Resumo: O indulto é causa extintiva da punibilidade de competência privativa do Presidente da República. Em 12 de abril de 2017, o Presidente Michel Temer editou decreto presidencial inédito no qual concedeu indulto especial e comutação de penas às mulheres presas, por ocasião do dia das mães. Contudo, omitiu-se sobre questões importantes, em especial no tratamento aos crimes insuscetíveis de graça e anistia. O presente trabalho tem por escopo, por intermédio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, analisar as hipóteses deste indulto especial que busca frear o superencarceramento feminino que ocorre nos últimos anos, bem como identificar como devem ser tratados os casos em que as apenadas possuírem mais de uma condenação, em especial se concorrerem crimes impeditivos com não impeditivos.
Palavras-chave: Indulto. Encarceramento feminino. Soma ou unificação de penas. Crimes insuscetíveis de graça ou anistia.
Abstract: The pardon is an extinguishing cause of the punishment of exclusive competence of the President. On April 12, 2017 President Michel Temer issued an unpublished presidential decree in which he granted special pardon and commutation of sentences to women prisoners on the occasion of Mother's Day. However, important issues have been omitted, especially in the treatment of crimes that are not amenable to pardon and amnesty. The purpose of this study is to analyze the hypothesis of this special pardon that seeks to curb the super-female imprisonment that occurs in recent years, as well as to identify how cases should be treated in which the prisoners have been convicted for more than one crime, particularly in the case of offenses that couldn’t be pardoned.
Key-words: Pardon. Female Imprisonment. Addition or unification of sentences. Offenses unpardoned.
Sumário: Introdução. 1 Aspectos gerais do indulto. 2 Decreto de 12 de abril de 2017. 2.1 Hipóteses e requisitos. 3 Soma ou unificação de penas. 4 Crimes insuscetíveis de graça e anistia. 5 Do requisito temporal para a concessão do indulto quando cumulados crimes impeditivos com não impeditivos. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
No dia 12 de abril de 2017, de forma inédita, o Presidente Michel Temer publicou o primeiro Decreto de indulto coletivo destinado exclusivamente às mulheres.
Apelidado de Decreto do dia das mães (em razão da data utilizada como base para verificação do preenchimento dos requisitos e da concessão à mães e avós presas), o Decreto teve por escopo reduzir o superencarceramento feminino, que vinha crescendo nos últimos anos no país.
O indulto é uma causa extintiva da punibilidade, de competência privativa do Presidente da República, balizada no perdão da pena imposta à pessoa do condenado, motivado, em sua essência, pelos valores de solidariedade e compaixão.
Não obstante, no Brasil, a figura do indulto coletivo (o indulto também pode ser individual) tem sido utilizada como instrumento de política criminal, voltado especialmente em uma tentativa desesperada de reduzir o superencarceramento existentes nos estabelecimentos prisionais brasileiros.
Em especial, destaca-se o crescimento desenfreado do encarceramento feminino, que retira mães do convívio familiar, abandonando crianças e adolescentes, deixando-os em situação de risco social.
Segundo dados trazidos na exposição de motivos de proposta de indulto para mulheres, apresentado à Presidência no ano de 2016, o número de mulheres encarceradas no Brasil aumentou em 567,4% no período de 2000 a 2014, em sua maioria, presas em decorrência de delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, em especial o tráfico de drogas na sua modalidade “privilegiada”.
A análise do aludido Decreto se faz necessária para subsidiar os operadores do Direito na prática diária da Execução Penal, na medida em que o instrumento concessivo se mostrou omisso em determinadas questões ou violador de direitos em outras, necessitando ser interpretado à luz dos princípios da execução penal e da razão do instituto do indulto, na estreita medida do possível (já que o decreto de indulto por representar ato privativo do Presidente da República não pode ser estendido ou restringido à hipóteses e exigências não previstas).
Em especial, diante da existência de várias apenadas condenadas a crimes que, segundo as leis e a Constituição Federal, são insuscetíveis de graça, aqui incluído o indulto, ou anistia, bem como condenadas a vários crimes, se faz necessária analisar como será feita a análise diante da existência de infrações diversas, uma vez que o Decreto silenciou-se acerca do assunto.
Também é fundamental analisar como deverá ser tratadas as hipóteses de concorrência dos crimes insuscetíveis de graça ou anistia, os chamados crimes impeditivos, com os passíveis de concessão da benesse, ou não impeditivos.
Este trabalho tem por escopo analisar as hipóteses de concessão trazidas pelo Decreto de 12 de abril de 2017 que concedeu indulto às mulheres presas e comutação às condenadas, bem como a metodologia a ser utilizada na análise dos requisitos quando existirem mais de uma condenação, e quando houver concorrência entre os crimes impeditivos e não impeditivos.
1 ASPECTOS GERAIS DO INDULTO
O indulto é uma causa extintiva da punibilidade prevista no art. 107, II do Código Penal Brasileiro, de competência privativa do Presidente da República, conforme prescreve o art. 84, XII da Constituição Federal.
A palavra indulto deriva do latim indultus, que significa perdoar, favorecer ou indulgenciar. É ato do Presidente da República que perdoa a pena imposta à pessoa condenada, extinguindo a punibilidade da condenação.
Nos dizeres de MAGGIORE[1](apud GRECO, 2012, p.695), “uma das mais antigas formas de extinção da pretensão punitiva é a indulgência do príncipe, que se expressa em três instituições: a anistia, o indulto e a graça. A indulgentia principis se justifica como uma medida equitativa endereçada a suavizar a aspereza da justiça (supplementum iustitiae), quando particulares circunstâncias políticas, econômicas e sociais, fariam esse rigor aberrante e iníquo. Desse modo, atua como um ótimo meio de pacificação social, depois de períodos turbulentos que transtornam a vida nacional e são ocasião inevitável de delitos”.
Apesar de constituírem atos políticos, com alto teor de discricionariedade, praticados por agente político, sem se aterem a critérios jurídicos pré-estabelecidos, há diferenças entre a anistia, a graça e o indulto.
MIRABETE[2] (1997, p. 415) elucida que “anistia é medida de interesse coletivo, motivada em regra por considerações de ordem política e inspirada na necessidade de paz social a fim de se fazer esquecer comoções intestinais e pacificar espíritos tumultuados”.
A anistia diferencia-se do indulto, além da motivação política, na medida em que busca perdoar o fato em si, e todos os seus envolvidos, enquanto no indulto, o que se perdoa é a pessoa, independente do teor do crime. Por este motivo, enquanto a anistia pode ser concedida tanto antes (anistia própria), quanto após (anistia imprópria) uma condenação, o indulto demanda uma sentença condenatória. Ademais, na medida em que perdoa o fato criminoso, a anistia apaga todos os efeitos penais do crime e de, eventual sentença. Já o indulto, apenas extingue a pena, perdurando todos os demais efeitos da condenação, como a reincidência e a obrigação de reparar o dano.
Há diferenças ainda quanto à competência de concessão. Enquanto o indulto é de competência do Presidente da República, nos termos do art. 84, XII da Constituição Federal, a concessão de anistia é de competência do Congresso Nacional (art. 48, VIII, da Constituição Federal).
O indulto pode ser individual, quando concedido a um só indivíduo, ou coletivo, quando publicado decreto no qual se indulgencia toda e qualquer pessoa condenada que preencha os requisitos e condições estabelecidas no instrumento de concessão. Parte da doutrina, como Rogério Greco[3] (2012, p.696) e Cezar Roberto Bitencourt[4] (2012, p. 866), infere que a graça seria o indulto individual e o indulto propriamente dito seria o indulto coletivo. Ousamos discordar dos renomados autores, na medida em que entendemos que a graça em verdade é gênero de indulgência, dos quais derivam as espécies anistia e indulto.
Nos termos do item 172 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, “As disposições em torno da anistia e do indulto (artigo 186 e seguintes) aprimoram sensivelmente os respectivos procedimentos e se ajustam também a orientação segundo a qual o instituto da graça foi absorvido pelo indulto, que pode ser individual ou coletivo. A Constituição Federal, aliás, não se refere à graça mas somente à anistia e ao indulto (artigo 8º, XVI; 43, VIII; 57, VI; 81, XXII). Em sentido amplo, a graça abrangeria tanto a anistia como o indulto”.
No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal[5], afirmando que a graça é gênero do qual o indulto é espécie.
Este indulto como vimos, pode ser individual ou coletivo. Conforme explicamos[6] em nosso trabalho de conclusão de curso, “a diferença reside que o indulto individual terá efeito apenas ao condenado peticionante. No indulto individual não existe condição pré-aprovada de concessão do indulto”.
Já o indulto coletivo abrange qualquer pessoa que cumpra os requisitos previstos no instrumento de concessão, cabendo ao juiz da execução penal a constatação do preenchimento de tais requisitos e a consequente declaração da extinção da punibilidade.
