Isenção por prazo certo e os efeitos da Lei de Responsabilidade Fiscal

Como se sabe, isenção é hipótese de não incidência tributária legalmente qualificada. Após descrever o fato gerador da obrigação tributária, hipótese legal de incidência do tributo, o legislador retira desse campo de incidência certos fatos ou atos que passam a ser insuscetíveis  de tributação. 

A doutrina clássica costuma conceituar a isenção como dispensa do pagamento do tributo devido, conceituação essa violentamente combatida pela doutrina moderna, em termos de teoria geral do direito, porque não seria possível pressupor prévia incidência de norma jurídica de tributação para, só depois, incidir a norma jurídica de isenção.  Dessa forma, ela se confundiria com a não-incidência expressamente prevista em lei, para alterar parcialmente o conteúdo da hipótese de tributação. Quando a não-incidência estiver prevista na Constituição, deve entender-se  como imunidade.

Seja como for, tudo indica que o Código Tributário Nacional prestigiou a doutrina clássica, ao incluir a isenção e a anistia no rol do art. 175 do CTN, que prevê a isenção e a anistia como hipóteses de exclusão do crédito tributário. E exclusão do crédito tributário pressupõe a preexistência da obrigação tributária. Daí a afirmativa corrente: não se concede isenção a quem não estiver sujeito à tributação, da mesma forma que não se anistia quem nada deve.

A isenção, diz o art. 111 do CTN, deve ser interpretada literalmente, exatamente porque é uma exceção à regra geral de tributação.

A isenção por prazo certo tem origem contratual.  Há um pacto entre o sujeito passivo e o sujeito ativo no sentido de o primeiro desenvolver determinadas atividades no território do segundo, objetivando a expansão da economia local ou regional.

É comum o Município conceder isenção de tributos municipais por 10 anos ou mais, para as empresas industriais se localizarem em seu território, com vistas ao crescimento da produção, geração de empregos, expansão da economia e conseqüente aumento da arrecadação tributária direta e indireta.  Não raras vezes, o Município arca, ainda, com os custos de implantação da indústria não só financiando os maquinários e equipamentos necessários, como também lhe doando a área do terreno para construção do parque industrial.

Essas isenções têm feição contratual à medida que a lei específica deverá detalhar as condições para sua fruição, discriminando os tributos por elas abrangidas, bem como assinalando o prazo de sua duração, nos termos do art. 176 do CTN.

Ocorre que, muitos Municípios, alegando que essas isenções contrariam as disposições supervenientes da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, não vêm cumprindo a sua contrapartida, prejudicando o empresário que fez investimentos contando com os incentivos.

A LRF, que veio à luz para combater o desperdício de dinheiro público e estabelecer uma política de gestão fiscal responsável, estabeleceu em seu art. 11 três requisitos essenciais da responsabilidade fiscal no que se refere à receita derivada, quais sejam, a instituição, a previsão e a efetiva arrecadação de todos os tributos de competência constitucional do ente da Federação.  No caso do Município, esses tributos são os três impostos (IPTU, ISS e ITBI), as taxas, as contribuições de melhoria e as contribuições previdenciárias dos servidores públicos.  A inobservância daqueles requisitos implica sanção institucional, consistente na proibição de receber transferências voluntárias de outros entes da Federação.

Em perfeita harmonia com o art. 11, a LRF estabeleceu em seu art. 14:

‘Art. 14 A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes,atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

§ 1º  A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

§ 2º  Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso’.

De um lado, temos uma isenção por tempo certo que, embora expressa em lei, resultou da negociação entre o sujeito ativo e o sujeito passivo do tributo, no pressuposto de que tal ajuste consultaria o interesse público.  De outro lado, temos a disposição de ordem pública vedando o ente político de conceder essa isenção, sem prévio estudo do seu impacto orçamentário-financeiro no exercício de sua vigência e nos dois seguintes, além de atender a Lei de diretrizes Orçamentárias e da adoção de providências para compensar a perda de arrecadação com o aumento da receita por meio da majoração ou criação de tributos.

Costuma-se argumentar que disposições de ordem pública devem ser aplicadas imediatamente.

Contudo, esse entendimento não tem aplicação entre nós, onde o princípio do direito adquirido está previsto não em nível legal, mas em nível constitucional (art. 5º, XXXVI da CF), protegido, ainda,  pela cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).  É diferente do ordenamento jurídico de outros países como a França e a Itália, por exemplo, onde o direito adquirido é protegido apenas no nível legal.

Dessa forma, a empresa favorecida pela isenção específica, ou qualquer outro tipo de incentivo fiscal, por tempo certo, tem direito adquirido à sua fruição até o final do termo previsto na lei, sem que possa o Município alegar contrariedade às disposições da LRF, e assim, deixar de cumprir a parte que lhe cabe.

A recusa do Município em cumprir as suas obrigações, decorrentes da lei específica de renúncia tributária, ou de concessão de qualquer outro benefício abrangido na referida lei, abrirá caminho para a empresa prejudicada pleitear na Justiça o seu direito adquirido, insusceptível de supressão até mesmo por via de Emenda Constitucional.

São Paulo, 28 de janeiro de 2006.


Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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