Resumo: O presente trabalho pretende realizar uma análise de constitucionalidade sobre o decreto federal n° 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, no qual é decretada a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, tendo como objetivo reestabelecer a ordem pública. Este trabalho tem como objetivo explorar o plano de fundo da primeira intervenção federal decretada desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Tal medida segue o dever constitucional ou podemos acreditar que traz interesses políticos escusos? Outra proposta é a análise do controle político do presente ato, que delibera sobre a segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, e tem seu prazo limite estabelecido até o dia 31 de dezembro de 2018. [1]
Palavras-chave: Intervenção; federal; Decreto; Segurança; Pública; Rio de Janeiro;
Abstract: The present work intends to carry out an analysis of constitutionality on the Federal Decree No. 9.288, of February 16, 2018, which decrees federal intervention in the State of Rio de Janeiro, aiming to establish public order.
This work has as its objective to explore the background of the first federal intervention decreed since the promulgation of the Federal Constitution of 1988. Does such a measure follows the constitutional duty? Can we believe that there are behind-the-scenes political interests?
Another proposal is the analysis of the political control of this act, which deliberates on the scope of public security on the state of Rio de Janeiro, and has its deadline established until December 31, 2018.
Keywords: Federal; intervention; decree; Public; security; Rio de Janeiro
Sumário: Introdução. 1. O que é Intervenção Federal? 2. Análise de pontos do Decreto 9.288 de 2018. 3. A declaração do comandante do Exército Brasileiro. Conclusão.
Introdução
O objeto deste trabalho é a polêmica intervenção decretada recentemente no Estado do Rio de Janeiro, que foi apresentada no atual cenário político do país como medida necessária para reestabelecer a ordem pública e resolver a questão da violência e demais problemas acarretados pelo tráfico de drogas – principalmente nas favelas da Cidade Maravilhosa, locais onde ocorrem as maiores movimentações – além da falta de estrutura do estado do Rio de Janeiro para resolução dos conflitos entre a polícia e bandidos.
O decreto promulgado na sexta-feira, dia 16 de fevereiro de 2018, envolve polêmicas por se tratar de ações militares. Isso significa que todas as medidas da atual gestão de segurança pública[2] serão pensadas pelo governo federal e executadas pelas forças armadas, afastando do Estado do Rio de Janeiro tal função. O Secretário de Segurança Pública do estado foi afastado e o comando passa a ser militar conforme o próprio decreto faz previsão, sendo o cargo de Interventor ocupado pelo General do Exército, Walter Souza Braga Netto, de acordo com a nomeação constante no segundo artigo[3] do decreto 9.288/2018. Com tal medida, ficam as polícias civis, militares[4], corpo de bombeiros e agentes penitenciários sob a gestão do interventor.
1. O que é intervenção federal?
Antes de analisar o decreto, é importante compreender o que está em discussão, e para tal, é necessário primeiramente entender o que é intervenção federal. Para isso precisamos analisar a organização política do país. O Brasil adotou como forma de estado o federalismo: basicamente temos uma descentralização política que é exercida pelos entes federados[5], especificamente, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, com suas competências dispostas na Constituição da República, conjunto de leis fundamentais, que organizam e dão um norte ao ordenamento jurídico do país.
Logo, sendo a Constituição a lei máxima que limita os poderes dos entes federados, esta estabelece em seu artigo 34 que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto”, apresentando pressupostos materiais[6] para que uma a intervenção se faça necessária. É importante ressaltar que não é objeto deste trabalho a intervenção estadual. Vale ressaltar também que a exposição de hipóteses de intervenção federal será realizada a fim de facilitar a análise do decreto federal tema desta produção, não sendo pretensão fazer análise de mérito acerca da legislação que prevê as possibilidades para que possa ocorrer uma intervenção federal. Em relatoria da IF 2909 no ano de 2003, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes atentou sobre a excepcionalidade da medida:
“Em nosso sistema federativo, o regime de intervenção federal representa excepcional e temporária relativização do princípio básico da autonomia dos Estados. A regra, entre nós, é a não intervenção, tal como se extrai facilmente do disposto no caput do art. 34 da Constituição quando diz que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…). “Com maior rigor, pode-se afirmar que o princípio da não-intervenção representa sub-princípio concretizador do princípio da autonomia, e este, por sua vez, representa sub-princípio concretizador do princípio federativo.”
