Juizados criados pela Lei Maria da Penha devem ter competência absoluta


Retumbante, proclama a 8º Constituição da República Federativa do Brasil – contando-se com o Ato Institucional nº 5, baixado em 13 de Dezembro de 1968 – , o seguinte:


 “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (Art. 226, parágrafo 8º).


 Antes da promulgação dessa nossa atual Carta Magna, o Brasil aprovou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – adotada pela Resolução nº 34/180 da Assembléia das Nações Unidas, em 18 de Dezembro de 1979 – , através do Decreto Legislativo nº 93, de 14.11.1983, que foi ratificada pelo Brasil em 1º de Fevereiro de 1984, e, finalmente, promulgada pelo Decreto nº 89.406, de 20.3.1984.


O Art. 2º dessa Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1979) exalta a todas às Nações do Mundo, membros da Organização das Nações Unidas, o que se segue:


“Artigo II. Os Estados Membros condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a:


a) Consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições Nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio.


b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher.


c) Estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação.


d) Abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação”.


Mais tarde, já na vigência da presente Lex Fundamentalis, o Estado brasileiro ratificou em 27 de Novembro de 1995, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará – adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 06 de Junho de 1994.


Dessa convenção internacional multilateral de países das Américas, restou seguro aos seus mais diferentes povos americanos que:


“Capítulo III – Deveres dos Estados


Artigo 7º. Os Estados Membros condenam todas as formas de violência contra a mulher e concordam em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas e prevenir, punir e erradicar a dita violência e empenhar-se em:


§1. Abster-se de qualquer ação ou prática de violência contra a mulher e velar para que as autoridades, seus funcionários, pessoal e agentes e instituições públicas se comportem conforme esta obrigação.


§2. Atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher.


§3. Incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas que venham ao caso”.


Propositadamente, ao encontro direto a esses Diplomas magnificentes, o Excelentíssimo Senhor Doutor Presidente da República Federativa do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.340, de 07 de Agosto de 2006, publicada no Diário Oficial da União de 08 de Agosto do mesmo ano, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha. Entre tantas, Maria da Penha também foi uma das vítimas da grave violência contra a mulher ocorridas no seio familiar.


Biofarmacêutica, Maria da Penha Maia Fernandes foi agredida pelo marido durante seis anos. Em 1983, por duas vezes, ele tentou assassiná-la. Na primeira com arma de fogo, deixando-a paraplégica, e na segunda por eletrocução e afogamento. O marido de Maria da Penha só foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado.


Em razão desse fato, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima, formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – OEA, que é um órgão internacional responsável pelo arquivamento de comunicações decorrentes de violação de acordos internacionais.


Diante da excessiva tolerância brasileira com a morosidade do processamento dos crimes domésticos contra a mulher, a Comissão da OEA publicou o Relatório nº 54 de 2001, em que concluiu o seguinte, in verbis:


“(…) A República Federativa do Brasil é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos Artigos 8º e 25 da Convenção Americana em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no Artigo 1º do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação negligente deste caso de violência doméstica no Brasil.


Que o Estado tomou algumas medidas destinadas a reduzir o alcance da violência doméstica e a tolerância estatal da mesma, embora essas medidas ainda não tenham conseguido reduzir consideravelmente o padrão de tolerância estatal, particularmente em virtude da falta de efetividade da ação policial e judicial no Brasil, com respeito à violência contra a mulher.


Que o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres segundo o Artigo 7ª da Convenção de Belém do Pará em prejuízo da Senhora Fernandes, bem como em conexão com os Artigos 8º e 25 da Convenção Americana e sua relação com o Artigo 1º da Convenção, por seus próprios atos omissivos e tolerantes da violação infligida”.


Ao final, o Relatório recomendou a continuidade e o aprofundamento do processo reformatório do sistema legislativo nacional, a fim de mitigar a tolerância estatal à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial, recomendou “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias do devido processo” e “o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera”.


Desse modo, a esperada Lei 11.340/2006, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do comprometimento do Brasil na ordem jurídica interna e internacional, dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Nestes exatos termos:


“Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.


Arrematando em seu Art. 33 que:


“Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente”.


