1. Fontes de direito e
modelos jurídicos: texto e norma.
O ser humano vive, se desenvolve e se percebe em
sua humanidade na outridade de ser-social. Sou, e me percebo como tal,
através de minhas múltiplas relações com os outros, no ir e vir da vida, em que
a minha subjetividade se impõe e se amolda aos parâmetros das relações com
múltiplas subjetividades. Há o meu horizonte; há o horizonte do outro; há o
nosso horizonte comum.
Há comunidade. O Direito é processo de adaptação
social. Por ele, e através dele, o ser humano norma condutas, permitindo a vida
em sociedade, contendo as subjetividades em sua ipseidade, em proveito
para a alteridade social. Não visa ele suprimir o eu, mas tornar
possível a polaridade do eu-tu, de modo que o Direito só cumpre a sua finalidade
se transcender a subjetividade do eu para alcançar a interssubjetividade do
nós, tornando possível a existência saudável da relação eu-tu.
Como processo de adaptação social, o Direito busca
interferir na zona material das condutas humanas, através de sua
coercibilidade, solidificando o tecido social e impedindo, o mais que possível,
que nele surjam conflitos, que quebrem a paz social. O Direito, portanto, é
fato social, e como tal há de ser analisado e estudado, como objeto do
conhecimento. A perda da dimensão social do Direito, de sua teleologia, tem
sido causa de surgimento de teorias as mais abstratas, as mais gasosas, que
perdem essa dimensão terrena do ser-jurídico, concebendo-o como mera
arquitetura lógica, distante do terra-a-terra da vida.
A norma jurídica é das mais importantes criações do
homem. Por ela se fixam as condutas relevantes para o Direito, e se atribuem
efeitos jurídicos que devem ser atendidos, posto por vezes muitas não sejam.
Mas é preciso deixar assente, desde já, que as normas jurídicas mais são
atendidas que desatendidas, ou do contrário não cumpriria o Direito a sua
função de meio de adaptação social. Aqui reside fundamental afirmação, que
algumas teorias gasosas confundem e empanam: o Direito visa a influir a conduta
humana, conformando-a. Se a norma jurídica é desatendida, há patologia, que
deve ser reprimida pelos meios de coerção previstos pelo sistema jurídico.
As normas jurídicas ingressam no sistema jurídico
através de fontes de direito, previstas pelo próprio sistema, que são
criadas validamente se atenderem o processo de produção previamente
determinado. Utilizo aqui a expressão fonte de direito no sentido
preciso de veículos introdutores de normas jurídicas, vale dizer, como estrutura
normativa que processa e formaliza, conferindo-lhes validade objetiva,
determinadas diretrizes de conduta ou determinadas esferas de competência1. As fontes de direito,
de conseguinte, são sempre resultado de um processo formal de ponência de
normas jurídicas, que constituem o seu conteúdo. Constituição, leis, decretos,
resoluções, portarias são fontes de direito, no sentido de que são instrumentos
formais de criação de normas jurídicas; as normas jurídicas, ao revés, não se
confundem com as fontes de direito, sendo seu conteúdo. A lei, enquanto suporte
físico, enquanto instrumento introdutor de normas jurídicas, é fonte de
direito, vale dizer, é o texto que contém (note-se bem: contém) a normas
jurídica posta pelos produtores legitimados pelo ordenamento jurídico. Em que
sentido e de que modo é que podemos afirmar que as fontes de direito introduzem
e contêm as normas jurídicas, isso é o que ao adiante abordaremos. Para
o momento, concentremo-nos ainda um pouco mais nesses pontos aqui tratados.
As fontes de direito põem normas jurídicas. A norma
jurídica é, pois, conteúdo da fonte de direito por ela enunciada, afim de
determinar seja obrigatória, proibida ou permitida alguma conduta, ou serem
especificados certos âmbitos de competência, em dada conjuntura histórica2. Tomo o signo modelo
jurídico como sinônimo de norma jurídica, para expressar uma linguagem
expressiva do conteúdo das fontes de direito; nesse sentido, modelo jurídico
é a significação prescritiva do texto positivo, formando um todo
significativo, com todas as notas necessárias para consumar o processo de
jurisdicização3. Assim, há a fonte de
direito e o modelo jurídico: a fonte de direito entendida como totalidade de
textos jurídicos que forma uma estrutura expressional; e o modelo jurídico (ou
norma jurídica) compreendido como uma totalidade significativa que forma uma
unidade completa de sentido conativo ou prescritivo. Nem o texto isolado de seu
todo (ainda que seu todo implique a soma de textos sintaticamente de diversos
escalões hierárquicos), nem a significação incompleta, reivindicando
complemento, formam fontes de direito e modelos jurídicos.
Há, porém, ponto de supina importância, que não
pode ser olvidado. O processo de apreensão da significação dos textos jurídicos
só tem sentido, para o direito, como processo de apreensão da norma jurídica
sacada da fonte de direito, no sentido antes precisado. O modelo jurídico, a
norma, é apreendido da fonte de direito através de um processo interpretativo.
Embora não seja o processo hermenêutico objeto
desse estudo, convém desde já deixar assentado alguns aspectos sem os quais
fracassará a nossa abordagem seguinte. Há estudiosos que apreendem a
interpretação como o processo de atribuição de significado aos
enunciados, ou seja, como um processo individual, pessoal, de outorga de significação
aos sinais gráficos estampados no papel. Assim, a norma jurídica seria
construída pelo intérprete, a partir da literalidade do texto positivo, em um
processo de construção de sentido. Paulo de Barros Carvalho assevera que a
norma jurídica é construída a partir dos enunciados e não contida ou
involucrada neles4. Desde que se mostre
como manchas de tinta sobre o papel, insiste o professor paulista, não se
poderia imaginar, em sã consciência, que essa base empírica (o texto)
contivesse, dentro dela, como uma jóia, o conteúdo significativo, algo
abstrato, de estrutura eminentemente ideal. Para ele, o sentido é construído ao
longo de um processo iniciado, na hipótese, pela percepção visual das letras,
dos vocábulos, organizando formações mais amplas.
É o ser humano que, em contato com as manifestações
expressas do direito positivo, vai produzindo as respectivas significações5.
