Legitimidade da democracía iraquiana implantada por uma ocupação externa

Este trabalho apresenta uma discussão em torno da legitimidade e da soberania popular frente a uma Democracia Iraquiana imposta pela ocupação externa dos Estados Unidos da América, sem respeitar o direito único do povo de determinar os rumos de sua Nação.

A ocupação Americana do Iraque, contrariando o Conselho de Segurança da ONU, começou no dia 20 de março de 2003 sob três alegações principais: acabar com as armas de destruição em massa produzidas por este país, supostas ligações com Al Queida e a redemocratização do Iraque. Ocupação que se deu de forma ilegal, mesmo depois do governo Iraquiano ter aceito sem ressalvas as condições da ONU.

Neste trabalho iremos concentrar nossos esforços para entender como um país estranho pode impor a redemocratização de outro país soberano, e até que ponto existe legitimidade neste processo. Vamos tentar compreender em que medida uma democracia implantada por uma ocupação externa encontra legitimidade popular no Iraque.

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Antes de começarmos o nosso estudo é necessário conhecermos a situação da ocupação e de como foi o processo de eleicão no Iraque após a derrubada do governo de Sadam Husseim pelos EUA.

Em 30 de junho 2004, houve a instalação de um Governo provisório indicado pelos EUA e a outorga de uma Constituição transitória, sendo devolvido, teoricamente, a soberania ao Iraque. No dia 30 de janeiro de 2005 foram realizadas eleições democráticas para a formação de uma assembléia constituinte com o intuito de se produzir uma nova e legítima constituição nacional.

O processo eleitoral adotado no Iraque, em meio às polêmicas, se as eleições foram legítimas ou não, foi o de eleição proporcional (e não o sistema distrital, do tipo americano, inglês ou alemão). Todos os partidos elegeram deputados na proporção exata dos votos que obtiverem dos seus eleitores (esse sistema é mais usado no mundo do que o distrital).

Também em relação ao sistema eleitoral, foi adotado o sistema de listas partidárias previamente ordenadas (exatamente a mesma proposta que se discute de implantar no Brasil, através do relatório do deputado Rubens Otoni, do PT/GO, o relator da reforma política que está em debate na CCJ na Câmara dos Deputados). O eleitor vota na lista e não no nome de um candidato e sua eleição será na proporção dos votos de seu partido e de sua lista; o número mínimo de candidatos por lista era de 12 e o máximo de 275, o número de vagas a ser eleitas.

Os principais partidos que participaram do pleito são: Partido Islâmico Dawa; Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque; Congresso Nacional Iraquiano; Partido Comunista Iraquiano; e dois partidos curdos, o Partido Democrata Curdo e a União patriótica do Curdistão. A maioria dos partidos islâmicos é de orientação xiita, na medida em que os sunitas não participaram do pleito e chamaram ao boicote das eleições, consideradas por eles ilegítimas.

As principais lideranças envolvidas no processo, de alguma forma, guardam uma relação direta com o governo provisório e com as tropas de ocupação e são integrados por políticos que, ou estavam no exílio na época de Saddam Hussein ou lhe faziam oposição. Seus principais nomes são: Iyad Allawi, atual primeiro-ministro interino e lidera o pequeno partido chamado Acordo nacional Iraquiano (estava exilado e teve ligações com a CIA e com o serviço secreto britânico); Ghazi al Yawer, o presidente interino do país, de orientação sunita, mas sua função no governo é praticamente decorativa; Abdul Aziz al Hakim, líder xiita e encabeçador da lista denominada Aliança Unida Iraquiana, a mais competitiva no pleito, tem o apoio do principal Aiatolá xiita no país, o Ali al Sistani; fala-se de ligações estreitas com o Irã; Ahmed Chalabi, líder do grupo Congresso Nacional Iraquiano, também xiita e ex-exilado; aliado dos EUA.

As eleições escolheram 275 deputados constituintes para escrever a nova Constituição iraquiana; foram eleitos ainda deputados nos 18 Conselhos Regionais, equivalentes no Brasil às Assembléias Legislativas Estaduais; os curdos elegerão um parlamento autônomo. A constituição que eles vão escrever será submetida a um referendo popular e, se aprovada, ocorrerão novas eleições no país em 15 de dezembro. Esses deputados elegerão um presidente da Constituinte e dois vice-presidentes. Também indicarão um novo primeiro-ministro, ainda interino.