Por conseguinte, agora, o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, em todo o território brasileiro, são de competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, ou, aonde ainda não instalados, da vara criminal que acumulará competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.


Depara-se, assim, com um juízo especializado, com um “super-juizado”, cuja competência é determinada constitucionalmente em função da matéria e da pessoa. Competência absoluta, portanto, de envergadura constitucional e, outrossim, regida pelo comprometimento da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais.


A respeito desse principiante Juizado, a renomada estudiosa da matéria, Eminente Desembargadora Maria Berenice Dias, do Egrégio e Vanguardista Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, esclarece com o costumeiro brilhantismo a respeito de sua dilatada aptidão jurisdicional, in verbis:


“Certamente o maior de todos os avanços foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM), com competência cível e criminal (Art. 14). Para a plena aplicação da lei o ideal seria que em todas as comarcas fosse instalado um JVDFM e que o Juiz, o Promotor, o Defensor e os servidores fossem capacitados para atuar nessas varas e contassem com uma equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde (Art. 29), além de curadorias e serviço de assistência judiciária (Art. 34).


Claro que diante da realidade brasileira não há condições de promover o imediato funcionamento dos juizados com essa estrutura em todos os cantos deste País, até porque, de modo injustificado, sequer foi imposta a criação ou definidos prazos para sua implantação. Mas, até que isso ocorra, foi atribuída às varas criminais competência cível e criminal (Arts. 14 e 33)” (“A violência doméstica na Justiça”, disponível no site www.mariaberenice.com.br).


Largando, visto isso, na esteira do comprometimento com a ordem jurídica interna e internacional, o então Eminente Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, Excelentíssimo Senhor Doutor Desembargador Jorge Goes Coutinho, no uso de suas atribuições legais, e tendo em vista decisão do Colendo Tribunal Pleno desta Colenda Corte em Sessão realizada em 14 de Junho de 2007, baixou a Resolução nº 018/2007, determinando a instalação e o funcionamento efetivo do primeiro Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Estado do Espírito Santo.


Preceituando o Art. 1º desta Resolução que:


“Art. 1º. (Resolve-se) Autorizar a instalação da 6ª Vara Criminal do Juízo da Serra, Comarca da Capital, Entrância Especial, que terá competência exclusiva para conhecer, processar e julgar os feitos relacionados à Lei Federal n. 11.340/2006 – ‘Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher'”.


No caso, mesmo em desuso pelos vanguardistas processualistas desse Século XXI, a esmorecida interpretação literal, aqui, não pode ser deixada de lado para se encontrar a melhor exegese a respeito da competência dos Juizados da Mulher.


O Art. 14 da Lei 11.340/2006 preconiza que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher terão competência cível para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. E, por sua vez, o Art. 33 do mesmo Diploma protetivo assevera que enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.


Por competência cível, por óbvio e evidente, entende-se toda a matéria extra-penal. Essa a tradição de nossos textos legislativos e seus diversos dispositivos. Como, por exemplo, quando o Código de Processo Penal, ao tratar das questões prejudiciais facultativas heterogêneas, em seu Art. 93, reza que se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão da competência do juízo cível o Juiz criminal poderá suspender o curso do processo, por óbvio que esse Diploma de Ritos não está se referindo quando diz “juízo cível” a Varas Cíveis, mas, sim, a todas as Varas não Criminais, como as Varas da Fazenda Pública, Meio Ambiente, Família, Órfãos e Sucessões, Falências e Concordatas etc, sejam estas Varas da Justiça Comum Estadual, sejam das Justiças Federal Comum ou Especializada Trabalhista, Eleitoral ou Militar. O mesmo acontecendo com o Art. 935 do Novo Código Civil que consagra, como fez o Código Bevilácqua de 1916, o princípio da independência das responsabilidades civil (em sentido amplo) e criminal.


Advirta-se, que a Lei 11.340/2006 não se refere textualmente a competência processual civil para processo e julgamento exclusivo de medidas cautelares.


A Lei 11.340/2006 não limitou a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar a exclusivamente um dos tipos de provimentos conhecidos pela legislação processual civil (condenatório, executivo ou cautelar).


