Resumo: A cidadania deve ser exercida com plenitude, pois assim exige a dignidade da pessoa humana. A igualdade, por sua vez, afasta discriminações desarrazoadas e, por conseguinte, juridicamente inaceitáveis. Tais constatações se aplicam a gays e lésbicas, abrangem seus relacionamentos afetivo-sexuais estáveis, que visam à constituição de núcleos familiares, e geram implicações jurídicas, inclusive no que se refere ao Direito Administrativo. O objetivo geral do estudo que ora se inicia é analisar a concessão de pensão para companheiro homossexual de servidor público regido pela Lei nº 8.112/1990, e os objetivos específicos são: A) examinar os dispositivos legais pertinentes à pensão para companheiro, quanto aos requisitos materiais de constitucionalidade e à interpretação conforme a Constituição Cidadã de 1988; B) explicar a analogia das uniões estáveis homossexuais com as uniões estáveis heterossexuais, a partir da definição de analogia à luz doutrinária e da previsão legal desse instituto. Pelo fato de não se pautar em dados estatísticos, mas na interpretação do Direito Brasileiro, a presente pesquisa é qualitativa e nela são utilizados dois procedimentos técnicos: pesquisa bibliográfica e pesquisa documental. A conclusão é que os referidos dispositivos da Lei nº 8.112/1990 são materialmente constitucionais e devem ser interpretados conforme a Constituição, que existe analogia das uniões estáveis homossexuais com as uniões estáveis heterossexuais normatizadas pela Lei nº 9.278/1996 e pelo novo Código Civil e que, desde que comprovada a união estável, a Administração Pública deve conceder a pensão a companheiro homossexual de servidor público regido pela Lei nº 8.112/1990.[1]
Palavras-chave: Lei nº 8.112/1990. Pensão. Companheiro homossexual. Dignidade da pessoa humana. Igualdade. Analogia.
Abstract: Citizenship should be exercised in full, so it requires human dignity. Equality, in turn, removes discrimination and unreasonable, and therefore legally unacceptable. These findings apply to gays and lesbians, they cover their affective and sexual unions, which aim to family formation, and generate legal implications, including with regard to administrative law. The overall objective of the study that is now beginning to analyze the granting of pension for homosexual partner of a public servant governed by Law No. 8112/1990, and specific objectives are: a) examine the relevant legal provisions for pension partner, for the requirements materials constitutionality and interpretation as the Citizen Constitution of 1988, B) explain the analogy of stable homosexual unions with heterosexual unions stable, from the definition of analogy in the light of doctrine and the legal provision that Office. Because it is not guided by statistics, but the interpretation of Brazilian law, the present research is qualitative and it used two technical procedures: literature search and information retrieval. The conclusion is that these provisions of Law No 8112/1990 are physically constitutional and should be interpreted according to the Constitution, there is an analogy of stable homosexual unions with heterosexual unions stable legislated by Law No. 9278/1996 and the new Civil Code and , since proven stable, the Government must grant a pension to life partners of gay public servant governed by Law No. 8112/1990.
Keywords: Law No. 8112/1990. Pension. Homosexual partner. Dignity of human person. Equality. Analogy.
INTRODUÇÃO
O relacionamento afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo biológico ainda constitui um tema controvertido no Poder Judiciário e na doutrina, com implicações jurídicas inquestionáveis, inclusive no Direito Administrativo.
Embora sejam duradouras, públicas e contínuas e tenham como fim a constituição de família, características próprias da união estável heterossexual, segundo o Art. 1º da Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996[2], e o caput do Art. 1.723 do atual Código Civil[3], as uniões estáveis homossexuais não são reconhecidas como núcleos familiares pela maioria dos magistrados, o que evidência a ideologia heterossexista imperante no Brasil. A jurisprudência ainda considera que as uniões estáveis homossexuais são sociedades de fato e, por isso, aplica-lhes o Direito das Obrigações.
Todavia, há julgados que reconhecem a analogia das uniões estáveis homossexuais com as uniões estáveis heterossexuais, considerando-se os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, bem como os direitos fundamentais.