As abstenções foram estimadas em mais de 45%, sabe-se que em pelo menos 4 grandes regiões a abstenção foi quase 100%; no dia da votação, mais de 40 pessoas foram mortas em combate, nas operações da resistência e centenas de outras ficaram feridas.

Praticamente não ocorreu campanha eleitoral, o que reforça o aspecto da ilegitimidade do pleito. As TVs não veicularam quase que propaganda alguma e a maioria das pessoas hoje sequer tem acesso às rádios e TVs em função dos problemas graves de fornecimento de energia para a população.

Os principais grupos que lutam contra a ocupação são: Resistência Islâmica Nacional Iraquiana; Frente Nacional para a Libertação do Iraque (FNLI); Frente Islâmica de Resistência Iraquiana (FIRI); Ansar al Suna; Esquadrão al Mujahidin.

A legitimidade de um pleito não se relaciona apenas com a quantidade de votantes e mesmo com as tais liberdades de manifestação dos seus eleitores. No caso do Iraque em particular, o segundo aspecto, o das liberdades, foi praticamente nulo. Não houve debate e partidos que fazem oposição à ocupação foram impedidos de participar. Apenas os que concordaram em se submeter ao pleito em um país sob ocupação militar neocolonial americana, puderam concorrer. Não houve debate algum e a votação ocorreu sob tiros disparados pela resistência iraquiana, que combate a ocupação.

Para o governo dos EUA[1], “o conceito de oposição leal é inerente a qualquer democracia. Significa que todos os lados no debate político — por mais profundas que sejam as diferenças — partilham os valores democráticos fundamentais de liberdade de expressão e religiosa e de proteção legal igual”. Infelizmente não é esta a prática que assistimos na convocação da assembléia constituinte no Iraque. Da parte dos que se dobraram aos americanos, os sinais são claros de que só serão tolerados no processo político aqueles que aceitaram a ocupação americana. Todos os que se colocaram contra foram banidos e continuarão fora da vida pública.

Max WEBER[2] nos ensina que existem três formas de legitimação do poder: através de um caráter tradicional, de um caráter carismático e, o que parece ser o caso do Iraque, um caráter racional. O que destoa desta lógica é o fato da autoridade-legal em vigência neste país não acolher o sentido amplo e irrestrito de democracia na convocatória da constituinte.

Só uma convocatória constituinte, com eleições bem estruturadas, amplamente acolhedoras das diversas dissidências políticas, clara e bem divulgada, pode atribuir legitimidade a uma nova Constituição Iraquiana.

A mídia comemorou, claro, a realização das eleições em si, mesmo sendo absolutamente ilegítimas conforme vários especialistas apontaram. Isso porque a realização em si do processo eleitoral já seria uma vitória do presidente americano, George Bush, que se diz empenhado em “levar a democracia para o Iraque” (sic) como se esse cidadão ou mesmo esse país – os EUA – pudesse ensinar democracia para quem quer que seja em algum país do mundo. Foram, sim, campeões de golpes de estados e massacres perpetrados por ditadores em vários países, que levaram à morte milhões de pessoas, seja na Ásia ou na África e mesmo na América Latina. Se faltaram os observadores independentes internacionais, não faltaram soldados e armas para intimidar o povo. Entre os soldados de ocupação e os a serviço do governo de turno, foram mais de 300 mil soldados de prontidão no dia da eleição. Que legitimidade pode ter uma eleição dessa natureza?

Para FAORO[3] “a legitimidade supõe que, por meio dela, atue a comunidade social, dotada de autoridades, que atuam com o apoio dos governados, decisivo para a continuidade política nas horas de crise”.

Longe de significar uma pacificação do processo iraquiano, estas eleições vão apenas acirrar ainda mais os ânimos. Do lado dos insurgentes e da resistência, os sinais são claros de que a luta vai continuar. Dificilmente a ocupação terminará neste ano ou no próximo. Qualquer anúncio de saída americana desencadeará, de forma imediata, uma luta ainda mais acirrada do que hoje, levando o país seguramente para uma guerra civil de final imprevisível.