O próprio uso da expressão “execução” das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar, deixa claro que, promovido o acertamento da lide deduzida, através da prolação de sentença condenatória final, acaso não cumprido o julgado pelo vencido, a credora – a priori só a mulher poderá ser a exeqüente nos Juizados – para alcançar a satisfação do julgado meritório deverá requerer ao próprio Juizado de Violência Doméstica e Familiar o seu cumprimento forçado, com atos estatais de invasão e constrição na esfera íntima e patrimonial do devedor.


A limitação da competência cível, dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, à “execução” de medidas cautelares, denominadas pela Lei 11.340/2006 de “medidas protetivas de urgência”, é assaz equivocada e injurídica, data máxima vênia dos que comungam desse açodado entendimento.


Ora, não se conhece em Direito Processual “execução” de medida cautelar. Todas as medidas cautelares, sem exceção, são provimentos que se inserem na categoria da tutela mandamental, pois não se declara a existência de direito. Ordena-se.


Só se executa aquilo consubstanciado em título executivo, seja sentença líquida e certa, seja qualquer outro documento extrajudicial dotado de força executiva. A lição é pueril.


É de causar surpresa que diversos cursos e manuais de processo penal, sobressaltados pela previsão de novas medidas cautelares, arroladas nos Arts. 22 a 24 da Lei 11.340/2006, tendem a lecionar que os Arts. 14 e 33 deste Diploma Protetivo da Mulher, quando se referem à competência cível, só podem referir-se a essas medidas instrumentais de garantia do processo. Como se a introdução de medidas cautelares fosse algo inovador em processo penal. Ora, o próprio Código de Processo Penal, de Outubro de 1941, já previa em seu corpo diversas medidas cautelares, muito usuais pelo juízo cível em questões obrigacionais, mais conhecidas como medidas assecuratórias no juízo criminal, como o sequestro, o arresto e a hipoteca legal sobre os imóveis do indiciado (Arts. 125 usque 144). E, se assim não fosse, o Art. 3o do CPP credenciaria o Julgador do crime a se utilizar daquelas cautelares típicas pr evistas no Código de Processo Civil, inclusive ao poder geral de cautela (Art. 798 do CPC) e às cautelares inominadas, tudo na tentativa de assegurar o resultado útil do processo, sempre ameaçado em razão da sua natural demora.


Os provimentos cautelares, esclareça-se, não pertencem, nem são mais afeiçoados a qualquer um dos ramos do direito processual, seja o processo civil, processo penal, processo tributário ou procedimento administrativo-tributário, processo trabalhista ou qualquer outro. As medidas cautelares servem ao direito adjetivo em geral, para preservar e garantir a atuação efetiva e concreta da jurisdição via processo judicial. O processo cautelar, em essência, não investiga a relação jurídica de direito substancial deduzida, daí se dizer por aí que não possui mérito, mesmo porque vedado pelo Código Buzaid a veiculação de cautelares satisfativas. Destarte a expressão “competência cível” gravada nos Arts. 14 e 33 da Lei 11.340/2006 refere-se a competência em Direito Civil Material (latu sensu), isso é lógico.. Não há como querer-se, por absurdo, conceber-se a expressao “competência cível” como competência para o tão-só processo e julgamento de “medidas cautelares cíveis”. Todo Juiz já sabe que possui à sua disposição o manejo de medidas cautelares, independentemente da Vara que atue. É regra de hermenêutica que a Lei não contém palavras inúteis ou desnecessárias. Seria a deturpação de todo o sistema processual positivo brasileiro admitir-se edição de lei outorgando expressamente ao Julgador “competência” para medidas cautelares. Quem pode o mais, pode o menos, o processo cautelar é acessório, se o Juiz pode julgar a causa principal, é claro que ele próprio possui competência para deferir provimentos cautelares incidentais ao processo principal para garantir o êxito da prestação jurisdicional, sem abalo de sua necessária neutralidade na lide. Pelo que o termo “competência” é reservado privativamente para delimitação da atuação do Órgão investido de juridisdição diante de determinada relação jurídica de direito materia l em concreto.


Ainda, a Lei 11.340/2006, definindo a competência cível dos Juizados da Mulher, refere-se a “causas” decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, e, não, de modo nenhum, a tão-somente “crimes”, “contravenções” ou “infrações penais” decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.


O conceito de “causa” é amplíssimo, e, no caso, abrange todas e quaisquer lides oriundas da violência doméstica e familiar contra a mulher.


No mesmo sentido, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher terão competência cível para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da “prática” de violência doméstica e familiar contra a mulher. E, não, de modo nenhum, a tão somente competência cível para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes de “crimes ou contravenções penais” cometidos contra a mulher no ambiente doméstico ou familiar.


Pelo que não há autorização legislativa para que se sujeite os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a competência cível apenas para processo e julgamento de ações civis ex delicto ou execução cível de sentenças penais condenatórias. Não há essa indesejada limitação na Lei 11.340/2006. Interpretação contrária a esse entendimento não se trata de exegese, mas, sim, de verdadeira atividade legiferante, vedada ao hermeneuta e, de outra banda, privativa do legislador da União (Art. 22, I, da CF/88).


Cabe ressaltar que a refulgente mencionada Resolução nº 018/2007 do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo bem traduz o escopo do Art. 33 da Lei Maria da Penha que pontifica que enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as Varas Criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.


Essa espécie normativa, acertadamente, dispôs que autoriza a instalação da 6ª Vara Criminal do Juízo da Serra munindo-a de competência exclusiva para conhecer, processar e julgar “os feitos” relacionados à Lei Federal n. 11.340/2006. “Os feitos” e não só os crimes ou contravenções penais.


A definição de “feitos”, presente na Resolução nº 018/2007, é sutilmente ainda mais considerável, a abranger também os processos de jurisdição voluntária, onde não há partes, mas interessados, onde não há lide, mas interesses, que necessária ou convenientemente se submetem ao crivo do Poder Judiciário.


Igualmente, a Resolução nº 018/2007 estabelece que a 6ª Vara Criminal do Juízo da Serra terá competência exclusiva para conhecer, processar e julgar os feitos “relacionados à Lei Federal n. 11.340/2006”. E, não, de modo nenhum, aos feitos relacionados tão-somente aos crimes previstos neste novel Diploma. Mesmo porque a Lei 11.340/2006 não traz crimes ou contravenções penais em seu corpo. Mas, apenas, regras de direito adjetivo para o processo, o julgamento e a execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Sem se esquecer, é claro, de algumas importantes regras traçadas para o procedimento investigativo policial.


E, no que mais interessa, no plano do processo, julgamento e execução das causas – ou “feitos”, como se preferir – cíveis decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher não há qualquer limitação ou restrição às ações cíveis coletivas que veiculem matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher.


Ao revés, são as ações coletivas bem-vindas, recepcionadas também pela redação do Art. 37 da Lei 11.340/2006, que reza que “a defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil”, além, é claro, daqueles atores arrolados na Lei 7.347/85, que fundamentalmente disciplina o instituto da Ação Civil Pública, como a Defensoria Pública (Art. 5º, II, da Lei 7.347/85). Essa redação do Art. 37, oportuno ressaltar, sepulta de uma só vez a posição limitativa da competência dos Juizados da Mulher, uma vez que inimaginável repressão coletiva ou difusa a tipos penais. A demanda coletiva de que trata o Art. 37 será fundamentada na legislação civil para o fim de coibir a violência doméstica e famil iar contra a mulher em sede transindividual.


Mesmo o enérgico Art. 109, I, da CF/88 – que disciplina que aos Juízes Federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes – não é obstáculo para afastar a competência absoluta dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar.


A competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, como visto, também têm arcabouço constitucional. Além de exprimir o comprometimento da República Federativa do Brasil na ordem internacional. Houve, sim, no ponto, cisão na apreciação jurisdicional de valores constitucionalmente tutelados (erário público federal e, de outro lado, proteção fundamental à dignidade da pessoa humana fisicamente mais frágil). Tanto que o Art. 6o da Lei 11.340/2006 consigna que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. E, a instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, assim, não é uma proeza guerreira do legislador ordinário, mas, em verdade, traduz-se em um dos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8o do Art. 226 da Constituição Feder al de 1988.