Sendo assim, a intervenção federal é uma medida excepcional, regida pelos princípios da taxatividade e temporariedade, uma competência da União, conforme disposição do art. 21, V, CF/88, “Compete à União: V – decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;” É medida privativa do Presidente da República, de acordo com o art. 84, X[7] da Constituição da República. Pedro Lenza, ilustre doutrinador, descreve bem em sua obra:
“[…] a decretação e execução da intervenção federal é de competência privativa do Presidente da República (art. 84, X), dando-se de forma espontânea ou provocada. Lembremos, ainda, a previsão da oitiva de dois órgãos superiores de consulta, quais sejam o Conselho da República (art. 90, I) e o Conselho de Defesa Nacional (art. 91, § 1º, II), sem haver qualquer vinculação do Chefe do Executivo aos aludidos pareceres.”
2. Análise de pontos do decreto 9.288 de 2018
No caso da atual intervenção federal, se forem levados em consideração os pressupostos formais, de acordo com o professor Bruno Galindo em seu artigo no site ‘Justificando’, é possível classificá-la como uma intervenção espontânea. O professor afirma: “A intervenção em questão é do tipo espontânea, por iniciativa do próprio Presidente, a partir da atribuição prevista na Constituição da República, art. 84, X, combinado com o art. 34, III, já que expôs como fundamento do Decreto “pôr grave comprometimento da ordem pública;”.
A intervenção federal, autorizada pelo decreto 9.288/2018, é um ato diferente dos episódios anteriores de auxílio prestados pelo exército à segurança pública do Rio de Janeiro. A gestão da intervenção é onerosa para a União[8], e os impactos no cenário político do país são drásticos, uma vez que a Constituição não permite a aprovação de qualquer emenda constitucional enquanto durar[9] uma intervenção federal no país.
A medida, apesar de estar prevista na Constituição e encontrar respaldo nos pareceres[10] concedidos ao Governo Federal, ainda assim contém diversas inconstitucionalidades, o que pode representar um atraso na construção da democracia brasileira que sofre ataques daqueles que juraram cumprir e defender o Texto Constitucional.
Uma intervenção federal em um estado é excepcionalmente autorizada pela Constituição, em hipóteses dispostas no art. 34, sendo este decreto em análise supostamente justificado pela necessidade de reestabelecer a ordem pública[11] mas, neste caso, não se cumpriu a excepcionalidade. Devido à sua natureza excepcional, a aprovação do ato só poderia ocorrer após o esgotamento de todos os mecanismos de resolução de conflitos, somente sendo autorizada a intervenção quando não houvesse mais o que fazer. No caso em questão, havia diversas alternativas que poderiam ter sido colocadas em prática antes de tomar a medida excepcional da intervenção. Por exemplo, cita-se um melhor uso dos serviços de inteligência e interceptação do tráfico de drogas antes que esse chegue na Cidade Maravilhosa. É visível que não se esgotou o rol de recursos políticos e menos drásticos.
O decreto aprovado pela Câmara dos Deputados com 340 votos a favor e 72 votos contra, além de uma abstenção, e pelo Senado, com 55 votos favoráveis, 13 votos contrários e uma abstenção, foi aprovado num contexto de carnaval (16 de fevereiro de 2018), em que claramente os holofotes e olhares estavam voltados para outros debates. Conforme já aconteceu outras vezes no Congresso Nacional, certas matérias são aprovadas justamente nos momentos em que a população não teria oportunidade de pressionar os legisladores para que fizessem o contrário. O que popularmente é conhecido como “aprovação na surdina”.
