Resumo: A transação penal tem como fim evitar a instauração do processo penal através de um acordo entre o Ministério Público e o autor do fato, acordo esse, que tem o objetivo a aplicação antecipada de uma pena restritiva de direitos. Entretanto, a referida lei não cuidou de disciplinar qual seria a atitude a ser tomada quando do descumprimento desse acordo, o que causa grande discussão entre os doutrinadores. Esta pesquisa é resultado de uma experiência empírica. É relevante o tema tratado, porque além de esclarecer alguns pontos controvertidos em relação ao instituto da transação penal, tem como objetivo principal chamar a atenção dos operadores do direito para a ilegalidade da prisão em decorrência do descumprimento desse acordo. Para tanto, a metodologia utilizada no presente trabalho é empírico-analítica, utilizando-se da revisão bibliográfica e documental. Conclui-se com a instituição da Lei 9.099/95 um direito penal com caráter despenalizador, concedendo ao agressor uma nova oportunidade para que ele se arrependa de seus atos, proporcionando-lhe a chance de não ter contra si uma sentença condenatória, o que certamente prejudicaria sua vida ou até mesmo sua carreia profissional.[1]
Palavras-chave: Transação Penal; Ministério Público; Lei 9.099/95
Abstract: The criminal transaction has the purpose to prevent the initiation of criminal proceedings through an agreement between the prosecutor and the author of the fact, that agreement, which aims to advance implementation of a penalty restricting rights. However, this law did not take care to discipline what would be the attitude to take when the breach of this agreement, which causes great debate among scholars. This research is the result of an empirical experience. It is relevant to the topic discussed, because in addition to clarify some controversial points in relation to institute criminal transaction, it aims to draw attention of law professionals to the illegality of the arrest as a result of breach of this agreement. Therefore, the methodology used in this study is empirical-analytic, using the bibliographic and documentary review. It concludes with the enactment of Law 9.099 / 95 criminal law with despenalizador character, giving the attacker a new opportunity for him to repent of their actions, giving you the chance of not having against him a sentence, which certainly harm your life or even your professional carries.
Keywords: Criminal Transaction; Public ministry; Law 9.099 / 95
Sumário: Introdução; 1. O panorama histórico sobre a evolução da aplicação da pena; 1.1. Disposições Preliminares; 1.1.1. A vingança Divina; 1.1.2. A Vingança Privada; 1.1.3. A Vingança Pública; 1.2. O Direito Romano; 1.3. O Direito Germânico; 1.4. O Direito Grego; 1.5. O Direito Canônico; 1.6. O Período Humanitário; 1.7. O Período Científico; 2. A evolução da aplicação da pena no Brasil; 2.1. Considerações Iniciais; 2.2. Período Colonial; 2.2.1. Ordenações Afonsinas; 2.2.2. Ordenações Manuelinas; 2.2.3. Ordenações Filipinas; 2.3. Período Imperial; 2.4. Período Republicano; 2.5. Algumas Reformas na Legislação Penal; 2.5.1. O Código Penal de 1969; 2.5.2. O Código Penal de 1984; 2.5.3. A Lei 9.099/95; 3. A transação penal como paradigma para solução de conflitos; 3.1. Disposições Preliminares; 3.2. Conceito; 3.3. Finalidade; 3.4. A Proposta de Transação Penal; 3.5. É admissível ou não a Transação Penal na Ação Privada?; 3.6. A Transação Penal é um Poder ou Dever do Ministério Público?; 3.7. A Transação Penal e o Princípio da Indisponibilidade da Ação Penal; 4. Da transação penal; 4.1. Pressupostos de Cabimento; 4.2. Penalidades Aplicáveis quando da Proposta de Transação Penal; 4.3. Homologação da Transação Penal; 4.4. Natureza Jurídica da Sentença Homologatória de Transação Penal; 4.5. Sentença Condicionada ao Cumprimento do Acordo; 4.6. Efeitos da Homologação da Transação; 4.7. O Descumprimento da Transação Penal; 4.8. Nossa Posição; Considerações finais; Referências.
Introdução
Há muitos anos vêm se falando na morosidade do Poder Judiciário, morosidade esta advinda de vários fatores cumulados, que vêm desde a necessidade de reforma do Código de Processo Penal, que está em vigor há mais de 70 anos, até a deficiência na formação de operadores do Direito.
Em virtude da lentidão dos atos processuais, diversos eram os processos extintos em decorrência da prescrição em relação aos crimes com penas inferiores a 1 ano, fato esse, que causava a sensação de impunidade dos infratores.
Com o escopo de evitar essa impunidade, o Poder Constituinte Originário instituiu na Constituição da República de 1988, o disposto no Art. 98, I, que determinou a criação dos Juizados Especiais.
Assim, em 26 de setembro foi instituída a Lei 9.099/95, que regulamentou o dispositivo constitucional acima mencionado e instituiu a transação penal, enfoque desta pesquisa.
A transação penal tem como fim evitar a instauração do processo penal através de um acordo entre o Ministério Público e o autor do fato, acordo esse, que tem o objetivo a aplicação antecipada de uma pena restritiva de direitos. Entretanto, a referida lei não cuidou de disciplinar qual seria a atitude a ser tomada quando do descumprimento desse acordo, o que causa grande discussão entre os doutrinadores.
Esta pesquisa é resultado de uma experiência empírica. Por diversas vezes nos deparamos com operadores do direito discutindo sobre a conversão da pena restritiva de direito em privativa de liberdade, que seria uma das soluções apontadas para a solução desse empasse.
É relevante o tema tratado, porque além de esclarecer alguns pontos controvertidos em relação ao instituto da transação penal, tem como objetivo principal chamar a atenção dos operadores do direito para a ilegalidade da prisão em decorrência do descumprimento desse acordo.
Além de demonstrar essa ilegalidade, iremos conceituar o instituto da transação penal e mostrar sua finalidade sobre o ponto de vista do Estado e do indivíduo. Pretendemos também, discutir seus requisitos e pressupostos de cabimento. Iremos discorrer sobre temas polêmicos, como a questão do princípio da indisponibilidade da ação penal frente ao instituto, se é ou não admissível o acordo quando se tratar de ação penal privada e ainda, se a transação penal é um poder ou dever do Ministério Público. Vamos discutir também, quais são as penas restritivas de direito que podem ser propostas ao autor do fato e principalmente compreender a natureza jurídica da decisão que homologa a transação e avaliar se essa homologação pode ser condicionada ao cumprimento do acordo.
A metodologia a ser utilizada na presente pesquisa consiste na análise de doutrinas e jurisprudências a respeito da matéria.
No primeiro capítulo vamos fazer uma viagem ao passado, porque além de ser necessário, é inquestionável um conhecimento histórico sobre o direito penal para adentrarmos no assunto proposto.
No segundo capítulo, iremos estudar a origem histórica do Direito Penal no Brasil para que possamos compreender como era absoluta a intervenção do Estado na vida do indivíduo até a instituição da Lei 9.099/95, que revelou um direito penal que se preocupa com uma solução rápida para dos litígios, através de uma intervenção mínima, característica do Direito Penal contemporâneo.
No terceiro capítulo adentraremos no assunto propriamente dito. Iremos estudar uma lei que foi criada com o objetivo e dar uma solução rápida para os conflitos, não mais se preocupando com uma decisão de mérito, além de tratar de assuntos polêmicos em relação ao tema.
No quarto capítulo pretendemos demonstrar a natureza jurídica da transação penal e adentrar no foco principal deste trabalho científico que é a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade.
1. O panorama histórico sobre a evolução da aplicação da pena
1.1. Disposições Preliminares
O direito está intrinsecamente ligado à sociedade. Nas palavras de Paulo José da Costa Jr. (2000, p. 3) Ubi societas ibi jus (Não há sociedade sem direito e nem direito sem sociedade). Como pode ser visto, direito e sociedade nasceram juntos e, segundo os doutrinadores, o primeiro ramo do direito que surgiu foi o penal, direito esse que tem como objetivo defender a sociedade da agressividade humana (TELES, 2004, 54).
O homem é o único ser dotado de razão e ao longo dos tempos, este ser vem evoluindo, mas, contudo, sem abolir seu instinto animal, que se revela na agressividade. As formas de manifestação da agressividade humana também evoluíram, assim como a aplicação da pena e sua finalidade.
Neste capítulo pretendemos mostrar os principais instrumentos de aplicação da pena, assim como sua finalidade, através de enfoque evolutivo até a instituição da Lei 9.099/95.
A doutrina delimita essa evolução em 3 fases de desenvolvimento: Vingança Divina, Vingança Privada e Vingança Pública, entretanto, como salienta Bittencourt (2006, p. 35) não se trata de uma progressão sistemática, com princípios, períodos e épocas caracterizadoras de cada um de seus estágios.
1.1.1. A vingança Divina
A religião teve uma grande influência na vida dos povos antigos. Consoante Cézar Roberto Bittencourt (2006, p. 35), as três fases de desenvolvimento de aplicação da pena foram marcadas por um profundo sentimento religioso e espiritual. O princípio basilar nesta fase era “a repressão é a satisfação da divindade ofendida pelo crime.” Assim, a coerção do criminoso era vista como um castigo divino e, além disso, deveria desagravar a sociedade, porque para ela, os fenômenos naturais maléficos eram vistos como a ira dos deuses revoltados com o crime (BITTENCOURT, 2006, 36).
Era o Direito Penal teocrático, religioso e sacerdotal, que tinha como finalidade a purificação da alma e a intimidação do criminoso por meio da pena. As penas aplicadas eram cruéis, severas e desumanas, decorrente do caráter religioso, além disso, o castigo deveria ter relação com o deus ofendido.