Não é bem assim, porém. O processo hermenêutico não
pode ser visto como um processo arbitrário, em que o intérprete atribui, como queira,
significação ao texto analisado. Dizer que o signo não possui, ele próprio, uma
significação é fácil dito, mas com isso se emascula o processo comunicacional,
que apenas pode ser realizado dentro de um código comum ao emissor e ao
destinatário. Quem expressa alguma mensagem, buscando ser compreendido,
expressa dentro de uma gramática comum à comunidade do discurso. Sem isso não
há possibilidade de comunicação. Existe, pois, entre o emissor e o destinatário
um código comum, e, por isso, uma série de regras que atribui ao signo um
significado6. Desde o segundo
Wittgenstein já não mais se pode admitir uma linguagem privada. A
lingüisticidade do mundo é fato social, se dá como constituinte da relação
eu-tu, da intersubjetividade7. Ninguém melhor do que Castoriadis8, estribado em Lacan, soube afirmá-lo: “O simbolismo
não pode ser nem neutro, nem totalmente adequado, primeiro porque não pode
tomar seus signos em qualquer lugar, nem pode tomar quaisquer signos. Isso é
evidente para o indivíduo que encontra sempre diante de si uma linguagem já
constituída, e que se atribui um sentido ‘privado’ e especial a tal palavra,
tal expressão, não o faz dentro de uma liberdade ilimitada mas deve apoiar-se
em alguma coisa que ‘aí se encontra'”.
Essa visão idealista à base do discurso de Paulo de
Barros Carvalho impõe que o sujeito cognoscente crie o objeto conhecido,
que apenas existiria como realidade “em mim”, como realidade mental.
Procede ele, e os que com ele comungam, como o etnometodologista referido por
John R. Searle9, que sustentava
demonstrar que os astrônomos, na verdade, criam quasares e outros fenômenos
astronômicos através de suas pesquisas e de seus discursos. Em debate havido
entre os dois, houve a seguinte passagem: “Imagine que fôssemos dar um
passeio sob a luz da lua, e eu dissesse: ‘Que lua bonita hoje’, e você
concordasse. Estaríamos criando a lua?”, perguntou-lhe Searle.
“Sim”‘, teria respondido o etnometodologista. Quer dizer, a
“lua” seria criação do discurso e não um dado exterior a ele,
por ele referido e pensado.
A significação se contém no texto, mas não apenas
nele. Há texto e há contexto. Contexto do texto e contexto do intérprete. Cada
texto tem sua historicidade, os valores que o impregnam, os fins a que visam.
Cada intérprete tem os condicionamentos históricos, psicológicos, culturais,
axiológicos. Tem uma carga de valores a condicioná-lo como sujeito cognoscente.
Para terminar essas ponderações superficiais, devo
ainda fazer mais uma observação. A norma jurídica, enquanto significação dos
textos prescritivos postos pelo ordenamento jurídico, há de ser entendida e
analisada como fato cultural, vale dizer, em sua dimensão social,
intersubjetiva. A norma jurídica não é, e nunca será, a significação que um
intérprete individualizado, psicologizado, saque das fontes de direito. Como
fato sócio-cultural, a norma jurídica é significação prescritiva, que visa a
disciplinar e influenciar a zona material da conduta humana.
Logo, para cumprir o seu fim, a norma há de ser
vista e compreendida como significação socialmente aceita, ou seja, como vivência
intencional10.
Essa concepção fustiga, como se pode ver, o
idealismo kantiano de um poder nomotético absoluto do espírito. Aqui
ganha em sentido o processo hermenêutico, como processo de conhecimento de algo
(objeto, texto) que nos é dado, enquanto sujeitos cognoscentes. Consoante
nos ensina o jusfilósofo Miguel Reale11, “Admitido, com efeito, que a consciência se volve
necessariamente para algo, que
também é pressuposto a priori do ato de conhecer, não se pode mais
apresentar o sujeito como constitutivo de per si do objeto, uma vez que este
somente o é enquanto algo se lhe oferece para ser interpretado”. E
segue: “Por outras palavras, não mais se admite que o sujeito possa, em si
e de per si, pôr os objetos como criação exclusivamente sua, porquanto
suas faculdades cognoscitivas dependem de algo objetivo que se oferece à
percepção subjetiva, mas representa um processo de interpretação da
coisa que se lhe apresenta, havendo, pois, um ato hermenêutico da coisa
para a qual a consciência intencional se dirige”. E no que mais de perto
nos interessa, ensina Reale12: “Parece-nos da maior relevância essa nova compreensão
da Teoria do Conhecimento, da qual não tomam ciência os que se mantêm apegados
ao logicismo abstrato de Kant, sem perceber que – na linha de meu pensamento, coincidente
com o acima exposto – somente se pode falar em ‘possibilidade do conhecimento’ como
problema inserido em um processo histórico-cultural, uma vez que a densidade
históricocultural do sujeito abre intencionalmente a intelegibilidade dos
objetos do conhecimento e é condição de suas possibilidades na ordem do
tempo”.
A afirmação de que a norma jurídica é produto da
interpretação individual de um sujeito psicologizado conduz a um beco sem
saída da finalidade social do Direito. A interpretação, consoante pensamos, é
processo de revelação do conteúdo do texto positivado, vale dizer, é processo
de construção da significação expressa no suporte físico que é o grafema
adscrito em uma folha de papel. Mas esses signos são dados, no sentido
de que estão ali para expressar algo, através de um código convencionado pela
comunidade do discurso. Não fosse assim, os signos nada significariam, sendo a
significação algo exterior a eles, atribuída pelo intérprete de forma arbitrária.
A comunicação, desse modo, seria de impossível realização, uma vez que não
haveria critérios objetivos e convencionados para a emissão da mensagem e para
o seu recebimento.
O processo de revelação da norma jurídica, através
das fontes de direito, é processo de construção de sentido partindo de um dado,
do que aí se encontra. Mais ainda: a norma é a significação construída a
partir do texto positivado, na medida em que essa significação seja socialmente
aceita, ou ao menos cumpra o seu papel de incidir na zona material da conduta humana,
conformando-a. Não basta, portanto, para que estejamos diante de uma norma, que
haja uma interpretação individual da fonte de direito: sem que haja vivência
social dessa significação, a interpretação não cumpre o seu papel de
interferir na atividade humana, condicionando as relações intersubjetivas.
2. Conceito de incidência
da norma jurídica na doutrina e a reviravolta do realismo lingüístico de Paulo
de Barros Carvalho.
A preocupação do presente estudo não é com o
problema da interpretação jurídica, que demandaria algumas longas digressões.
Se ferimos alguns aspectos que julgamos relevantes, é para que pudéssemos estar
de posse de algumas ferramentas teóricas importantes para analisar o objeto
principal de nossas reflexões: o conceito de incidência da norma jurídica e
o seu papel operacional para o fenômeno jurídico.