Por outro lado, a concessão de pensão a companheiro homossexual de servidor público regido pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990[4], constitui um tema mais complexo, haja vista o princípio da legalidade estrita na Administração Pública.
Em sendo considerado que o estudo sobre a realidade sócio-jurídica das uniões estáveis homossexuais é inovador no âmbito do Direito Administrativo, entende-se que a pesquisa ora divulgada apresenta relevância para o Direito pátrio, notadamente para gays e lésbicas, cidadãos que, tal como os heterossexuais, titularizam direitos e obrigações.
1. PRINCÍPIOS NO DIREITO
Princípios são “verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade” (REALE, 1999, p. 60).
Assim, princípios de uma ciência são as suas normas básicas, explícitas e implícitas, com as quais se constrói o conhecimento.
Quanto ao Direito, sabe-se que ‘’os princípios devem nortear a sua elaboração, interpretação e aplicação, bem como devem ser estudados permanentemente, ainda mais quando se trata de tema atualíssimo, polêmico, pouco estudado e que se faz presente no Poder Judiciário face às demandas sociais, como as uniões estáveis homossexuais.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello apud Barroso (1999, p. 149):
‘Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico…’. ‘Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais…’. [grifo nosso]
Por sua vez, Silva (2008, p. 91-96) expressa o entendimento de que os princípios, quando positivados, denominam-se normas-princípio, normas-matriz, normas-síntese ou normas fundamentais, os quais podem ser assim classificados:
1) princípios político-constitucionais ou princípios constitucionais fundamentais, que são os grandes pilares de um determinado Direito por constituírem os seus principais valores político-jurídicos – no caso da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tais princípios estão consubstanciados no Título I – Dos Princípios Fundamentais, sendo exemplo o princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inciso III);
2) princípios jurídico-constitucionais ou princípios constitucionais gerais, que decorrem dos princípios político-constitucionais, como o princípio da isonomia, também chamado princípio da igualdade (caput do Art. 5º daquela Carta Magna).
Na discussão sobre as uniões duradouras, públicas e contínuas entre pessoas do mesmo sexo biológico, a referência aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade é necessidade imperiosa.
2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Substrato da ordem jurídico-constitucional brasileira, notadamente no que pertine aos direitos humanos fundamentais, a dignidade da pessoa humana ocupa a categoria dos princípios maiores da Carta Magna de 1988 (Art. 1º, inciso III), pois é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Dentre as filosofias ocidentais que se ocupam com a dignidade da pessoa humana, podem ser citadas, conforme Sarlet (2004): 1) a concepção cristã (dignidade é o valor intrínseco ao ser humano, porque este foi criado à imagem e à semelhança de Deus); 2) o pensamento estóico (dignidade é a qualidade inerente ao ser humano e que o distingue dos outros seres); 3) Tomás de Aquino (autor que dá continuidade à filosofia cristã, acrescentando que também é fundamento da dignidade a autodeterminação de que o ser humano é capaz devido à sua própria natureza); 4) Giovanni Pico della Mirandola (o ser humano é digno em razão da natureza indefinida que lhe é outorgada por Deus, significando que o homem é capaz de ser o que a sua vontade determinar, sendo assim definida a sua natureza); 5) Samuel Pufendorf (dignidade é a liberdade que o homem tem de optar conforme a sua razão); 6) Immanuel Kant (o fundamento da dignidade do ser humano é a autonomia ética deste, pois o homem é potencialmente capaz de criar suas leis, autodeterminando sua conduta; o homem é um fim em si mesmo e, por isso, jamais pode ser tratado como objeto); 7) Hegel (dignidade é a qualidade que o ser humano conquista a partir de sua cidadania e a ele é reconhecida); 8) Niklas Luhmann e Peter Häberle (autores que destacam o aspecto histórico-cultural da dignidade). A doutrina jurídica majoritária adota o pensamento kantiano no que se refere ao núcleo da noção de dignidade.
A dignidade da pessoa humana, enquanto categoria axiológica, é construída permanentemente, apesar de saber-se que, enquanto qualidade inerente ao homem (dignidade como limite do Estado), ostenta as características da intangibilidade, irrenunciabilidade e inalienabilidade, bem como independe de seu reconhecimento pelo Direito e dos comportamentos humanos, ainda que estes sejam considerados indignos.
