Infração disciplinar do servidor público: Demissão – Pena máxima e não única


No estudo das infrações disciplinares dos servidores públicos regidos pela Lei n° 8.112/1990 firmou-se o entendimento de que as infrações previstas no art. 132 do referido diploma legal ensejam a demissão como pena aplicável.


Todavia, no silêncio da disposição legal, a prática administrativa desenvolveu a compreensão de que somente a pena de demissão é aplicável a tais espécies, sendo, pois, entendida como pena única.


O presente estudo visa desconstituir essa premissa, deslocando a idéia de pena única, para passar a considerá-la pena máxima. O fundamento desenvolvido procurará demonstrar que raciocínio diverso implicaria na negativa de vigência de dispositivos da própria Lei n° 8.112/1990.


Para facilitar a análise, vejamos os artigos 127, 128 e 132 da legislação em comento:


Art. 127. São penalidades disciplinares:


I – advertência;


II – suspensão;


III – demissão;



Art. 128. Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.


Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: (…)


A adoção do entendimento de que a demissão para os casos previstos no art. 132 é a pena única possível, é a utilização de método de interpretação literal e descontextualizado, ensejando por um lado, aparente legalidade de punição pela pena possível, e por outro, proporcionando grande risco de manifesta ilegalidade, pela infringência à necessidade preconizada no art. 128 da Lei nº 8.112/1990, que prevê que na aplicação das penalidades (qualquer delas) serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.


Aliás, o rigor do entendimento de penalidade única, por si, já contraria o interesse público, a moralidade administrativa, os princípios da finalidade, da isonomia e da própria legalidade, se a Lei nº 8.112/1990 enseja a necessidade de que na aplicação da sanção disciplinar o julgador deve observar o contido no artigo 128, então, deve ser adotada a interpretação sistemática e teleológica para tal análise.


Numa interpretação sistemática, teríamos a seguinte análise, o artigo 127 dispõe todas as espécies de penalidades disciplinares, o artigo seguinte (128) estabelece que será necessário na aplicação das penalidades, claramente referindo-se a qualquer das penalidades elencadas no dispositivo anterior, inclusive a de pena de demissão (art. 127, III), considerar aspectos subjetivos como a natureza e a gravidade, os danos suportados, as circunstâncias que agravam ou atenuam e os antecedentes.


A simples compreensão de penalidade única impossibilita a análise subjetiva e individualizadora da penalidade, o que tornaria o ato de punição ilegal por não observar o art. 128 da Lei nº 8.112/1990 e inconstitucional (art. 5º, XLVI, da CF) por não atentar para a necessidade de individualização da pena nem observar o princípio da isonomia (art. 5º, caput).


Diga-se de passagem que o processo administrativo-disciplinar tem natureza penaliforme, devendo, portanto, igualmente, observar os princípios e regras que tutelam a aplicação de penas.


Por outro lado, numa análise teleológica, o preceito contido no artigo 128, sem ressalvas de aplicação para qualquer penalidade, enseja o sentido de justiça (interesse público) como finalidade da sanção disciplinar, o que exige um enfoque subjetivo de individualização da penalidade, sob pena de lançar em vala comum todo e qualquer tipo de fato, ignorando o senso de reprovabilidade social do mesmo, o nível de afetação e os caracteres precedentes de conduta e personalidade, bem como peculiaridades e caracteres do próprio fato. (Veja exemplos ilustrativos no Quadro Comparativo de Hipóteses).


A aplicação de sanção certamente é a reação do Estado contra a ação infracional, por isso, deve ser proporcional e suficiente para cessar a ação e produzir a necessária reflexão, a fim de reeducar. Não se pode conceber que a reação do Estado seja desmedida e infinitamente superior e mais grave que a própria ação infracional, denotando grande desproporcionalidade.