Por incidência da norma jurídica se tem entendido o
seu efeito de transformar em fato jurídico o suporte fáctico que o direito
considerou relevante para ingressar no mundo jurídico13. Sendo a norma jurídica
formada logicamente por uma proposição descritiva ligada à outra prescritiva pelo
conectivo dever-ser, toda vez que ocorre no mundo os fatos previstos em seu
descritor, ela incide, qualificando-os de jurídicos: criam-se assim os fatos
jurídicos.
Deve-se a Pontes de Miranda essa concepção do
fenômeno da jurisdicização como produto da incidência da norma sobre o seu
suporte fáctico. Embora tenha esse gênio alagoano formulado o conceito de incidência
com todos os cuidados que sua formação filosófica o exigia, houve uma profunda
incompreensão do seu pensamento, que terminou por ser desnaturado e
transformado numa visão mecanicista ingênua, indigna da sua estatura
intelectual. Tal incompreensão da teoria de Pontes de Miranda se revela mais
nítida na crítica formulada por Paulo de Barros Carvalho. Segundo esse eminente
tributarista, quando se fala em incidência jurídica estar-se a pressupor a
linguagem do direito positivo projetando-se sobre o campo material das condutas
intersubjetivas, para organizá-las deonticamente14. Sem embargo, entende ele que não se dará a incidência da
norma sobre o fato por ela previsto e ocorrido no mundo se não houver um ser humano
fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo
determina. Assim, enfatiza que a norma não incide por força própria.
“Numa visão antropocêntrica, requerem o homem, como elemento intercalar
movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas
outras gerais e abstratas ou individuais e concretas, e com isso, imprimindo
positividade ao sistema (…). E essa participação humana no processo de
positivação normativa se faz também com a linguagem, que certifica os
acontecimentos factuais e expede novos comandos normativos (…)”15.
Eurico Marcos Diniz de Santi, em sua tese de
doutorado16, acatou esses
ensinamentos, com a seguinte argumentação, que merece aqui ser transcrita:
“De fato, a norma não tem força própria para atingir a realidade, pois
depende dos homens, dos aplicadores do direito, como observa Gabriel Ivo, com
sua desconcertante questão: ‘O sujeito do verbo incidir seria a norma?’
Entrevemos, aqui, que a pretensa funcionalidade do direito independentemente de
ato de aplicação humana parece sedimentar-se numa visão jusnaturalista, segundo
a qual o direito funcionaria como a natureza, como nuvens carregadas de
hipóteses e mandamentos que, consolidados no mundo fáctico, incidiriam qual
raios, fulminando os seus suportes. (…) Ora, sem nuvens e numa perspectiva
realista, necessário se faz admitir que até que a autoridade aplique o direito,
quer dizer, realize o ato de lançamento, juridicamente nada há: nem fato nem obrigação.
O fato jurídico e o crédito nasce, concomitantemente, com o ato de aplicação do
direito”17.
Os pontos de partida da crítica formulada podem ser
facilmente observados na percepção de que a norma jurídica seria a significação
atribuída, construída pelo seu aplicador no ato de concretização do direito.
Como poderia a norma incidir sobre os fatos por ela previstos se apenas haveria
norma no momento da aplicação, através do processo de construção de sentido chamado
interpretação? Ou seja, como poderia incidir automática e infalivelmente a
norma jurídica se ela não existiria no momento da ocorrência do fato no mundo
(chamado por Paulo de Barros Carvalho, com assoalho em Harbermas e Tércio
Sampaio Ferraz Jr., de evento), mas seria criada pela autoridade
administrativa ou judicial, posteriormente ao próprio evento, pela interpretação?
Assim, como resposta a essas questões logicamente
postas, não haveria como se dar outra solução senão a de que a incidência não
ocorreria sozinha, tanto porque a norma não existe sem passar por um processo
anterior de interpretação, que a crie no ato de aplicação, como também porque
entre a norma e os eventos por ela regrados estaria o homem, que a cria,
vertendo-a em linguagem competente. Noutro giro, a norma seria
“incidida” sobre o fato, que não é declarado, mas construído pela
autoridade18.
Não será aqui o local apropriado para enfrentamos
os aspectos problemáticos da abordagem proposta por Paulo de Barros Carvalho,
que não são poucos. Teremos ensejo de fazê-lo noutros estudos nossos, que estão
em preparo. Sem
embargo disso, não poderíamos seguir sem fazermos algumas poucas observações
que nos serão úteis adiante.
Quando se reduz o conceito de fenômeno jurídico ao
direito aplicado pelas autoridades competentes, ainda que sob o fundamento
lingüístico, nada mais se faz do que revisitar o velho realismo jurídico19. Quando assim procede a
teoria carvalhiana, há de, em numerosos e difíceis momentos, excluir do mundo
jurídico a maioria dos fatos que têm significação jurídica, e que não precisam
ser vertidos em linguagem competente pela autoridade judiciária, simplesmente porque
não geraram controvérsia, ou seja, porque o direito, a norma, foi atendida. Se
levarmos em conta que as normas jurídicas mais são atendidas do que
desatendidas (aspecto de natureza sociológico), veremos que a redução do
direito que tal teoria faz é arbitrária e injustificada, apenas possível
naqueles ramos jurídicos extremamente formalizados, como o direito tributário, mas
mesmo assim com enormes aporias, que serão em momento oportuno mostradas.
Poder-seia objetar que o signo “norma” que aqui se está utilizando é
diverso daquele utilizado pela teoria carvalhiana, quando afirmamos que ela
mais é atendida que contrariada. Mas tal objeção é sem sentido, se partirmos do
conceito de norma geral e abstrata que visa a influir na zona material de conduta,
como crescente estímulo para que os comportamentos sejam modificados20. Se os comportamentos se
deixam modificar pelas normas jurídicas, tornando possível a vida em sociedade,
é porque ela é prius ao seu cumprimento ou à sua aplicação21. Aqui reside ponto de relevo,
que adiante feriremos.
3. Incidência da norma
como fenômeno do plano do pensamento (Pontes de Miranda).