Também é vista a dignidade como tarefa que incumbe à entidade estatal (preservação e promoção da dignidade, bem como criação das condições necessárias a seu pleno exercício).
Consoante Martini (2002, p. 6; 2005, p. 75), “o apelo à dignidade humana é um princípio que funda um sentir e um operar comuns: nunca usar o outro como instrumento, respeitar em qualquer caso e sempre a sua inviolabilidade, considerar sempre cada pessoa como realidade indisponível e intangível”.
A dignidade da pessoa humana é:
“a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. [grifo nosso] (SARLET, 2004, p. 59-60)
Observa-se que, de conformidade à exposição de Sarlet (2004), somente a partir da 2ª Guerra Mundial, com algumas exceções, a exemplo da Alemanha, de Portugal e da Irlanda, cujas Constituições antecedem esse episódio, a dignidade da pessoa humana é reconhecida de forma expressa nas Cartas Magnas de muitos Estados. Atualmente, nem todos os países a reconhecem expressamente, porém a tendência é no sentido desse reconhecimento.
Segundo Barroso (2001, p. 26-27):
“O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. [grifo nosso]
Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos.”
Consagra-se a dignidade da pessoa humana como princípio/valor fundamentador do ordenamento jurídico brasileiro (Constituição da República de 1988, Art. 1º, inciso III), o que significa que: 1) “o nosso Constituinte de 1988 […] reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana” (SARLET, 2004, p. 65), reforçando o entendimento sobre a dignidade como limite e tarefa dos poderes estatais, evidenciando assim que se adota a matriz kantiana de que o ser humano é um fim em si mesmo; 2) nela fundamentam-se, direta ou indiretamente, os direitos humanos e, em especial, os direitos fundamentais, quer estejam positivados, quer não, ou seja, a dignidade da pessoa humana sintetiza todos os direitos fundamentais.
Inúmeros desdobramentos derivam desse princípio/valor (norma fundamental), que: a) enquanto princípio, deve ser observado em tudo e por todos (necessariamente inclui o processo legislativo, com destaque na elaboração de leis substantivas, e a interpretação e aplicação do Direito); b) na condição de valor, é o “ ‘valor fonte que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico’ ” (SARLET, 2004, p. 70). Resta evidenciado o caráter normativo-vinculante do princípio/valor da dignidade da pessoa humana.
A magnitude do princípio/valor da dignidade da pessoa humana é de tal ordem, que ele é a razão de ser e a medida dos direitos fundamentais constitucionalmente elencados, sendo a Constituição da República de 1988 uma “Constituição da pessoa humana” (SARLET, 2004, p. 78). Tal dignidade é o fundamento dos direitos fundamentais e enseja, no âmbito hermenêutico, “ ‘o imperativo segundo o qual em favor da dignidade não deve haver dúvida’ ” (SARLET, 2004, p. 83). Os direitos fundamentais são a concretização, a realização concreta, a efetivação da dignidade da pessoa humana.
Há que ser destacada a abertura material dos direitos fundamentais amparados na Carta Magna de 1988, isto é, a existência de outros direitos fundamentais pautados na dignidade da pessoa humana, ainda que implícitos nos direitos expressamente positivados, acrescentando-se o que reza a Constituição da República de 1988 no § 2º do Art. 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
A dignidade da pessoa humana, nos aspectos limite e tarefa, vincula o Estado, os indivíduos e a sociedade em geral. Não há como negar que “ ‘a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo’ ” (PÉREZ LUÑO apud SARLET, 2004, p. 110). Por sua vez, Matos (2004, p. 152) consigna que “A dignidade da pessoa humana deve encerrar um conteúdo normativo, e não tão-somente se resumir a um apelo ético. Logo, esse princípio está a informar a necessidade de providências que o implementem. […]”. Na esteira desse pensamento, fica reconhecido que uma das implicações da dignidade como limite e tarefa é o inegável dever de respeito à liberdade de exercício da orientação sexual e, mais que isso, o dever de promoção dessa liberdade.