A nova Constituição iraquiana é composta por 60 artigos, divididos em nove capítulos, e segundo os seus autores, tem consagrados as liberdades fundamentais e os direitos das mulheres. Uma das únicas vitórias dos Iraquianos foi reconhecido do Islã como religião oficial e uma das fontes de legislação. Nenhuma lei aprovada depois de 30 de Junho poderá contrariar os princípios islâmicos.

Para Ferdinand LASSALE[4], “de nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder. Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a verdadeira constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país reagem, e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social”.

Jorge MIRANDA[5] nos mostra alguns limites materiais ao poder constituinte originário, são eles: os limites Transcendentes, que são aqueles relativos aos valores do povo; e os limites Imanetes, relativos a configuração do Estado; e os Heterônomos, recepcionados do direito Internacional. Neste sentido, os limites a este poder constituinte originário – que para CANOTILHO[6], é inicial, ilimitado, autônomo e incondicionado – foram todos impostos pela intervenção americana quando outorgou uma constituição transitória e conseqüentemente convocou uma nova assembléia constituinte. Limites que deveriam emanar do povo e não de uma ocupação externa, e que com certeza irão configurar este novo Estado. Um Estado que deveria, apoiado na legitimidade, representar a vontade e os valores de seu povo. Porque então não afirmarmos claramente que a ocupação americana impôs limites formais à essa nova constituição? Ao contrário do que defende o governo dos EUA, de que esta constituição será nova, legítima e soberana. Podemos ir mais longe ainda nesta linha de raciocínio, e reconhecermos que como esta nova constituição segue limites formais dimanados de uma entidade externa, esta constituição poderia ser classificada facilmente, por Jorge MIRANDA, como uma Heteroconstituição.

Pinto FERREIRA[7] defende: “A democracia não é uma classe, nem uma facção, nem um privilégio; é a nação proprietária do governo, o direito de escolha dos representantes populares, o poder organizado da opinião nacional”.

No Brasil, por exemplo, nós vivemos uma ditadura de 20 anos, e nem por isso foi preciso que os EUA viessem nos “ajudar” a redemocratizar nosso país. Muito pelo contrário, nestes 20 anos a ditadura teve total apoio do governo norte americano. Graças a uma pressão muito forte, oriunda, segundo Marcos WACHOWICZ[8], de um poder constituinte originário material, se tornou impossível para os militares não realizar uma transição constitucional. Ninguém pode garantir que isto aconteceria no Iraque, mas agora também nunca iremos saber e a soberania, principalmente, do povo iraquiano, já foi usurpada.

Para FAORO “a luta pela legitimidade é, em conseqüência, uma luta social, que se coordena ao poder constituinte”.  No Iraque assistimos apenas a imposição de um processo constituinte, sem respeito a vontade suprema do povo deste país, tomando assim, um caráter totalmente ilegítimo.

País nenhum do mundo, por mais rico e poderoso que seja, pode ser a consciência moral, ou policial, do mundo. O EUA jamais apoiaram a democracia nos países muçulmanos, esta foi a primeira vez, e logo onde? Na segunda maior reserva de petróleo do mundo.

Pensando logicamente, se o Iraque tivesse eleições livres, corretas e justas, com toda a certeza seria eleito um governo anti-americano. E como o objetivo da guerra era controlar o petróleo iraquiano, tornando a economia americana menos suscetível a crises na Arábia Saudita, as eleições não poderiam ocorrer de outra forma. Eleições assim assustariam os curdos, que foram fiéis aliados dos americanos nos últimos dez anos e, com isso, tiveram um território autônomo na prática – enquanto os xiitas eram chacinados, sob o olhar tolerante do governo americano. Esses problemas podem ser resolvidos, com autonomia ou garantias constitucionais às minorias, mas não podem impedir o principal, que o povo escolha seu próprio destino.