Fazendo uma verificação quanto ao conteúdo do decreto interventivo, deve-se analisar a previsão constitucional. Neste momento, falamos especificamente do artigo 36, §1º da CF/88,
“A decretação da intervenção dependerá: § 1º O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas”.
Quanto ao prazo, o mesmo está disposto no “art. 1º Fica decretada intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018.”
Pode-se perceber que o Decreto interventivo do Presidente Temer tem também especificada a amplitude, sendo que seu âmbito de deliberação atinge a segurança pública,
“Art. 1º § 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública, conforme o disposto no Capítulo III do Título V da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.”
Quanto às condições de execução é necessário salientar que o artigo 3º do decreto interventivo, assim dispõe: “As atribuições do Interventor são aquelas previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro necessárias às ações de segurança pública, previstas no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.” Percebe-se que o Decreto 9.288/18 apenas explicita a substituição do poder estadual pelo federal na amplitude do decreto, mas não dá uma prévia publicidade aos atos e às providencias que serão tomadas para resolução dos conflitos.
Seguindo a análise, chegando ao parágrafo 1º do artigo 3º: “1º O Interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”. Visto que interventor não tem compromisso com normas estaduais durante a vigência da intervenção, taxados como atos de gestão, ele – o general – fica subordinado apenas ao Presidente, afastando-se da obrigação de respeitar a autonomia dos estados, neste caso o próprio interventor está autorizado a realizar os atos necessários para atingir a finalidade da intervenção e responderá à União.
Além disso, a intervenção realizada no poder executivo do estado não poderia suspender atos do legislativo estadual, uma vez que o próprio decreto anterior restringe a intervenção apenas às funções de uma parte (segurança pública) do poder executivo do Estado, usurpando competências além do necessário para executar a intervenção. É válido ressaltar que, uma vez que o interventor não encontre barreiras legislativas estaduais e não se sujeite às normas do Rio de Janeiro, ferirá a separação dos poderes, que também é protegida pela Constituição Federal.
No decreto consta: “§ 2º O Interventor poderá requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção.”, deixando claro que o Governo Federal tem ciência de que a escassez de recursos é um problema[12] enfrentado pelo Estado do Rio, o que acarreta consequências em diversas áreas, a exemplo, o atraso de salários de servidores, atestando ainda mais a necessidade de uma reorganização do estado, não uma intervenção na segurança pública. Fazendo uma analogia às ciências médicas: tratam-se os sintomas, mas não a causa destes.
Alguns dispositivos do decreto estão com seu texto genérico ou incompleto, possibilitando interpretações diferentes, o que acarreta uma possibilidade de descumprimentos de legislações vigentes e violações aos direitos fundamentais, como já mencionada no presente trabalho a chance de isso acontecer. Inconsistências do texto do decreto podem abrir brechas para o autoritarismo tornar-se tolerável.
Continuando a desmembrar o decreto interventivo, é inevitável lembrar que o parágrafo único do artigo 3º quando dispõe que “O cargo de Interventor é de natureza militar” traz à memória o passado do Brasil, que carrega em sua recente história um período de ditadura militar, que foi assombrada por grandes violações aos direitos civis e políticos.
O cargo de interventor sendo um cargo de natureza militar – conforme citado anteriormente – traz consigo também a possiblidade de que os atos desta intervenção não sejam, após o fim do período interventivo, julgados por tribunais comuns, e sim pelos Tribunais de Justiça militar.