Chama a atenção entre os autores que adotaram a
teoria pontena, bem como entre os que a fustigaram, a ausência de preocupação
em compreender com a devida profundidade o seu pensamento. Há os que defendem,
como há aqueles que criticam, a firmação feita por Pontes de Miranda segundo a
qual a incidência seria infalível: todas as vezes que os fatos previstos na norma
ocorressem, sofreriam a sua incidência inapelavelmente. Mas tanto a uns, quanto
a outros, faltou a exata dimensão da intuição do gênio ponteano. Os que
defendem que a incidência ocorre mecanicamente, como fato da natureza22, ou que incide porque
incide, ou porque é próprio da norma jurídica incidir, a par das tautologias
que sustentam, procedem como se o texto positivo (fonte de direito) tivesse uma
significação unívoca, literal, ou como se a norma jurídica tivesse uma vida
própria por si mesma. E, ao assim agirem, submetem-se à crítica mordaz do
próprio Pontes de Miranda: “O aplicar a lei porque está na lei, o resolver
pelo sentido literal, porque assim quis o legislador, corresponde ao fazer
porque está no Evangelho, no Talmude, no Korão, no Corpus Iuris, porque
o nosso pai fez, e ao ingênuo ‘porque mamãe disse’ das criancinhas”23. Já os que negam a
incidência da norma jurídica, o fazem por entenderem impossível essa vida
física da norma, autônoma, como nuvens carregadas de hipóteses e mandamentos.
Mais ainda: o fazem porque compreendem a norma como produto da interpretação no
processo de aplicação dos enunciados prescritivos.
Todavia, na exposição do pensamento ponteano, tanto
pelos seus adeptos como pelos seus críticos, faltou quem desse ênfase aos
aspectos primordiais de sua concepção. Ora, todas as vezes que Pontes de
Miranda define o que seja incidência, sublinha que é ela fato do mundo do pensamento.
A essa expressão, constante em suas diversas exposições sobre o tema, nunca foi
dada a devida importância. Afinal, o que seria esse mundo do pensamento, a que
se referia Pontes de Miranda? Qual o sentido do seu emprego para explicar o
significado e a operacionalidade do conceito de incidência?
Antes de respondermos a essas indagações, vejamos
algumas oportunidades em
que Pontes de Miranda fez uso dessa expressão: “A
incidência da regra jurídica ocorre como fato que cria ou continua a criar o
mundo jurídico; é fato dentro do mundo dos nossos pensamentos, – perceptível,
porém, em conseqüências que acontecem dentro do mundo total”24. Noutra oportunidade
afirma: “A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos
pensamentos e nele tem de ser atendida, opera-se no lugar, tempo e outros
‘pontos’ do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. É,
portanto, infalível“25.
Para que compreendamos o que Pontes de Miranda
denomina de mundo do pensamento, é necessário ter presente que ele não
desconhecia a lógica moderna, nem tampouco lhe eram estranhos os problemas da
filosofia da linguagem, sobretudo aqueles enfrentados pelo primeiro Wittgenstein
do Tractatus logico-philosophicus, obra inclusive citada no Tratado
de direito privado. Embora não tenha tido a preocupação de empregar de modo
distinto os signos “lei” e “regra jurídica”, a ele não
passou despercebido a distinção entre texto e significação, tão cara à teoria
carvalhiana. Porém, ao contrário do eminente professor paulista, Pontes de
Miranda não via o direito apenas como linguagem, mas sobretudo como processo de
adaptação social. O direito existe para submeter o mundo social a uma certa
ordem e previsibilidade. Sendo assim, o conteúdo dos sinais ópticos dos textos
positivados, apreendido pelo intérprete, não esgota o processo de revelação da
norma jurídica. A interpretação individual não cria norma: a norma é fato do
mundo social: “Deve o intérprete (jurisconsulto, juiz) procurar, na
aplicação da regra, não o conteúdo dos sinais ópticos, ou sonoros (ordens
verbais), mas, com o auxílio deles, o que se neles contém, mais ou menos o que
se perdeu ou se argumentou no trabalho de expressão. Em vez de início em si,
apenas é a lei a forma intermédia. Durável, mas dúctil, para conservar o dado,
ainda que isto o deforme”. E prossegue: “Não seria social a aplicação
da lei, se não houvesse entre a norma viva (o dado) e a aplicada (o julgado) o
veículo social (costume, jurisprudência), ainda que, após a permanência
individual (ditame do legislador), se comunique, se socialize pela linguagem,
fenômeno caracteristicamente social”26.
Para Pontes de Miranda a palavra é sinal, notação;
por trás dela está o conceito. Mas à ciência interessa o estudo do real, que
não é de todo exprimido pelo conceito. Entre a palavra e o real está o
conceito. Ficar na interpretação de palavras apenas seria subordinar às
designações as coisas que se designam. Seria branco o amarelo pelo simples fato
de lhe chamar de branco27.
O real do direito é o real-social. “O legislador cria a forma das normas
jurídicas, raramente a substância delas; não só por se achar no direito
costumeiro ou na doutrina, ou por lhe ser sugerido, espontaneamente pela
própria vida dos grupos ou sociedades, como porque, feitas e impostas, ainda a
investigação doutrinária e a jurisprudência lhe vão descobrir, pela analogia (argumento
a pari ou a fortiori) ou pela exclusão (argumento a contrario),
quer por outros meios não lógicos (arbitrários ou científicos), o verdadeiro
conteúdo delas”28.
Como se pode perceber, não era Pontes de Miranda um
ingênuo ao formular o conceito operacional de incidência, como se
imaginasse ele que as normas jurídicas não precisassem ser interpretadas,
produzidas em certo sentido, passando por todo um processo complexo até se tornar
um dado para a sociedade, uma norma viva. “(…) se o
legislador, pela expressão, inicia a socialização, é ao doutrinador e
principalmente ao juiz que incumbe ultimá-la. Em vez de se limitar a induzir da
lei, o que não satisfaria, induzirá das realidades, e a regra escrita apenas
lhe serve de guia. (…) Não é o dado conceptual que se quer, mas – o que é bem
diferente – o dado concreto e imediato”29.
A norma jurídica, pois, é a significação socialmente
aceita, vivida e aplicada: é socialmente um dado, um “estar
aí”, uma vivência intencional. Mas esse dado é proposição
vertida em linguagem prescritiva, como objeto cultural que é. Há quem diga que Pontes
de Miranda não aceitava a distinção entre ser e dever-ser, equiparando às leis
da natureza as leis do direito. Não é bem assim, contudo. Soube ele distinguir
as leis do preciso e as leis do deve: leis que querem expressar
algo que impreterivelmente se realiza (proposição descritiva) e leis que
ordenam o que é possível fique irrealizado (proposição prescritiva)30. Por isso, essa significação
social das fontes de direito é o que se pode chamar de norma jurídica.