As penas eram aplicadas pelos sacerdotes que exercia o poder em nome de Deus e cometia inúmeras arbitrariedades (TELES, 2004, p. 55).
Nesta época, religião e direito se confundiam, sendo que as leis eram baseadas na religião ou na moral. Eram ditadas em nome de Deus e o legislador pedia-lhe inspiração para redigi-las (TELES, 2004, p. 55).
Legislações com estas características foram encontradas no Egito (5 Livros), na China (Livro das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta), em Israel (Pentateuco) e na Babilônia. (BITTENCOURT, 2006, p. 36).
1.1.2. A Vingança Privada
A pena passou a existir no início da civilização como resposta do homem ao próprio homem. Nesta fase, denominada de vingança privada, a justiça penal se revela de uma forma embrionária, em que o ser humano reagia contra toda ação que o ameaçava ou punha em risco sua condição individual ou de seu grupo. Nessa época não existia um Estado, havia apenas famílias, tribos e clãs (TELES, 2004, p. 55).
Quando a agressão era feita por alguém estranho ao grupo, a punição era a “vingança de sangue,” verdadeira guerra grupal que muitas dizimavam completamente as tribos. Por outro lado, quando a ofensa era feita a alguém da própria tribo, o agressor era punido com a expulsão e tinha que viver isolado. Muitas vezes ele morria, seja por não conseguir viver sozinho ou porque era atacado por tribos rivais (BITTENCOURT, 2006, p. 36/37).
Chamada de “olho por olho, dente por dente”, a vingança privada constituiu a mais freqüente forma de punição dotada pelos povos primitivos.
A esse respeito leciona Ney Moura Teles (2004, p. 55):
“Além de fazer justiça pelas próprias mãos, as penas não guardavam a devida proporção com o delito que visavam responder. Verdadeira vingança de sangue tratava-se da lei do mais forte, cujo interesse individual colocava-se acima de tudo”.
Segundo Cézar Roberto Bittencourt (2006, p. 37), nessa época não existia um poder público. Podemos perceber uma pequena evolução, talvez o surgimento de um Estado, ainda muito primitivo, quando percebemos a aplicação de um direito penal em função do interesse coletivo, distinto do individual. Isso aconteceu com o surgimento do talião. O talião não era considerado uma pena, mas um instrumento moderador de punição. Ele foi criado naquela época para evitar a eliminação das tribos. Foi adotado por vários Códigos e consistia em aplicar ao delinqüente o mal que ele causou à vítima, na mesma proporção.
Foi adotado pelo Código de Hamurabi no século XVIII a.C.:
“Art. 196. Se alguém tirar um olho a outro, perderá o próprio olho.
Art. 197. Se alguém quebrar um osso a outrem, parta-se-lhe um osso também.
Art. 209. Se alguém bate numa mulher livre e faz abortar, deverá pagar dez ciclos pelo feto.
Art. 210. Se essa mulher morre, então deverá matar o filho dele.”
Pela lei das XII tábuas: “Se alguém fere a outrem, que sofra a pena de talião, salvo se houver acordo.”
E pela Bíblia Sagrada (Levídico, 24, 17): “Todo aquele que fere mortalmente um homem será morto.”
O talião foi um grande avanço na história do Direito Penal porque limitava a abrangência da ação punitiva.
Após o talião, surgiu a composição, que era o meio através do qual o agressor comprava sua liberdade com dinheiro ou bens pelo dano causado.
Como exemplo, podemos citar a Lei Mosaica que assim estabelecia: “Se um homem furtar um boi ou um carneiro e o matar ou vender, pagará cinco bois pelo boi e quatro carneiros pelo carneiro”.
A composição foi adotada por vários códigos e deu origem as penas de multa e indenizações cíveis (BITTENCOURT, 2006, 37).
1.1.3. A Vingança Pública
Com o passar do tempo a sociedade foi se desenvolvendo e afastando a vingança privada, surgindo, assim, o poder político na figura do soberano. A pena passou então a ser imposta por uma autoridade pública que representava os interesses de uma comunidade. Sua autoridade era exercida em nome de Deus, cometendo inúmeras arbitrariedades (BITTENCOURT, 2006, p. 37).
A primeira finalidade da pena reconhecida nessa fase era a garantia da segurança do soberano ou monarca através da sanção penal (BITTENCOURT, 2006, p. 37).
A pena de morte era muito utilizada e aplicada por motivos banais. O condenado era mutilado, seus bens eram confiscados e a pena estendia até sua família.
Apesar da insegurança jurídica que existia nesta época, o grande avanço é que a pena passou a ser aplicada pelo Estado.
1.2. O Direito Romano
Roma apresentou um ciclo jurídico completo. Passou pelas fases da vingança divina e privada, mas com o passar dos tempos, eles começaram a separar o direito da religião e a pena passou a ter o caráter público. Eles passaram a entender que o crime atentava contra uma ordem estabelecida e que a pena era uma resposta do Estado (TELES, 2004, p. 56).
No primeiro período de organização, chamado de realeza, o direito era consuetudinário, rígido, formalista e solene. O primeiro Código a ser escrito foi a lei das XII Tábuas (Séc. V a.C.), resultante da luta entre patrícios e plebeus (PRADO, 2002, p. 48). A principal pena pública era a de morte, chamada de supplicium. Era aplicada aos crimes contra a nação, contra os que matavam cidadãos livres, quem cometia falso testemunho, suborno de magistrado, crime de incêndio e de sátira injuriosa. A palavra crimen referia-se aos crimes de natureza pública, punidos pelo Estado, que era representado pelo magistrado que exercia o poder de imperium. A palavra delictum se referia aos de natureza privada, que eram executados pelo pater familias, através do talião ou da composição, havendo interferência do Estado apenas para regular seu exercício (TELES, 2004, p. 56). O pater famílias tinha poderes ilimitados sobre seus dependentes, mulheres e escravos, inclusive direito de vida e morte – jus vitae at necis – (COSTA JR., 2000, p. 10).
Com a república (510 a.C. até 27 a.C.), surgiram ações consideradas lesivas ao Estado, mas não havia previsões legais. Os crimes privados foram desaparecendo e aos poucos, o Estados assumindo a jurisdição. A pena de crucificação foi sendo substituída pela fogueira e pela forca. Estavam presentes também as penas de trabalho forçado (PRADO, 2002, p. 49).
Com o império (27 a.C. até 284 d.C.) passou a ser analisado o caso concreto, que resultou na aplicação de uma pena individualizada. Isso fez com que surgisse várias teorias, que foram previstas no Corpus Júris Civilis de Justiniano, como da imputabilidade, culpabilidade e seus excludentes, do dolo, culpa, tentativa, dentre outras (COSTA JR., 2000, p. 11).
1.3. O Direito Germânico
Antes da invasão romana, o direito germânico era basicamente consuetudinário. O talião foi utilizado mais tarde por influência dos direitos romano e canônico (BITTENCOURT, 2006, p. 42).
A pena era tida como “inspiração religiosa.” O direito era entendido como ordem de paz e sua transgressão como perda da paz (COSTA JR., 2000, p. 11).
Os crimes podiam ser públicos ou privados. Quando privado o ofendido podia se utilizar da vingança ou da composição.
As tarifas de pagamento estabelecidas na composição eram de acordo com a raça, sexo, idade, local e espécie de ofensa. Quem não podia pagar era punido com penas corporais (COSTA JR., 2000, p. 11). Quando os crimes eram públicos, a pessoa era declarada fora da lei e qualquer pessoa podia lhe tirar a vida. As penas cominadas eram de morte, corporais, mutilação e exílio (TELES, 2004, p. 57).
A principal característica do direto germânico é que ele não considerava a intenção do agente. O que era levado em consideração era o resultado causado pelo crime. Nas palavras de Luiz Régis Prado (2002, p. 53):
“Assim, há uma apreciação meramente objetiva do comportamento humano e uma confusão no que diz respeito à ilicitude. Despreza-se o aspecto subjetivo, não sendo punida a tentativa… Daí a máxima: o fato julga o homem. Importa, tão somente, o efeito danoso da ação, e a pena não sofre nenhuma oscilação se o resultado se produz voluntariamente ou não, ou por caso fortuito”.
1.4. O Direito Grego
No direito grego havia também a distinção entre os crimes públicos e privados. O primeiro era punido coletivamente e era aplicado também aos sucessores do criminoso, enquanto, no segundo, a responsabilidade era individual (TELES, 2004, p. 56).
Sua principal característica é a responsabilidade individual, o que se assemelha ao Direito Penal Moderno.
1.5. O Direito Canônico
O Direito Canônico é um conjunto de normas da Igreja Católica Apostólica Romana, resultante do conjunto de vários decretos emitidos pelos pontífices romanos, sendo que o último Código foi promulgado pelo Papa João Paulo II em 1983 (PRADO, 2002, p. 53). Ele surgiu no século IX com o Corpus Juris Canocini, resultante da luta do papado para impor leis ao Estado em nome de Deus (COSTA JR., 2000, p. 11).
A denominação “canônico” é derivado da palavra grega “Kanon”, que significa norma. Na Idade Média todas as regras da Igreja eram denominadas cânones e confrontava com as leis de origem laica (PRADO, 2002, p. 54).
No início, o Direito Penal Canônico tinha caráter disciplinar interno, mas com o enfraquecimento do Poder Estatal começou a abranger religiosos e leigos (PRADO, 2002, p. 54).
Tinha duas vertentes, chamadas de ratione personal e ratione materiae. A primeira era em razão da pessoa: o religioso era sempre julgado pelo Tribunal da Igreja, qualquer que fosse o delito cometido. A segunda dispunha que a competência seria eclesiástica, ainda que o crime fosse praticado por um leigo (PRADO, 2002, p. 54).