Merecedora de consideração é a seguinte passagem de Doneda (2002, p. 45-46):
“A posição da cidadania e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da República […], juntamente com as garantias de igualdade material […] e formal […], ‘condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte’ e marcam a presença, em nosso ordenamento, de uma cláusula geral da personalidade. Tal cláusula geral representa o ponto de referência para todas as situações nas quais algum aspecto ou desdobramento da personalidade esteja em jogo, estabelecendo com decisão a prioridade a ser dada à pessoa humana, que é ‘o valor fundamental do ordenamento, e está na base de uma série (aberta) de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela’.”
Em sendo vista a dignidade como limite, ocorrendo antinomia entre princípios ou destes com direitos fundamentais, ainda que no âmbito constitucional, prevalece o princípio da dignidade da pessoa humana, que também é limite quando ocorre a necessidade de restrição de algum direito, vale dizer, o núcleo essencial da dignidade jamais deve ser violado. Sempre deve ser observado, sem exceções, o postulado in dubio pro dignitate.
Nessa linha de raciocínio, Sarlet (2004) discorre sobre o princípio da proibição de retrocesso, segundo o qual quaisquer supressões e restrições de direitos hão de ser tidas como inconstitucionais, caso firam o aludido núcleo essencial da dignidade (ou até mesmo do direito fundamental), uma vez que deve ser assegurado permanentemente o que se denomina mínimo existencial, ou seja, as condições existenciais básicas[5] sem as quais é impossível viver com o mínimo de dignidade.
Ao prefaciar a obra de Sarlet (2004, p. 16), Paulo Bonavides fala que “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana”.
2.1 Homossexualidade
Sob pena de a humanidade regredir ao estado de selvageria, inafastável é a dignidade da pessoa humana, que é a dignidade inerente a todo ser humano, sem exceções. Necessariamente, a orientação sexual é protegida pela dignidade, pois inseparável do ser humano é a sexualidade[6]. Tal argumento é irrefutável e deve ser levado em consideração, quando o assunto discutido são as uniões estáveis homossexuais, empreendimento pioneiro levado a efeito por alguns doutrinadores nacionais e poucos magistrados e que começa a romper, ainda com inauditos e corajosos esforços, o preconceito e a discriminação, os quais são recorrentes quando o assunto é a homossexualidade.
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos princípios maiores a direcionar a sociedade e o Estado em todas as ações individuais, coletivas e institucionais, visando à concretização do real Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, que são de todos, independentemente de orientação sexual, sob pena de resvalar no descrédito a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e cair por terra essa árdua conquista histórica, política e jurídica nacional.
Para se concretizar o real Estado Democrático de Direito, respeitando-se verdadeiramente o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, urge afastar as ideologias preconceituosas e discriminatórias.
Neste momento crucial para o mundo, sobreleva-se a importância da socialidade e do pluralismo para o Estado Democrático de Direito que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Rios (2001, p. 113):
“[…] pode-se perceber no pluralismo a condição necessária para a preservação da dignidade humana e para o desenvolvimento pessoal, na medida em que sem o respeito às diferenças individuais desaparece a possibilidade da construção de um mundo onde haja espaço para a subjetividade e a constituição das identidades pessoais. Relacionando socialidade e pluralismo, verifica-se que a intimidade requer não só o direito negativo de estar só, mas também a possibilidade de estabelecer espaço de intimidade e condições sociais para o exercício das escolhas pessoais que estabelecem e mantêm relações afetivas e constituem identidades.” [grifo nosso]
Exemplo de pluralismo no âmbito familiar são as famílias formadas por casais homossexuais, as quais, como quaisquer outras, merecem atenção e respeito do Estado e da sociedade, bem como normatização jurídica em condições de igualdade com as famílias constituídas por casais heterossexuais, a fim de serem respeitados os direitos humanos e fundamentais arduamente conquistados e os princípios maiores da Carta Política de 1988, entres estes os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Sobre a diversificação dos núcleos familiares hodiernos, observa-se que já se fala em “princípio da pluralidade familiar” (MATOS, 2004, p. 19). Baseando-se no pensamento de Pietro Perlingieri, conclui Matos (2004, p. 156) que deve “o princípio da pluralidade no âmbito familiar receber uma interpretação ampla, respeitadora das diversas formas de união, a encontrar limite apenas na dignidade das pessoas”.