Pelo que a competência da Justiça Federal só poderá ser cogitada em um segundo momento, nas hipóteses de grave violação dos direitos humanos da mulher, e, ainda, a critério do Procurador-Geral da República. A Emenda Constitucional n. 45 de 2004 estabeleceu que a competência para as causas relativas a direitos humanos será deslocada da Justiça Estadual para a Justiça Federal, precisamente nas hipóteses em que aquela primeira se mostrar ineficiente ou mesmo desinteressada na apuração de grave violação de direitos humanos, para o efeito de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte. Cabendo ao Chefe do Ministério Público da União, neste caso, a tarefa de convencer o Colendo Superior Tribunal de Justiça de que a Justiça Estadual Comum revelou-se ineficaz ou indiferente à causa relativa a direitos humanos submetida a sua apreciação. Mas, esse incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, equivocadamente batizada por alguns constitucionalistas de “federalização dos crimes contra direitos humanos” – note-se que o texto constitucional no Art. 109, V-A, não se refere a “crimes”, mas a “causas” relativas a direitos humanos – , não é automático, nem deve servir de instrumento para se depreciar ou desconfiar da Magistratura Estadual. Assim, em todo caso, em tema de violência contra os direitos fundamentais da mulher a causa deve, sempre, iniciar-se em seu juízo natural, qual seja, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher criado pela Lei 11.340/2006.


A própria instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher deve deslocar a competência do processamento de causas tradicionalmente do Júri – Art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF/88 – para aqueles Juizados Especializados da Mulher, precisamente naqueles processos em que não consumado o delito contra a vida, uma vez que a vítima – a mulher – deverá ser beneficiada pela decretação de medidas protetivas a seu favor, e, de outra banda, deverá o acusado cumprir rigorosamente as cautelas determinadas, notadamente a de afastamento da ofendida e de seus familiares. Tudo, na tentativa de eliminar a possibilidade da reiteração criminosa por parte do agressor, sem prejuízo da subsidiária decretação de sua custódia cautelar, se for o caso, pelo juízo especial (Art. 20 da Lei 11.340/2006).


Perceba-se que o próprio texto constitucional, diferentemente do que faz, por exemplo, nos seus Arts. 102, I e 105, I, não estabelece, no Art. 5º, XXXVIII, “d”, competência do Júri para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, mas, sim e em verdade, apenas ao “julgamento” dos crimes contra a vida, sem nenhuma menção à expressão “processo”.


Assim, até a decisão de pronúncia de que trata o novel Art. 413 do CPP, nos casos de tentativa, o processamento da causa dar-se-á indubitavelmente nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, franqueando-se a esta o benefício das medidas protetivas de urgência, e aplicando o Magistrado do Juizado o rito cognitivo do Júri previsto nos Arts. 406 a 412 do CPP, por força da recomendada analogia (Art. 3º do CPP). Sempre se assegurando ao acusado o direito de responder ao processo em liberdade, desde que preservada por este a execução das medidas protetivas de urgência deferidas (Art. 313, IV, do CPP).


Existem, ainda, é bom lembrar, outras exceções àquela regra do Art. 109, I, da CF/88. As causas de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho, mesmo que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, a competência não se deslocará para a Justiça Federal.


A própria legislação infraconstitucional também refreia a competência da Justiça Federal em diversos casos. A título de exemplo, os atos infracionais perpetrados por menor contra a União, entidade autárquica ou empresa pública federal, por maiores que sejam seus resultados ou proveito criminoso, são de competência dos Juizados da Infância e da Adolescência, por força do Art. 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O Princípio da Assistência e Proteção Contra a Violência Doméstica e Familiar não possui, em nenhuma hipótese, status constitucional inferior ao Princípio da Absoluta Prioridade da Criança. Ao contrário, sagrados postulados, situam-se no mesmo plano constitucional qualitativo, a ordenar o inafastável tratamento isonômico.


Em conclusão, deve ser reservado ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher jurisdição absoluta para o julgamento de suas causas cíveis e criminais, ex vi do Art. 226, §8º, da Constituição Federal de 1988, assegurando-se, assim, a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, e criando-se autêntico mecanismo judicial para tratamento eficaz da violência no âmbito de suas relações.


 



Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Rios do Amaral

Defensor Público do Estado do Espírito Santo


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