A norma jurídica que incide infalivelmente é a
norma que ganhou em densidade simbólica, como fato do mundo social, no seu
subconjunto, o mundo do pensamento. O pensamento aqui é visto como algo
comunicável e vivido de modo público, como processo social, que vai além de uma
idéia privada do sujeito cognoscente. Frege estabeleceu uma distinção entre idéias
privadas (Vorstllungen) e pensamentos, que são realidades
abstratas habitantes de um terceiro domínio platônico. Teria se baseado nos
seguintes pontos: (a) um pensamento, isto é, aquilo que alguém pensa, é
verdadeiro ou falso independentemente de alguém pensá-lo; (b) duas pessoas
podem ter o mesmo pensamento; e (c) os pensamentos podem ser comunicados. Em
seu uso mais fundamental, fregiano, o pensamento significa proposição (Satz).
Um pensamento é uma “figuração lógica dos fatos”, isto é, uma
figuração idealmente abstrata, cuja única forma pictorial é sua forma lógica e
cuja representação prescinde de qualquer meio específico31. Esse terceiro domínio
platônico fregiano é justamente o mundo do pensamento, que não é o meu ou o seu
mundo, mas o nosso mundo formado pela relação eu-tu. E o segundo Wittgenstein
veio a negar, nesse particular, o solipsismo da linguagem, vale dizer, a
possibilidade de uma linguagem privada, como sustentada pelo primeiro Wittgenstein32. Afinal de contas, a linguagem
deseja ser comunicada, e não prescinde da alteridade. É pelo outro que
me descubro como eu na vivência do discurso33. É nesse sentido que
podemos, então, compreender o papel do simbólico como representação
social de algo que está aí. O direito, como instituição social, não se
esgota no simbólico de suas normas instituintes, mas está nele
entrelaçado para cumprir o seu papel no jogo de linguagem social. Aqui, é de
todo importante uma reflexão sobre o pensamento de Castoriadis, para onde
remetemos o leitor interessado, dada as limitações desse nosso estudo. Como bem
demonstra ele34, “uma organização
dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião
existem socialmente como sistemas simbólicos sancionado. Eles consistem em
ligar a símbolos (significantes) significados (representações, ordens,
injunções ou incitações para fazer ou não fazer, conseqüências, – significações
no sentido amplo do termo) e fazê-los valer como tais, ou seja a tornar esta ligação
mais ou menos forçosa para a sociedade ou grupo considerado”.
O simbólico (a norma), de conseguinte, é objetivação
conceptual que qualifica o fáctico, através da causalidade da incidência;
e, cumprindo a sua função de processo de adaptação social, adquire forma de objetivação
social pelos múltiplos processos de aplicação pelos seus destinatários, ou,
na sua inobservância, pelos órgãos legitimados. É pela incidência, no mundo do
pensamento, que se dá a objetivação conceptual, simbólica, do processo de
jurisdicização; é pela aplicação da norma jurídica que incidiu, que se
dá a sua objetivação social na concretude da vida. Como diz Lourival Vilanova
“A norma, que é uma objetivação conceptual, passando para o campo
dos fatos adquire a forma de objetivação social. Adquire algo de coisidade
do social, no sentido durkheimiano. (…) O fato jurídico, pois, é uma
concreção que se dá num ponto do tempo e num ponto do espaço. Mas o fato é
jurídico porque alguma norma sobre ele incidiu, ligando-lhe efeitos (pela relação
de causalidade normativa)” 35:.
A norma jurídica, nesse sentido, não é
“incidida”; ela incide pela causalidade normativa. À pergunta
sobre qual o sujeito da oração “a norma jurídica incide”, só pode
haver uma resposta, gramatical e jurídica: a norma. É ela que incide, no mundo
do pensamento. Incide independentemente da vontade psicológica do sujeito
cognoscente: incide como processo histórico-social do simbolismo jurídico36. Ou, como preferia
Pontes de Miranda37: “Se bem meditarmos,
teremos de admitir que a incidência é no mundo social, mundo feito de pensamentos
e outros fatos psíquicos, porém nada tem com o que se passa dentro de cada um, no
tocante à adesão à regra jurídica, nem se identifica com a eventual intervenção
da coerção estatal. A incidência da lei independe da sua aplicação; sem aqui
trazermos à baila que os homens mais respeitam do que desrespeitam as leis, ou
que as sanções são menos freqüentes que as observâncias, porque, então,
estaríamos no plano fáctico (físico) da sociologia do direito, em vez de nos
mantermos no plano lógico da teoria geral do direito”.
Com essas observações, podemos agora proceder a
distinção entre incidência e aplicação da norma jurídica, buscando retirar dela
as suas conseqüências teóricas fundamentais.
4. Distinção entre
incidência e aplicação da norma jurídica tributária.
O realismo jurídico, seja de que vertente for,
limita o fenômeno jurídico ao ato de autoridade (administrativa, judicial ou de
outra espécie). Grosso modo, apenas seria direito o que as autoridades
dizem que é, no ato de aplicação da norma. Essa amputação do mundo fora dos tribunais
e das repartições públicas do fenômeno jurídico é um reducionismo
injustificado, que retira do direito a sua função de processo de adaptação
social. Observemos esses fatos cotidianos: um adolescente apanha um ônibus, dá
ao cobrador um passe-estudantil, passa pela roleta e segue viagem até sua
escola; um jovem bebe um refrigerante e paga o valor devido ao garçom; uma
mulher, em seu veículo, pára quando o sinal fica vermelho e segue seu percurso com
a luz verde; um homem encontra no chão uma barra de ouro e a apanha; uma loja
de calçados anuncia uma promoção, pelos jornais, na venda de um determinado
modelo de sapato. Todos esses fatos são conhecidos nossos, vividos por uma
infinidade de pessoas. E eles ocorrem com naturalidade, sem muitos percalços,
porque todos nós, como sujeitos situados numa realidade histórica, em tempo e
espaço delimitados, participamos de uma mesma realidade simbólica, um tesouro
comum de pensamentos (Frege). Se a mulher pára o carro quando o sinal está
vermelho, atende à norma jurídica que determina ser essa a conduta devida; se o
ultrapassa, sua conduta é ilícita. Há uma significação social, meta-individual,
no comportamento dessa mulher: pouco importa saibamos que tenha ocorrido, ou
que tenha sido na calada da noite. A significação é objetiva, e adjetiva esse
fato como jurídico pela causalidade da incidência normativa. Se houve
testemunhas, se o radar eletrônico fotografou o veículo no momento do descumprimento
da norma, isso é outra questão: é matéria afeta à aplicação autoritativa da norma.
Mas toda vez que essa mulher parar diante de um sinal vermelho, ela estará
aplicando a norma que incidiu: ela estará cumprindo a norma.