Além do indulto, preconiza o art. 84, XII da Constituição Federal que compete privativamente ao Presidente da República comutar as penas.
Comenta DE PLÁCIDO E SILVA[7] (apud LIMA, 2010, p.189) que a “comutação de pena é indulgência consistente em se mudar ou trocar (comutar) uma pena por outra. É substituir a primitivamente imposta, que era de caráter mais grave, por outra mais benigna ou menos grave”.
Assim, comuta-se as penas quando substitui-se uma pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos, uma pena de morte por uma pena privativa de liberdade ou uma pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos por multa. Contudo, no Brasil tem-se aplicado a comutação como um redutor do total de pena aplicado, o que levou a doutrina a denominá-la de indulto parcial.
Todavia, Rodrigo Duque Estrada Roig[8] (2017, p. 527-528) argumenta que “[…] não se pode admitir que a comutação seja indulto parcial da pena, pois o indulto é causa extintiva da punibilidade e não existe causa extintiva parcial”.
Aquiescemos com o posicionamento do nobre escritor, porém não discordamos que para que haja a substituição por outra pena menos grave, deva existir alteração no tipo de pena. Assim, a redução do quantum da pena também implica na substituição por pena mais branda. Contudo, não podemos falar em indulto parcial, não obstante esse ser o termo empregado pelos Tribunais Superiores[9].
Portanto, cabe ao Presidente da República indultar ou comutar as penas de pessoas condenadas.
Mas qual seria o motivo para o perdão de forma indiscriminada de pessoas que, após o devido processo legal, foram devidamente condenadas?
NUCCI[10] (2013, p. 616), ao citar a Súmula 6 do Conselho Penitenciário Nacional, revela que “a graça trata-se de ‘medida de caráter excepcional, destinada a premiar atos meritórios extraordinários praticados pelo sentenciado no cumprimento de sua pena, ou para corrigir equívocos na aplicação da pena ou eventuais erros judiciários’”.
Assim, funcionaria o indulto, nos dizeres de Jarbas Fidelis de Souza[11] (1983, p.190), “como instrumento de freios e contrapesos, passando a ser usado como medida moderadora para contenção do Poder Judiciário, dentro do princípio dos controles recíprocos, como também medida de política criminal, individualizadora da pena”.
O escopo do indulto, desde a sua criação, focado nos pilares religiosos de perdão e compaixão, era a equalização do abuso do Poder Judiciário no estabelecimento das penas pelos demais poderes, visando individualizar de forma adequada a pena, seja por erro judiciário, seja por mudanças no transcorrer da execução penal que justifiquem uma readequação da pena imposta dentro de sua função.
No Brasil, sob o pretexto da realização de uma política criminal, anualmente, são publicados Decretos, usualmente em comemoração aos festejos natalinos, que indultam as penas de quaisquer pessoas que preencham os requisitos neles estabelecidos, extinguindo a pena de milhares de condenados.
Apesar de tradicionais, cumpre-nos alertar que a edição de Decretos Presidenciais para a concessão do indulto é ato político e discricionário do Presidente da República que, se assim entender não conveniente ou inoportuno, pode não conceder o indulto coletivo, ou restringi-lo às hipóteses que entender justas e necessárias.
Da mesma forma, nada obriga o Presidente a editar os Decretos por ocasião da comemoração do natal. Prova disso que, em 12 de abril de 2017, por ocasião da comemoração do dia das mães, o Presidente da República editou um Decreto (sem número) que concede indulto especial e comutação de penas às mulheres presas.
2 DECRETO PRESIDENCIAL DE 12 DE ABRIL DE 2017
Em 12 de abril de 2017 foi editado, de forma inédita no Brasil, Decreto Presidencial (sem número), que concedeu indulto especial e comutação às mulheres presas, por ocasião do dia das mães.
O aludido decreto é reflexo de um quadro preocupante na sociedade brasileira atual, que é o aumento assustador do número de mulheres encarceradas. Segundo dados trazidos na exposição de motivos[12] de proposta de indulto para mulheres, apresentado à Presidência no ano de 2016, “no período compreendido entre os anos de 2000 e 2014, enquanto o do encarceramento masculino aumentou 220,20%, o número de mulheres encarceradas no Brasil aumentou em 567,4%. Tal circunstância veio a agravar, ainda mais, a superlotação nos presídios femininos, abarrotados, em sua maioria, por mulheres presas em decorrência de delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa. Nesse cenário de superlotação, torna-se inviável a existência de condições dignas de habitação, o que acarreta, substancialmente, na aplicação de penas cruéis e degradantes, em absoluto sentido contrário ao comando referido no parágrafo anterior”.
A Ministra Cármen Lúcia, em seu voto no Habeas Corpus nº 118.533/MS[13], ao decidir sobre a desconsideração da hediondez do crime apelidado de tráfico privilegiado (art. 33, §4º da Lei 11.343/2006), externou sua preocupação com o crescimento desproporcional do encarceramento feminino.
Em verdade, é cediço que a superpopulação carcerária, por si só, é motivo de violação de direitos humanos. Agrava-se o fato que a mulher, cada vez mais, tem adentrado ao mundo do crime, em especial ao tráfico de drogas, em substituição ao seu parceiro, que se encontra preso, ou muitas vezes coagida pelo mesmo, a dar continuidade aos “negócios” deixados por ele.
Ocorre que o encarceramento em massa de mulheres, gera outro problema social, que é o abandono de crianças e adolescentes, que ficam à mercê dos perigos sociais e da marginalização.
Nesse sentido, visando enfrentar os problemas decorrentes do superencarceramento feminino, o Presidente Michel Temer publicou o Decreto de 12 de abril de 2017, visando perdoar as penas ou substituí-las por penas mais brandas, no intuito de reduzir a população carcerária feminina.
Apesar de publicado em 12 de abril de 2017, o Decreto tem como data-base para preenchimento dos requisitos o Dia das Mães do ano de 2017, ou seja, 14 de maio de 2017, chamado, por isso, de Decreto de Dia das Mães.
Assim como o indulto natalino, fora escolhido outra data que possa gerar uma confusão do indulto com a saída temporária. É costumeiro que as datas das saídas temporárias ocorram em datas comemorativas, como dias das mães, dia dos pais e natal. Apesar da infeliz coincidência, não se deve confundir o indulto, tanto o concedido no Natal como este do Dia das Mães, com a saída temporária. Aquele é causa extintiva da punibilidade, aplicável a qualquer regime, não restando mais pena a cumprir. Esse é direito do apenado em cumprimento de regime semiaberto, apenas, no qual o apenado é autorizado a sair, sem escolta, pelo prazo de 07 (sete) dias, para convívio social e familiar, devendo regressar ao estabelecimento prisional, sob pena de regressão de regime, para continuar o cumprimento da pena.
Ressaltamos que o objetivo do nosso trabalho não é realizar uma análise crítica do Decreto, e, sim, uma análise técnica, em especial no tocante a como tratar os casos em que a apenada estiver condenada a mais de um crime, matéria não tratada no Decreto.
Todavia, insta-nos esclarecer que, ao nosso ver, o indulto e a comutação, sozinhos, não representam uma verdadeira política criminal, na medida em que apenas oferecem uma “[…] resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado[…]”[14]. No entendimento de Alessandro Baratta (2011, p.201), uma verdadeira política criminal deve ser entendida, “[…] em sentido amplo, como política de transformação social e institucional” [15].
O indulto coletivo, da forma como é aplicado no Brasil, além de criar uma sensação de impunidade, não contribui para o desencarceramento, haja vista que, mesmo editado anualmente ao menos um decreto (publicados religiosamente nos últimos 50 anos) perdoando cerca de três mil condenados, o problema do superencarceramento perdura.
Não obstante, a edição do Decreto de 12 de abril de 2017, tem por objetivo e justificativa, conforme consta de seu preâmbulo, adotar medidas com vistas à implementação de melhorias no sistema penitenciário brasileiro e à promoção de melhores condições de vida e da reinserção social às mulheres presas.
Do preâmbulo, pode-se retirar a primeira discussão quanto ao alcance do aludido decreto. Uma vez que o objetivo do decreto é a melhoria no sistema prisional e a reinserção de mulheres presas, podemos afirmar que o aludido instrumento apenas alcançará as mulheres que ao tempo de sua data-base de concessão (dia das mães) estiverem presas.
Complementa este sentido, o art. 1º do Decreto, que determina que “o indulto especial será concedido às mulheres presas, nacionais ou estrangeiras, que, até o dia 14 de maio de 2017, atendam, de forma cumulativa, aos seguintes requisitos”.