Os delitos eram classificados em: eclesiástica: quando a ofensa atingia o direito divino, a competência era dos tribunais eclesiásticos que puniam os ofensores com penitência ou excomunhão; mere secularia: ofendia somente o ordenamento jurídico laico e eram julgados pelo Estado e punidos com penas de morte, física, patrimonial, etc.; mixta: quando violavam as duas ordens. O ofensor era punido pelo tribunal que primeiro tivesse conhecimento do fato (PRADO, 2002, p. 54/ 55).
O Direito Penal Canônico tinha como finalidade o arrependimento e a correção do criminoso. Os tribunais católicos não aplicavam a pena de morte, mas quando a pena era cabível, o ofensor era entregue ao tribunal laico, porém, em reação aos delitos de usura e heresia que eram punidos com pena de morte, os agressores eram julgados de acordo com as normas da Igreja (PRADO, 2002, p. 55).
A partir do ano de 1215 foi instituído o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição), por Inocêncio III, com a utilização do procedimento inquisitório, que foi uma prática amplamente difundida. Consistia na perseguição, julgamento e punição dos acusados de heresia (doutrinas ou práticas contrárias às definições da Igreja). As punições variavam desde a obrigação de fazer uma retratação pública até o confisco de bens e a prisão em cadeias. A pena mais severa era a de prisão perpétua, convertida pelas autoridades civis em execuções na fogueira ou na forca em praça pública. Para que uma pessoa fosse condenada bastava o testemunho de duas pessoas (PRADO, 2002, p. 55).
Foi o Direito Canônico que deu origem à pena de prisão. Os monges ficavam presos em mosteiros quando infringiam as normas, rezando para se redimirem de seus pecados.
O Direito Canônico foi de grande valia para a humanização do direito penal porque privilegiava o perdão ao ódio, suavizando, assim, o caráter de castigo, bem como o arrependimento e a ressocialização. Fortaleceu a natureza pública da pena, à medida que não punia os crimes que ofendiam ao Estado. Firmou o princípio da igualdade de todos perante Deus. Acentuou a distinção entre dolo e culpa, porque levava em consideração a vontade e não o acontecimento (COSTA JR., 2000, p. 11/12).
1.6. O Período Humanitário
Os séculos XVII e XVIII foram marcados pela crescente importância da burguesia que impulsionava o desenvolvimento do capitalismo. Essa época foi marcada por intensos conflitos de interesses entre os burgueses e a nobreza. Então surgiu um conjunto de idéias que deu origem ao liberalismo burguês. Esse pensamento ganhou destaque e ficou conhecido como Filosofia das Luzes ou Iluminismo.
A partir de então a pena passou a ser vista sob uma nova ótica. Na concepção do filósofo Rousseau, em sua obra “O Contrato Social,” a pena se desvinculava da ética e da religião e encontrava sua razão “no contrato social violado” e deveria ser utilizada como medida puramente preventiva.
As velhas concepções arbitrárias foram aos poucos sendo dissolvidas pelos pensamentos filosóficos, que começaram a censurar a legislação penal, defendendo as liberdades individuais e a dignidade humana (BITTENCOURT, 2006, p. 47).
Assim, os ideais iluministas foram aos poucos transformando o Direito Penal, visando, acima de tudo, à humanização da pena.
Um importante destaque desta época, influenciado pelo Iluminismo, foi o Marquês de Beccaria. Em 1764 ele escreveu uma grande obra intitulada “Dos Delitos e Das Penas.” Esta obra mostrou um panorama de desumanidade do Direito Penal da época e denunciou abusos de um poder estatal ilimitado (BECCARIA, 2003, p.16). Ele desenvolveu várias teorias, dentre elas, que as penas deveriam ser proporcionais aos delitos. Defendia o fim da pena de morte, da tortura, dos tormentos e ainda, os princípios que hoje chamamos de legalidade, da presunção da inocência e que a pena deveria intimidar o cidadão e recuperar o criminoso. Sobre os estabelecimentos prisionais de seu tempo, dizia que “era a horrível mansão do desespero e da fome”, faltando dentro delas piedade e humanidade.
Os princípios básicos do Direito Penal esculpidos por Beccaria serviram como alicerce para o Direito Penal Moderno, sendo adotado por vários Códigos, inclusive pela Declaração dos Direitos Humanos em 1789.
Outra importante figura que não pode deixar de ser mencionada, é o inglês Jonh Howard. Consoante Cézar Roberto Bittencourt (2006, p. 51) sua principal preocupação foi com os problemas penitenciários. Ele inspirou uma corrente penitencialista que se preocupava em construir estabelecimentos prisionais adequados para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Ele se conscientizou de que as prisões deveriam proporcionar ao apenado higiene, alimentação, enfim, assistências básicas para cobrirem as necessidades elementares do ser humano.
1.7. O Período Científico
Por volta de meados do século XIX, teve início o período científico, denominado também de criminológico. Neste período, foram trilhados outros caminhos para o estudo do direito penal a partir dos ideais iluministas. Estes estudos consistiam em buscar os motivos que levavam o ser humano a delinqüir.
Por não ser objeto deste trabalho explanar sobre as Escolas penais que se destacaram nestas pesquisas, serão citadas algumas a título de ilustração: Escola Clássica, Escola Positivista, Escola Moderna Alemã, Escola Crítica, Escola Penal Humanista, Escola Técnico- Jurídica, Escola Correcionalista etc.
Como pôde ser observado, o processo evolutivo de aplicação da pena foi lento e doloroso. Somente a partir do Iluminismo é que novos rumos foram traçados para o Direito Penal.
Durante todos esses séculos, não foi somente a aplicação da pena que evoluiu, mas também sua finalidade.
Nos primórdios da humanidade a pena tinha como finalidade a satisfação dos deuses, depois da vítima e com o passar dos tempos da sociedade. Mesmo com essa evolução, as penas continuavam a ser cruéis, como nas primeiras manifestações do homem contra o homem.
Para adentrarmos no foco principal desta pesquisa, que é a instituição da transação penal pela Lei 9.099/95, faz-se necessário reportarmos à história do Direito Penal no Brasil, desde a Colonização até a edição da Lei em questão.
2. A evolução da aplicação da pena no brasil
2.1. Considerações Iniciais
Antes da colonização portuguesa podemos dizer que imperava no Brasil o talião (TELES, 2004, p. 61), porém, os costumes dos antigos habitantes deste país não influenciaram na formação do Direito Penal Brasileiro que foi importado de Portugal.
Ao falarmos do Direito Penal no Brasil é preciso primeiramente fazermos breves considerações a respeito do Direito Português, que predominou neste país durante longos anos e algumas reformas legislativas, para somente depois falarmos da instituição da Lei 9.099/95 e a transação penal, objeto desta pesquisa científica.
A doutrina divide o Direito Brasileiro em três fases distintas: período colonial, imperial e republicano, sendo que a primeira fase se subdivide em outras três.
2.2. Período Colonial
A história do Direito Brasileiro se confundiu durante muitos anos com o Direito Português. A partir do descobrimento, as leis portuguesas passaram a imperar neste país.
2.2.1. Ordenações Afonsinas
Quando o Brasil foi descoberto, em Portugal vigorava as Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1.446 por D. Afonso V, além de estarem presentes naquele ordenamento jurídico normas de Direito Romano, Canônico e consuetudinário. As ordenações Afonsinas foram consideradas o primeiro Código europeu completo, onde no livro V traziam as normas de Direito Penal (TELES, 2004, p. 61).
Consoante Ney Moura Teles (2003, p. 62), as penas estabelecidas neste Código eram cruéis, arbitrárias e desigualmente fixadas pelo julgador. Para ele, felizmente essas Ordenações quase não tiveram aplicabilidade em nosso país porque sua vigência foi até 1.514 e até 1.530 o nosso país foi regido pelas bulas pontifícias, alvarás e cartas régias.
2.2.2. Ordenações Manuelinas
As Ordenações Manuelinas foram promulgadas em 1.514 por Dom Manuel e vigorou até 1.603.
Segundo Ney Moura Teles (2004, p. 62), o novo Código não trouxe mudanças significativas, principalmente no que dizia respeito aos crimes públicos.
A pena de prisão não se tratava de uma condenação criminal, mas sim de uma medida cautelar para manter o preso sob custódia até a execução da pena, que era de morte, castigos corporais, aflição ou suplício. Existia também a pena de servidão, que era utilizada para punir o judeu que se passasse por cristão (TELES, 2004, p. 62).
As Ordenações Manuelinas foram aplicadas neste país pelos donatários das capitanias hereditárias como “senhores, juízes e verdadeiros reis que interpretavam, diziam e executavam o Direito Penal como se fossem deuses” (PRADO, 2002. p. 95).
2.2.3. Ordenações Filipinas
Foi promulgada em 1.603 por Felipe II, da Espanha, que na época reinava também em Portugal como Felipe I. Em 1.643 foi ratificada por D. João IV e em 1.823 por D. Pedro I.
A lei vigorou por mais de dois séculos e como não havia os princípios da legalidade e do contraditório, as penas ficavam ao livre arbítrio dos juízes que aplicavam as penas de formas desiguais, conforme o “status do apenado”. As penas cominadas eram de: ferro em brasa, corte de membros, multas, transmissão da infâmia aos descendentes dos criminosos, fogo em vida, dentre outras (TELES, 2004, p. 62).
Esta lei foi amplamente aplicada no Brasil, vindo a punir em 1.792 o mártir da Inconfidência, José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes.
A lei sofreu várias críticas porque em nada distinguiam dos Códigos anteriores, pelo contrário, era ainda pior, segundo Luiz Regis Prado (2002, p. 95).