Quando o estudante, do exemplo acima, entrega um
passe-estudantil ao cobrador do ônibus, está querendo ser levado a alguma lugar
e paga para isso: juridicamente, celebrou um contrato de transporte. A norma
incide nesse complexo de fatos, qualifica-o de jurídico e irradia efeitos: direito
a ser transportado e dever de transportar. Se o transporte for corretamente
feito, houve o exercício do direito e o seu atendimento. Houve fato de
significação jurídica. Quando o jovem toma o refrigerante e paga celebrou um
contrato de compra e venda, consumindo o seu objeto. Quando uma loja de
calçados faz anúncio ao público, manifestando vontade, se obrigou perante todos:
celebrou negócio jurídico unilateral de oferta ao público. Se houver aceitação
da proposta por alguém, houve outro negócio jurídico unilateral. A oferta e a
aceitação, juntas, formam o negócio jurídico bilateral de compra e venda.
O realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho
exclui todos esses fatos do mundo jurídico. Se a mulher ultrapassasse o sinal
vermelho e colidisse com outro veículo, e se não houvesse acordo entre ambos os
condutores, aí então, submetida a questão ao poder judiciário, haveria um sentença
que relataria esse evento em linguagem competente, subministrada pelas
provas admitidas em direito, e, através de um enunciado protocolar,
constituiria o fato jurídico38. O mundo jurídico, desse modo, seria o mundo formalizado
nos tribunais, e não um processo de adaptação social. Aqui, justamente nesse
ponto caro à teoria carvalhiana, é que Pontes de Miranda faz uma avassaladora
crítica ao realismo jurídico, em texto que vale a pena ser transcrito
integralmente pela sua lucidez e atualidade: “Um dos motivos para o erro de
somente considerarmos fenômenos jurídicos os revelados pela linguagem, pela
aplicação da regra jurídica mediante a iuris dictio oral ou escrita,
está na ignorância da integridade da vida psíquica e no vulgar verbalismo da
lógica. Como se hão de aplicar regras jurídicas, se juízes, funcionários, ou,
pelo menos, as próprias partes não as observarem?” E prossegue o gênio alagoano:
“Se quiséssemos evitar a discussão, diríamos apenas: nos fatos.
Realmente: a continuidade da vida doméstica, com todos os incidentes diários e
as mínimas ações e omissões, é série imensa de fenômenos de direito, realizados
sem palavras e sem autoridade, – e se compararmos a soma de tais aplicações de
normas com a imposição oficial de uma dezena de artigos de lei, com diminuta
média de observância, à nossa perplexidade logo se imporá a seguinte
proposição: há outro direito que se realiza na vida social e independe da ação
e da coação”39
Não por outra razão, é inválido e sem sentido o
desafio lançado por Paulo de Barros Carvalho, no prefácio à 2ª edição do seu
livro amiúde citado: “desisto de tal perspectiva teórica agora, se alguém
apresentar-me um fato jurídico sem revestimento lingüístico”40. Tal desafio assemelhase
em muito com aquela pergunta, feita provocativamente às crianças, sobre qual
seria a cor do cavalo branco de Napoleão. Ora, o saber-se de antemão, através
da própria pergunta, qual a cor do cavalo, já a invalida desde o início, pois a
pergunta já traz expressa em-si mesma a resposta. Quando o professor paulista
lança seu desafio, parte de um axioma previamente posto: só é fato jurídico o
enunciado protocolar, denotativo, que puder sustentar-se em face das provas em direito
admitidas41. Assim, é evidente que
nunca poderia ele encontrar qualquer fato jurídico fora desse axioma
previamente determinado, por mais que procurasse, porque qualquer fato jurídico
(como aqueles acima narrados) que lhe fosse apontado fora da definição
axiomática previamente por ele dada, cairia fora do âmbito de aplicação daquele
conceito. Vê-se, pois, que o argumento possui inegável circularidade, fundada
numa petitio principii.
Esse aspecto fica visível quando se saí da
arquitetura simétrica e perfeita da construção teórica para os aspectos
salientes do cotidiano jurídico. Volvamos, mais uma vez, ao exemplo do acidente
de trânsito. Se a mulher observasse a norma jurídica que determinava parar o veículo
no sinal vermelho, a sua observância seria irrelevante para o direito; agora,
se tendo descumprido essa norma, viesse a colidir com o outro veículo, surgindo
uma demanda judicial, tal evento geraria o fato jurídico pelo relato
protocolar da sentença. Esse compromisso com o seu ponto de partida (a
definição de fato jurídico como enunciado documental protocolar), exclui do
mundo jurídico todos os fatos que não se submetam à autoridade judiciária ou administrativa,
simplesmente porque houve atendimento à norma jurídica, o que os tornaria irrelevantes
para o direito. Como diz surpreendentemente Paulo de Barros Carvalho42, “(…) em certas
circunstâncias, o legislador determina a necessidade absoluta de que o fato
jurídico, para existir como tal, venha revestido de linguagem competente, como
no caso do tributo; em outras, porém, faz incidir a linguagem para
qualificar a conduta oposta (grifo original), vale dizer, aquela que
identifica o inadimplemento da prestação, permanecendo a observância, isoladamente
considerada, no domínio dos meros fatos sociais, sem o mesmo timbre de juridicidade.
É a hipótese clássica de previsões penais, em que o legislador opta por
qualificar o delito e não o cumprimento do dever” (os últimos grifos são
meus).
Clarificando ainda mais a sua teoria, e sendo fiel
a ela, continua o ilustre tributarista: “Recaindo sobre a conduta lícita,
no direito tributário brasileiro, além da prestação pecuniária, grande parte dos
deveres formais são estabelecidos mediante normas individuais e concretas. Ao
lado deles, dos deveres, há prescrições genéricas cuja efetivação, no caso
protocolar, assumirá relevância jurídica apenas e tão-somente em caso de
descumprimento. O exemplo clássico está no dever de suportar o procedimento
de fiscalização, como está, também, no dever de assegurar publicidade
aos documentos que ele, sujeito passivo, tiver a incumbência de
produzir”43.
Mas aqui está a grande aporia e contradição da
teoria carvalhiana: se há um dever de suportar o procedimento de
fiscalização, ou mesmo um dever de assegurar publicidade aos documentos,
são eles anteriores ao descumprimento, que venha de ensejar a enunciação
protocolar da norma individual e concreta. O dever do sujeito passivo de
atender às normas administrativas procedimentais (reconhecido como existente
por Paulo de Barros Carvalho) é produto da sua incidência, que juridicizando
fatos por ela previstos (ser comerciante + outros fatos, para o ICMS; ser
proprietário + outros fatos, para o IPTU, etc.), gera uma relação jurídica
entre o Estado-fisco e o contribuinte (ou responsável, ou substituto, etc.), da
qual nasce o direito potestativo do fisco de fiscalizar e a sujeição do
contribuinte de ser fiscalizado; o direito subjetivo público do fisco à
publicidade de documentos que o contribuinte tenha que produzir, e o dever
deste de produzir e dar publicidade. O atendimento, pelo contribuinte, à norma
jurídica que incidiu é ato jurídico lícito; o seu desatendimento, ato jurídico
ilícito, que faz incidir a norma sancionadora, a ser aplicada através de
procedimento administrativo próprio.
