Resumo: O trabalho aqui desenvolvido tem o objetivo de auxiliar os operadores do direito, no entendimento de um dos principais pontos polêmicos da Lei Federal 11.340/06, a questão da representação e da renúncia a esta, pois a Lei trouxe ao mundo jurídico inúmeras imprevisões, destacando-se entre elas a nova regra da representação e da renúncia à representação nos crimes que especifica, as quais, sob as mais variadas interpretações, entrega ao estudioso do Direito Penal e Processual Penal uma verdadeira exegese, sempre voltando os olhos à vontade do legislador de amparar a vítima destes delitos.
I. CONCEITUAÇÃO JURÍDICO-TERMINOLÓGICA
Modernamente, sabe-se que toda ação penal, que em regra geral é pública, é instaurada para que o Estado-Administração[1] exerça um dos seus papéis mais importantes, quiçá o principal deles, o direito de punir[2] o criminoso, infelizmente nos dias atuais de forma não muito eficiente, e um dos requisitos para que haja esta intervenção estatal é a representação, exercida pela vítima ou seu representante, perante a autoridade competente, para que então o Estado-Administração esteja autorizado a realizar a persecutio criminis. [3]
Dentre os inúmeros conceitos apresentados pela doutrina, a definição que melhor expressa o sentido do termo, é dada por Cezar Roberto Bitencourt (2005):
“Representação criminal é a manifestação de vontade do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo, visando a instauração da ação penal contra seu ofensor. A representação, em determinadas ações, constitui condição de procedibilidade para que o Ministério Público possa iniciar a ação penal”. (BITENCOURT, 2005, p. 335)
Dotti (2002)[4] bem define o conceito de vítima, estabelecendo que ele se estende a vários sentidos: a) originário, em que se designa a pessoa ou o animal sacrificado à divindade; b) geral, significando a pessoa que sofre os resultados infelizes dos próprios atos, praticados por outrem ou resultantes do acaso; c) jurídico-geral, representando aquele que sofre diretamente o dano ou o perigo de dano ao bem protegido pelo Direito; d) jurídico-penal restrito, designando a pessoa (física ou jurídica) que sofre diretamente as conseqüências da violação da norma; e) jurídico-penal amplo, que abrange o indivíduo e a comunidade que sofrem diretamente os efeitos do crime.
De modo geral, agressor é a pessoa física, sem qualquer particularidade excepcional, a quem a lei atribui uma sanção penal quando do cometimento de algum tipo de violência contra outra pessoa física, em uma dada sociedade, provocando na vítima um dano em potencial.
A particularidade do agressor é mais concisa ao se ler o art. 7º da lei, visto que assinala minuciosamente todas as ações que tomam forma pela mão daquele, estipulando o delineamento dos tipos de violência cometidos:
Deve-se registrar, nesta senda, que o Direito Penal possui funções[5] estratégicas preventivas e repressoras, visando coibir o crime. No primeiro caso, há a divulgação geral da norma como mecanismo de desestímulo à realização da ofensa ao bem jurídico, alertando uma severa punição para o seu cometimento, e no segundo, após o delito ter tomado corpo, engrena na punição exemplar do que anteriormente tinha sinalizado, castigando o delinqüente pela sua ofensa.
II. A REPRESENTAÇÃO NA LEI 11.340/2006
II.1. A REPRESENTAÇÃO NA LEI 11.340/2006 E A AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA
A ação penal pública condicionada, como já se viu alhures, é a exceção à regra no direito penal brasileiro, de modo que está apoiada em quatro princípios informadores: [6]
1) Oficialidade – declara qual o órgão incumbido da promoção da ação penal, e o modo como deve ser proposta, estando assim o Ministério Público atrelado à agir por ofício.
2) Indisponibilidade – remete ao órgão titular da ação penal, o Ministério Público, a impossibilidade de desistência desta, não podendo dispor, declinar, ou transigir.
3) Obrigatoriedade – ao analisar o conteúdo das provas, e vendo fortes indícios delituosos, tem o órgão perseguidor estatal a obrigatoriedade de interpor a ação penal competente para ver, ao final, punido o criminoso, independentemente de nuances políticas ou quaisquer que seja.
4) Indivisibilidade – na função histórica de acusador do delinqüente, deve o membro do parquet[7] ampliar seus horizontes investigativos, fazendo alcançar, erga omnes,[8] as sanções estabelecidas pelo direito material.