2.3. Período Imperial
Pouco antes da Independência, algumas penas cruéis foram abolidas, como a de tortura, infamante, a proibição da pena ultrapassar aos familiares do condenado, dentre outras (TELES, 2004, p. 63).
Com a Independência, foi promulgada em 1.824 a primeira Constituição do Império, com a adoção de alguns princípios como: a lei não terá efeito retroativo, a igualdade de todos perante a lei, nenhuma pena passará da pessoa do condenado e ainda aboliu os açoites, as torturas, as marcas de ferro em brasa, cruéis, além de outras. Acolheu 179 princípios sobre direitos e liberdades individuais, alterando parte do sistema penal em vigor (TELES, 2004, p. 63).
Em 1.830 surge o primeiro Código Criminal do Império e também o primeiro Código autônomo da América Latina (BITENCOURT, 2006, p. 58). Era composto de 313 artigos dividido em 4 partes: I. dos crimes e das penas; II. dos crimes públicos; III. dos crimes particulares; IV. dos crimes policiais. Adotou alguns princípios, como o da responsabilidade moral e do livre arbítrio, segundo o qual não há criminoso sem má fé, sem conhecimento do mal e sem a intenção de praticá-lo (PRADO, 2002, p. 97).
As penas previstas eram: morte na forca (para os crimes de insurreição de escravos, homicídio agravado e roubo com morte), trabalhos forçados, prisão simples e com trabalhos, banimento, degredo, desterro, multas e suspensão de direitos. Dispunha também sobre a imprescritibilidade das penas, o perdão concedido pelo ofendido e pelo imperador (TELES, 2004, p. 63).
Os avanços foram enormes, apesar da terrível pena de morte, que mais tarde foi revogada tacitamente por D. João II que passou a conceder o direito de clemência a todos os condenados à forca, tornando-se, assim, uma prática reiterada.
2.4. Período Republicano
Com a república e a abolição da escravatura, imperou-se a necessidade de elaborar um novo Código em virtude das amplas modificações na legislação penal. Foi assim que durante o Governo provisório de Deodoro, o Ministro da justiça Campos Sales encarregou o professor João Baptista Pereira de elaborar um novo Código, que foi apresentado em três meses (PRADO, 2002, p. 99).
Antes da entrada em vigor do novo Código, o decreto 774 de 20 de setembro de 1.890 aboliu as penas de galés, fixou em trinta anos o limite máximo da pena privativa de liberdade, que antes podia ser perpétua e estabeleceu a prescrição das penas (TELES 2004, p.64).
As penas previstas novo Código de 1890 eram: prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição, suspensão e perda do emprego público, multa, banimento, dentre outras (TELES 2004, p.64).
Entretanto, não se sabe se pelo curto espaço de tempo em que foi elaborado, o Código de 1890 foi veemente criticado por apresentar, segundo Cézar Roberto Bittencourt (2006, p. 59) alguns erros. Então, para corrigi-lo, várias leis extravagantes foram editadas, ficando, assim, muito difícil seu manuseio o que gerou a incerteza na sua aplicação.
Destarte, foi confiado ao Desembargador Vicente Piragibe a tarefa de consolidar as leis extravagantes, que foi feita através do Decreto 22.213 de 14 de dezembro de 1932, que vigorou até 1940 (BITTENCOURT, 2006, p. 59).
Em 1.940 foi promulgado o novo Código Penal Brasileiro que teve sua vigência a partir de 01 de janeiro de 1.942 e está em vigor até os dias atuais com algumas modificações.
2.5. Algumas Reformas na Legislação Penal
2.5.1. O Código Penal de 1969
Foi elaborado por Nélson Hungria, apresentado ao governo e publicado através do decreto 1.490 de 8 de dezembro de 1.962 para que pudesse receber sugestões. O projeto mantinha a mesma estrutura do Código Penal de 1940, excluídos os defeitos considerados mais graves. Propunha, dentre outras mudanças, a elevação da pena de reclusão para 40 anos, limitava o poder discricionário do juiz quando da aplicação da pena e a redução da imputabilidade penal para 16 anos (PIERANGELI, 2001, p. 85).
O projeto recebeu várias sugestões apresentadas por Faculdades de Direito e pelos Conselhos da OAB.
Como todos os Códigos, recebeu críticas e elogios.
Foi submetido a várias revisões e muitos decretos foram editados para sua entrada em vigor, até que em 11 de outubro de 1978, foi revogado pela lei 6.578.
2.5.2. O Código Penal de 1984
A Lei 7.209/84 foi editada e reformulou amplamente a parte geral do Código Penal de 1940, humanizando as sanções penais. Adotou as penas alternativas à prisão, além de reintroduzir o sistema de dias multa (BITTENCOURT, 2006, p. 59/60).
Segundo José Henrique Pierangeli (2001, p. 86):
“Elaborou-se um rol de penas que vão desde a multa e a simples restrição de certos direitos até a privação da liberdade em regime fechado. Estabeleceu-se a escala de aplicação dessas penas, reservando-se as não privativas de liberdade para as infrações de menor importância, as privativas de liberdade para os crimes mais graves e para os delinqüentes perigosos ou que não se adaptarem, por rebeldia, às outras modalidades de pena. Dentre as penas não privativas de liberdade, acolheram-se as seguintes: multa, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana”.
Foi adotado também o princípio da culpabilidade, diversificou o tratamento dos partícipes no concurso de agentes, admitiu-se a escusabilidade da falta de consciência de ilicitude, ficou estabelecido que a dosimetria da pena não pode ultrapassar o grau de culpabilidade do agente, dentre outras mudanças (PIERANGELI, 2001, p. 86).
2.5.3. A Lei 9.099/95
Em 26 de setembro de 1995, entrou em vigor a Lei 9.099/95 que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais. Foi um marco na reformulação do Direito Penal pátrio, inspirado na política de despenalização para os crimes de menor potencial ofensivo.
Com o advento da Lei 9.099/95, o processo tornou-se mais célere, buscando assegurar as decisões judiciais, evitando-se, assim, a impunibilidade dos ilícitos penais e ao mesmo tempo, para desafogar a Justiça Criminal.
A partir de agora, iremos aternos somente à Lei 9.099/95 com o instituto da transação penal.
3. A transação penal como paradigma para solução de conflitos
3.1. Disposições Preliminares
A Constituição de 1988 determinou em seu art. 98, I, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Em 26 de setembro de 1995 foi instituída a Lei 9.099/95 que regulamentou o dispositivo constitucional que trata dos Juizados Especiais, abrangendo os crimes considerados de menor potencial ofensivo, cuja pena máxima cominada, inicialmente, era de 1 ano. Em 2001, com a entrada em vigor da Lei 10.259, que criou os Juizados Especiais Criminais Federais, o conceito de menor potencial ofensivo foi ampliado para 2 anos. Recentemente, a Lei 11.313/06 alterou o art. 61 da Lei 9.099/95, para abarcar os crimes com pena igual ou inferior a 2 anos, cumulada ou não com multa.
Os critérios norteadores dos Juizados Especiais Criminais são: a busca da reparação do dano à vítima, a conciliação, a não aplicação da pena privativa de liberdade e os princípios da oralidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade dos atos processuais (Lei 9.099/95).
Conforme dito anteriormente, a Lei 9.099/95 inovou a legislação criminal, criando novos institutos, como a composição civil do dano à vítima, a transação penal e a suspensão condicional do processo. A transação penal, objeto desta pesquisa é um novo modelo de justiça criminal que busca a solução dos conflitos e não mais uma solução de mérito, como no processo criminal comum. Mesmo estando em vigor há mais de dez anos, ela ainda traz grandes desafios e muitas polêmicas entre os operadores do direito.
3.2. Conceito
Assim dispõe o Art. 76 da Lei 9.099/95:
“Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.”
Com fundamento no dispositivo legal mencionado, a Escola Paulista do Ministério Público, apud Mirabete (2000, p. 117), conceituou o instituto da transação penal nos seguintes termos:
“A transação penal é um instituto jurídico novo, que atribui ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, a faculdade dela dispor, desde que atendidas as condições previstas na Lei, propondo ao autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação, sem denúncia e instauração de processo, de pena não privativa de liberdade”.
Em outras palavras, a transação penal pode ser definida como um acordo entre o autor do fato e Ministério Público, através do qual este último se submete ao cumprimento de determinada medida, sem admissão de culpa, para evitar a instauração de um processo.
3.3. Finalidade
A finalidade da transação penal pode ser vista sob dois aspectos: um sob o ponto de vista do Estado e o outro sob o ponto de vista do beneficiado:
O primeiro, diz respeito à finalidade do instituto em si, que é promover a pacificação social de uma forma mais célere e menos burocrática a fim de evitar a impunidade dos ilícitos penais.
O segundo aspecto é evitar, em princípio, a instauração da ação penal que certamente traz conseqüências mais danosas para o ofensor.
A esse respeito leciona Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 76):
“[…] a transação envolve um acordo entre o órgão acusatório, na hipótese enunciada no art. 76 da Lei 9.099/95, e o autor do fato, visando à imposição de pena de multa ou restritiva de direitos, imediatamente, sem a necessidade do devido processo legal, evitando-se, pois, a discussão acerca da culpa e os males trazidos, por conseqüência, pelo litígio na esfera criminal…”
3.4. A Proposta de Transação Penal
De acordo com o disposto nos artigos 69 e 77§ 1 da Lei 9.099/95, quando da prática de um delito considerado de menor potencial ofensivo, será lavrado um Temo Circunstanciado de Ocorrência que substitui, nesse caso, o inquérito policial. Esse termo será lavrado pela autoridade competente que descreverá sucintamente os fatos, indicando a vítima, o autor da infração e as testemunhas, que serão limitadas em três. O Termo Circunstanciado poderá ainda, ser seguido, conforme o caso, de um boletim médico ou prova equivalente para comprovar a materialidade do delito. Lavrado o termo, esse será encaminhado ao Juizado Criminal. É importante ressaltar que não haverá prisão em flagrante quando o autor do fato assumir o compromisso de comparecer ao Juizado, ficando, assim, proibido a lavratura do auto.