A dúvida reside na aplicação do aludido Decreto às presas que se encontrem em cumprimento de pena em regime aberto e às que se encontrem em gozo de livramento condicional.
Quanto a este último, entendemos que, uma vez que se encontram livres, mesmo que sujeitas a determinadas condições, escapam da abrangência do decreto.
O indulto é medida excepcional, e mesmo que para beneficiar o apenado, não pode ser interpretado extensivamente, uma vez que o mesmo determina a não aplicação de uma sentença concedida após o devido processo legal. Ademais, é ato privativo do Presidente da República a concessão do indulto, cabendo ao Judiciário apenas a declaração da extinção da punibilidade após a subsunção do caso concreto à norma. A criação de hipóteses não previstas no Decreto ou o desvio da intenção política do Presidente representam violações ao Princípio da Separação dos Poderes.
Por este motivo, paira a dúvida, devido à atecnia do Decreto, quanto a aplicação do mesmo às mulheres que estejam cumprindo pena em regime aberto. Conforme preceitua o art. 93 da Lei de Execuções Penais, o regime aberto deverá ser cumprido, em regra, em Casa de Albergado. O Superior Tribunal de Justiça[16] já se manifestou no sentido de que “casa do albergado imprime ideia de local sem as características de cárcere, próprio para o cumprimento de penas em regime fechado ou semi-aberto (sic)”.
Não obstante, no Brasil, em virtude da não existência de casas de albergado em várias regiões, é comum o cumprimento do regime aberto em sistema de prisão domiciliar.
Seria nessas hipóteses, possível a concessão do indulto com fulcro no Decreto de Dia das Mães?
Entendemos que não. O indulto enquanto instrumento de política criminal representa uma renúncia do Estado à execução penal em face dos problemas de superlotação carcerária, pois do contrário, não se justificaria a edição de Decretos perdoando penas devidamente impostas. Se não estamos diante das mazelas do cárcere, uma vez que o reeducando encontra-se em prisão domiciliar ou em casa de albergado, não há razões excepcionais que justificam a aplicação do indulto, salvo se expressamente previsto no instrumento concessivo. Nesse sentido, o preâmbulo do próprio decreto expõe que o objetivo do decreto é a implementação de melhorias no sistema penitenciário brasileiro.
Há posicionamento diverso, justificado pela aplicação do princípio da proporcionalidade e da isonomia, na medida em que, seria desproporcional aplicar o indulto às condenadas em regime fechado e semiaberto, regimes mais gravosos, e não aplicá-lo às condenadas em regime aberto ou às penas restritivas de direito.
Rebatemos a aplicação desses princípios, pela própria razão dos mesmos. Primeiramente, o indulto é medida excepcional, que como vimos, busca exatamente, reduzir os abusos cometidos pelo Poder Judiciário na aplicação e na execução das penas. Ora, nos dizeres de Cesare Beccaria[17] (2002, p. 64), “quando as penas se tiverem feito menos cruéis, a clemência e o perdão serão menos necessários”. O Indulto é justamente direcionado às penas mais cruéis, que retirem do ser humano sua dignidade, não se justificando a aplicação do instituto às penas brandas, cumpridas de forma livre.
“Visto que o Estado deve agir sempre pautado pelo princípio da proporcionalidade, verifica-se que este encontra sua ação limitada, por um lado, por meio dos limites superiores da proibição do excesso, e, por outro, por meio de limites inferiores advindos da proibição de proteção deficiente”[18].
Percebe-se que o indulto funciona como instrumento de regulação dessa proibição do excesso, mas deve ser usado com parcimônia, para não sobpassar o limite da proteção deficiente.
“[…] tem-se que o princípio da proporcionalidade não pode deixar de ser compreendido em sua dupla dimensão, uma vez que ambas as face guardam conexão com as noções de razoabilidade e equilíbrio, contendo em âmago o instrumento perfeito para aferir-se a legitimidade constitucional de todos os atos (sejam estatais ou de terceiros) que representam restrições aos direitos fundamentais[19]”.
Da mesma forma, não se pode banalizar o princípio da isonomia, utilizando-o apenas do ponto de vista formal, no qual, todos têm os mesmo direitos. Deve-se enxergá-lo em sua vertente substancial, de forma a reduzir as penas mais gravosas, das que sofreram por mais tempo as mazelas do cárcere, em detrimento, das que estão em liberdade, mas devem cumprir suas penas impostas.
Por fim, como explicamos o texto do indulto, enquanto instituto de concessão privativa do Presidente da República, deve ser interpretado de forma literal e restritiva, não se podendo abarcar outras hipóteses não desejadas pelo titular da discricionariedade. Assim, uma vez que o art. 1º apenas refere-se às “mulheres presas”, entendemos não abarcar as que se encontram em regime aberto, seja em casa de albergado, seja em prisão domiciliar. Da mesma forma, não alcançará as penas restritivas de direitos.
Diversamente, o art. 2º, ao falar da comutação, não limitou sua concessão às mulheres presas, podendo ser concedida a quaisquer condenadas.
2.1 Hipóteses e requisitos
O Decreto de 12 de abril de 2017 elenca oito hipóteses de concessão de indulto, trazendo requisitos de ordem subjetiva e objetiva.
Logo nos incisos I e II do art. 1º, o Decreto informa que somente se aplicará às mulheres presas que, cumulativamente:
I – não estejam respondendo ou tenham sido condenadas pela prática de outro crime cometido mediante violência ou grave ameaça;
II – não tenham sido punidas com a prática de falta grave;
O inciso I reflete a própria razão do Decreto, qual seja, reduzir o superencarceramento, porém, sem perdoar a violação de direitos fundamentais importantes, como a vida e a incolumidade física e psíquica das pessoas. Dentre as hipóteses de indulto, trazidas no inciso III, e de comutação, do art. 2º, apenas a uma delas (gestantes com gravidez de alto risco), se permitirá o indulto para crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa. Todas as demais, se exige, como condição para concessão, que a mulher tenha sido condenada por crime sem violência ou grave ameaça.
Da mesma forma, o inciso I veda a concessão às presas que estejam respondendo ou tenham sido condenadas pela prática de outro crime violento ou praticado com ameaça.
A nosso ver, a primeira parte do inciso I viola o princípio da presunção de inocência, na medida em que, pune a apenada (não concedendo o indulto) pela mera existência de processo em curso.
Não obstante, a alta carga de discricionariedade contida nos Decretos de indulto, os mesmos devem respeitar o ordenamento jurídico e os princípios constitucionais.
Rodrigo Roig[20] (2017, p.82-83) defende que “a vedação aos direitos da execução penal com fundamento na existência de inquérito ou outra ação penal em curso (o que alegadamente tornaria indefinida a situação processual do condenado) representa nítido desrespeito ao princípio da presunção de inocência, porquanto importa em antecipação de juízo condenatório. […]
Por força do princípio, é possível ainda fundamentar o cabimento do indulto e da comutação da pena, ainda que a pessoa condenada seja ré em outro processo criminal, mesmo que tenha por objeto um crime hediondo ou equiparado”.
Destarte, refutamos a aplicação deste inciso, em sua primeira parte, eis que inconstitucional, e defendemos que, por aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência, é possível a concessão do indulto, mesmo que a apenada esteja respondendo a outros processos criminais.
Quanto ao inciso II, traz o Decreto um requisito de ordem subjetiva, acerca do comportamento carcerário da apenada.
Ressaltamos que, apesar de não trazer expressamente no texto decretal, por respeito ao princípio da ampla defesa e do contraditório, apenas obstarão a concessão do indulto as faltas graves devidamente homologadas pelo juízo da execução, após justificativa da apenada, ofertada a ampla defesa e o contraditório.
Também alertamos que apenas poderão ser consideradas as faltas graves cometidas até a data-base concessiva do indulto, qual seja, 14 de maio de 2017. Todas as faltas cometidas após essa data, dada a natureza declaratória da decisão judicial que extingue a punibilidade pelo indulto, não poderão impedir a concessão do mesmo. O indulto é concedido no momento do preenchimento dos requisitos previstos no Decreto, cabendo ao magistrado apenas declarar a extinção da punibilidade, devendo aferir se, à época da publicação do decreto, a apenada preenchia os requisitos e se enquadrava em alguma das hipóteses.
Cumpre notar que, diferentemente dos decretos anteriores, o Decreto de 12 de abril de 2017 não se limitou à prática de falta grave nos últimos doze meses. Assim, a existência de falta grave, mesmo que cometida há mais de doze meses da publicação do decreto, impede a concessão do indulto.
Entendemos que a não previsão de um limite temporal retroativo, não leva em consideração a possível evolução reintegrativa da apenada. Todo condicionamento de comportamento, deve ser realizado sob o binômio sanção-recompensa, previsto na Lei de Execuções Penais na subseção III da seção Disciplina. Nessa esteira, ao qual não julgamos correto ou incorreto, a aplicação de sanções visa efetivamente um melhoramento do comportamento, indicando as condutas que são mal vistas, e merecem ser repreendidas, e oportunizando um caminho de condutas bem vistas, que resultarão em recompensas.