Grande alvoroço trouxe a lei 11.340/06 ao mencionar expressamente no seu art. 16 a condição de representação a ser efetivada pela ofendida.
Trata-se de um procedimento determinado – até o surgimento da lei 11.340/06 -, pela lei dos juizados especiais criminais, guiado pelo art. 88 desta lei, que implicava na exigência de representação, quando o crime praticado fosse lesão corporal de natureza leve.
Contudo, esta exigência deixou de ser legítima com a vigência da lei 11.340/06, tornado-se este delito crime de ação penal pública incondicionada, objeto do próximo item deste capítulo.
Entretanto, convém colacionar aqui que Ada Pelegrini Grinover e outros (2005)[9] afirmam que “a transformação da ação penal pública incondicionada em ação penal pública condicionada significa despenalização. Sem retirar o caráter ilícito do fato, isto é, sem descriminalizar, passa o ordenamento jurídico a dificultar a aplicação da pena de prisão. De duas formas isso é possível: a) transformando-se a ação pública em privada; b) ou transformando-se a ação pública incondiciona em ação condicionada. Sob a inspiração da mínima intervenção penal, uma dessas vias despenalizadoras (a segunda) foi acolhida pelo art. 88 da Lei 9.099/95″.
Tal é o entendimento de Porto (2006), que expressa que “em uma interpretação sistemática dos dispositivos da Lei 11.340/06, antes citados, poder-se-ia concluir que o afastamento da Lei 9.099/95 é determinação genérica, relativa, precipuamente, aos institutos despenalizadores alheios à autonomia volitiva da vítima – a transação e a suspensão condicional do processo – ordinariamente vistos como institutos essencialmente despenalizadores e, como reiteradamente aplicados de forma benevolente, granjearam a má fama de serem benefícios causadores da impunidade. Entretanto, a representação continua exigível nos crimes de lesões corporais mesmo ante a qualificadora do § 9º do art. 129 do CP, visto que, apesar de ser também uma medida despenalizadora, ela concorre em favor da vítima, outorgando-lhe o poder de decidir acerca da instauração do processo contra o acusado”. [10]
Com conotação histórica, Porto (2006) esclarece que “o legislador cercou esta decisão de garantias como a exigência de que a desistência ocorra em presença do juiz e seja ouvido o Ministério Público. Ademais, o direito de decidir sobre representar ou não pressupõe a possibilidade de conciliação civil, o que, seguramente, atende a interesses da vítima, nem sempre sediados na exclusiva punição criminal do seu agressor, mas, fundamentalmente atrelados ao interesse reparatório dos danos sofridos, inclusive aqueles de caráter moral que, segundo afirma a doutrina da responsabilidade civil extramaterial, têm evidente caráter punitivo e pode importar em severa punição ao agressor. Outrossim, o art. 17 da nova Lei manifesta a preocupação do legislador com punições insuficientes nos crimes em questão”. [11]
Apregoa ainda Porto (2006) que “ao proibir a aplicação de ‘cestas básicas’ e outras de prestação pecuniária ou multa isolada, o legislador está se dirigindo tanto ao Ministério Público, nas hipóteses em que ainda seja possível a transação penal ou suspensão condicional do processo e que, ab initio, [12] parece ser apenas o caso de algumas contravenções penais (vias de fato e importunação ofensiva ao pudor) como também e principalmente ao Poder Judiciário, limitando as hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (art. 44 do CP). Todavia, poder-se-ia argüir que a redação desse dispositivo em consonância com o anterior revela que a intenção fundamental do legislador não era afastar a exigibilidade de representação e sim evitar, doravante, a aplicação de penas pecuniárias em caso de delitos praticados com violência contra a mulher”.[13]
A celeuma surge, a contrario sensu, [14] quando se discute a impropriedade de tal exigência em face do contido no art. 3º da Lei Maria da Penha, o qual elenca, dentre tantos outros direitos assegurados, o da convivência familiar, mostrando um gigantesco obstáculo que pode ser ativado, subtraindo da ofendida o direito de reaver a paz no seio de sua família, a possibilidade de rearmoniazação do lar.
De conseguinte, consoante magistério de Cunha e Pinto (2007), [15] “na esmagadora maioria das vezes, se percebe a rápida reconciliação entre os envolvidos, servido o processo penal apenas para perturbar a paz familiar, quando a finalidade do aplicador da lei deve ser, sempre, a preservação da família…”.