No Juizado Especial Criminal o TCO será encaminhado ao Ministério Público para que seja analisado se é ou não o caso de arquivamento. Como a Lei 9.099/95 não trata dos requisitos para o pedido de arquivamento, deve ser utilizado subsidiariamente o art. 28 do CPP, que para Ada Pellegini (2005, p. 151) se aplicam totalmente as infrações consideradas de menor potencial ofensivo. Somente após essa análise é que será designada audiência preliminar.
Nas palavras de Ada Pellegrini Grinover (2005, p. 151), “a proposta de transação penal não é alternativa ao pedido de arquivamento, mas algo que possa ocorrer somente nas hipóteses em que o Ministério Público entenda que deva o processo penal ser instaurado.”
Assim, o momento oportuno para apresentação da proposta de transação é na audiência preliminar. A proposta ocorrerá quando o Ministério Público entender que deva o processo penal ser instaurado, ou seja, nos casos de ação penal pública incondicionada ou condicionada (caso haja representação da vítima) e, nesse último caso, logo após infrutífera tentativa de conciliação entre as partes.
Havendo composição civil do dano antes da audiência preliminar ou durante sua realização, a transação penal está impedida (art. 74, Lei 9.099/95). Por outro lado, se a ação penal for incondicionada, pouco importa se houve ou não acordo entre as partes, pois, este ato não será considerado como causa para extinção da punibilidade (CAPEZ, 2006, p. 556).
A audiência preliminar é obrigatória.
Nesse sentido:
“Em sede de Juizado Especial Criminal, é nulo o processo no qual a pena de multa aplicada em transação é cobrada sem que a audiência preliminar tivesse sido realizada, pois restam suprimidas fases que a Lei 9.099/95 estabelece como integrantes do sistema por ela adotado, inclusive por não ter havido ensejo a que fosse o acusado advertido das conseqüências do descumprimento da obrigação assumida e devidamente homologada” (RJDTACRIM 37/249).
3.5. É admissível ou não a Transação Penal na Ação Privada?
A Lei não deixa dúvidas em relação à titularidade da proposta de transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95): “havendo representação, ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada (…) o Ministério Público poderá propor aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta (…)”.
Como pode ser visto, em hipótese alguma foi permitido que a vítima proponha uma sanção penal ao ofensor. Se essa hipótese fosse admitida, estaríamos sem sombra de dúvidas, voltando à fase da vingança privada. A Lei 9.099/95 prevê a reparação do dano através da composição civil. Caso não haja acordo, a vítima poderá ajuizar uma ação de indenização, mas a submissão à proposta de transação como forma de punição deve, acima de tudo, ficar a cargo do Estado.
Na lição de Ada Pellegrini (2005, p. 149):
“A lei só cuida da proposta de aplicação de pena com relação à ação penal pública, condicionada ou não. Exclui-se das primeiras linhas do art. 76 a previsão de transação penal proposta pelo titular da queixa crime. E certamente, numa visão mais tradicional do papel da vítima no processo penal, poder-se-ia afirmar não ter ela interesse na pena. De modo que, frustrada a tentativa de reparação dos danos, somente abrem-lhe duas alternativas: apresentar queixa, para o exercício da ação penal, como substituto processual, ou quedar-se inerte, não dando margem a persecução penal.”
E continua:
“Poderia parecer estranho permitir à vítima transacionar sobre aplicação de sanção penal. Tal ato de disponibilidade (parcial) se coadunaria com os poderes do substituto processual, que em nome próprio defende o interesse público à persecução penal”.
Para ela, esses foram os motivos que levaram o legislador a restringir a transação penal aos casos de ação penal pública.
Júlio Fabbrini Mirabete (2000, p. 129) se pronunciou de acordo com a conclusão do I Congresso Brasileiro de Direito Processual e Juizados Especiais:
“Não prevê a lei a possibilidade de transação na ação penal de iniciativa privada. Isto porque, na espécie, o ofendido não é representante do titular do jus puniendi, mas somente do jus persequendi in juditio. Não se entendeu possível que pudesse, assim, a aplicação de pena na hipótese de infração penal de menor potencial ofensivo, permitindo à vítima transacionar sobre uma ação penal. Ademais, numa visão tradicional, o interesse da vítima é o de ver reparados os danos causados pelo crime, o que lhe é possibilitado no instituto da composição, ou com a execução da sentença condenatória penal. Na ação penal de iniciativa privada, prevalecem os princípios da oportunidade e disponibilidade e, no caso afeto aos Juizados, a composição pelos danos sofridos pela vítima, tornando desnecessária e desaconselhável a previsão de oferecimento de proposta para transação.”
Este também é o posicionamento de Fernando Capez (2006, p. 556):
“Se a ação for privada, entendemos que não cabe transação, pois, como vigora o princípio da disponibilidade, a todo tempo o ofendido poderá, por outros meios (perdão e perempção), desistir do processo; entretanto, não tem autoridade para oferecer nenhuma pena, limitando-se a legitimidade que recebeu do Estado à mera propositura da ação.”
Há, porém, opiniões em sentido contrário, como é o caso de Fernando da Costa Tourinho Neto (2005, p. 536), que afirma que o fato de a Lei dos Juizados referir-se ao Ministério Público como legitimado para propor a transação penal não quer dizer que o querelante não tenha legitimidade. Para ele, a Lei não previu a possibilidade porque entendeu ser óbvio, considerando o princípio da oportunidade que rege a ação penal privada. Ele entende ainda, que preenchidos os requisitos que possibilitem a transação penal e o querelante não a fizer, pode o Juiz fazê-la.
No entanto, Ada Pellegrini faz a seguinte ressalva (2005, p. 150):
“A vítima, que viu frustrado o acordo civil do art. 74, quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra alternativa lhe for oferecida. Mas, se pode o mais, porque não poderia o menos? Talvez sua satisfação, no âmbito penal se reduza a imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se vêem razões válidas para obstar-se-lhe a via da transação que, se aceita pelo autuado, será mais benéfica também para este.”
Nesse sentido, já decidiu o STJ:
“A Lei 9.099/95 aplica-se aos crimes de procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a suspensão condicional do processo inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada”. (RHC 8.480-SP, 5 Turma, rel. Gilson Dipp, DJU 22.11. 1999)
3.6. A Transação Penal é um Poder ou Dever do Ministério Público?
Conforme salienta Ada Pellegrini (2005, p. 153), a primeira leitura do art. 76 da Lei 9.099/95, em uma interpretação meramente literal, sugere que se trata de simples faculdade do Ministério Público, que pode optar por transacionar, ainda que presentes as condições legais. Para a jurista, o “poderá” não indica faculdade, mas um poder dever a ser exercido pelo órgão acusador todas as vezes que não se configurem as hipóteses do § 2, in verbis:
“§ 2. Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:
I. ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;
II. ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 5 (cinco) anos, pela aplicação de pena restritiva de direitos ou multa, nos termos deste artigo;
III. não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente para a adoção da medida”.
Assim, o poder dever da acusação corresponderia a um direito público subjetivo do autor do fato, ou seja, preenchidos os pressupostos autorizadores do benefício, a transação penal seria um direito do autuado e somente ele poderia ter a faculdade de dispor ou não desse benefício.
A propósito:
“A aplicação antecipada da pena, prevista no art. 76 da Lei 9.099/95, é direito do réu, quando preenchidos os requisitos legais e havendo a sua concordância, fazendo com que se beneficie com a limitação dos efeitos da sentença, ainda que o Ministério Público oponha-se a tal solução favorável, pois, apesar de haver recebido do Estado o direito de ação penal, não pode submeter o infrator a tratamento mais rigoroso do que o previsto em lei”(RJDTACRIM 31/199).
Cézar Roberto Bittencourt (2006, p. 62) entende que como o direito subjetivo do autor está sendo violado, deve se impetrado habeas corpus.
Para Damásio E de Jesus (2006, p. 88), neste caso, o Juiz pode fazer a proposta. Esse é o entendimento da Comissão Nacional de Interpretação da Lei 9.099/95, sob a coordenação da Escola Nacional de Magistratura. A Comissão chegou a conclusão de que “se o Ministério Público não oferecer a proposta de transação penal, poderá o juiz fazê-la (apud TOURINHO NETO, 2005, p. 532).
Sobre essa posição, a jurisprudência já se manifestou nos seguintes termos:
“Transação processual: ante a desarrazoada recusa, ou mesmo recusa erroneamente motivada por parte do Ministério Público tem o Juiz o dever de suprir ou não aceitar tal motivação que causa inegável lesão aos direitos do infrator.” (RJDTACRIM 40/44)
Nesse sentido é a conclusão seguinte:
“Décima terceira conclusão: Se o Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão do processo nos termos dos artigos 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo.”