RIBEIRO[9] afirma: “Tenho uma tese simples, que os ministérios das Relações Exteriores não compartilham, mas que tende a crescer: Só governos democráticos são legítimos”. E FAORO ainda subsidia: “No mundo moderno, não há outra legitimidade possível e universalmente consagrada senão a legitimidade democrática”.

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Mesmo nos parecendo óbvio que um governo legítimo para o Iraque teria que ser um governo democrático, de maneira alguma este governo democrático poderia ser imposto por um país estrangeiro, como que sendo o guardião da democracia e liberdade mundial. Não podemos esquecer que vivemos em um mundo cristão, não temos e nunca teremos a vivência do islã, e nunca poderemos imaginar o que é viver neste mundo. Pensar o que é melhor para este mundo sem nunca ter vivido nele, é, no mínimo, injusto.

Nos Estados Unidos, há enorme tendência a confundir democracia e regime de mercado. Com freqüência, fala-se em defender a democracia quando o que se pretende é fortalecer o capitalismo. Bush deve pensar que, se levar os árabes a agir segundo a racionalidade do capital, a democracia se seguirá.

A soberania do povo iraquiano tinha que ser respeitada, e no máximo, mesmo com a ocupação, deveria ter sido feito um plebiscito desde o começo para que o povo escolhesse sua forma de governo. Este é um direito sagrado da soberania de um povo e de uma nação: poder escolher livremente seus rumos.

Diante desta perspectiva não nos restam dúvidas o porque de uma resistência tão forte a ocupação norte-americana e a um novo governo. É o povo exercendo seu direito legítimo de fazer pressão para decidir os rumos de sua nação.

RIBEIRO enfatiza: “A soberania que conta é a popular. A soberania nacional só vale quando é decorrência da popular. Por isso, a queda de Sadam é um bem, embora a ocupação não o seja”. O Iraque, como todos os países do mundo, deve ser governado por quem ele eleger. Não elegeu Saddam, nem escolheu a ocupação norte-americana. Portanto, o regime anterior era ilegítimo e o atual também o é.

O processo de democratização do Iraque não apresenta legitimidade, mesmo tendo havido eleições diretas para uma Assembléia Constituinte; pois o povo foi tolhido do seu direito soberano de optar pela democracia como sistema de governo legítimo, e conseqüentemente de poder traçar os rumos de sua pátria.

Os EUA querem nos mostrar que a soberania foi devolvida ao povo iraquiano, mas neste trabalho vimos que existem claramente limites formais que estão moldando este novo estado. As principais lideranças hoje no Iraque possuem fortes laços com os EUA, e com certeza estarão vinculados a ele. Isso é dar a soberania do Iraque a seu povo? Ao no nosso ver não, e não existe qualquer legitimidade em uma democracia imposta por outro país estrangeiro. Simplesmente porque imposição não pode se harmonizar com democracia.

 

Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1977.
FAORO, Raymundo. Assembléia Constituinte – A Legitimidade Recuperada. 3º edição. Brasília: Brasiliense, 1985.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. Vol. 6. São Paulo: Saraiva, 2000.
LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1985.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
Revistas Eletrônicas do Departamento do Estado dos EUA. Constitucionalismo e Democracias Emergentes. Março de 2004, Volume 9, numero 1.
RIBEIRO, Renato Janine. Diretas, já: no Iraque. Artigo para a revista AOL. Agosto, 2004.
WACHOWICZ, Marcos. Poder Constituinte & Transição Constitucional. Curitiba: Juruá, 2004.
WEBER, Max. Ciência e Política – duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1967.
Notas
[2] WEBER, Max. Ciência e Política – duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1967.
[3] FAORO, Raymundo. Assembléia Constituinte – A Legitimidade Recuperada. 3º edição. Brasília: Brasiliense, 1985.
[4] LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1985.
[5] MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1977.
[7] FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. Vol. 6. São Paulo: Saraiva, 2000.
[8] WACHOWICZ, Marcos. Poder Constituinte & Transição Constitucional. Curitiba: Juruá, 2004.
[9] RIBEIRO, Renato Janine. Diretas, já: no Iraque. Artigo para a revista AOL. Agosto, 2004.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Andrei Bittencourt D`angelis

 

Aluno de Direito. Faculdade Dom Bosco, Curitiba

 


 

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