É verdadeira tal assertiva, comprovada na prática, nas varas criminais, especializadas ou não nestes crimes, visto a real manifestação das vítimas no balcão dos cartórios, desejando a extinção da ação penal oportunamente iniciada nas delegacias de polícia, consoante se extrai das informações registradas nos anexos III e IV aduanados na parte final deste trabalho, levando a uma comparação entre os processos ajuizados e as audiências solicitadas pela ofendida.
Resta adequada, sem dúvida, a colocação de Porto (2006), quando adverte: [16]
“a mulher vítima de violência doméstica sofrerá pressão para desistir da representação oferecida e que, dependendo de sua condição econômica ou social esta pressão poderá exercer acentuada influência em sua decisão, não é menos certo asseverar que a Lei 11.340/06 também visa minimizar ou eliminar por completo esta constelação de fatores perversos que lhe diminuem a liberdade de escolha, criando condições propícias para uma decisão mais livre por parte da vítima, e o faz ao estabelecer importantes medidas protetivas que obrigam o agressor (arts. 22 e 23) e que beneficiam diretamente a ofendida (art. 24), além das garantias de transferência no serviço público e manutenção do vínculo empregatício (art. 9º, § 2º, I e II)”.
De outro turno, o autor assevera que a tese central de parte da doutrina que ainda aceita a exigência da representação é a de que o legislador pretendeu afastar apenas o benefício de natureza estrita da Lei 9.099/95, como é o caso da transação penal, e explica que tal situação é assim dada porque a regra do art. 88 desta lei está contida nas disposições finais da mesma, caracterizando norma acidental e não essencial.
No entanto, exatamente neste ponto Golçalves e Lima (2006) [17] frisam que, “apesar da Lei 11.340/06, em seu art. 16, determinar que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida só será admitida a renúncia perante o juiz, tal situação não se aplica aos crimes de lesão corporal leve praticadas no âmbito doméstico, somente aos crimes em que o Código Penal expressamente determine que a ação seja condicionada à representação”.
II.2. A REPRESENTAÇÃO NA LEI 11.340/2006 E A AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA
No decorrer deste trabalho, muito já se falou sobre representação, bem como da ação penal pública incondicionada.
O que se pretende aqui é demonstrar a rigidez com que deve ser tratado o instituto da representação dentro da lei 11.340/06, não somente pela ótica constitucional, mas, sobretudo, sob o prisma holístico que nos brinda a hermenêutica.
A ação penal pública incondicionada é a regra no direito penal brasileiro, visto estar alicerçada nos mesmos quatro princípios informadores explanados no item anterior, entretanto a diferença salutar é que esta não necessita autorização para ser perpetrada nos portões da justiça.
Segundo a interpretação de Gonçalves e Lima (2006) [18] sobre os crimes cometidos no âmbito familiar contra a mulher, “a Lei não fez expressamente qualquer menção à natureza da ação penal nas infrações de que trata, no entanto, a interpretação sistemática do ordenamento jurídico, observando-se os princípios que regem a matéria, e os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, induz à conclusão de que tais crimes não mais dependem da vontade das vítimas para seu processamento. Significa dizer que os crimes de lesão corporal leve cometidos contra mulher na violência doméstica não dependem de representação, ou seja, voltaram a ser considerados de ação penal pública incondicionada”.
Oportuno também considerar a visão dos autores em face da Lei dos Juizados Especiais Criminais, esclarecendo que “a nova Lei não fez qualquer ressalva quanto à Lei 9099/95, ao contrário, expressamente a afastou, restaurando, com caráter repristinatório,[19] a incondicionalidade para o processamento das lesões corporais leves, de modo que o Ministério Público não precisa mais de autorização das vítimas para processar os acusados, podendo iniciar a persecução penal a partir do auto de prisão em flagrante, requerimento da vítima, seu representante legal ou ainda por qualquer pessoa do povo”.
Nogueira (2006) [20] emite posição aberta de que a lei quis vedar os benefícios decorrentes da aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, devendo buscar no conjunto das normas trazidas pela nova lei a vontade e os objetivos do legislador, não podendo, desta forma interpretar isoladamente determinados preceitos nela contidos, conjugando as disposições da lei, sem perder de vista os valores nela resguardados e suas finalidades.
Fixa-se, assim, tal juízo, uma vez que os crimes que devem depender de representação são aqueles em que o interesse particular à familiaridade das vítimas reprime o empenho público em penitenciar o crime.