Como se vê, a própria teoria carvalhiana já contém,
em si mesma, o gérmen de sua refutação.
Nem toda aplicação da norma é produto de
algum fato jurídico, como sustenta Eurico Marcos Diniz de Santi44; ainda menos de ato de
autoridade. O proprietário que colhe o fruto de suas propriedades aplica a
norma jurídica, que lhe permite agir licitamente dessa forma. Tal conduta não é
fato jurídico: é exercício de poder que enche o direito subjetivo de
propriedade45. A mulher, do exemplo
antes amiúde citado, que colidiu com outro veículo por culpa sua e fez o ressarcimento
dos danos sofridos, aplicou norma jurídica que prescreve o dever de indenizar, através
de ato jurídico unilateral. Não há necessidade sempre de ato de autoridade
para que haja aplicação da norma que incidiu; – haverá por vezes, quando assim
o determinar, através de norma de competência, o ordenamento jurídico.
Quando da classificação dos fatos jurídicos,
podemos catalogá-los pela sua conformidade a direito em fatos lícitos e
ilícitos; pelo elemento cerne do seu suporte fáctico, partindo da participação
ou não de ato humano volitivo, em fato jurídico stricto sensu, ato-fato
jurídico e ato jurídico lato sensu; e pelos seus efeitos em
declaratórios, constitutivos, condenatórios, mandamentais e executivos. Se
afirmo que todo ato de aplicação é constitutivo do fato jurídico, como
faz a teoria do realismo lingüístico, não haveria espaço para as
sentenças declaratórias, por exemplo, que dizem respeito ao ser ou não-ser das
relações jurídicas, anteriormente à sentença que as declarou. Como também seria
de se excluir a existência dos efeitos mandamentais e executivo lato sensu,
que vão além do plano do pensamento (plano normativo puro), para atuarem no
mundo dos fatos. Mas isso é tema específico de outro estudo nosso46, onde melhor
aprofundaremos esses aspectos aqui tocados epidermicamente.
5. Conclusão.
Toda a nossa exposição, até agora feita, tem por
finalidade resgatar a intuição da genialidade de Pontes de Miranda, quando
concebeu o conceito operacional de incidência da norma jurídica como
causalidade normativa, diversa da causalidade física. E, para tal aggiornamento
do pensamento ponteano, nada melhor do que colocá-lo dialogicamente em
contato com a teoria de Paulo de Barros Carvalho, um dos mais eminentes
juristas do nosso tempo e criador do que venho denominando de realismo
lingüístico extremado, vez que o realismo escandinavo já tinha o colorido
lingüístico que o professor paulista adelgaçou.
O conceito de incidência é um dos mais importantes
nascidos da pena de Pontes de Miranda, devendo ser preservado, naturalmente sob
uma fundamentação diversa daquela que alguns vêm dando, que colidem e afrontam
o real pensamento do maior jurista brasileiro do século passado. Ao lhe
preservamos, por certo somos obrigados a rejeitar a teoria carvalhiana, que
embora seja construída por um sério e profundo espírito científico, não se
sustenta diante de uma análise fria e detalhada de sua lógica interna e da
amputação que provoca pela exclusão do timbre da juridicidade de uma infinidade
de fatos relevantes para o direito.
O espírito que animou esse estudo foi de
fraternidade e, sobretudo, de amor pelo direito. Onde fomos críticos, por vezes
enfáticos, procuramos ser com lhaneza, mas sem tagiversações, que mais empanam
do que auxiliam na construção teórica do direito. O que mais faltou ser dito, penso
estar abordado em dois outros estudos nossos, que completam nossa reflexão
sobre o realismo lingüístico extremado, tematizado sob a crivagem da
teoria ponteana47.
Notas:
1 Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, São
Paulo: Saraiva, 1994, p.2, passim.
2 Idem, p.23.
3 É fundamental anotar aqui que Miguel Reale,
diferentemente de nós, faz a distinção entre norma jurídica e modelo jurídico.
A norma jurídica, para Reale, seria a significação de um texto legal
específico, enquanto o modelo jurídico seria a significação total de diversos
textos, vale dizer, a soma de diversas normas, que constituiria um todo
significativo. Diz ele: “(…) o modelo jurídico resulta de uma
pluralidade de normas entre si articuladas compondo um todo irredutível às suas
partes componentes” (.30). Aqui, nesse particular, há semelhança com a
distinção que, posteriormente, fez Paulo de Barros Carvalho (Direito tributário:
fundamentos jurídicos da incidência, São Paulo: Saraiva, 1998, p.59, passim)
sobre os três planos: o da literalidade textual (fonte de direito, em Reale), o
das significações enquanto enunciado prescritivo (norma jurídica, em Reale) e o
das normas jurídicas, como unidades de sentido obtidas mediante agrupamento de
significações que obedecem a determinado esquema formal (modelo jurídico, em
Reale). Abolimos a figura intercalar do “enunciado prescritivo” (ou
“norma jurídica”, em Reale) por não guardar relevância para a Ciência
Jurídica, vez que não forma uma unidade mínima de significaçãodeôntica, dotada
de eficácia.
4 Ibidem, p.23.
5 ibidem, p.69.
6 Por todos, Umberto Eco, O Signo, 5ª ed., Lisboa:
Editorial Presença, 1997, p.22.
7 Ensina Eros Roberto Grau (Direito, conceitos e
normas jurídicas, São Paulo: RT, 1988, p.62): “O ‘objeto’ do conceito
jurídico não existe ’em si’, dele não há representação concreta, nem mesmo
gráfica. Tal objeto só existe ‘para mim’, de modo tal, porém, que sua existência
abstrata apenas tem validade, no mundo jurídico, quando este ‘para mim’, por
força da convenção normativa, corresponde um – seja-me permitida a expressão –
‘para nós'”.
8 Cornelius Castoriadis, A instituição imaginária
da sociedade, 3ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 1995, p.146. O texto de Jacques
Lacan, citado por Castoriadis, é o seguinte: “Há uma eficácia do
significante que escapa a toda explicação psicogenética, pois essa ordem
significante, simbólica, o sujeito não a introduz e sim a encontra”.