A estigma de má presa, o que não é indício de uma não ressocialização, por ter sido praticada uma falta grave, não pode perdurar por longos períodos, sob a pena de quebrar a lógica pedagógica imposta na lei sob o sistema de sanções e recompensas.
Prova disto que a maioria das normas estaduais internas que disciplinam e regulamentam as faltas e a disciplina dos estabelecimentos prisionais, prevê a reabilitação da conduta carcerária após um determinado prazo, sem que haja novas intercorrências, para que o apenado ou a apenada possua o requisito subjetivo para a progressão de regime.
Não obstante, entendemos que, para obstar a concessão do indulto, a falta deve ter sido praticada durante o período executivo da pena indultada. Assim, por exemplo, se a apenada tiver sido condenada por roubo, tendo cumprido sua pena integralmente em 2013, e, em 2015, venha a praticar novo delito, sendo a mesma condenada, não poderá uma falta praticada no período anterior ao cometimento do delito em análise (praticado em 2015) impedir que a mesma receba o benefício do indulto, sob o risco de postergar ad eternum uma sanção.
Quanto às hipóteses do inciso III, informa o Decreto de 12 de abril de 2017 que terão direito ao indulto às mulheres presas que se enquadrem em pelo menos uma das seguintes hipóteses:
a) mães condenadas à pena privativa de liberdade por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, que possuam filhos, nascidos ou não dentro do sistema penitenciário brasileiro, de até doze anos de idade ou de qualquer idade se pessoa com deficiência, nos termos da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, que comprovadamente necessite de seus cuidados, desde que cumprido um sexto da pena;
b) avós condenadas à pena privativa de liberdade por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, que possuam netos de até doze anos de idade ou de qualquer idade se pessoa com deficiência que comprovadamente necessite de seus cuidados e esteja sob a sua responsabilidade, desde que cumprido um sexto da pena;
c) mulheres condenadas à pena privativa de liberdade por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, que tenham completado sessenta anos de idade ou que não tenham vinte e um anos completos, desde que cumprido um sexto da pena;
d) mulheres condenadas por crime praticado sem violência ou grave ameaça, que sejam consideradas pessoa com deficiência, nos termos do art. 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência;
e) gestantes cuja gravidez seja considerada de alto risco, condenadas à pena privativa de liberdade, desde que comprovada a condição por laudo médico emitido por profissional designado pelo juízo competente;
f) mulheres condenadas à pena privativa de liberdade não superior a oito anos, pela prática do crime previsto no art. 33, da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, e a sentença houver reconhecido a primariedade da agente, os seus bons antecedentes, a não dedicação às atividades criminosas e a não integração de organização criminosa, tendo sido aplicado, em consequência, o redutor previsto no § 4o do referido artigo, desde que cumprido um sexto da pena;
g) mulheres condenadas à pena privativa de liberdade não superior a oito anos por crime praticado sem violência ou grave ameaça, desde que cumprido um quarto da pena, se não reincidentes; ou
h) mulheres condenadas à pena privativa de liberdade não superior a oito anos por crime praticado sem violência ou grave ameaça, desde que cumprido um terço da pena, se reincidentes.
As alíneas “a” e “b” representam a motivação pela escolha da data-base para a concessão do Decreto. Tratam-se de hipóteses de indulto assistencial, no qual o perdão é concedido tendo por escopo a proteção àqueles que dependam da pessoa presa.
Rodrigo Roig[21] (2017, p. 539) ensina que “o indulto assistencial tem por base o fato de que pessoas em meio livre, sobretudo filhos e filhas das pessoas presas, delas dependem para sua subsistência e assistência, tanto material quanto afetiva”.
Quanto à comprovação de cuidados para filhos menores, o STJ[22] já decidiu que “Não se faz necessária a demonstração da dependência entre o filho menor de 18 anos e o paciente, pois, diante da vulnerabilidade e fragilidade dos indivíduos que não atingiram a maioridade penal, tal conjuntura é presumível, especialmente considerando a dimensão do princípio da proteção integral, previsto no art. 227 da Constituição Federal”.
Assim, a nosso ver, apenas no caso da alínea “b”, quando tratar-se de avó, é que será necessária a comprovação de que a mesma detinha a guarda do menor ou do neto com deficiência. No caso de deficiência, também se fará necessária a comprovação de dependência.
Frise-se que somente se inserem nas hipóteses de indulto os casos de filhos menores de doze anos. Para as hipóteses de filhos entre doze e dezesseis anos, será concedida a comutação de pena nos termos do art. 2º, II e III do Decreto. Também será hipótese de comutação se o filho possuir doença crônica grave, assim consideradas as previstas nas Leis nº 7.713/1988, 8.036/90, 8.213/90, 8.112/90, no Decreto nº 3.000 de 26/03/1999 e na Portaria Interministerial MPAS/MS nº 2.998, de 23/8/2001.
A alínea “c” trata do chamado indulto etário, indicando que as mazelas oriundas do cárcere são amplificadas em razão da idade avançada; ou que dada a baixa idade, se deve dar nova oportunidade, evitando-se a “inserção definitiva” na vida criminosa.
Diversamente do criticado Decreto nº 8.940/2016, que apenas indultava pessoas com idade superior a setenta anos, o Decreto de 12 de abril de 2017 adequou-se ao conceito de idoso do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.742/2003), reduzindo a idade para sessenta anos.
Assim, como na hipótese do indulto assistencial, o indulto etário encontra amparo na Constituição Federal, na busca de políticas públicas de proteção à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso.
A alínea “d” traz a hipótese do indulto humanitário, talvez a modalidade de indulto que mais se aproxime da razão de existir do aludido dispositivo em nosso ordenamento jurídico até os dias atuais. Relata Rodrigo Roig[23] (2017, p.542) que “o indulto humanitário passou a ser instrumento político-criminal destinado a amenizar a dor daqueles que já padecem de doenças graves ou deficiências, tornando suas existências menos tormentosas”.
O Decreto apenas trata das pessoas com deficiência, que na forma da Lei nº 13.146/2015 são aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Primeiramente, há que se elogiar o Decreto, que quebrou uma tradição de apenas indultar as pessoas com deficiências motoras ou cegueira. No texto, englobou-se toda e qualquer deficiência, dando o devido tratamento que a lei buscou. Em contrapartida, limitou a concessão de indulto humanitário a determinados tipos criminais e não previu as hipóteses de doenças graves e terminais como concessivas do benefício.
“Mister ressaltar que o indulto humanitário não pode depender da modalidade do crime praticado, tendo direito mesmo aqueles condenados por crimes hediondos ou equiparados. Como afirmado, as razões para o indulto são estritamente humanitárias, não possuindo qualquer relação com a suposta gravidade abstrata do delito praticado[24]”.
Corrobora João José Leal[25] ao afirmar que “para esses casos extremos e dolorosos, o princípio da humanidade torna imperativa a concessão do indulto. Mesmo os condenados por crimes de especial gravidade, têm o direito inalienável de padecer seu estado doentio em sossego ou de preparar-se para a morte com dignidade”.
Nessa linha de não limitação material, a alínea “e” foi a única a não limitar aos crimes sem violência ou grave ameaça, justamente pelo caráter humanitário da hipótese. será concedido indulto às gestantes, cuja gravidez seja considerada de alto risco. Depreende-se da alínea dois requisitos, estar grávida, e ser considerada a gravidez de alto risco, atestada por laudo médico.
A gravidez deverá ser atestada no momento da data-base do decreto, qual seja, 14/05/2017, uma vez que o indulto é concedido no momento da sua implementação, cabendo ao juiz da execução apenas declarar a extinção da punibilidade. Se quando da declaração pelo juízo da execução, a apenada não estiver mais em estado gravídico, ou se tiver engravidado posteriormente à data-base, não fará jus a reeducanda ao indulto. Da mesma forma, não é requisito o nascimento da criança.
Dentre as razões de política criminal da edição do Decreto de 12/04/2017, a hipótese da alínea “f” é a que mais se embasa no potencial desencarcerador do indulto.
Conforme exposição de motivos da minuta[26] de proposta de decreto de indulto de mulheres, apresentada pela Comissão do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, “com base no diagnóstico de dados do Infopen/2.014 e outras pesquisas, o CNPCP analisou vários impactos para embasar a proposta de decreto para mulheres encarceradas e, em síntese, identificou: 37.380 mulheres encarceradas, sendo 9.565 em ambientes superlotados, mais de 50% por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, sendo que o delito que mais encarcera é o tráfico doméstico”.