Todavia, afirmam veementemente os autores GONÇALVES e LIMA: [21]
“É do interesse público que tal violência cesse, não podendo o Estado tolerá-la em nenhuma hipótese. Há muito a violência doméstica deixou de ser considerada um problema conjugal, familiar, em que não se mete a colher. A opção brasileira, por determinação constitucional, é pelo seu combate:
‘Art. 226 (…)
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de sua relações.’ ” (GONÇALVES e LIMA, 2006)
Configura-se esta explicação no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual sabemos, trata-se de um dos fundamentos da CF/88, que em nenhuma hipótese deve ser dilacerado.
Para instigar o quão importante é tal fenômeno, Gonçalves e Lima (2006) ainda corroboram trazendo uma estatística preocupante: “a exigência de representação das vítimas tem gerado a total impunidade dos crimes cometidos, eis que 80% das ocorrências de violência doméstica têm sido arquivadas sob a alegação da ‘falta de interesse’ (representação) das vítimas”.
Neste sentido, já tem decidido a jurisprudência pátria, [22] gradativa e repetidamente reforçando tal posicionamento:
“As agressões do marido à mulher, embora, em nível probatório, dentro do mesmo universo conceitual dos delitos patrimoniais e sexuais, não merecem o mesmo tratamento destes. E não aceitar a palavra da ofendida, nos delitos da espécie em julgamento, implica, sempre e sempre, a absolvição, ou seja, numa permissão judicial para que se agrida as mulheres”. (BITENCOURT, 2005, p. 460).
Neste ínterim, conclui-se que, quando a lesão é cometida contra a mulher, dentro do seu convívio doméstico e familiar, deve ela independer de representação, fazendo juz à justiça social[23] ver o delinqüente denunciado, processado e apenado, não importando o status sentimental dos prejudicados.
A esse respeito, aduz Joveli (2006)[24] que “não mais depende de representação a ação penal para o crime previsto no § 9º do art. 129 do CP, no âmbito doméstico, quando a vítima for do sexo feminino, não se podendo falar, conseqüentemente, em eventual renúncia à representação em toda a persecução penal respectiva”.
Evidentemente, a interpretação sistêmica da nova lei permite compreender que a lesão corporal leve fruto de violência doméstica e familiar contra a mulher voltou a ser pública incondicionada.
II.3. A REPRESENTAÇÃO NA LEI 11.340/2006 E A AÇÃO PENAL PRIVADA
Como dito no título anterior, a ação penal privada somente se processa mediante queixa, nos termos do art. 145 do Código Penal.
Impende destacar que os princípios informadores da ação penal privada, presumivelmente, divergem dos demais tipos de ação penal, pois têm, em seu bojo, a exclusividade da vontade subjetiva da vítima, claramente escorçada no primeiro dos três princípios, a ver: [25]
1. Oportunidade – este princípio representa a intenção da vítima em fazer valer o direito de resgatar sua dignidade, ficando ao seu livre arbítrio a provocação do Poder Judiciário, encarregado do julgamento dos atos delituosos.
2. Disponibilidade – trata-se da iniciativa da vítima de ter à sua disposição o comando da ação penal, desde o início do feito, se não iniciado poderá renunciar ao direito de queixa, se em andamento utilizar o perdão ou a desistência, como lhe convir.
3. Indivisibilidade – da mesma forma que as demais ação penais, a provocação judiciária toma lugar contra todos os autores, co-autores e partícipes do delito.
Entretanto, é salutar trazer à baila o comentário de Maria Berenice Dias: [26]
“A violência moral encontra proteção penal nos delitos contra a honra: calúnia[…], difamação[..] e injúria[…]. São denominados delitos que protegem a honra mas, cometidos em decorrência de vínculo de natureza familiar ou afetiva, configuram violência moral. Na calúnia, o fato atribuído pelo ofensor à vítima é definido como crime; na injúria, não há atribuição de fato determinado. A calúnia e a difamação atingem a honra objetiva; a injúria atinge a honra subjetiva. A calúnia e a difamação consumam-se quando terceiros toma conhecimento da imputação; a injúria consuma-se quando o próprio ofendido toma conhecimento da imputação. (CP, art. 61, II, f).”