3. IGUALDADE
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se […] a inviolabilidade do direito […] à igualdade […]” é o que reza o caput do Art. 5º da Constituição da República de 1988. O princípio da igualdade, em sua versão original, significa que, face à lei, o aplicador do Direito deve tratar sem discriminações todos os sujeitos abrangidos abstratamente pela lei posta e imposta. Isso corresponde à igualdade formal, que, nas palavras de Konrad Hesse apud Rios (2001, p. 68):
‘[…] pede a realização, sem exceção, do direito existente, sem consideração da pessoa: cada um é, em forma igual, obrigado e autorizado pelas normalizações do direito, e, ao contrário, é proibido a todas as autoridades estatais, não aplicar direito existente em favor ou à custa de algumas pessoas. […]’
Rios (2001, p. 68) prossegue:
“Concebido nestes termos, o direito de igualdade decorre imediatamente do princípio da primazia da lei no Estado de Direito, sem a consideração de quaisquer outros dados que não a abstrata e genérica formulação do mandamento legal, independentemente das peculiares circunstâncias de cada situação concreta e da situação pessoal dos destinatários da norma jurídica.”
Ao surgir o Estado de Direito, a lei e o Direito são compreendidos como sinônimos. E, devido à pressuposição da auto-suficiência da legalidade, o Poder Judiciário se torna o mero aplicado da lei.
No entanto, o princípio da igualdade, tal como herdado das Revoluções Americana e Francesa, mostra-se, por si, incapaz de garantir a verdadeira igualdade entre as pessoas no mundo hodierno, dada a materialidade desigual de oportunidades e condições de vida para os indivíduos. Por isso, a sociedade clama pela igualdade na lei, isto é, para que o legislador, na elaboração da lei, opte por normas que, sem discriminações desarrazoadas[7], regulem de forma igualitária situações fáticas idênticas, ou seja, fatos elevados à categoria jurídica por apresentarem o mesmo fulcro ensejador das reivindicações sociais.
Fala-se, portanto, em igualdade formal (igualdade perante a lei) e igualdade material (igualdade na lei), ambas proclamadas pela Carta Política de 1988, correspondendo, respectivamente, ao que Gomes e Silva (2003) expressam como igualdade estática (também denominada procedimental ou processual) e igualdade dinâmica (que ainda é identificada como militante, substancial ou de resultados). Sobre isso, o Supremo Tribunal Federal in “A Constituição e o Supremo”, através de sua jurisprudência, ao interpretar a Magna Carta de 1988, assinala:
“O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade.” (MI 58, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/04/91)
Acrescenta-se que a igualdade material deve considerar “também certos comportamentos inevitáveis da convivência humana, como é o caso da discriminação [preconceito] […] evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade” (GOMES e SILVA, 2003, p. 88), sendo recorrente, pois, essa questão quanto ao tratamento social e jurídico dispensado aos homossexuais.