Mas o oferecimento da proposta pelo magistrado é polêmica, visto que tal solução afronta a autonomia da vontade do órgão acusador. A esse respeito se posicionou Mirabete (2000, p. 122):
“A proposta de ofício com a conseqüente homologação em caso de aceitação equivaleria ao exercício da jurisdição sem ação. O princípio da discricionariedade limitada, portanto permite ao Ministério Público e, só a ele, optar pela representação da proposta ou oferecer a denúncia desde logo, segundo a conveniência e necessidade de repressão ao crime com maior ou menor intensidade, diante da política criminal que estabelecer. Não há nem implicitamente a transferência do direito de ação do Ministério Público para o magistrado, o que, aliás padeceria do vício da inconstitucionalidade. Cabe somente ao Ministério Público a parcela de soberania do Estado de promover a persecução criminal, verificando se existem as condições necessárias para o início do devido processo legal, vedando-se ao poder judiciário, fora dos limites legais, discutir o mérito do ato discricionário do Parquet, violando o princípio do devido processo legal” (art. 5, LIII, da Constituição Federal).
Segundo Fernando Capez (2006, p. 557), o juiz não pode modificar o conteúdo da decisão. Se o Ministério Público não oferecer a proposta ou se o juiz discordar de seu conteúdo, deverá, por analogia o art. 28 de CPP, remeter os autos ao Procurador Geral de Justiça para designação de outro Promotor para formulação da proposta, fazer alteração de seu conteúdo ou ratificá-la, caso em que o Juiz está obrigado a homologar o acordo. Esta também é a posição de Ada Pellegrini.
A esse respeito:
“[…] Entendendo o Magistrado que incorreta a discricionariedade do Promotor de Justiça ao não propor algumas das mercês estabelecidas da Lei 9.099/95, nada obsta, antes de tudo aconselha-se que, por analogia ao art. 28 do diploma processual vigente, remeta os autos ao Chefe do Parquet a fim de que se examine o caso e aplique a discricionariedade regrada” (RT 739/618-619).
Esse entendimento consolidou-se no Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 696:
“Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo remeterá a questão ao Procurador Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.”
Outro ponto importante que não pode deixar de ser lembrado é que se o autor do fato preencher os requisitos estabelecidos na lei, tendo o direito de ser beneficiado com a transação penal, a vontade da vítima em nada influenciará na concessão do benefício.
3.7. A Transação Penal e o Princípio da Indisponibilidade da Ação Penal
Uma das questões polêmica que sobreveio com o instituto da transação penal é a discussão acerca de uma possível ofensa ao princípio da indisponibilidade da ação penal, conferido ao Ministério Público no art. 28 do CPP:
“Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará obrigado o juiz a atender.”
Ao transacionar com o ofensor, estaria o Estado abdicando do direito e sobretudo do dever de punir?
Sim. Sem sombra de dúvidas, a transação penal ofende ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, adotado pelo art. 28 do Código de Processo Penal, entretanto, tal instituto foi criado pela Constituição Federal, destarte, a transação penal prevalece, uma vez que a Lei maior deve ser respeitada.
A respeito do princípio da indisponibilidade da ação penal, o XVI Congresso do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro chegou a seguinte conclusão:
“O princípio da obrigatoriedade convive harmonicamente com o procedimento do Juizado Especial e com o instituto da suspensão do processo; já o princípio da indisponibilidade não é respeitado na face preliminar e no procedimento sumaríssimo (se ocorrer a conciliação). Na suspensão o referido princípio é atendido.”
Após analisarmos os aspectos gerais do instituto, iremos avaliar outros pontos controvertidos sobre o assunto e, finalmente, o ponto mais polêmico sobre a matéria que é a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade.
4. Da transação penal
4.1. Pressupostos de Cabimento
Frustrada a composição civil do dano ou não sendo o caso de conciliação, o processo seguirá com a possibilidade de um acordo entre o autor do fato e o Ministério Público.
Os requisitos para celebração desse acordo são: formulação da proposta pelo Ministério Público; tratar-se de contravenção penal ou de crime cuja pena máxima cominada não seja superior a 2 anos; tratar-se de crime de ação penal pública incondicionada ou condicionada a representação do ofendido (caso em que ela deverá ser oferecida); não ser o caso de arquivamento do Termo Circunstanciado de Ocorrência; e a aceitação da proposta pelo autor da infração e seu defensor;
Além de todos esses requisitos, preceitua o Art. 76, § 2, da Lei 9.099/95 que a proposta só será feita se ficar comprovado: não ter sido o autor da infração condenado pela prática de crime, a pena privativa de liberdade por sentença definitiva; não ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 5 (cinco) anos pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos da lei; ser indicada para o caso, considerando os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.
Ausente qualquer desses pressupostos, estabelece o art. 77, do mesmo diploma legal, que o Ministério Público oferecerá imediatamente denúncia oral.
Se a proposta for aceita, ela será imediatamente levada a apreciação do Juiz para homologação (art. 76, p. 3), ocasião em que será aplicada pena restritiva de direitos ou multa (art. 76, p. 4).
4.2. Penalidades Aplicáveis quando da Proposta de Transação Penal
As penas restritivas de direitos foram criadas com o objetivo de substituir as penas privativas de liberdade (art. 43 do CP). No caso da transação penal, as penas restritivas de direitos são autônomas e não substituem a pena privativa de liberdade.
Dispõe o art. 76 da Lei 9.099/95: (…) “o Ministério Público poderá propor aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.”
Assim, as penas compatíveis com a transação penal são as restritivas de direitos ou multa, excluídas as privativas de liberdade.
Na transação penal o Ministério Público propõe a aplicação da pena restritiva de direitos e se o autor do fato aceitar, ela será aplicada.
Conforme salienta Tourinho Neto (2005, p. 76), o tempo de duração da pena restritiva de direitos não pode exceder o mínimo da pena cominada ao crime.
As penas restritivas de direito, de acordo com o art. 43 do Código Penal, são: prestação pecuniária; perda de bens e valores; prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; interdição temporária de direitos e limitação de final de semana.
Para Tourinho Neto, esse rol é taxativo e não pode o Juiz fixar pena diversa das previstas no art. 43 do diploma legal.
A prestação pecuniária tem caráter indenizatório e consiste no pagamento de dinheiro à vítima, seus dependentes ou entidades públicas ou privadas com destinação social, de 1 a 360 salários mínimos, de acordo com o art. 43, § 1, do CP. Esse valor será deduzido de eventual reparação civil, no caso de pagamento à vítima. Para Nucci, (2006, p. 387) se houve a composição civil do dano, sendo o crime de ação penal pública incondicionada e a transação penal aplicada for consistente em prestação pecuniária o benefício não pode ser destinado à vítima, pois, esta não pode lucrar com o crime. Ele enfatiza ainda que o montante em dinheiro deve ser razoável e não pode simular uma pena consistindo no pagamento de quantias ínfimas.
A perda de bens e valores visa a impedir que o réu obtenha qualquer benefício em razão da prática do crime. A perda de bens incidirá sobre o montante do prejuízo causado e o provento obtido pelo agente ou por terceiro pela prática do crime. Nucci (2006, p. 388), esclarece que o autuado poderia perder qualquer valor, desde que não ultrapasse o prejuízo causado pela infração.
A prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição de tarefas gratuitas do condenado a entidades assistenciais, hospitais, escolas, de acordo com suas aptidões. A prestação de serviços a comunidade deve ser cumprida à razão de uma hora de trabalho por cada dia de condenação, ou seja, se o indivíduo foi condenado a noventa dias de prisão, deverá cumprir noventa horas de trabalho gratuito. Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 388), entende que a prestação de serviços seria a melhor medida, pois, “confere um significado ético à punição, implicando no dever de colaboração e, ainda na instigação à solidariedade.”
A interdição temporária de direitos consiste em: a) Proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo. Para que isso ocorra não precisa o crime ser contra a administração pública, basta ter havido violação dos deveres inerentes do cargo, função ou atividade pública. Esta pena restritiva não se confunde com a perda do cargo em virtude da condenação (art. 92, I). A pena consiste na proibição de exercer o cargo, a função, a atividade ou mandato pelo prazo da condenação, o condenado não perde o cargo nem tampouco o mandato eletivo; b) suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículos: Esta medida é aplicada somente para os crimes culposos de trânsito quando, à época do crime, o condenado era habilitado ou autorizado a dirigir veículos, salvo nos casos em que a suspensão não for a pena principal; c) proibição de freqüentar determinados lugares: esta modalidade de pena é uma importante medida alternativa, no sentido de evitar a presença do condenado em ambientes favoráveis à reincidência, daí porque os lugares proibidos devem guardar relação com o crime praticado; d) proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício: esta proibição consiste nas atividades ou ofícios que dependam de habilitação especial de licença ou autorização do poder público, como médicos, engenheiros, advogados etc. A pena é decorrente da prática de violação de deveres de profissão atividade ou ofício. Abrange somente a profissão que ocorreu o abuso, não envolvendo outras profissões que o agente possa exercer.
A limitação de final de semana consiste na obrigação de permanecer, aos finais de semana por cinco horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado, no qual serão ministrados cursos e tarefas educativas. No entendimento de Tourinho Neto (2005, p. 545), a pena de final de semana não pode ser aplicada porque restringe a liberdade do autuado o que contraria a filosofia do Juizado Especial.
Uma pena que é muito utilizada é a entrega de cestas básicas a entidades assistenciais, porém essa medida é muito polêmica. Tourinho Neto (2005, p. 546) entende que a entrega de uma cesta básica a um orfanato, por exemplo, constitui uma prestação alternativa e, por esse motivo pode ser aplicada. Nucci, (2006, p. 388) entende que essa medida não pode ser aplicada porque não há previsão legal.
Na lição de Bittencourt, (2006, p. 388):
“O entusiasmo com que se tem divulgado a aplicação aqui e acolá da indigita “cesta básica” como pena alternativa tem cegado um grande segmento de aplicadores o direito, que provavelmente, não se deram conta da ilegalidade de tal modalidade de pena. Hoje se viola o princípio secular da reserva legal por um motivo nobre, amanhã talvez por um motivo não tão nobre assim, depois, bem, depois quem sabe, quem sabe, pode-se começar a defender que o princípio da reserva legal não é tão absoluto assim, que os fins justificam os meios, etc, etc.”