Conclui a autora que “estes delitos, quando são perpetrados contra a mulher no âmbito da relação familiar ou afetiva, devem ser reconhecidos como violência doméstica, impondo-se o agravamento da pena”. [27]
Destarte, não é difícil perceber que, em determinadas situações relativas à aplicação da lei aqui tratada, alguns crimes de cunho privado, que necessitariam de apresentação de queixa, justamente à autoridade competente, para conseqüente instauração de ação penal privada, podem vir a enquadrar-se como crime de violência doméstica, eminentemente pública, através de simples representação que, diga-se, não é realizada necessariamente diante de um delegado ou escrivão policial, mas também perante o promotor de justiça ou o próprio juiz competente.
III – A RENÚNCIA À REPRESENTAÇÃO NA LEI 11.340/2006
III.1. INTERPRETAÇÃO TERMINOLÓGICA DE RENÚNCIA NA LEI 11.340/2006
Deve-se exclusivamente ao polêmico art. 16 da lei 11.340/06 as mais variadas interpretações acerca da renúncia, termo expressamente descrito no texto da lei.
Pela leitura das mais tradicionais doutrinas nacionais, divulga-se que a renúncia acontece, categoricamente, antes da iniciativa estatal de perseguir o criminoso, e a retratação, no momento imediato ao oferecimento da representação e, conseqüentemente, quando já iniciada a persecutio criminis,[28] porém antes do recebimento da denúncia pelo magistrado competente.
Silva Júnior (2006)[29] fala que “a manifestação da vítima negando autorização para a persecução penal é renúncia à representação”. E ainda discorre no sentido de que tal situação, sob a égide da ação penal pública condicionada, emerge como novidade, pois retrata uma nova possibilidade para este tipo de ação, que em tese depende de representação, tornando-a independente de vontade autorizadora da ofendida, a qual deterá seu prosseguimento por simples ato livre e consciente.
Para Gomes (2006), o art. 16 “só fez referência à renúncia. Logo, o intérprete não pode aí incluir a retratação, que é juridicamente possível até o oferecimento da denúncia. (…) Se a renúncia só pode ocorrer antes do oferecimento da representação e se o Ministério Público antes desta manifestação de vontade da vítima não pode oferecer denúncia, parece evidente que a lei não poderia ter feito qualquer menção ao recebimento da denúncia”.
No mesmo sentido, leciona Bastos (2006), [30] sobre tal circunstância:
“…é que renúncia, tecnicamente, se dá antes do exercício do direito. Deste modo, só se renuncia ao direito de representação antes de exercitá-lo. Sendo assim, como se pode imaginar uma renúncia ao direito de representação antes do recebimento da denúncia, o que pressupõe que ela tenha sido oferecida, se, para ser oferecida, é imprescindível a existência da representação, condição especial que é para a deflagração da ação penal? Está confuso? É possível piorar então: a Lei parece ter estabelecido a possibilidade de se renunciar a um direito (o de representação), cujo exercício era pressuposto para o exercício de outro (o da ação penal pública condicionada), após este efetivo exercício (o oferecimento da denúncia). Isto evidentemente não é possível. Teria a Lei estabelecido uma regra inútil – o de que a representação é renunciável até o recebimento da denúncia, para o quê, obviamente, já tinha que ter sido oferecida? Ou será que, em verdade, quando se falou em renúncia, quis se ter falado em retratação?”. (BASTOS, 2006)
Pela dicção de Cabette (2006),[31] a exegese do art. 16 da lei pode levar à conclusão que, em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, desde o procedimento policial até o oferecimento da denúncia, as Autoridades Policiais e o Ministério Público agiriam de ofício, prescindindo da manifestação da ofendida, mesmo em casos de ação penal pública condicionada a representação. Salienta também o autor que ainda que haja manifestação da ofendida, afirmando não pretender representar contra o suspeito, tal não produziria qualquer efeito jurídico, devendo, mesmo assim, procederem as Autoridades Policiais às apurações do caso e o Ministério Público formular sua denúncia, já que à vítima somente seria dado abrir mão da representação em momento posterior perante o Juiz em audiência específica. Seria como se o exercício do direito de representação da vítima e a condição de procedibilidade estivessem em suspenso para serem exercitados e exigidos em momento posterior. Teria se operado, por força do art. 16 da Lei 11.340/06, uma derrogação tácita dos art.s 5º., § 4º. e 24, ambos do Código de Processo Penal.