O próprio cargo (o de Secretário de Estado de Segurança Pública) é de natureza civil, ainda que o titular desta pasta seja um militar. E a intervenção federal também deve ser civil. Sobre isso discorre a professora Eloísa Machada em rede social, sendo citada em artigo[13] do ConJur:
“A intervenção trata da substituição temporária e excepcional de uma autoridade estadual civil por uma federal civil. Não de uma autoridade civil por uma militar. O interventor tem poderes de governo, e governo, pela Constituição, até agora, só é civil […] O interventor pode ser militar, mas se submete às regras e à jurisdição civil, ocupando temporariamente cargo civil, como já menciona a Constituição. Deixar que todas as decisões do interventor, durante todo o tempo que durar a intervenção, sejam submetidas à jurisdição militar é um atentado à Constituição, ao poder civil e à democracia."
Tal circunstância pré-determinada pelo decreto interventivo poderá trazer consigo uma característica do estado de exceção: os excessos do uso da força e da violência, e as violações aos direitos fundamentais poderão ser tolerados, visto que quem julgará os atos dos militares serão outros militares.
A intervenção decretada pelo presidente Michel Temer – em ano de pleitos eleitorais, com a criação subsequente de um Ministério da Segurança Pública[14] e trazendo consigo o impedimento do artigo 60 da CR/88 para aprovação de emendas à Constituição durante a vigência da intervenção – poderiam caracterizar o decreto como um ato político, e não jurídico. O autor Pontes de Miranda adverte, contudo:
“[…] sempre que se discute se é constitucional, ou não, o ato do Poder Executivo, ou do Poder Legislativo, ou do Poder Judiciário, a questão judicial está formulada, o elemento político excedido, e caiu-se no terreno da questão jurídica.”
Ainda que seja um ato político, por se tratar de uma análise de constitucionalidade, automaticamente presume-se que a discussão é também jurídica.
3. A declaração do comandante do Exército Brasileiro.
Antes de concluir este trabalho é importante ressaltar que declarações que foram divulgadas em meios de comunicação acerca de tal decreto interventivo não são, a princípio, objeto de estudo, porém uma declaração deve ser mencionada, por reforçar a possibilidade de não serem investigados os atos dos militares que violarem direitos.
A declaração[15] feita no dia 19 de fevereiro pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que pediu ao Conselho da República “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, fazendo uma referência ao “risco” que correm os militares de serem julgados por seus atos durante o período interventivo.
Conclusão
Se de qualquer forma forem apresentados convincentes argumentos favoráveis à constitucionalidade do interventivo no Estado do Rio de Janeiro, qualquer argumento torna-se nulo, uma vez que as ações estão sendo realizadas apenas no município do Rio de Janeiro, o que é inconstitucional, posto que a intervenção em municípios prevista na Constituição é a Estadual, disposta no artigo 35, CF/88. Conforme menciona o professor Erival Oliveira, “infere-se que a União não pode intervir diretamente nos Municípios brasileiros, salvo se localizados em Território Federal (art. 35, caput, da CF/88). Cumpre lembrar que atualmente não existem Territórios Federais.”
A ação do Governo Federal é, portanto, inconstitucional por não cumprir os requisitos formais e não se adequar aos requisitos materiais; midiática, pois obviamente não colocará fim à violência ou ao tráfico; onerosa; foi aprovada em um momento que o povo não estava atento aos atos da Presidência e do Congresso Nacional para demonstrar a opinião pública sobre a matéria; possui como interventor um militar, contrariando a previsão constitucional e pondo em risco o julgamento de excessos; feita de forma não-excepcional, devendo esta ter sido a última opção.
Para concluir, além de todos os pontos apresentados até aqui, para que seja legítima a promulgação de um decreto interventivo é necessário observar o verdadeiro interesse e/ou preocupação que deveria fundamentar tal medida, que seria a proteção – não só da integridade do Estado – mas dos direitos fundamentais dos moradores das comunidades. Serão estes direitos fundamentais garantidos pelo exército brasileiro – treinado para a guerra – que hoje sobe as favelas do Rio?
Informações Sobre os Autores
Allysson Coutinho Horta Costa
acadêmico em Direito pela PUC Minas Campus Serro
Thatiany Costa Vieira Silva
Acadêmica em Direito pela PUC Minas, Campus Serro