Para Ada Pellegrini (2005, p. 144):
“Ao incluir entre as penas restritivas de direitos a prestação pecuniária, a Lei 9. 714/1998 deixou superada a questão relativa á possibilidade de ser objeto da transação penal a chamada prestação social alternativa (como, por exemplo, a entrega de cestas básicas, vestuários ou remédios à coletividade carente ou à instituições assistenciais).”
A pena de multa é uma sanção pecuniária de natureza penal, que consiste no pagamento de uma determinada quantia ao fundo penitenciário. Ela não se confunde com a prestação pecuniária, pois, esta é destinada à vítima ou entidades assistenciais.
Como a pena de multa deve obedecer ao princípio da legalidade, ela deve obedecer aos critérios gerais fixado pelo Código Penal, variando entre 10 e 360 dias-multa, calculando cada dia em valores de 1/30 a 5 vezes o salário mínimo, levando em consideração a situação econômica do autuado. Para se fazer esse cálculo, deve-se levar em consideração as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP e a gravidade maior ou menor do delito, alem das atenuantes, agravantes, causas de aumento e diminuição.
A lei estabelece ainda, que sendo a pena de multa a única aplicável, essa poderá ser reduzida pelo juiz pela metade (art. 76, § 1).
4.3. Homologação da Transação Penal
Aceita a proposta pelo autor do fato e seu defensor, ela deverá ser encaminhada ao Juiz para apreciação, ou seja, para que seja feito o chamado controle “jurisdicional.” Esse controle visa a avaliar se a proposta está dentro dos parâmetros legais. Verificando se a proposta é cabível ao caso, ela será homologada. Segundo Júlio Fabbrini Mirabete (2000, p. 140),
“não cabe ao Juiz avaliar se a proposta foi vantajosa para o Estado ou para o infrator, ele irá apenas verificar a legalidade da medida proposta. Segundo ele, se o juiz interferir na transação, ele estará ofendendo o princípio do devido processo legal e da imparcialidade, além das funções do Ministério Público e do Poder Judiciário.”
A opinião de Mirabete é muito coerente, pois o Ministério Público é o titular exclusivo para fazer qualquer tipo de proposta ao autuado. Pensar de outra forma seria uma ilegalidade. Não faria sentido o Representante do Ministério Público fazer uma proposta para que ela fosse recusada ou modificada pelo Juiz. Além disso, analisar se ela é vantajosa ou demasiadamente prejudicial ao autor da infração é uma tarefa do defensor e não do juiz.
É importante ressaltar que contra decisão que homologa a transação, cabe apelação (art, 76, § 5 da Lei 9.099/95), para uma turma composta por três juízes em exercício no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado, denominada Turma Recursal (art. 82 da Lei 9.099/95).
4.4. Natureza Jurídica da Sentença Homologatória de Transação Penal
Conforme estabelece o § 5 do art. 76, a homologação da transação penal é uma sentença que põe fim ao procedimento ainda em fase preliminar, mas qual é a natureza jurídica dessa sentença? A natureza jurídica da homologação de transação penal causa grande discussão entre os doutrinadores:
Para Fernando Capez (2006, p. 558), a natureza jurídica da transação penal é condenatória, porque faz coisa julgada formal e material. Para ele, mesmo que a aceitação da proposta não implique em admissão de culpa, a decisão de aceita-la é tomada com base em critérios de pura conveniência pessoal.
A 5ª e a 6ª turma do STJ têm decidido nesse sentido: a homologação da transação penal tem natureza condenatória, gerando eficácia de coisa julgada formal e material, portanto, se descumprido o acordo homologado, não pode haver oferecimento de denúncia contra o autor do fato.
Esse é também o entendimento de Tourinho Neto (2006, p. 513). Para ele há um título executivo penal que empede uma nova análise do caso.
No entanto, Ada Pellegrini (2005, p. 167) esclarece que a natureza jurídica da sentença não pode ser considerada condenatória, uma vez que não houve acusação e a aceitação da imposição da pena não tem conseqüências no campo criminal, salvo para impedir novo benefício no prazo de 5 (cinco) anos. Ela acrescenta ainda, que quando da aplicação da medida alternativa não há qualquer prejuízo condenatório porque não foram analisados os elementos de infração penal, como a prova da ilicitude ou da culpabilidade. Para ela a natureza jurídica da sentença não pode ser absolutória porque é aplicada uma sanção de natureza penal. Por todos esses motivos, diz a doutrinadora ser a natureza jurídica da sentença simplesmente homologatória de transação.
Nucci tem o mesmo entendimento (2006, p. 393). Para ele trata-se de apenas uma decisão homologatória. Não é condenatória porque não houve o devido processo legal. Não é absolutória porque não foi discutida a culpa, tendo a mesma finalidade apontada por Ada.
Cézar Roberto Bitencourt entende que se trata de sentença declaratória constitutiva, pois a própria sentença exclui qualquer caráter condenatório, afastando a reincidência, antecedentes criminais e a constituição de título executivo civil.
Somos desse mesmo entendimento. Como a homologação da transação faz coisa julgada formal e material, acreditamos que a natureza jurídica da transação penal é constitutiva porque irá constituir um título executivo, não na esfera penal, mais na cível, a ser executada pelo Ministério Público. Ela jamais poderia ser condenatória porque não houve o devido processo legal, garantido pela Constituição Federal e acima de tudo sem a análise do art. 59 do CP para dosar a medida.
4.5. Sentença Condicionada ao Cumprimento do Acordo
Considerando as discussões a respeito da natureza jurídica da transação penal e o fato de muitos acordos não serem cumpridos, o FONAJE (Fórum Nacional dos Juizados Especiais) editou o enunciado de número 14, que foi substituído pelo 79, que assim estabelece:
“É incabível o oferecimento da denúncia após sentença homologatória de transação penal em que não haja cláusula resolutiva expressa, podendo constar da proposta que sua homologação fica condicionada ao prévio cumprimento do avençado. O descumprimento, no caso de não homologação, poderá ensejar o prosseguimento do feito (Aprovado no XIX Encontro – Aracajú/SE).”
Sob esta ótica, a transação é homologada após o cumprimento do acordo e, ao mesmo tempo, é declarada extinta a punibilidade do autuado.
Esse enunciado tem o objetivo de impedir que a sentença faça coisa julgada formal e material, podendo assim o processo ser retomado com a denúncia pelo órgão acusatório.
Nesse sentido se manifestou o STJ:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. LEI N.º 9.099/95. ACORDO NÃO HOMOLOGADO. DESCUMPRIMENTO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. APLICAÇÃO DO ART. 66, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 9.099/95.1. Admite-se o oferecimento de denúncia contra o autor do fato, quando não existir, na hipótese, sentença homologatória da transação penal. 2. Nos termos do art. 66, parágrafo único, da Lei n.º 9.099/95, os autos devem ser encaminhados para a Justiça Comum, caso não se encontre o acusado para ser citado. 3. Recurso especial conhecido e provido.
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 147, DO CÓDIGO PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. LEI Nº 9.099/95. DESCUMPRIMENTO DE ACORDO NÃO HOMOLOGADO. OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. POSSIBILIDADE. Não tendo havido a homologação da transação penal, é cabível oferecimento da denúncia em desfavor do autor do fato. (Precedentes). Ordem denegada.”
Porém, essa não é a solução mais adequada para o problema. Entendemos que, se não há homologação, o acordo não tem caráter jurisdicional, ficando o autuado desobrigado de cumprir a medida.
Além disso, deve ser ressaltado, que o enunciado não tem força de lei e por isso ninguém está obrigado a cumpri-lo.
Para Nucci (2006, p. 390), esse procedimento é abusivo e pode ser sanado por habeas corpus.
4.6. Efeitos da Homologação da Transação
A transação penal produz somente um efeito: impedir novo benefício no prazo de 5 anos. Quanto aos demais, vemos que: não gera reincidência; não gera efeitos civis, não podendo servir como título executivo no juízo cível; não gera maus antecedentes, nem constará da certidão criminal; esgota o poder jurisdicional do magistrado, não podendo mais este decidir sobre o mérito, a não ser em embargos declaratórios, ressalvadas as hipóteses de descumprimento posterior da prestação pactuada, quando será instaurado o processo, devolvendo ao magistrado o poder jurisdicional sobre aquele fato; os efeitos retroagem a data do fato; na hipótese de concurso de agentes, a transação efetuada com um dos co-autores não se estendem nem se comunicam aos demais (CAPEZ, 2006, p. 559).
4.7. O Descumprimento da Transação Penal
O descumprimento da Transação Penal é um grave problema que vem sendo debatido pelos operadores do direito há muito tempo e até hoje não foi encontrado nenhuma solução plausível. Vejamos o entendimento de alguns doutrinadores:
Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 389), salienta que se o autor do fato não cumprir o acordo, não há muito o que se fazer, a não ser executar o que for possível. Para ele, se for estabelecido pena de multa e esta não for paga, cabe ao Ministério Público promover sua execução, nos termos do art. 164 da LEP, sem qualquer possibilidade de conversão em prisão, conforme estabelece o art. 51 do CP.
Essa é a posição do STJ:
“CRIMINAL. HC. NULIDADE. LEI 9.099/95. DESCUMPRIMENTO DE ACORDO FIRMADO E HOMOLOGADO EM TRANSAÇÃO PENAL. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA. COISA JULGADA MATERIAL E FORMAL. EXECUÇÃO DA MULTA PELAS VIAS PRÓPRIAS. RECURSO PROVIDO. I – A sentença homologatória da transação penal, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/95, tem natureza condenatória e gera eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração de ação penal contra o autor do fato, se descumprido o acordo homologado. II – No caso de descumprimento da pena de multa, conjuga-se o art. 85 da Lei nº 9.099/95 e o 51 do CP, com a nova redação dada pela Lei nº 9.286/96, com a inscrição da pena não paga em dívida ativa da União para ser executada.III – Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal.”