O Ministro Ricardo Lewandowski[27], no voto do Habeas Corpus nº 118.533/MS, frisou que “dados do último INFOPEN do Ministério da Justiça, os quais colacionam informações que datam de dezembro de 2014, dão conta de que, entre as já 622.202 pessoas em situação de privação de liberdade, homens e mulheres, 28% (ou, mais precisamente, 174.216 presos) ali estão por força de condenações decorrentes da aplicação da Lei de Drogas. Esse porcentual, se analisado sob a perspectiva do recorte de gênero, revela uma realidade ainda mais brutal: 68% das mulheres que estão em situação de privação de liberdade (e hoje já, lamentavelmente, somos a quinta maior população do planeta levado em conta o número de mulheres presas), estão envolvidas com os tipos penais de tráfico de entorpecentes ou associação para o tráfico”.
Assim, na expectativa de liberar a maior quantidade de internas, de forma a reduzir a superpopulação carcerária feminina, a previsão de indulto a mulheres condenadas à pena privativa de liberdade não superior a oito anos, pela prática do crime previsto no art. 33, da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, e a sentença houver reconhecido a primariedade da agente, os seus bons antecedentes, a não dedicação às atividades criminosas e a não integração de organização criminosa, tendo sido aplicado, em consequência, o redutor previsto no § 4º do referido artigo, o chamado tráfico privilegiado, revela-se essencial, na medida em que representam grande percentual da população carcerária feminina.
Ressalte-se que a sentença tem de ter reconhecido expressamente a minorante do §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, não podendo o juiz da execução aplicar a minorante e conceder indulto mesmo que preenchidos os requisitos de primariedade, bons antecedentes, não dedicação às atividades criminosas e não integração de organização criminosa.
As duas últimas hipóteses (alíneas “g” e “h”) são as hipóteses de indulto comum ou genérico, pois não exigem requisitos especiais para a sua concessão.
Com exceção das hipóteses referentes a indulto humanitário, no qual pelo princípio da humanidade torna-se imperativa a concessão do indulto, o Decreto exige o cumprimento de uma fração da pena aplicada, de ⅙ (um sexto) nas hipóteses de indultos especiais, e de ¼, nas hipóteses de indulto comum, quando não reincidente, e de ⅓, se reincidente.
O problema reside quando a apenada possuir mais de uma condenação. O Decreto informa que a apenada deverá cumprir determinada fração da pena, mas, diferentemente dos decretos anteriores, não há determinação de que as penas correspondentes a infrações diversas devem somar-se, para efeito da declaração do indulto e da comutação de penas.
3 CONDENAÇÃO POR MAIS DE UM CRIME: SOMA E UNIFICAÇÃO DE PENAS
Apesar da regra constante no art. 76[28] do Código Penal, coexistindo duas ou mais condenações em desfavor da apenada, resta dificultoso identificar qual a pena que está sendo cumprida naquele momento. Por tratar-se de pena corporal, existindo apenas um único corpo, não há como separar o cumprimento simultâneo de penas.
Por este motivo, a lei determina que se busque a unidade das penas, através da soma ou unificação das penas. Prescreve o art. 111 da Lei de Execuções Penais que
Art. 111. Quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos distintos, a determinação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas, observada, quando for o caso, a detração ou remição.
E complementa o art. 82 do Código de Processo Penal que
Art. 82. Se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva. Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas (GRIFO NOSSO).
Ensina Paulo Fernando dos Santos (1998, p. 62) que, na Execução Penal, “cálculo das penas é feito a partir do recebimento das respectivas guias. Assim, à medida em que, surgindo novas condenações, serão elas somadas a fim de que um novo regime de cumprimento seja aplicado, levadas em consideração as mesmas regras adotadas pelo juiz da sentença”.
Há que se diferenciar a soma da unificação das penas. Na soma, aplica-se a regra do art. 69 do Código Penal, hipótese de concurso material. Assim, se uma apenada foi condenada pela prática de furto qualificado a uma pena de dois anos de reclusão, em regime aberto, e recebe outra condenação por tráfico de drogas a uma pena de cinco anos de reclusão, em regime semiaberto, deverá cumprir uma pena de sete anos de reclusão, em regime semiaberto, nos termo do art. 33, §2º do Código Penal.
Na unificação, as penas distintas tornam-se uma, com a posterior aplicação das regras dos arts. 70 e 71 do Código Penal, hipóteses de concurso formal e crime continuado.
Aqui, não haverão duas penas distintas somadas, mas, após a decisão do Magistrado de unificação, a condenação menos grave, desaparecerá, para exasperar a pena da condenação mais grave, permanecendo apenas uma única condenação.
Não obstante esta distinção, o objetivo é um só. Estabelecer um novo regime, de uma nova pena, formada pela soma ou unificação das anteriores.
E no caso do Indulto? O requisito objetivo (fração de cumprimento) será aplicado sobre cada pena isoladamente, ou sobre a pena somada ou unificada?
Os Decretos anteriores, a exemplo dos Decretos Presidenciais nº 8.940/2016 (art. 11) e 8.615/2015 (art. 8º), previam que “as penas correspondentes a infrações diversas devem somar-se, para efeito da declaração do indulto”.
Assim, não restavam dúvidas quanto à necessidade de somarem-se as penas para fins de aplicação do requisito objetivo.
Contudo, o Decreto de 12 de abril de 2017 omitiu-se acerca do assunto.
Apesar da omissão do instrumento concessivo, entendemos que as penas devem somar-se para concessão do indulto ou comutação de penas.
Primeiramente, porque a soma e a unificação das penas é um comando legal que visa o estabelecimento de uma pena única (derivada do cúmulo material – soma – ou formal – unificação), já que não se pode precisar sobre qual pena o apenado se encontra cumprindo, buscando-se a equivalência de um só corpo, uma só pena.
Ademais, nos casos em que a lei exigiu que as penas fossem analisadas isoladamente, como ocorre com a prescrição (art. 119 do Código Penal), expressamente assim se manifestou.
Assim, para a concessão do indulto ou comutação de penas, a apenada deverá cumprir as frações exigidas pelo decreto da soma de todas as condenações existentes em seu desfavor até aquele momento. Da mesma forma, os limites temporais deverão obedecer o total da soma das penas. Assim, se a apenada fora condenada a cinco anos de reclusão por estelionato e a quatro anos por furto qualificado, não terá direito ao indulto pois a pena total ultrapassa os oito anos.
Nesse sentido, já decidiu o STF
INDULTO. AINDA QUE O RÉU SEJA TECNICAMENTE PRIMARIO, SOMAM-SE AS PENAS A QUE FOI CONDENADO PARA VERIFICAR-SE SE ELAS ESTAO AQUEM OU ALÉM DO LIMITE PREVISTO PARA A CONCESSÃO DO INDULTO, UMA VEZ QUE O DECRETO QUE O CONCEDEU NÃO SE REFERE A POSSIBILIDADE DE INDULTO INCIDENTE, RELATIVO A UMA DAS PENAS EM VIAS DE CUMPRIMENTO. ADEMAIS, "HABEAS CORPUS" NÃO E MEIO IDONEO PARA A VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA OU NÃO, DE PERICULOSIDADE RECONHECIDA POR DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. 'HABEAS CORPUS' INDEFERIDO.
(HC 56893, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Segunda Turma, julgado em 27/03/1979, DJ 18-05-1979 PP-03863 EMENT VOL-01132-01 PP-00200 RTJ VOL-00093-01 PP-00109)
Contudo, além do quantum de pena, o Decreto exige outros requisitos, como ter sido o crime praticado sem violência ou grave ameaça. E no caso de concorrência de um crime não violento com outro praticado com violência ou grave ameaça?
Nesses casos, o próprio decreto responde ao questionamento, na medida em que, impede a concessão de indulto às apenadas que tenham sido condenadas pela prática de outro crime cometido mediante violência ou grave ameaça.
Contudo, tal vedação, juntamente com a referente à prática de falta grave, comentada no tópico anterior, somente refere-se às hipóteses de indulto, já que previstas como incisos do art. 1º do Decreto, não se aplicando às hipóteses de comutação, a qual será concedida às mulheres, nacionais e estrangeiras, nas seguintes proporções:
I – em um quarto da pena, se reincidentes, quando se tratar de mulheres condenadas à sanção privativa de liberdade não superior a oito anos de reclusão por crime cometido sem violência ou grave ameaça, desde que cumprido um terço da pena até 14 de maio de 2017;
II – em dois terços, se não reincidentes, quando se tratar de mulheres condenadas por crime cometido sem violência ou grave ameaça e que tenham filho menor de dezesseis anos de idade ou de qualquer idade se considerado pessoa com deficiência ou portador de doença crônica grave e que necessite de seus cuidados, desde que cumprido um quinto da pena até 14 de maio de 2017; e
III – à metade, se reincidentes, quando se tratar de mulheres condenadas por crime cometido sem violência ou grave ameaça e que tenha filho menor de dezesseis anos de idade ou de qualquer idade se considerado pessoa com deficiência ou portador de doença crônica grave e que necessite de seus cuidados, desde que cumprido um quinto da pena até 14 de maio de 2017.