Assim, defende que o efetivo exercício do direito de representação somente ocorreria na referida audiência especial perante o Juiz, uma vez que qualquer manifestação anterior da ofendida seria inócua, tendo como única solução entender que também o prazo decadencial a que se refere o art. 38, CPP, somente passaria a correr a partir da sobredita audiência.
Cabette (2006) ainda adverte que a renúncia é instituto que está ligado somente às ações penais privadas, não sendo prevista para as ações penais públicas de qualquer espécie. Quando alguém manifesta o desejo de não representar contra algum suspeito, não se opera a “renúncia”. O ofendido simplesmente deixou de exercitar seu direito de representação naquele momento, podendo exercê-lo a qualquer tempo dentro do prazo decadencial (art. 38, CPP), desde que considere oportuno.
Nem mesmo a interpretação de que o legislador teria se equivocado e, onde pretendia dizer “retratação” acabou dizendo “renúncia”, seria capaz de pôr termo aos problemas. Se assim fosse o art. 16 da Lei 11.340/06 também seria inaplicável. Se a tal “renúncia” (leia-se “retratação”) perante o Juiz deve ser realizada em audiência especial no intervalo entre o oferecimento e o recebimento da denúncia, resta claro que a pela acusatória já foi ofertada. Isso inviabiliza a retratação de acordo com o art. 25, CPP, que só a permite até o oferecimento da denúncia.
Comenta também que eventualmente, poder-se-ia sustentar que o legislador, embora de forma terminologicamente equivocada, teria inovado a respeito da retratação nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim sendo, teria dilatado nesses casos o tempo oportuno para a retratação, alongando-o até “antes do recebimento da denúncia”.
Afirma de forma seleta que muito embora esta pareça ser a melhor exegese do dispositivo sob comento, ela entra em conflito com o espírito da Lei 11.340/06, pois cria uma formalidade estéril que antes não existia, para o seguimento de uma ação penal com denúncia já formulada, atrasando inutilmente o procedimento e configurando uma certa insistência na proposta de que a vítima abra mão de seu direito de representação já exercitado e mantido até aquela fase.
Por isso, embora a lei seja silente nesse aspecto, entende que o melhor seria se tal audiência somente fosse designada excepcionalmente em caso de requerimento da ofendida ou a fim de confirmar sua retratação espontânea e anteriormente operada no curso do Inquérito Policial.
Segundo Bastos (2006),[32] “a representação é retratável somente em juízo e até o recebimento da denúncia” e que o que levou a lei a falar em “renúncia” foi um enunciado infeliz e mal redigido dos Juizados Especiais Criminais, o qual cogitou de renúncia quando, em verdade, o que pretendia submeter ao controle do Juiz era a retratação da representação.
E sinteticamente, afirma o autor que, onde se lê “renúncia”, deve-se ler “retratação” da representação, semeando na esfera penal o benefício de tal quando do recebimento da denúncia e não o seu oferecimento, ocasionalmente descrito no art. 25 do CPP.
Neste diapasão, Nogueira (2006) elabora crítica [33] no sentido de que a redação do art. 16 é imprecisa, pois a lei não trata de ações penais condicionadas à representação da ofendida, mas de infrações penais de ação penal condicionada à representação da ofendida, e sustenta:
“A situação, na verdade, é de desistência da representação já formalizada. Só podemos falar em renúncia se a representação não chegou a ser formalizada. Formalidade um tanto quanto questionável, pois se para a representação não há fórmula sacramental, tratando-se de ato que pode ser deduzido perante a autoridade policial, Ministério Público, Magistrado e até mesmo perante o oficial de justiça, que fará certidão, não se justifica negar validade à renúncia ou desistência feitas por pessoa capaz, de forma clara e inequívoca, até mesmo perante o oficial de justiça, que certificará a respeito com a fé-pública inerente às suas funções. De igual modo, excesso de rigor negar validade à desistência ou renúncia da representação reduzidas a termo perante a autoridade policial ou membro do Ministério Público.” (NOGUEIRA, 2006)
Porém, incita que a audiência para que se faça a renúncia ou desistência da representação não protegerá a mulher vítima de violência doméstica ou familiar, pois ninguém poderá impedi-la de renunciar ao direito de representar ou desistir da representação que eventualmente já tenha formulado, pois trata-se de ato atentatório contra a dignidade da mulher esculpido no art. 3º.
Informações Sobre o Autor
Tiago Henrique Raiher
Bacharelando em Direito – Habilitação Dogmática Jurídica, pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, de Rio do Sul/SC