9 Mente, linguagem e sociedade, Rio de janeiro:
Rocco, 2000, p.26.
10 Utilizo a expressão “vivência”
(Erlebnis) próximo ao sentido gadameriano. Vide Hans-Georg Gadamer, Verdade e
método, Petrópolis: Vozes, 1997, p.117, passim.
11 Teoria do conhecimento e teoria da cultura, in:
Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p.30-31, grifos
originais. Vide, ainda, sobre a historicidade da criação dos modelos jurídicos,
Fontes e modelos do direito, p.49 e segts.
12 Teoria do conhecimento e teoria da cultura, in:
Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p.32
13 Eurico Marcos Diniz de Santi, Lançamento
tributário, São Paulo: Max Limonad. 1996, p.55; Marcos Bernardes de Mello,
Teoria do fato jurídico, São Paulo: Saraiva, 1993, p.58; Alfredo Augusto Becker,
Teoria geral do direito tributário, 3ª ed., São Paulo: Lejus, 1998, p.307.
14 Op. cit., p.07.
15 idem, p. 09 e 10.
16 Decadência e prescrição no direito tributário,
São Paulo: Max Limonad, 2000, p.56-58.
17 Idem, p.57.
18 idem, p.58. É Paulo de Barros Carvalho (Op.cit.,
p.11) quem ensina: “Assim como um evento qualquer, para tornar-se fato,
exige relato em linguagem competente, qualquer acontecimento ou mesmo qualquer
fato social que pretenda ingressar no reino da facticidade jurídica precisa
revestir-se da linguagem própria que o direito impõe”.
19 Sobre o realismo jurídico, vide a didática
exposição de Luiz Alberto Warat, Introdução geral ao direito – Interpretação da
lei, temas para uma reformulação, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1994, vol. I, p.57-59.
20 Paulo de Barros Carvalho, op.cit., p.08.
21 Sobre o apriorismo da norma jurídica, Lourival
Vilanova, Causalidade e relação no direito, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1989,
p.41-46, 87.
22 Alfredo Augusto Becker (Ob.cit., p.308-309)
incorreu nesse erro.
23 Sistema da ciência positiva do direito, 2ª ed.,
Rio de Janeiro: Borsói, 1972, t.II, p.90.
24 Tratado de direito privado, Campinas:
Bookseller, 2000, t.I, p.53 (§ 2, 3), grifei.
25 idem, p.62 (§5, 1), grifei a expressão sob
análise.
26 Sistema da ciência positiva do direito, 2ª ed.,
Rio de Janeiro: Borsói, 1972, t.II, p.91.
27 Idem, p.101.
28 Idem, p.192.
29 Idem, p.91.
30 Idem, p.185.
31 Vide Hans-Johann Glock, Dicionário Wittgenstein,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.272-277 e 287-291. Vide, outrossim,
Gottlob Frege, Sobre o sentido e a referência, in: Lógica e filosofia da
linguagem, São Paulo: Cultrix/USP, p.65: “A representação, por tal razão,
difere essencialmente do sentido de um sinal, o qual pode ser a propriedade
comum de muitos, e portanto, não é uma parte ou modo da mente individual; pois
dificilmente se poderá negar que a humanidade possui um tesouro comum de
pensamentos, que é transmitido de uma geração para a outra”.
32 Sobre o solipsismo, de modo didático, vide
Sílvia Faustino, Wittgenstein – o eu e sua gramática, São Paulo: Ática, 1995,
p.82 e segts.
33 Sobre os aspectos social e histórico como
elementos constitutivos da linguagem, indicamos como fontes úteis e didáticas
de pesquisa: Helena H. Nagamine Brandão, Introdução à análise do discurso, 7ª
ed., Campinas: Unicamp, s/d, e E. Orlandi, A linguagem e seu funcionamento, São
Paulo: Brasiliense, 1984.
34 Cornelius Castoriadis, Ob.cit., p.142.
35 Ob.cit., p.90. Aldacy Rachid Coutinho
(Invalidade processual: um estudo para o processo do trabalho, Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p.33) percebeu esse aspecto do pensamento ponteano, sem
aprofundá-lo contudo, nas seguinte observação: “Enquanto objeto cultural, a
incidência ocorre na ordem do ‘dever ser’ e não no campo do ‘ser’, da
causalidade natural. Portanto, a incidência da norma jurídica, que torna o fato
‘jurídico’, ocorre por vezes somente no mundo dos nossos pensamentos, não
impondo necessariamente transformações na ordem do ‘ser’. No entanto, poderá
implicar ainda alteração no mundo naturalístico”. E adiante: “Algumas normas
jurídicas prevêem hipóteses normativas que jamais existiram no mundo dos fatos,
mas permanecem no plano da idéia, da abstração”.
36 Vide Tratado…, p.53.
37 Idem, p.57.
38 “Fato jurídico tributário será tomado como um
enunciado protocolar, denotativo, posto na posição sintática de antecedente de
uma norma individual e concreta, emitido, portanto, com função prescritiva, num
determinado ponto de positivação do direito” (Paulo de Barros Carvalho, Ob.cit.,
p.105).
39 Sistema…, p.109-110.
40 Vide também Eurico M. Diniz de Santi,
Decadência…, p.57, onde repete o desafio de seu mestre.
41 Ob.cit., p.98. É ainda Paulo de Barros Carvalho
quem afirma: “Fixei como premissa a imperiosa necessidade de regra individual
e concreta para que os comandos gerais e abstratos possam ferir as condutas
inter-humanas, no convívio social”. É dizer: só haverá direito onde houver
aplicação da norma pela autoridade constituída.
42 Idem, p.211.
43 Idem, ibidem, com grifos meus.
44 Lançamento tributário, p.69-73. Afirma ele:
“Aplicação, reiteramos, definindo estipulativamente, é o fato jurídico
suficiente, realizado por ato jurídico de autoridade, para produção de normas
jurídicas”.
45 Sobre o conceito de exercício de direito, vide
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Campinas: Bookseller, 2000,
p.103 e segts.
46 Notas sobre o fato jurídico tributário, inédito.
47 Vide Notas sobre o fato jurídico tributário, bem
como Obrigação e crédito tributário: aspectos dogmáticos, ambos inéditos.
Informações Sobre o Autor
Adriano Soares da Costa
Advogado. Ex-Juiz de Direito. Professor convidado do Curso de Pós-Graduação em Direito Tributário da FAL – Faculdade de Alagoas. Professor do Centro Universitário de Ciências Jurídicas (CCJUR/Cesmac).