Observa-se que as hipóteses de comutação também limitam a comutação aos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, porém, não impedem a sua concessão em caso de existirem condenações por crimes violentos.
A nosso ver, nesse caso, para fins de averiguação do lapso temporal necessário e quantum de pena limitador, as penas deverão ser somadas. Contudo, somente a pena dos crimes praticados sem violência ou grave ameaça é que serão comutadas. Por exemplo:
Ana foi condenada a dois anos de reclusão por furto qualificado, e a cinco anos e quatro meses de reclusão por roubo majorado, totalizando uma pena de sete anos e quatro meses. Ana, que é reincidente, se cumprir, até 14/05/2017, um terço da pena total (07 anos e 04 meses *⅓ = 02 anos, 05 meses e 10 dias) , terá direito a comutação de um quarto da pena referente ao crime praticado sem violência ou grave ameaça, ou seja, um quarto de 02 anos, o que representaria seis meses de pena comutada. Portanto, a pena final de Ana, após a comutação será de seis anos e dez meses.
Cumpre-nos atentar para uma falha grave do Decreto, ao prever a hipótese de comutação no caso de apenada reincidente, e não prever, nos casos de apenada primária. Entendemos que, em razão de uma vinculação ao texto do Decreto, o que impossibilita incluir hipóteses não previstas, salvo se decorrentes da constituição e da lei, sob ofensa ao princípio da separação dos poderes, não poder-se-á conceder a comutação às apenadas não reincidentes, salvo se tiverem filho menor de dezesseis anos de idade ou de qualquer idade se considerado pessoa com deficiência ou portador de doença crônica grave e que necessite de seus cuidados.
Assim como, mesmo que ausente a previsão no Decreto, em virtude de comando constitucional, não se poderá conceder indulto e comutação aos chamados crimes impeditivos, que veremos adiante.
4 CRIMES INSUSCETÍVEIS DE INDULTO E COMUTAÇÃO
Como visto, o poder de indultar é ato político do Presidente da República, dotado de alta discricionariedade. Assim, o Presidente da República poderá conceder indulto a quaisquer hipóteses que julgar necessária e oportuna, podendo inclusive não optar pela concessão do indulto. Em Decretos anteriores, por exemplo, havia previsão de impossibilidade de concessão de indulto aos crimes dolosos contra a vida ou ao roubo. No Decreto nº 8.940 de 22 de dezembro de 2016, o Presidente optou pela não concessão de indulto aos crimes ligados à prática de pedofilia, em virtude da política pública de combate à exploração sexual infantil.
No Decreto de 12 de abril de 2017, o Presidente, salvo nos casos de gravidez de risco, vedou a concessão do indulto, de forma indireta, aos crimes praticados com violência ou grave ameaça.
Não obstante, essa discricionariedade do indulto, a Constituição Federal estabelece certos limites a este poder de perdoar. Afinal, nos dizeres de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[29] (2010, p. 415), “Atos discricionários são aqueles que a administração pode praticar com certa liberdade de escolha, nos termos e limites da lei, quanto ao seu conteúdo, seu modo de realização, sua oportunidade e sua conveniências administrativas”.
SAN MARTIN[30] (2006, p.334-335), em sua tese de doutorado intitulada El control jurisdiccional del indulto particular, afirma que “La idea de acto administrativo conlleva inexorablemente la posibilidad de su nulidad, y ésta a su vez, la de la posibilidad de su denuncia y control.[…] una vez aceptada la necesidad de que el ejercicio de la potestad de graciar por el Gobierno, ha de adecuarse, en todo caso, a la Constitución y a las Leyes, que no puede sobrepasar, en modo alguno, lo discrecional para desvirtuarse en arbitrario, que no es el ejercicio de una potestad libérrima y descontrolada, que sus actos son susceptibles de ser nulos, y que, consecuentemente han de ser controlados […][31]”.
O art. 5º, XLIII da Constituição Federal estipula que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.
Parte da doutrina aduz que a Constituição Federal não impôs limitações ao indulto, uma vez que apenas se refere à graça e à anistia. Rodrigo Roig[32] (2017, p.533) alega que “[…] a Constituição não vedou o indulto coletivo, mas apenas a graça, que é o indulto individual. Como mencionado, a decisão quanto à concessão ou não de indulto é de competência privativa do Presidente da República (art. 84, XII, da CF), competência esta que somente pode ser limitada pela própria Constituição. Como não há vedação constitucional expressa, é possível o indulto coletivo.
Contudo, como vimos acima, o termo graça é gênero, dos quais são espécies o indulto e a anistia, já tendo o STF julgado nesse sentido, incluindo as limitações do art. 5º às hipóteses de indulto, e estendendo à comutação, como já tratado.
Outra questão talvez resida no alcance da limitação prevista no art. 5º, LXIII da Constituição Federal. Frise-se que a Constituição estabelece o impedimento de conceder indulto aos crimes hediondos e à prática de tortura, terrorismo e tráfico de drogas. Assim, de pronto, podemos afirmar que, apesar do tratamento conferido à tortura, ao terrorismo e ao tráfico ilícito de drogas, os mesmos não são crimes hediondos, mas equiparados a tais.
Assim, a Lei nº 8.072/90, trouxe no seu art. 1º, um rol taxativo dos crimes considerados hediondos, que, uma vez que no Brasil, adota-se o critério formal quanto à hediondez, deve ser interpretado restritivamente, somente podendo ser considerados hediondos os crimes ali previstos.
O art. 2º do aludido diploma legal estabelece que “os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I – anistia, graça e indulto”.
A tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e o terrorismo, são crimes que foram delimitados em suas leis específicas, existindo diversos graus da prática destes delitos.
Destarte, parte da doutrina questiona se a limitação constitucional e legal refere-se a qualquer prática destes delitos, ou somente àquelas mais graves, que justifiquem tal limitação a um direito constitucional.
Esta corrente tem ganhado força após o julgamento do HC 118.533/MS pelo STF, no qual se afastou a hediondez do chamado “tráfico privilegiado”, quando aplicada a causa de diminuição de pena do §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.
Contudo, apesar de afastada a hediondez, não decidiu o STF acerca da possibilidade de concessão de indulto a essa hipótese.
O Ministro Luis Roberto Barroso[33], durante o julgamento do HC 118.533/MS, realizou um aparte:
“[…] só gostaria de fazer um comentário. Quer dizer, a Constituição considera inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. A consequência jurídica da posição da Relatora, que eu acompanhei, não afeta nem a inafiançabilidade, nem a concessão de graça ou anistia. Ao dizer que não é hediondo, a consequência prática é acelerar a progressão de regime e permitir o livramento condicional. E essa outra matéria é objeto de um outro habeas, até porque já tivemos, na Segunda Turma, este é julgamento específico, em que eu me conduzi desse jeito e fui voto vencido. Quer dizer, ainda há uma polêmica por ser decidida pelo Supremo”.
Não obstante, tem decidido o STJ, que uma vez desconsiderada a hediondez do tráfico privilegiado pelo STF, não mais persistiria a insuscetibilidade prevista no art. 5º, XLIII da Constituição Federal.
"EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. CONCESSÃO DE INDULTO. DECRETO N. 7.873/2012. TRÁFICO DE DROGAS PRIVILEGIADO. NATUREZA DE CRIME COMUM. AFASTAMENTO DA HEDIONDEZ. RECENTE ENTENDIMENTO DO STF. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO.
1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado.
2. Acompanhando o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n. 118.533/MS, a 5ª e a 6ª Turmas deste Superior Tribunal de Justiça, revendo posição anterior, passou a adotar orientação no sentido de que "o crime de tráfico privilegiado de drogas não tem natureza hedionda".
3. Dessarte, com fulcro nesse novo paradigma, não mais subsiste o óbice à concessão do indulto ou da comutação aos condenados por tráfico privilegiado.
4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para restabelecer a decisão do Juízo das Execuções Penais que concedeu indulto à paciente, com supedâneo no Decreto n. 7.873/2012." (HC 371.186/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 21/02/2017, DJe 03/03/2017)
Isso nos faz pensar sobre o verdadeiro alcance da limitação constitucional. Será que a Constituinte tinha apenas por intenção proibir o perdão aos grandes traficantes, torturadores ou terroristas, ou buscou combater, inclusive em virtude de acordos internacionais firmados, toda e qualquer prática destas nefastas condutas.