Segundo Gomes & Silva (2003, p. 139):
“[…] se deve atentar para a igualdade jurídica a partir da consideração de toda a dinâmica histórica da sociedade, para que se focalize e se retrate não apenas um instante da vida social, aprisionada estaticamente e desvinculada da realidade histórica de determinado grupo social. Há que se ampliar o foco da vida política em sua dinâmica, cobrindo espaço histórico que se reflita ainda no presente, provocando agora desigualdades nascentes de preconceitos passados, e não de todo extintos. […]”
A observação anterior é marcante no que guarda referência ao tratamento social dado à homossexualidade, tema para o qual são imprescindíveis as contribuições da Antropologia. A propósito, lapidar é o esclarecimento feito por Mott (2003, p. 36-41):
“É perfeitamente possível datar a origem e explicar o background do preconceito anti-homossexual, cristalizado com um dos mitos mais significativos da cultura ocidental, e que permanece ainda hoje como o maior tabu do mundo moderno. Sua gênese teve lugar por volta de quatro mil anos passados, na Caldéia, quando um velho pastor, Abraão, divulga junto a sua parentela e vizinhança certas revelações que assegurava ter recebido do próprio Deus, escolhendo-o como fundador de um povo predestinado. Elabora-se então, nesse momento, um projeto civilizatório que vai se tornar o mito fundador não só do povo judeu, como da própria história genealógica das três principais religiões do mundo moderno: judaísmo, cristianismo e islamismo. […] Cercados por nações antigas, superpopulosas e poderosas – assírios, babilônios, caldeus, hititas, egípcios – os hebreus, este pequenino bando de pastores nômades, não tinham outro caminho para atingir seu ambicioso projeto civilizatório: gerar filhos, fazer muitos filhos, engravidando ao máximo suas mulheres e escravas […] Destarte, o exercício da sexualidade passou a ter apenas um objetivo: povoar de estrelas-humanas as areias do deserto, procriar novos guerreiros capazes de enfrentar os violentos inimigos, esses, sempre desejosos de curvar o orgulho daquela pequenina tribo de pastores endogâmicos […] Assim sendo, cada gota de esperma desperdiçado passou a constituir verdadeiro crime de lesa-nacionalidade, pois todo sêmen deveria ser depositado no único receptáculo capaz de reproduzir um novo ser humano: o “vaso natural” da mulher. Daí o Levítico condenar à pena de morte os que praticassem a masturbação, o coito interrompido […] a homossexualidade. […] Para nossos ancestrais judeus e, posteriormente, em toda a cristandade, o preconceito homofóbico tinha como justificativa inconsciente não apenas o desperdício do sêmen, visto como uma espécie de controle perverso da natalidade, mas temia-se, mais que a peste, a ameaça desestabilizadora representada pelos amantes do mesmo sexo, na medida em que importantes costumes tradicionais eram colocados em xeque pelo revolucionário estilo de vida dos sodomitas: o sexo prazer desvinculado da procriação, a tentação da androginia e da unissexualidade, o questionamento da naturalidade da divisão sexual do trabalho e dos papéis de gênero. Num mundo de extrema violência como era o cenário bíblico na Antigüidade […] aquele bando de pastores nômades desenvolveu códigos de sociabilidade e papéis sociais fortemente hierarquizados e rudes, pois a segurança e a sobrevivência das mulheres, crianças, dos anciãos e rebanho, dependiam vitalmente da força física individual e coletiva dos machos adultos. Tornou-se crucial o fortalecimento e dureza do papel de gênero masculino, a rígida divisão sexual, de um lado o mundo do super-homens, ligado às armas, à guerra, ao enfrentamento do mundo hostil; do outro, o mundo feminino, submisso, doméstico, voltado para a prole, recluso. [eis a origem da falocracia, misoginia e homofobia] […] Mais que o travestismo, o maior perigo representado pelo homoerotismo sempre foi o questionamento da naturalidade dos papéis de gênero atribuídos aos dois sexos. Um homem que abdica do privilégio de ser guerreiro, ou mesmo de servir como sacerdote no altar do Deus dos Exércitos, optando por tarefas e ocupações inferiores identificadas com o universo feminino, provoca uma crise estrutural de proporções imprevisíveis, pois tal novidade poderia se tornar prevalente, ameaçando gravemente a perpetuidade deste povo e segurança nacional. Muitos gays, em incontáveis sociedades, distinguem-se dos demais machos exatamente por esse hibridismo comportamental e ocupacional, quando não pela inversão total de papéis e tarefas socioeconômicas, novidade performática que põe em risco e revoluciona a tradicional divisão sexual do trabalho. […] No imaginário dos judeus, homossexuais seriam sempre efeminados, fracos, guerreiros débeis, daí serem indesejados e perseguidos numa cultura tão marcada e dependente do militarismo. Com a expansão da moral e dos preconceitos judaico-cristãos pelo Ocidente, durante boa parte da Idade Média e particularmente na Península Ibérica a partir dos Tempos Modernos, o amor entre pessoas do mesmo sexo foi violentamente reprimido devido a seu caráter eminentemente revolucionário e desestabilizador de significativos princípios e regras sociais considerados basilares para nossos ancestrais. Com a conquista do Novo Mundo, a mesma fobia e perseguição à homossexualidade se enraízam na sociedade brasileira, de tal sorte que podemos traçar uma relação visceral da homofobia contemporânea com o projeto civilizatório do macho português no contexto do Brasil escravista. Novamente aqui, é a etno-história que nos fornece a melhor pista para estabelecer a relação entre o tabu da homossexualidade e seu componente revolucionário.”
