Júri e democracia no poder judiciário. Improcedência das críticas acerca da instituição

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A
instituição do Júri, como ensina a melhor doutrina, encontra suas primícias na
Inglaterra do século XIII, quando as chamadas ordálias
(ou “juízos de Deus”) foram abolidas pelo Concílio de Latrão,
em 1215, e substituídas por um procedimento de apuração de ilícitos fundado em
práticas místicas. Tal procedimento consistia na reunião de doze homens de
consciência pura, os quais, ao invocarem a providência divina, se faziam
infalíveis portadores da verdade e podiam, com justiça, deliberar acerca do
litígio posto à sua apreciação. Desta crença teria nascido o Júri, cujo caráter
religioso ainda se observa na fórmula do juramento do tribunal popular inglês,
onde há o chamamento expresso do auxílio de Deus. O próprio vocábulo Júri
aponta a origem mística da instituição; ele provém de juramento, que é a
invocação de Deus por testemunha.

Por
deitar suas raízes em épocas de considerável imaturidade institucional e
jurídica, em que o misticismo impregnava até as esferas do Poder Público, e
tendo em vista sua suposta inadequação à estrutura moderna do Judiciário, o
Júri tem sido objeto de severas críticas. Muitas delas, entretanto, revelam-se
improcedentes, e se orientam por uma avaliação que potencializa as imperfeições
da instituição, em detrimento das inúmeras virtudes que apresenta. Trata-se de
juízos que, por vezes, subestimam o traço manifestamente democrático do Júri –
responsável por sua sobrevivência até nossos dias – em função de atacar um ou
outro desvio na sua estrutura ou organização, os quais podem ser perfeitamente
corrigidos.

Acusa-se
o Júri de inadequação aos tempos modernos por ter surgido numa estrutura
judiciária frágil, de submissão do magistrado à vontade despótica dos monarcas
absolutistas. Em nossos dias, o Judiciário estaria provido de inúmeras garantias
que o poriam a salvo da interferência dos outros poderes e, assim, não mais
seria necessária a figura dos jurados. Tal crítica, no
entanto, carece de plausibilidade, considerando-se que a criação do Júri, ao
objetivar o cerceamento do poder do rei, atribuiu à instituição seu principal e
peculiar traço, que é a conotação democrática. A participação popular faz com
que um sistema penal profundamente positivista, muitas vezes insensível à
dinâmica social e a seus reclames, se aproxime da realidade histórica a que
deve corresponder, possibilitando julgamentos que, antes de simplesmente
externarem a vontade da lei, promovem a efetiva aplicação do Direito.

Alguns
autores também não compreendem como, numa era em que se reclama do próprio juiz
criminal especialização, se confie um julgamento a homens que não possuem
conhecimentos técnicos suficientes ou mínimos. Talvez seja essa, realmente, a
imperfeição mais condenável da instituição do Júri, onde o
despreparo dos jurados os impossibilitam de participar mais intimamente
do processo. No entanto, não seria esse desconhecimento da técnica o fator que
permite a apreciação do caso pelo bom senso, que muitas vezes se dilui em meio
ao saber teórico e legalista do magistrado? Todo ser humano médio, inserido
numa civilização relativamente avançada, possui a noção de justiça, que é,
ademais, um valor universalmente consagrado. Essa crítica, portanto, advém de
uma concepção quase sacra da organização judicial, ao insinuar que a Justiça
seria infalível por conhecer e manipular o Direito, ao passo que o leigo, carente do saber técnico, nunca poderia julgar
corretamente. É o Judiciário enquanto “coluna e fundamento da Verdade”, como
diria São Paulo em alusão à Igreja dos cristãos.

Na
verdade, todas as censuras de que o Júri é vítima se devem à ótica tecnicista
em que se dá a avaliação de seus críticos. De fato, como poderia um
profissional do Direito, de formação acadêmica, um exímio operador das leis, aceitar que a justiça seja deduzida por indivíduos sem a sua
qualificação? É de se esperar outra postura por parte de juristas que
aprenderam a ver, no sistema jurídico em geral, a personificação da justiça e
do Direito, do qual se sentem os próprios braços e pernas? Assim é que, nas
nações avançadas, tais profissionais fazem do Estado Democrático de Direito
mais de Direito (que acaba sendo equiparado à lei) do que propriamente
democrático, ao atacarem a participação popular nas instituições públicas mais
importantes, como ocorre com o tribunal popular.

A
doutrina ainda aponta outras deficiências que justificariam a abolição do Júri,
como a morosidade do processo e a vulnerabilidade dos jurados às influências da
sociedade. São críticas que, de fato, merecem respeito, e ainda comprometem a
eficiência da instituição. Todavia, há de se notar que os crimes julgados pelo
procedimento do Júri, cuja competência foi definida pela própria Constituição,
agridem o mais importante bem jurídico tutelado pela lei penal, vale dizer, a
vida humana, cujo violador incorre nas mais severas
penas cominadas pelo sistema. É razoável, assim, que tais delitos sejam
apurados e processados com prudência, assegurando-se efetiva possibilidade de
defesa ao acusado, o que só um procedimento detido pode proporcionar. Quanto à
exposição dos jurados às influências sociais, o Código de Processo Penal prevê
a prevenção ou solução desse problema por meio do desaforamento, que consiste
numa transferência do processo do foro de origem para outra comarca, onde
retoma seu curso.

Portanto,
os argumentos que buscam desabonar o Júri, talvez a única esfera do Poder
Judiciário permeável à efetiva intervenção da sociedade, não resistem a uma
avaliação mais sensata e ponderada que dele se faça. Os defeitos desta
instituição não podem ser tomados como justificativa plausível para sua
extinção, uma vez que seus benefícios, sendo mais numerosos, impõem que se
busque seu aperfeiçoamento.

O Júri simboliza a esperança de um Judiciário mais sensível às
transformações sociais, que nem sempre são assimiladas por sistemas jurídicos
como o nosso, fundados na lei e na técnica. Talvez seja ele o gérmen de novos
ordenamentos que busquem aproximar o Direito de sua base de legitimação, e que
convertam o sistema penal em instrumento de efetiva promoção da justiça, e não
de exclusão social, como vem ocorrendo há vários séculos. Basta que seja enfocado sob uma ótica menos legalista e mais voltada ao
traço que o singulariza na estrutura judiciária, qual seja, sua feição
democrática. Sua longevidade e sobrevivência, pois, devem-se à tendência
democrática que progressivamente se firmou em todos os sistemas políticos;
pode-se dizer, assim, que, em épocas de supressão dos direitos individuais, nas
fases negras da História, o Júri atuou como foco de resistência de democracias
abaladas, mas nunca totalmente suprimidas.


Informações Sobre o Autor

Giovanni Comodaro Ferreira

Estudante de Direito da UNESP/Franca


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