Como apresentamos, a Constituição em momento algum classificou tais condutas (tortura, tráfico de drogas e terrorismo) como condutas hediondas, na medida em que usou o conectivo “e” indicando uma adição ao grupo de crimes chamados de hediondos. Trata-se mandado de criminalização constitucional, no qual, não se poderia indultar condutas que o Brasil se comprometeu a combater de forma global.
Para se permitir a concessão de indulto, deveriam indicar que tais condutas não representam tráfico de drogas, ou tortura, ou terrorismo. A desconsideração da hediondez (termo tecnicamente incorreto) não desconfigura o tráfico privilegiado como tráfico de drogas.
O julgamento político visado pelo STF com HC 118.533/MS foi o de acelerar os benefícios de progressão e livramento condicional. Conforme aparte do Ministro Barroso, a análise do indulto, assim como a inafiançabilidade, não são afetadas pelo julgamento daquele habeas corpus.
Em momento anterior, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2795, interposta contra o Decreto Presidencial de Indulto nº 4.495 de 04 de dezembro de 2002, apontou que “revela-se inconstitucional a possibilidade de que o indulto seja concedido aos condenados por crimes hediondos, de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, independentemente do lapso temporal da condenação”.
A Constituição estabeleceu um comando ao legislador, para que criminalizasse tais condutas, que foram descritas em seus regulamentos específicos. Assim, a nosso ver, dado o poder conferido pelo Constituinte, toda conduta prevista nas respectivas leis como tráfico de drogas, privilegiado ou não, tortura ou terrorismo são insuscetíveis de graça ou anistia.
A insuscetibilidade não está vinculada à hediondez de um crime. Prova disso, é que o art. 44 da Lei 11.343/06, prevê que os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Ora, é cediço que os crimes previstos nos arts. 34 a 37 não são hediondos, e mesmo assim, a Lei vedou a concessão de indulto a esses crimes.
Muitos doutrinadores criticam a previsão legal do art. 44, julgando-a inconstitucional, uma vez que somente a Constituição poderia limitar o poder de indultar. Cumpre-nos salientar que o indulto é um ato discricionário do Presidente, e, portanto, está sujeito aos limites da Constituição e das Leis, em respeito ao Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça[34] e o Supremo Tribunal Federal[35] reconheceram que a vedação legal contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006 a crime não equiparado a hediondo (artigo 35 da Lei 11.343/06 – Associação para o Tráfico de Drogas), limita e impede a concessão do indulto.
Portanto, entendemos que são impeditivos de concessão de indulto e comutação, todo e qualquer crime classificado pela lei como hediondo, como tráfico ilícito de drogas, como tortura e como terrorismo, além daqueles que a lei assim determinar.
Além desses, poderá o Decreto, para aquela oportunidade, elencar outros que entender como não merecedores da clemência soberana.
Ocorre que o Decreto de 12 de abril de 2017, diversamente dos Decretos anteriores, não elencou de forma direta esses crimes denominados impeditivos. Desta forma, todo e qualquer crime pode ser indultado, se preenchidas as hipóteses do Decreto, com exceção dos que por previsão constitucional e legal sejam insuscetíveis de indulto.
Outra omissão desse Decreto foi quanto ao limite temporal de cumprimento da pena do crime impeditivo para fins de concessão ao crime não impeditivo, quando concorrerem. O Decreto Presidencial nº 8.615/2015, a exemplo, exigia o cumprimento de dois terços da pena do crime impeditivo para fins de concessão. Já o Decreto nº 8.940/2016, exigia o cumprimento integral. Como deverá ser calculado, no Decreto de 12 de abril de 2017, quando concorrerem o crime impeditivo com outro não impeditivo?
5 DO REQUISITO TEMPORAL PARA A CONCESSÃO DO INDULTO QUANDO CUMULADOS CRIMES IMPEDITIVOS COM NÃO IMPEDITIVOS
Conforme comentado no item 3, as penas devem somar-se para efeitos de concessão do indulto e da comutação. Nos últimos decretos, havia regra expressa quanto a esta determinação, bem como continha alusão ao procedimento a ser adotado quando da concorrência de crimes impeditivos com não impeditivos.
O Decreto nº 8.615/2015, repetido em decretos anteriores, assim tratou:
“art. 8º […]
Parágrafo único. Na hipótese de haver concurso com crime descrito no art. 9º, não será declarado o indulto ou a comutação da pena correspondente ao crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir dois terços da pena correspondente ao crime impeditivo dos benefícios”.
O Decreto nº 8.940/2016, mais rígido, assim determinou:
“Art. 11. […]
Parágrafo único. Na hipótese de haver concurso com infração descrita no art. 2º, não será declarado o indulto correspondente ao crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir integralmente a pena correspondente ao crime impeditivo dos benefícios”.
Já o Decreto Presidencial de 12 de abril de 2017 não trouxe qualquer regra acerca do cálculo do indulto quando da concorrência de crimes impeditivos com não impeditivos. Assim, resta dúvida se há impedimento na concessão de indulto ou comutação nessas hipóteses, e, não havendo, qual o quantum de pena do crime impeditivo a se cumprir para concessão ao não impeditivo.
Quanto à primeira questão, entendemos que não pode haver uma extensão do impedimento àqueles crimes que a lei e a constituição não definiram como impeditivos.
Conforme ensinamento de Rodrigo Roig[36] (2017, p.554), “[…] as penas correspondentes a infrações diversas devem ser somadas para efeito do indulto e da comutação, e soma de penas não se confunde com unificação de penas”.
Destarte, faz-se possível, uma vez que não unificadas, separar as penas dos crimes impeditivos dos não impeditivos.
A existência de crimes impeditivos não significa que o condenado por outros crimes não possa obter tais benefícios.
Por esse motivo, formula-se uma hipótese de que, por não estar abarcado pelo Decreto, o crime impeditivo não poderia ser utilizado na soma das penas para fins de concessão do benefício.
Segundo Rodrigo Roig[37] (2017, p.554), ao analisar a regra dos dois terços do Decreto nº 8.615/2015, “essa foi uma regra construída em analogia ao que se verifica no livramento condicional, em que havendo concurso entre um crime hediondo ou equiparado e outro não hediondo ou equiparado, o condenado poderá fruir do direito após cumprir dois terços do primeiro, mais um terço (se primário) ou metade (se reincidente) do segundo”.
Se Flávia, condenada a uma pena de seis anos por tráfico de drogas e a uma pena de três anos por furto, teria direito ao indulto desde que cumprida uma fração da pena do tráfico mais a fração requerida na hipótese do Decreto para fins de concessão do indulto.
Se o crime impeditivo não será agraciado posteriormente com o indulto, não poderia ele fazer parte da soma para cálculo dos benefícios.
Outra corrente alega que o comando de somar todas as penas de infrações diversas, não determinou que se somasse apenas as penas passíveis de concessão do indulto, devendo-se somar todas, inclusive as dos crimes impeditivos para aplicação da fração.
Se entendermos que se aplica por analogia o cálculo do livramento condicional, esta regra seria por demasiada prejudicial ao réu, devendo ser rechaçada.
Nos dizeres de Rodrigo Roig[38] (2017, p.555) “na qualidade de contramedida da (opção política da) pena, o indulto é opção política vetorialmente apontada para a redução de danos penais. E, na dúvida interpretativa, devem imperar os princípios pro homine e favor rei”.
Ocorre que tanto na primeira quanto na segunda hipótese, a ausência de uma previsão do Decreto Presidencial quanto à fração necessária ao cumprimento da pena do crime impeditivo, deixa uma lacuna que não pode ser preenchida, sob o risco de se fazer exigências que o Decreto não o fez, violando o princípio da separação dos poderes.
Uma terceira corrente, defendida pelo próprio Rodrigo Roig e pelo STJ[39], indica que a fração existente nos Decretos nº 8615/2015 e 8.940/2016 “[…] é de ordem temporal, orientado para aplicar o indulto à pena correspondente ao crime comum, quando em concurso com o crime impeditivo (nesse caso específico, de natureza hedionda). A disposição do art. 76 do CP referente à ordem de cumprimento das penas não se incompatibiliza com a regramento do Decreto, principalmente porque a finalidade do instituto é beneficiar o apenado, servindo, ainda, como instrumento de Política Criminal”.
Portanto, a apenada deveria cumprir a fração exigida sobre o somatório das penas, restando à fração prevista um limitador temporal, no caso do Decreto de 2015, dois terços, e no caso do Decreto de 2016, a integralidade da pena.
Sob essa ótica, a não previsão de qualquer fração pelo Decreto de 12 de abril de 2017 deve ser interpretada de forma favorável à apenada, não havendo, portanto, qualquer requisito temporal de cumprimento mínimo do crime impeditivo, devendo apenas realizar o cumprimento da fração indicada na hipótese da pena total.
