paulista que encontra no jornal o raro veículo que procura para aquisição na cidade do Rio de Janeiro. O vendedor enaltece as perfeitas condições de manutenção e acabamento do veículo e o comprador desloca-se pelos 400 quilômetros que separam as cidades para chegar ao seu destino e constatar que o veículo está em péssimo estado de conservação. Faltou no exemplo um dever de informar, que deve existir mesmo antes do contrato também chamado de dever de esclarecimento.[14]
Mas a boa-fé objetiva deve se manter mesmo após terminar o contrato. É o caso, por exemplo, do vendedor de uma impressora que – um ano após a venda para determinado cliente – recusa-se a disponibilizar o programa de atualização para o novo sistema operacional. Falta, nesse caso, com o dever de zelo e de colaboração que devem presidir as relações contratuais. Ainda que o contrato já tenha surtido seus regulares efeitos, é justa a expectativa do cliente que acredita na colaboração do vendedor. O advogado também ostenta o dever de – encerrada a demanda judicial – devolver organizadamente todos os documentos fornecidos pelo seu cliente para instrumentalizar o processo.
Por conta dessa percepção, o projeto 6.960/2002 já prevê uma nova redação ao artigo 422, deixando clara a necessidade de se observar a boa-fé antes e depois do contrato firmado.
“Os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade.”
O Conselho da Justiça Federal já se pronunciou a respeito do assunto em sua primeira Jornada de Direito Civil, concluindo que o “art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”.
Conclusão
Com certo atraso, o Código Civil de 2002 positiva em nosso ordenamento um princípio que possivelmente terá ampla aplicação prática. Dentro dos conceitos de eticidade e socialidade[15] que regem o sistema da nossa codificação, muito acima dos contratos, e até da lei, está a moral, a conduta, a honra e a fundada expectativa das pessoas de que – em suas relações sociais – estarão a tratar com pessoas pautadas pela honestidade.
A justiça, a equidade e a socialidade são anseios da lei e devem estar presentes em todos os contratos e disposições dos particulares, não apenas no plano ideal da igualdade formal. Os ditames da boa-fé objetiva, a função social da propriedade e do contrato impõem uma circulação de capital mais equilibrada e igualitária, com uma fiscalização maior do Estado, tanto na via Legislativa quanto no Poder Judiciário. Não se pode mais aceitar a inércia e até a chancela estatais fincadas apenas e tão somente no princípio da pacta sunt servanda.
Para coibir os que buscam, dentro do contrato, subterfúgios para se desviar daqueles princípios, existe agora um instrumento poderoso, um artigo chave que em última análise terá o propósito de confirmar a esperança básica de que lidamos com pessoas íntegras no seio social.
Essa nova visão impõe o exercício equânime e razoável dos direitos subjetivos, de acordo com seu contexto e mais tecnicamente de acordo com sua função social. A visão avoenga e limitada do contrato, como se o seu texto fosse a única fonte de inspiração para a análise de sua validade e eficácia não mais vigoram e os ditames da justiça e da equidade devem se sobrepor na efetiva busca da paz social.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Rene Nicolau
Advogado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Civil da FAAP e do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Professor de cursos de pós-graduação. Palestrante e autor de livros.