Mesmo nos idos tempos históricos da lei de talião, o mal era repelido com mal proporcional. Ainda em tempos longínquos, onde se via a pena como de caráter tão-só retributivo e não se enxergava o caráter educativo e ressocializador, era observada a indispensável necessidade de resguardar a proporção entre a ação infracional e a reação, resposta do Estado. Era olho por olho, dente por dente.


Assim, se o fato representa uma conduta de tão pouca importância, tão pequena, de nenhuma conseqüência prática, não merece a pena mais severa de todo o ordenamento disciplinar. A pena capital do servidor público.


Não se pode ignorar a vida pregressa do servidor, a excelência no seu desempenho profissional, a probidade, responsabilidade na sua conduta por todos os anos em que laborou, a inexistência de qualquer desabono em sua folha funcional, motivo por que é imoral a conduta da Administração de aplicar em demasiada desproporcionalidade a pena mais grave de todas aquelas previstas no ordenamento administrativo-disciplinar, que é a pena de demissão a bem do serviço público, sob a simplória alegação de ser pena única.


O engessamento da penalidade, por si, é fato que inviabiliza o alcance da teleologia da sanção disciplinar, afastando sentido de justiça e de interesse público, tratando de igual modo, fatos completamente distintos em gravidade, repercussão e prejuízo, bem como, dando o mesmo tratamento aos servidores com antecedentes funcionais completamente distintos, com registros de nobres e notáveis préstimos ao serviço público ou registros de acontecimentos comprometedores e desabonadores.


Ao certo, não seria sequer razoável compreender o art. 132 como preceito que avilta o artigo 128, seja porque não poderiam conviver, num mesmo diploma legal dispositivos que se invalidam mutuamente, impondo-se, assim, a necessidade de harmonizá-los sistematicamente. Ou, ainda, seja porque a interpretação de penalidade única e não máxima ensejaria fonte de violência manifesta ao princípio da isonomia, assim como da individualização da pena, pelo tratamento não-individualizador e igual para situações e pessoas em condições diversas.


Seguindo a mesma observação atenta, veremos, também, que o artigo 128 impõe que serão consideradas, sem deixar espaço para a mera possibilidade, mas lançando esta análise como requisito obrigatório para a aplicação da sanção disciplinar, tornando, pois, obrigatória a consideração subjetiva preconizada naquele dispositivo, sem excepcionar qualquer situação.


Não se está dizendo que não seja possível a penalidade de demissão, mas que esta não é medida punitiva única para os fatos objetivamente previstos, eis que a demissão deverá ser aplicada, quando consideradas as diretrizes constantes do artigo 128, resultar a compreensão de que a penalidade de demissão é justa e cabível para determinado caso, mesmo que analisando o aspecto fático, como o aspecto pessoal do servidor, ainda assim, recomenda-se a penalidade de demissão como justa para hipóteses que se aproximem em relevância e gravidade àquela exemplificada no quadro comparativo, como hipótese 2.


É de se concluir que a interpretação do artigo 132 como de penalidade única impede a observância da lei, pois nega vigência ao artigo 128 do mesmo diploma legal, além de ofender o artigo 5º, caput e XLVI, ambos da Constituição Federal, mostrando-se interpretação não harmônica e descontextualizada, além de afastar-se dos fins sociais da pena disciplinar, aviltar toda a história de proporcionalidade da sanção, impedir a individualização da pena, e, por último, servir como fonte de desrespeito ao princípio da isonomia.


A interpretação de demissão como penalidade máxima e não única, a um só tempo, contempla uma interpretação sistemática e teleológica, harmonizando os artigos 128 e 132, ambos do mesmo regime jurídico e expressos no mesmo diploma legal, assim como preserva o sentido de justiça e o interesse público, respeitando o artigo 5º, caput e XLVI, da CF.


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Quadro comparativo de hipóteses


Apenas para exemplificar o absurdo da compreensão de penalidade única, vamos comparar duas situações de fato hipotéticas:


HIPÓTESE 1 (FATO DE MENOR GRAVIDADE)


O servidor público, ao realizar prestação de contas de R$ 1.000,00 (um mil reais) retirados para o pagamento de pequenas despesas realizadas em festa comemorativa do órgão, fez incluir nas notas o equivalente a 4 centos de salgadinhos e 18 refrigerantes de 2 litros, que levou para sua residência para comemorar o aniversário de 1 ano de sua filha.


O servidor público em comento ocupa o cargo há 20 anos, contabilizando em sua ficha funcional diversos elogios, sendo admirado por todos os colegas de trabalho, não tendo registro de qualquer sanção disciplinar ou mácula.


Ao ser descoberta a sua conduta, disponibilizou-se de imediato ao ressarcimento da importância que equivale a aproximadamente R$ 300,00 (trezentos reais).


HIPÓTESE 2 (FATO DE MAIOR GRAVIDADE)


O servidor público, ao presidir licitação milionária, favoreceu o licitante, tanto na elaboração do edital, quanto no julgamento das propostas, engendrando com outros concorrentes preço elevado – superfaturamento –, sob a recompensa financeira da empreiteira, implicando para a União Federal o prejuízo de aproximadamente U$ 4,000,000.00 (quatro milhões de dólares).


O servidor jamais se disponibilizou a ressarcir o prejuízo causado. Sua folha funcional registra ter ele respondido a inúmeros processos disciplinares, onde já foi punido 5 vezes por penas que variam de advertência até suspensão de 90 dias.


Diante de tais hipóteses, pergunta-se:


A hipótese 1 e a hipótese 2 têm a mesma gravidade?


A hipótese 2 é muito mais grave que a hipótese 1, tendo, inclusive, representado imenso prejuízo para os cofres públicos.


A hipótese 1 e a hipótese 2 merecem a mesma sanção disciplinar?


Diante das enormes diferenças dos fatos aludidos, o tratamento deve ser diferenciado punindo-se com maior rigor a hipótese 2 e com menor rigor a hipótese 1.


Ao aplicar a pena de demissão a bem do serviço público para a hipótese 1, assim como, para a hipótese 2, terá a Administração Pública observado o art. 128 da Lei nº 8.112/1990, além dos princípios da isonomia, individualização da pena, moralidade administrativa e interesse público?


Com toda certeza, se a Administração Pública dispensasse o mesmo tratamento para ambas as hipóteses estaria vilipendiando a regra da isonomia, face à clara distinção dos fatos, de suas conseqüências e gravidades.


Estaria também negando vigência ao princípio da individualização da pena e do artigo 128 da Lei nº 8.112/1990, além da desproporcionalidade da sanção, porque estaria reprimindo a hipótese 1 desproporcionalmente, aplicando a pena mais grave do ordenamento a fato que não merece reprovação tão severa.


Por outro lado, estaria ignorando que o fato não gerou prejuízo, nem tem relevância significativa, assim como, o servidor da hipótese 1 é servidor de reputação ilibada em sua ficha funcional, que granjeou a admiração de colegas e superiores e por isso arrecadou em sua vida de labor, inúmeros elogios, enquanto que o servidor da hipótese 2 sempre se mostrou indisciplinado e causou prejuízo expressivo à Administração.


Além da vulneração à individualização, isonomia, ao art. 128 da Lei nº 8.112/1990, e à necessidade de proporcionalidade da sanção, mostrou-se a penalidade aplicada como injusta e, portanto, imoral, destituída do interesse público.



Informações Sobre o Autor

Asdrubal Junior

Advogado, sócio da Asdrubal Júnior Advocacia e Consultoria S/C, pós-graduado em Direito Público pelo ICAT/UniDF, Mestre em Direito Privado pela UFPE, Professor Universitário, Presidente do IINAJUR, organizador do Novo Código Civil da Editora Debates, Coordenador do Curso de Direito da UniDF, Diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas da UniDF, Consultor das Nações Unidas – PNUD, Editor da Revista Justilex, integrante da BRALAW – Aliança Brasil de Advogados.


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