Portanto, se Clara foi condenada a seis anos por tráfico de drogas e a dois anos por furto qualificado, e possuir filho com menos de doze anos que esteja sob seus cuidados, terá direito ao indulto do crime não impeditivo, desde que não possua falta grave, com fulcro no art. 1º, III, alínea “a” do Decreto de 12 de abril de 2017 se cumprida um sexto do somatório das penas, ou seja, um sexto de oito anos, correspondentes a um ano e quatro meses. Ressalta-se que perdurará a condenação referente ao crime impeditivo (seis anos), pois não alcançada pelo Decreto.
Acreditamos que o Decreto não previu tal hipótese, não por atecnia, mas, considerando que a maioria dos crimes hediondos são praticados mediante violência ou grave ameaça, a condenação por outro crime violento, por si só, nos termos do art. 1º, I, inviabilizaria a concessão do indulto.
CONCLUSÃO
O indulto é uma causa extintiva da punibilidade, prevista no art. 107, II do Código Penal, concedido privativamente pelo Presidente da República, nos termos do art. 84, XII da Constituição Federal.
Diferencia-se da anistia na medida em que busca perdoar a pessoa do condenado quanto ao crime praticado, e não o fato em si mesmo. Por esse motivo, somente pode ser concedido se existente uma condenação.
O indulto pode ser individual, quando concedido a uma única pessoa, mediante procedimento especial, ou coletivo, quando, de forma a dara celeridade, o Presidente publica um Decreto contendo as hipóteses e os requisitos para a concessão, cabendo ao Juiz da Execução Penal a subsunção do caso concreto ao instrumento concessivo e a declaração da extinção da punibilidade.
O indulto, em sua essência, é instrumento de suma importância na medida em que representa verdadeiro instrumento de freios e contrapesos, no qual o Poder Executivo balanceia e controla os excessos praticados pelos demais poderes. No Brasil, o instituto do indulto coletivo é visto como forte instrumento de política criminal, voltado à redução da superlotação carcerária, que por si só, representa a violação de direitos humanos.
Portanto, é ato político, dotado de alta discricionariedade. Contudo, isto não significa que o mesmo não está adstrito à Constituição Federal e às normas do ordenamento jurídico, devendo ser exercido de acordo com a conveniência e oportunidade nos limites da lei.
Motivado pela redução do superencarceramento feminino, o Presidente Michel Temer publicou o Decreto Presidencial de 12 de abril de 2017 (o decreto não possui número) concedendo indulto especial e comutação às mulheres presas, por ocasião do dia das mães.
Por esse motivo, e em razão do termo “mulheres presas” constante do art. 1º, entendemos que o indulto especial somente abrangerá às mulheres que estiverem presas na data base estipulada para o preenchimento dos requisitos, qual seja, 14 de maio de 2017.
Considerando que o regime aberto, cumprido nas casas de albergado ou em prisão domiciliar, o livramento condicional, as penas restritivas de direito e a suspensão condicional da pena não representam violação aos direitos humanos (uma vez que as apenadas não se encontram encarceradas em cadeias públicas superlotadas, motivo pelo qual o decreto foi editado), entendemos que não se poderá estender a concessão de indulto a essas apenadas, não havendo violação da isonomia, uma vez que o indulto, por si só, é instrumento de realização da isonomia material, de forma a aliviar o sofrimento imposto em sanções mais gravosas.
Por expressa determinação do Decreto, não terão direito ao indulto as apenadas que estejam sendo processadas ou tenham sido condenadas por outro crime praticado mediante violência ou grave ameaça, ou que tenham sido punidas com falta grave. Entendemos que o impedimento de concessão a apenadas que estejam respondendo a processo criminal viola o princípio da presunção da inocência, devendo ser declarado inconstitucional e aplicado a causa extintiva independente da existência de processos. Quanto à falta grave, entendemos que somente poderão obstar faltas graves cometidas no decorrer daquela execução, sob pena de perpetuar-se sanção, violando a vedação a penas perpétuas.
Estes requisitos, bem como a necessidade de encontrar-se presa, não representam óbices à concessão da comutação, por razões topológicas.
Dentre as hipóteses, destacam-se a possibilidade de indulto às mães e avós, com filhos ou netos menores de 12 anos, em uma defesa da chamada primeira infância, ou portadores de deficiência, que necessitem de seus cuidados. Frisamos que aos filhos menores presume-se a necessidade de cuidados maternos, dispensando-se a comprovação dos mesmos.
Com exceção da hipótese prevista na alínea “e” do inciso III do art. 1º, somente serão indultados os crimes praticados sem violência ou grave ameaça. Quanto a essa hipótese, a análise do estado gravídico, bem como do risco, deverá ser avaliado quando da data concessiva, 14/05/2017, não fazendo jus a apenada que ao tempo do decreto não se encontrava grávida.
Outro destaque, encontra-se na alínea “f” do incido III do art. 1º, que prevê a hipótese de concessão ao denominado tráfico de drogas privilegiado. Após decisão do STF no HC 118.533/MS, que desconsiderou a hediondez do tráfico de drogas quando reconhecida a causa de diminuição de pena do §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06,
Salientamos que a sentença tem de ter reconhecido expressamente a minorante do §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, não podendo o juiz da execução aplicar a minorante e conceder indulto mesmo que preenchidos os requisitos de primariedade, bons antecedentes, não dedicação às atividades criminosas e não integração de organização criminosa.
Apesar de silente, existindo mais de uma condenação em desfavor da apenada, entendemos que as penas devem somar-se para concessão do indulto ou comutação de penas, aplicando-se a fração sobre o total de penas.
A concorrência com crimes praticados com violência ou grave ameaça é impedimento para a concessão do indulto nos termos do art. 1º, I. Contudo, será possível a concessão de comutação. Deverão ser somadas as penas para aferição dos requisitos objetivos, porém,, somente serão comutadas as penas dos crimes praticados sem violência ou grave ameaça, na medida em que o Decreto assim optou.
Ademais, alguns crimes não poderão ser indultados, em virtude de vedação expressa constitucional ou legal. São os chamados crimes insuscetíveis de graça ou anistia. São eles nos termos do art. 5º, XLIII da Constituição Federal: os crimes hediondos, a prática de tortura, de tráfico ilícito de drogas e de terrorismo. A Lei nº 11.343/2006, previu em seu art. 44 que também são insuscetíveis os crimes previstos no art. 34 a 37 da aludida lei.
Apesar de referir-se apenas ao termo graça, entendeu o STF que a proibição de concessão estende-se ao indulto, pois, conforme exposição de motivos da Lei de Execução Penal, o termo graça é gênero do qual é espécie o indulto.
A nosso ver, toda conduta prevista nas respectivas leis como tráfico de drogas, privilegiado ou não, tortura ou terrorismo são insuscetíveis de graça ou anistia, uma vez que a insuscetibilidade não está vinculada à hediondez de um crime. Por essa razão, entendemos que a alínea “f” do art. 1º, III é inconstitucional. Não obstante, salientamos que o STJ tem aplicado o indulto às hipóteses de tráfico de drogas privilegiado.
Portanto, mesmo que não tratado no Decreto, na medida em que o ato político deve ser praticado em consonância com a Constituição Federal e as leis, entendemos que não se poderá conceder indulto e comutação aos crimes impeditivos, quais sejam, os hediondos, a tortura, o tráfico de drogas, o terrorismo e aqueles previstos nos arts. 34 a 37 da Lei nº 11.343/06.
Por fim, verificamos que o Decreto também foi omisso quanto ao tempo necessário de cumprimento de pena do crime impeditivo, no caso de concorrência deste com um não impeditivo. A existência de um crime impeditivo não pode retirar a possibilidade de concessão de indulto àqueles que a lei e a Constituição não vedaram. Em Decretos anteriores, se exigia o cumprimento de parte ou integralmente da pena referente ao crime impeditivo para fins de concessão da benesse ao crime não impeditivo.
Como o Decreto mostrou-se silente, entendemos que as penas devem somar-se para fins de aferição do cumprimento do requisito objetivo, sendo aplicada a fração prevista nas hipóteses dos arts. 1º e 2º. Conforme entendimento do STJ, a fração existente nos Decretos anteriores tratavam-se de requisito temporal que perduraria o adimplemento do benefício.
Uma vez que o Decreto não estabeleceu qualquer requisito de ordem temporal, aplicar-se-á apenas as regras e condições lá expressamente prevista sob risco de criar-se novas exigências ao Decreto, violando-se o Princípio máximo da Separação dos Poderes.
Informações Sobre o Autor
Carlos Henrique Meneghel de Almeida
Servidor Público efetivo do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo no cargo de Analista Judiciário – Execução Penal