Ainda segundo Nucci (2006. p. 389), o não cumprimento de qualquer das penas restritivas de direitos é ainda pior porque não há o que se possa fazer, considerando que a transação homologada pelo Juiz faz cessar o procedimento ainda na fase preliminar, que depois de transitado em julgado não há como ser revista, além de não permitir o oferecimento da denúncia para dar prosseguimento ao feito. Outra alternativa ainda pior, diz o jurista, seria converter a pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, pois esta seria uma punição muito severa, aplicada sem o devido processo legal.
Já Damásio E. de Jesus (2002, p. 211) considera a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade a melhor alternativa.
Mirabete (2000, p. 152), tem esse mesmo entendimento. Ele fundamenta sua posição no art. 181, caput, e parágrafos da Lei de Execução Penal, além do art. 86 da Lei 9.099/95, in verbis:
“Art. 181 – A pena restritiva de direitos será convertida em privativa de liberdade nas hipóteses e na forma do Art. 45 e seus incisos do Código Penal.
§ 1º – A pena de prestação de serviços à comunidade será convertida quando o condenado:
a) não for encontrado por estar em lugar incerto e não sabido, ou desatender a intimação por edital;
b) não comparecer, injustificadamente, à entidade ou programa em que deva prestar serviço;
c) recusar-se, injustificadamente, a prestar o serviço que lhe foi imposto;
d) praticar falta grave;
e) sofrer condenação por outro crime à pena privativa de liberdade, cuja execução não tenha sido suspensa.
§ 2º – A pena de limitação de fim de semana será convertida quando o condenado não comparecer ao estabelecimento designado para o cumprimento da pena, recusar-se a exercer a atividade determinada pelo juiz ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras a, d e do parágrafo anterior.
§ 3º – A pena de interdição temporária de direitos será convertida quando o condenado exercer, injustificadamente, o direito interditado ou se ocorrer qualquer das hipóteses das letras a e e do § 1º deste artigo.
Art. 86. A execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, ou de multa cumulada com estas, será processada perante o órgão competente, nos termos da lei”.
No seu entendimento, não é admissível o oferecimento de denúncia visto que a decisão que homologa a transação é definitiva, tornando-se o ato jurídico perfeito e acabado.
Na concepção de Fernando Capez (2006, p. 559), em caso de descumprimento da pena restritiva de direitos em virtude de transação, não se pode falar em conversão em privativa de liberdade, já que se assim ocorrer haveria ofensa ao princípio de que ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Assim, dever-se-ia abrir vista dos autos ao Ministério Público para oferecimento de denuncia.
A esse respeito se posicionou o STF:
“A transformação automática da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade discrepa a garantia constitucional de devido processo legal. Impõe-se, uma fez descumprido o termo de transação, a declaração de insuficiência deste último, retornando-se ao estado anterior, dando-se oportunidade ao Ministério Público de vir a requerer a instauração do inquérito policial ou ofertar denúncia” (STF, HC 79.572/GO, Rel. Min. Marco Aurélio).
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PACIENTE ACUSADO DOS CRIMES DOS ARTS. 129 E 147 DO CÓDIGO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL QUE CONSISTIRIA NA CONVERSÃO, EM PRISÃO, DA PENA DE DOAR CERTA QUANTIDADE DE ALIMENTO À "CASA DA CRIANÇA", RESULTANTE DE TRANSAÇÃO, QUE NÃO FOI CUMPRIDA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. Conversão que, se mantida, valeria pela possibilidade de privar-se da liberdade de locomoção quem não foi condenado, em processo regular, sob as garantias do contraditório e da ampla defesa, como exigido nos incs. LIV, LV e LVII do art. 5º da Constituição Federal. Habeas corpus deferido” (STF REsp 268.319/PR, Min. Ilmar Galvão).
No entanto, esse entendimento não é compartilhado pelo STJ:
“A sentença homologatória de transação penal, por sua natureza, gera eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo ante o descumprimento do avençado pelo paciente, a instauração de ação penal. A decisão que determina o prosseguimento da ação penal e considera insubsistente a transação homologada configura constrangimento ilegal” (STJ HC 30.212/MG, Min. Jorge Scartezzini).
4.8. Nossa Posição
Em que pese o respeito pelas grandes teses doutrinárias a respeito da conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, entendemos ser a conversão uma medida totalmente descabida e acima de tudo arbitrária. Senão vejamos:
A conversão do benefício em pena privativa de liberdade afronta totalmente o princípio constitucional previsto no art. 5, LIV, da Constituição da República, que assim estabelece: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”.
A transação penal é um procedimento administrativo, não existe processo e muito menos a formação de culpa. Assim, como um juiz poderia decretar uma prisão sem estar convicto de que aquela pessoa é realmente culpada? Decretar a prisão simplesmente para obrigar o beneficiado a cumprir a medida é um ato de arbitrariedade e de desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, estabelecidos no art. 5, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
Além disso, não foi discutida a culpa e conseqüentemente não foram apresentadas provas, afrontando, assim, o princípio da presunção de inocência, esculpido no art. 5, LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Entender que com a instituição da transação penal pela Constituição Federal estaria o legislador permitindo a aplicação da pena privativa de liberdade no caso de descumprimento do acordo é uma concepção totalmente inadequada, que vai de encontro à sistemática penal contemporânea de intervenção mínima do Estado na vida do indivíduo e a própria essência da Lei 9.099/95 que tem como alicerce a aplicação da pena não privativa de liberdade (art. 62).
A conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade não pode ser embasada no art. 44, § 4 do CP porque há uma diferença muito grande: no caso da transação, pena restritiva de direitos é autônoma, ou seja, ela não está substituindo a pena privativa de liberdade ao contrário do art. 44 do CP, que prevê a pena restritiva de direitos como medida substitutiva à prisão, aplicada com o devido processo legal e com observância ao artigo 59 do mesmo diploma legal.
Partindo-se do pressuposto que com a homologação do acordo operou-se a coisa julgada formal e material, é incabível o oferecimento da denúncia.
Assim, comungamos do pensamento de Guilherme de Souza Nucci, que ensina que no caso de descumprimento deve-se executar o que for possível.
Inobstante, quando da homologação do acordo entre as partes, deve ficar estabelecido qual a atitude a ser tomada quando do descumprimento do acordo. No nosso modesto entender, acreditamos que o melhor caminho a ser seguido seria a estipulação de uma multa diária, tendo como base na situação econômica do beneficiado, mas se mesmo assim o acordo não for cumprido, deve o Ministério Público prosseguir com a execução na esfera cível, pedindo a expropriação de bens do executado.
Por outro lado, se quando da proposta não ficar estabelecido a cláusula penal, não há o que ser feito, a não ser o registro do descumprimento para evitar novo benefício.
Considerações finais
Através de uma rápida viagem à história do Direito Penal, percebemos que nos primórdios da civilização, a pena tinha, inicialmente, o caráter religioso e era vista como um castigo divino, tendo a finalidade de purificar a alma do agressor. Com o passar dos tempos, a pena passou a ter um caráter de vingança, proporcionando ao criminoso o mesmo mal que ele causou à vítima. Só então, a partir de uma pequena evolução, é que percebemos um direito penal voltado para a sociedade, mas com penas tão cruéis quanto antes, tendo esta, a finalidade de punir o ofensor.
Durante todo esse período, percebemos que a pena era sinônimo de crueldade e somente com o Iluminismo é que o ser humano começou a se preocupar com seu semelhante e perceber que a pena deveria tratar o infrator com mais de dignidade.
Com a instituição da Lei 9.099/95 vimos pela primeira vez um direito penal com caráter despenalizador, com o fim de evitar a aplicação de pena não privativa de liberdade.
Como foi demonstrado, mesmo após 12 anos de vigência, a Lei 9.099/95 apresenta ainda vários pontos controvertidos e que devem, acima de tudo, ser discutidos para se chegar a um ponto comum e evitar que a Lei traga a sensação de impunidade ou de arbitrariedade.
Dentre esses pontos controvertidos, o mais preocupante é a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade. Essa conversão viola totalmente as garantias constitucionais do devido processo legal e da presunção de inocência. Isso evidencia que o Estado quer demonstrar seu poder coercitivo de forma arbitrária, sem nenhum respaldo legal. Além disso, deve ser ressaltado, que esse poder arbitrário está distorcendo a finalidade de uma Lei tem caráter despenalizador.
Por isso, é que defendemos a tese de que o Ministério Público deve promover a execução do acordo na esfera cível, caso o beneficiado descumpra a transação penal. Isso fará com que ele sofra as conseqüências de seus atos, mas de forma menos agressiva, evitando, assim, a impunidade e garantindo a eficácia da Lei.
Inobstante, o Estado não pode suprir suas deficiências, seja em matéria processual ou na a formação de Juízes e advogados, conforme foi dito no início, desrespeitando o direito à liberdade do indivíduo.
Mas em que pese todas as discussões acerca do instituto da transação penal, ele inovou a Justiça penal concedendo ao agressor uma nova oportunidade para que ele se arrependa de seus atos, proporcionando-lhe a chance de não ter contra si uma sentença condenatória, o que certamente prejudicaria sua vida ou até mesmo sua carreia profissional.
Informações Sobre o Autor
Vinicius Borges Meschick da Silva
Acadêmico de Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves