Durante muitos anos os filhos havidos fora do casamento foram descriminados e rejeitados pelo próprio direito. A partir da Constituição Federal de 1988 procurou-se obter a igualdade na filiação evitando-se o descaso e as humilhações então sofridas. O avanço da biotecnologia surge demonstrando à sociedade o tratamento ético que deve ser dado as relações de filiação.
INTRODUÇÃO
A inovações tecnológicas criaram para o homem uma nova forma de perceber a humanidade e a si mesmo enquanto espécie. As inovações que há tempos atrás nos pareciam utópicas ou simples ficção científica hodiernamente são reais e problematizadas pelos seus aspectos éticos, sociais e jurídicos. Enquadram-se dentro dos direitos de quarta geração que nas palavras de Vicente Barreto[1] “resultam dos novos conhecimentos e tecnologias resultantes das pesquisas biológicas contemporâneas” , são direitos para os quais o sistema jurídico não encontrava-se plenamente preparado e não acompanhou tal evolução que despontou na sociedade.
A comunidade científica tem evoluído nas questões referentes tecnologias reprodutivas, mas o ordenamento jurídico não encontra-se preparado para respaldar tais técnicas principalmente num sistema em que um único exame, o DNA, define a filiação dos homens em sociedade determinando-lhes direitos e deveres recíprocos sem , no entanto, perquirir a situação afetiva dos envolvidos.
A bioética rompeu um liame na concepção de filiação em que bastam os genes para se declarar a filiação, alertou para a necessidade de uma análise de vida, a pesquisa de todo um histórico social para então declarar-se os direitos de pai-filho, reconhecendo-se a posse de estado não apenas como meio probatório mas como instrumento efetivo da determinação da filiação resguardando-se efetivamente os interesses das crianças e adolescentes uma vez de tal modo que como assevera Maria Cláudia Brauner[2]que ” (…) deste modo estaria se construindo um sistema definidor dos laços de família , vinculando pessoas que desejam amar-se e cuidar-se reciprocamente. Além disso , afirmar-se-ia a noção de interesse superior da criança como papel principal e indispensável às decisões dos litígios no âmbito familiar”.
1. A REPRESENTAÇÃO FAMILIAR NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Para entender-se a questão do estado de filiação mister primeiramente analisar a conceituação de o sentido da expressão família para a sociedade e para o sistema legislativo brasileiro.
Podemos afirmar que em sentido latu família é o conjunto de pessoas que descendem de um mesmo tronco genealógico, são membros unidos por laços sangüíneos, abrangendo desta forma os parentes em linha reta ou colateral, bem como os parentes por afinidade conforme declara o Código Civil Brasileiro[3] em seus dispositivos referentes as relações de parentesco. Em sentido restrito, o termo família, representa o conjunto de pais e filhos, ou seja, o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio. Para o eminente jurista Pontes de Miranda[4] “(…) em sentido especial compreende o pai, a mãe e os filhos”.
(…) As vezes exprimia a reunião das pessoas colocadas sob o poder pátrio ou manus de um chefe único. A família compreendia, portanto, o pater familias, que era o chefe , os descendentes ou não, submetidos ao pátrio poder, e a mulher in manu, que se considerava em condição análoga à de filha: loco filiae. O pater familias e as pessoas sob seu poder eram unidos entre si pelo parentesco civil (agnatio).[5]
Em 1916 com a promulgação do Código Civil a família passou a ser codificada e representar importante papel na estrutura econômica brasileira eis que o modelo então tinha como base a figura do pai que detinha a autoridade para tomada de todas e quaisquer decisões referentes a família inclusive no tocante a questões patrimoniais[6].
O Código Civil não fornecia o significado da expressão família muito embora a reconhecesse e a resguardasse, porém, as Constituições brasileiras[7] a partir 1934 traziam em seu texto a noção de família a qual era condicionada a idéia de casamento, de modo que se tinha como família o grupo social de sangue com origem no matrimônio válido, portanto, a família legítima; as Constituições de 1824 e 1891 não traziam qualquer menção com relação a formação do instituto familiae. Conforme declara José Bernardo Ramos Boeira[8]
(…) em face de uma sociedade basicamente rural, revelava uma família que funcionava como uma unidade de produção, importando para tanto ser numerosa, representando uma maior força de trabalho e maiores condições de sobrevivência de todo o grupo. Este modelo de família era chefiado por um homem, que além de exercer o papel de pai e marido, detinha toda a autoridade e poder sustentados numa estrutural patrimonial. Daí, as características patriarcais e hierarquizadas do modelo centrado na chefia do marido, ocupando a mulher e os filhos uma posição de inferioridade no grupo familiar.
Note-se que em tempos de outrora a família, cujo vínculo matrimonial, então, era indissolúvel era percebida não apenas pelos laços de sangue, mas também pelo patrimônio constituído pela união dos genitores, como bem salienta Michelle Perrot[9], “a família, como rede de pessoas e conjunto de bens, é um nome, um sangue, um patrimônio material e simbólico, herdado e transmitido. A família é fluxo de propriedade que depende primeiramente da lei”.
Na família assentam-se não apenas as bases morais da sociedade como a própria base econômica, de modo que a influência direta sobre a própria manutenção do Estado obrigou-o a protegê-la. Corrobora tal idéia Silvio Rodrigues[10] ao afirmar que ” o estado na preservação de sua própria sobrevivência, tem interesse primário em proteger a família, por meio de leis que lhe assegurem o desenvolvimento estável e a intangibilidade de seus elementos institucionais”.
A família constitui sem dúvida alguma a estrutura da sociedade. Porém, passadas décadas a relação conjugal, que então dava à família sua existência, sofreu modificações e novos padrões sociais surgiram decorrentes da evolução do próprio homem e do conceito de liberdade individual. Novos conceitos fizeram eclodir conseqüências inafastáveis como, por exemplo, a família decorrente do divórcio, da adoção, da investigação de paternidade, da reprodução artificial, do afeto. Conforme Maria Cláudia C. Brauner[11], “o processo de modernização da família busca novos caminhos e soluções” que no tocante a filiação passa não apenas pelos laços matrimoniais ou genéticos, mas pelo afeto.
2. OS CRITÉRIOS IDENTIFICADORES DOS LAÇOS DE FILIAÇÃO
2.1. FILIAÇÃO
Etmológicamente tem-se filiação como expressão derivada do latim filiatio, termo utilizado para distinguir a relação de parentesco estabelecida entre as pessoas que concederam a vida a um ente humano e este.
Sociologicamente tem-se como filiação o resultado das relações interpessoais na concretização do desejo pela perpetuidade da espécie. Nas palavras de Maria Cláudia Brauner[12] “o acontecimento da reprodução significa algo mais do que a mera comprovação de maturidade sexual e de fertilidade, ele estabelece uma nova etapa na vida adulta quando a responsabilidade pelo destino deste novo ser torna-se um dever, frente à família e a sociedade”
A filiação, pois é fundada no fato da procriação, pelo qual se evidencia o estado de filho, indicativo do vínculo natural ou consangüíneo, firmado entre gerado e progenitores. É assim, a relação de parentesco entre os pais e os filhos, considerados na ordem ascensional, destes para os primeiros, do qual também procedem, em ordem inversa, os estados de pai (paternidade) e de mãe (maternidade)[13].
O casamento era então a base da formação da família, a legalização das relações sexuais de onde se originava a prole; até então o que originava o vínculo de filiação era a relação matrimonial de tal modo que os filhos havidos fora do casamento não faziam parte do núcleo familiar, não podiam nem mesmo ser registrados com o nome paterno sendo este casado.
A definição de filiação em legítima e ilegítima , desta forma, tinha por base a situação jurídicas dos geradores; conforme José Bernardo Ramos Boeira[14]” extremando-se os filhos gerados por pessoas casadas – filhos legítimos – daqueles provenientes de relações extramatrimoniais – filhos ilegítimos -, derivando daí histórica e odiosa discriminação, justificada pela proteção legislativa à chamada família legítima estabelecida pela união matrimonializada, em detrimento dos filhos nascidos de relação extraconjugal”
Anteriormente a Constituição Federal vigente o sistema brasileiro fazia distinção entre filhos legítimos e ilegítimos sendo inclusive mencionado por ocasião do registro tornando-o alvo de discriminações.
2.3. CRITÉRIO JURÍDICO
2.3.1. FILIAÇÃO LEGÍTIMA
Tendo-se em vista que a sociedade percebia como família a advinda das relações matrimoniais, considerava-se como filiação legítima a oriunda de justas núpcias, ou seja, a que se originou na constância do casamento dos pais ainda que anulado ou nulo, conforme dispõe o próprio Código Civil Brasileiro em seus dispositivos[15].Ainda, respeitando-se o disposto no Código Civil[16] , concedia-se o status de legítimo aquele filho havido no mínimo cento e oitenta dias após a relação matrimonial ou então, nascido dentro de trezentos dias subseqüente da ruptura do vínculo matrimonial.
Desta forma a filiação legítima que concede ao gerado o status de filho legítimo é assegurada pela evidência do casamento civil ou matrimônio.
Da lei extrai-se o fato de que mesmo havido antes do estabelecimento do vínculo matrimonial com este estabelece-se o vínculo de filiação, sendo o nubente considerado pai por presunção não lhe sendo concedida a possibilidade de contestar sua paternidade.
Assevere-se ao fato de que o legislador legou a filiação legítima a data de sua concepção considerando-se no entanto, concebidos na relação matrimonial os nascidos cento e oitenta dias após o estabelecimento da convivência matrimonial bem como os nascidos dentro do período de trezentos dias posteriores à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite ou anulação, de tal modo que o novo ser pode ter sido gerado anteriormente ao matrimônio pois que tem-se por presunção ter sido concebido na constância do casamento[17].
Será, ainda, considerado legítimo aquele que mesmo nascido antes do prazo de 180 dias ou posterior aos 300, foi registrado pelo suposto pai uma vez que ao assumir o matrimônio estando ciente do estado gravídico indiretamente estará assumindo o filho desta como seu não lhe cabendo o direito de contestar a paternidade .
(…) a filiação legítima se fundava na geração havida no casamento civil ( justae nuptiae) . E, dele se formou a presunção, também, estabelecida por lei, de que o filho nascido de mulher casada tem como pai, quando nascido nos seis meses ( 180 dias) , após a celebração do casamento, ou dentro dos dez meses , que se seguirem à dissolução do vínculo conjugal, o seu marido.[18]
Ainda que incontestável a paternidade dos filhos havidos na constância do matrimônio, o legislador ofertou a sociedade três hipóteses: havendo a presença de impotência generandi[19], separação de fato ou de direito à época da concepção e frente a hipótese de impossibilidade de coabitação[20].
2.3.2. FILIAÇÃO ILEGÍTIMA
Como filho ilegítimo tinha-se, desta forma, o nascido fora da relação matrimonial podendo tratar-se de filiação adulterina, quando um dos pais possuía vínculo matrimonial; e, incestuosa quando os genitores possuíam vínculo de parentesco. Consoante Plácido de Silva[21], “é a que decorre do nascimento de pessoa concebida por pais que não se encontram em casamento legal.”
A ilegitimidade desta forma decorre do fato de não serem concebidos em justas núpcias, ou na constância de justas núpcias. Assevere-se ao fato de que a lei, com intuito de preservar a criança determinou que ainda que concebidos fora do casamento legal, mas, nascidos cento e oitenta dias após a realização do matrimônio a filiação resultante será considerada legítima.
A filiação ilegítima era classificada em naturais, quando descendiam de relações sexuais mantidas por pais não casados legalmente, mas que não possuíam qualquer impedimento para o fato e em espúrios, os oriundos de pais sobre os quais recaiam impedimentos matrimoniais, sendo estes subdivididos em adulterinos cujo impedimento para mantença de um vínculo matrimonial era a já existência deste vinculo com outra pessoa, e, e incestuosos nascidos de indivíduos que possuíam parentesco natural, civil ou afim.
Os filhos ilegítimos serviam desta maneira como alvos de discriminação. Ao contrário da moral romana em que se rechaçavam os filhos havidos de adultério e louvavam filhos havidos de incesto. Como bem se refere Fustel de Coulanges[22] em sua descrição acerca da moral da família na Antigüidade (…) “é verdade que se esta moral primitiva condenava o adultério, não reprovava o incesto, a religião o autorizava. As proibições relativas ao casamento eram opostas às nossas; era louvável desposar a irmã, mas proibido, em princípio, desposar uma mulher de outra cidade. A discriminação direcionada por questões religiosas era tão severa que concedia ao pai o direito de rejeitar a criança e de matar o culpado conforme as regras atenienses ou de matar a própria esposa conforme as determinações romanas. Não podia o homem perdoar a mulher e aceitar e reconhecer o filho , era ele obrigado a repudiar a esposa bem como o filho adulterino.
A Constituição Federal de 1988[23], no entanto, rompeu com o tabu e concedeu aos filhos havidos fora do casamento igualdade de direitos recriminando todas e quaisquer discriminações a eles referentes. Conforme José Bernardo Ramos Boeira[24] a nova diretriz constitucional assegurou não somente a igualdade dos filhos” como também a tutela de núcleos familiares monoparentais , formado por um dos descendentes com os filhos (art.226,4º)[25] , e extramatrimoniais ( art.226, 3º)”. Muito embora a Constituição Federal reconhecesse plena igualdade aos filhos havidos ou não no matrimônio a igualdade somente estabelecia entre legítimos e entre os filhos ilegítimos; apenas com o advento da Lei nr. 8.560/92[26] é que esse estabeleceu a igualdade concedida, visto que se proibiu qualquer observação no registro de nascimento quanto ao estado civil de seus pais, de tal modo que, qualquer pessoa maior e capaz poderá dirigir-se ao Cartório de Registro Civil e registrar uma criança como se seu filho fosse. Não se tem mais o fator legítimo ou ilegítimo como outrora.
2.4. CRITÉRIO BIOLÓGICO
O desenvolvimento das biotecnologias possuem como missão não apenas proteger o homem enquanto indivíduo mas enquanto espécie e tendem a resguardar, também, a liberdade do indivíduo respeitadas as questões éticas. Entre estas a possibilidade de saber-se as origens do indivíduo. Como bem salienta Maria Cláudia Crespo Brauner[27] “quase dois séculos depois, o mundo mudou profundamente, a forma de viver em família foi redimensionada, a ciência desvendou os segredos da genética e da hereditariedade, possibilitando desse modo, determinar-se os vínculos de filiação sob o aspecto biológico”.
A investigação de paternidade surge como meio de instituir os laços de filiação. Pelo sistema biológico filho aquele que detém os genes do pai , uma vez reconhecido a identidade biológica entre pai e filho surgem para a criança novos direitos até desconhecidos como a possibilidade de passar a usar o nome do pai que para muitos doutrinadores refere-se ao próprio direito a personalidade, e demais direitos de cunho social como o direito a alimentos, a herança .
A Lei 8.560/92 veio com o objetivo de facilitar o reconhecimento dos filhos impondo as devidas responsabilidades aos pais biológicos por outra banda estabelece também o direito de assistência devido aos pais[28]. Entre as inovações apresentadas pela lei está o reconhecimento voluntário e o procedimento oficioso.
O reconhecimento voluntário realizado pelo pai da criança deixa de ser possível somente após a ruptura do impedimento do reconhecimento, trata-se de um ato de vontade ao qual não se impõe prazo, condição ou qualquer outro ato de venha a restringir o reconhecimento da filiação. Trata-se de ato personalíssimo e unilateral com exceção da hipótese em que o reconhecido seja maior de idade em que prevalecerá o interesse deste no reconhecimento.
O procedimento da averiguação oficiosa , como mero procedimento administrativo, parte do pressuposto do direito de origem do indivíduo de modo que havendo assento de registro de nascimento unicamente constando a origem materna caberá ao oficial remeter a certidão contendo os dados do suposto pai ao Juiz de Direito afim de que seja o mesmo identificado. Uma vez notificado o suposto pai e não havendo resposta do mesmo ou em caso de manifestação este conteste a paternidade os autos devem ser encaminhados ao Ministério Público[29] para que então se inicie a ação de investigação de paternidade.
Ainda que se conceda facilidades no reconhecimento dos laços de filiação ou meios biotecnológicos avançados, como o exame de D.N.A mister ter-se em mente que a simples identificação biológica não estabelece os laços de filiação esperados. Concedem-se sim direitos, mas não afeto essencial para o desenvolvimento de qualquer ser humano.
O uso do exame de D.N.A em caráter determinante para o reconhecimento de filiação peca no sentido de tornar a filiação simples laço biológico desprovido de emoções e sensações. Analise-se o fato de um doador de esperma que aos vinte um anos doa esperma de modo a fertilizar cinqüenta mulheres. No caso hipotético de ter a sua identidade revelada teríamos um cinqüenta crianças, no mínimo, movendo ações de investigação de paternidade as quais face ao exame genético de DNA todas seriam procedentes e teriam seu pai biológico reconhecido. Nasce para as partes o direito de assistência, direito ao nome, direito a herança de tal modo que teremos um pai com cinqüenta filhos e sem qualquer vínculo afetivo. Supondo ainda que ele tenha doado esperma com intuito de caridade ainda que seja ele um homossexual, a influência da biotecnologia sobre os participantes das ações seria nefasto e irreparável , situações para as quais ainda não estão preparados os operadores jurídicos, Brauner [30] em seus estudo refere-se a negação do filho decorrente da filiação forçada nos seguintes termos” nem sempre aquele que gera se interessa por sua descendência e, há de aceitar-se que muitos pais e mães genéticos, prefeririam que seu filho não tivesse sido gerado, e podem passar de uma atitude de negação da existência do filho, ao completo desprezo pelo seu destino, principalmente, quando o vínculo formal de filiação foi estabelecido de forma forçada, através de uma ação de investigação de paternidade”.
Apoiam-se, os operadores jurídicos, na atualidade, em condições únicas e de certa forma simplistas: ou reconhecimento voluntário ou exames de DNA e não na interdisciplinaridade que afetam as relações humanas. Conforme ensina Maria Cláudia Crespo Brauner[31] ” (…) indo além da simples declaração de filiação biológica determinada através de exames científicos, sejam estes de menor ou maior complexidade, como no caso do exame de D.N.A, percebe-se que a autêntica relação de pai e filho requer mais que a mera determinação da descendência genética, atribuindo-se finalmente, relevância a noção subjetiva dos laços afetivos.”
2.5. CRITÉRIO AFETIVO
Inseridos num mundo em que as biotecnologias estão exteriorizado-se de forma cada vez mais valiosa para a espécie humana os homens passaram a valorizar não apenas setores isolados da sociedade, mas a sua disciplinaridade incluindo-se as questões biopsicológicas referentes ao afeto. A própria noção de família assume novos contornos, deixa de relacionar-se apenas a vínculos jurídicos, o matrimônio legal, para assumir a feição afetiva que nas palavras de Maria Cláudia C. Brauner passa a denominar-se família sociológica.
A filiação passa a ser percebida não apenas pelo vínculo jurídico estabelecido, pelo reconhecimento voluntário, pela adoção ou pela investigação de paternidade passa a ser percebida como um conjunto de atos de afeição e solidariedade que demonstram claramente a existência de um vínculo de filiação entre filho-pai-mãe. Nas palavras de Brauner[32] ” a posse do estado de filho (…) é aquela que se exterioriza pelos fatos, quando existem pais que assumem suas funções de educação e de proteção dos filhos, sem que a revelação do fator biológico da filiação seja primordial para que as pessoas aceitem e desempenhem a função de pai ou mãe”.
Estado de uma pessoa são determinadas qualidades que a lei toma em consideração para atribuir-lhes certos efeitos jurídicos. Designar o estado de uma pessoa é qualificá-la e rigorosamente a toda qualidade que produza efeitos de direito pode dar-se o nome de estado. O direito reserva este nome às qualidades inerentes a pessoa, com exclusão dos qualificativos que lhe correspondem em razão de suas ocupações[33].
O estado de filho é irrenunciável e imprescritível de modo que a qualquer momento de sua vida poderá o indivíduo pleitear sua filiação, não apenas contra seu próprio pai mas também contra aos herdeiros deste. Sua manifestação poderá dar-se judicialmente como extrajudicialmente através de atos capazes de exteriorizar a condição de filho daqueles que criam e educam a criança.
O estado de posse no direito brasileiro não recebeu a guarida legislativa necessária vez que não é previsto pelo Código Civil juntamente com os demais casos em que a declaração de paternidade é admitida. Assim assevera José Bernardo Ramos Boeira[34], ao transcrever estudos de Aroldo Medeiros da Fonseca , que embora não tenha recebido o devido respaldo legal não houve negação do estado de posse:
(…) pois os fatos que a caracterizam têm tanta significação que, aliados, por exemplo, à prova de relações sexuais, quando a ação tiver tal fundamento, ou a outros fatos nos quais pode o pleito basear-se, criarão, em favor do investigante, uma situação jurídica de irrecusável importância, de vez que pela sua conduta, foi o suposto pai o primeiro a considerá-lo, implicitamente, a fidelidade da mulher na época da concepção.
Ainda que por longo período considerassem os operadores a posse de estado de filho como simples meio probatório que, por si só, não bastava para comprovar a filiação mas possibilitava a sua investigação, tem-se a sua existência real e viável sendo o começo do desvelamento da paternidade afetiva na atualidade; que em muitas vezes se torna mais eficaz para o desenvolvimento de uma criança do que a paternidade biológica.
Com o intuito de tornarem claras as relações sócio-afetivas perante a sociedade por tratarem-se de uma verdade real inafastável estabeleceu-se elementos caracterizadores da posse de estado de filho tais como o nome, o trato e a fama. Assim sendo, deverá o indivíduo usar o nome do pai (nomen) , ser tratado como filho com todos os cuidados merecidos numa relação pai-filho (tractus), bem como, ser conhecido pela sociedade como filho de determinada pessoa ( fama). Neste mesmo sentido refere-se Maria Cláudia C. Brauner[35]
O nome: é a utilização pela pessoa do nome daquele que considera seu pai, o que faz supor a existência do laço de filiação.
O tratamento: corresponde ao comportamento, são atos que expressam a vontade de tratar a criança como a trataria um pai; é o tratamento como filho.
A fama: constitui a imagem social, são fatos exteriores que revelam uma relação de paternidade e expressam uma certa notoriedade da relação, a pessoa aparenta à sociedade, gozar do conceito de filho do pretendido pai.
São elementos típicos e comuns às relações de filiação embasadas no amor e no afeto. Relações em que há a preocupação com o desenvolvimento emocional, social, cultural dos indivíduos sob a responsabilidade de um pai.
Questão relevante a ser abordada é a impossibilidade do pai-afetivo contestar a paternidade eis que a proteção dispensada é ao filho e não ao seu pai-afetivo ou ao seu suposto pai. O interesse na descoberta das origens biológicas cabe com exclusividade ao filho.
Na sociedade atual em que as reproduções artificiais ganharam extrema relevância mister ter-se em mente a ética adotada para tais meios eis que um indivíduo não ciente da fecundação de sua esposa poderá tornar-se pai acreditando ser pai biológico, pai por erro. N esta hipótese sabe-se que todo ato praticado por erro, dolo, coação, simulação ou fraude é passível de anulação[36] porém o prejuízo causado moralmente e materialmente a criança envolvida nesta relação é irreparável cabendo ao Estado resguardá-la. Conforme declara Maria Cláudia C. Brauner[37] ” numa sociedade onde tantas crianças são privadas de pai, não se pode correr o risco de contribuir-se para aumentar estes índices de rejeição por questões egoístas e de cunho individualista, que podem dar origem a uma situação de insegurança jurídica para as pessoas que beneficiavam de uma posse de estado de filho, corroborada pela existência de um título, conforme esse estado”.
É certo que se deve proteger e resguardar a criança de males decorrentes das relações inseguras de seus pais, no entanto, há que se asseverar ao fato de que frente aos avanços biológicos é preciso uma conduta ética quanto às tomadas de decisões uma vez que o descobrimento da falsidade biológica pode acarretar dano maior a criança que poderá sofrer as mais variadas agressões e discriminações por parte de seu próprio pai-afetivo retornando a sociedade ao período em que ilegítimos não eram filhos simplesmente eram ilegítimos. Não se pretende prejudicar as relações de filiação e nem mesmo o desenvolvimento sadio de uma criança o que se pretende é incutir na sociedade em geral a responsabilidade assumida frente a inseminação artificial, responsabilidade que segundo Leonardo Boff [38] ” mostra o caráter ético da pessoa. Ela escuta o apelo da realidade ecoando em sua consciência.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade brasileira tem evoluído não apenas tecnologicamente, mas também socialmente. A estrutura familiar tem tido inúmeras alterações nas últimas décadas, deixou-se de lado o patriarcalismo ressaltando-se outras funções sociais do ente humano que não apenas o comando cego e onipotente do pai de família que então tudo podia e tudo determinava.
As noções de filiação apegadas a cada época histórico-social evoluíram e deixando-se de lado os pré-conceitos para aceitar-se moralmente e de forma responsável as condutas humanas, o filho extramatrimonial deixa de ser filho extramatrimonial para tornar-se filho. O filho provindo de reprodução assistida deixa de ser filho de terceiro desconhecido para tornar-se simplesmente filho de uma união, digno de direitos e de reconhecimento social.
As razões para a igualdade e equiparação entre os filhos , segundo José Bernardo Ramos Boeira[39] decorreram do próprio declínio a família, da redução do patrimônio familiar e da troca de atitude perante o filho. Razões que favorecem a autonomia do indivíduo preservada pela bioética que ofereceu ao mundo jurídico novas posições doutrinárias, novas problemáticas a serem percebidas e solucionadas desacomodando os pensamentos e posições retrógradas no tocante a filiação.
A interação da bioética com o sistema jurídico surge da necessidade dos juristas identificarem soluções aos novos questionamentos emergentes das novas tecnologias biológicas .
O operador do direito e a sociedade vislumbram nas situações em que as codificações não oferecem o respaldo necessário a consciência de que o passado serve para demonstrar os atos e suas práticas mas não de paradigma para a atualidade, nas palavras de Lina Sahenki[40] ” contrapor-se a esse antigo modelo, alterando-o para promover a valorização da dignidade da pessoa humana , em respeito à Constituição Federal, é a tarefa do jurista neste final do milênio, sendo a bioética um fundamental instrumento para atingimento deste objetivo”
O Estado tem por função resguardar os direitos das crianças e adolescentes bem como da própria família seja ela composta por apenas um dos genitores ou por companheiros. Uma vez ultrapassadas as discriminações sociais a formação da família revela simplesmente a situação afetiva em que se encontram seus membros e esta situação deve ser resguardada pelo direito, deve ser perpetuada oferecendo a segurança e o equilíbrio necessários para o desenvolvimento político, social, emocional, econômico e tecnológico da sociedade.
[1] Revista da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, nº 2, Editora Renovar, 1994.
Informações Sobre o Autor
Astried Brettas Grunwald
Advogada, Mestre em Direito Público, Especialista em Direito do Trabalho, Especialista em Docência do Ensino Superior, Coordenadora do Curso de Direito da Universidade Salgado de Oliveira, campus Salvador(Brasil), Professora no Curso de Direito da Faculdade Dois de Julho, membro do Tribunal Arbitral do Rio Grande Do Sul/Brasil, ,membro do Instituto de Advocacia Pública.