3.1 Homossexualidade e (A)Normalidade: Produtos Sócio-Culturais
Não há explicação psicanalítica satisfatória para a homossexualidade e a heterossexualidade. Não pode, pois, o atual estágio científico, no campo da Psicanálise, falar em normalidade sexual (DESPRATS-PÉQUIGNOT, 1994, p. 96).
Para Freud e Canguilhem apud Desprats-Péquignot (1994, p. 22), “a definição da anormalidade explica-se, antes de mais nada, por uma norma que não é natural, mas produzida pelos homens”.
A sociedade define como paradigma a heterossexualidade, vendo-a como a única e exclusiva manifestação sexual e afetiva normal. A sociedade define quem é normal e quem é anormal. A (a)normalidade é criação social, vale dizer, não é real, mas ideologicamente criada e a serviço de um grupo, que necessariamente repele os assim “excluídos”.
Também relevante é a contribuição da Psicologia para o estudo jurídico das uniões afetivo-sexuais estáveis de pessoas do mesmo sexo biológico. De conformidade ao Conselho Federal de Psicologia, que sobre a homossexualidade emite parecer técnico-científico através da Resolução nº 001, de 22 de março de 1999, “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (4º Considerando). Isso espanca quaisquer dúvidas dos profissionais do Direito e da sociedade genericamente considerada no que pertine à homossexualidade e, por outro lado, reclama imperiosamente do Estado as imprescindíveis ações afirmativas que, com efetividade, assegurem a igualdade material dos homossexuais face à maioria heterossexual e façam valerem a Constituição da República de 1988 e o Estado Democrático de Direito.
Constata-se, enfim, que a homossexualidade é um produto sócio-cultural, ou seja, uma criação da sociedade devido à cultura que lhe é própria.
3.2 Igualdade: Imperativo Jurídico Brasileiro
Continuar dispensando tratamento sócio-jurídico indigno e desigualitário aos homossexuais é persistir numa conduta que vai de encontro aos princípios alicerçantes da República Federativa do Brasil, conduta anti-cidadã, indigna, anti-social, anti-democrática, escravagista, injusta, anti-solidária, anti-progressista, marginalizante, desigualitária, preconceituosa, discriminatória, anti-humanitária, terrorista, inaceitável perante o atual estágio civilizatório, o hodierno conhecimento científico e a Carta Política de 1988.
Não se pode perder de vista que a Lei Maior de 1988, em seu Art. 3º, inciso IV, proíbe a discriminação por orientação sexual. Sobre essa vedação, Rios (2001, p. 72-73) deixa registrado:
“De fato, a discriminação por orientação sexual é uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem alguém dirige seu envolvimento sexual, na medida em que a caracterização de uma ou outra orientação sexual resulta da combinação dos sexos das pessoas envolvidas na relação.
Assim, Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou sua conduta sexual. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discriminação; todavia, se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos, neste contexto, têm sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo.
[…] é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou de outra orientação sexual levar-se em conta o sexo, tanto que é o sexo de Paulo ou de Maria que ensejará ou não o juízo discriminatório diante de Pedro. Ou seja, o sexo da pessoa envolvida em relação ao sexo de Pedro é que vai qualificar a orientação sexual como causa de eventual tratamento diferenciado.”
Se se exige a igualdade formal, razão maior está no imperativo de se realizar efetivamente a igualdade material, sabendo-se que ainda reinam na contemporaneidade o preconceito, a discriminação direta e indireta, o heterossexismo, a homofobia, a violência institucionalizada, a violência velada.
No caso da homossexualidade, não há razão suficiente para dispensar-lhe tratamento indigno e formalmente/materialmente desigualitário. Corroboram esse pensamento as contribuições científicas atuais, sendo relevantes as que provêm da Antropologia, Medicina e Psicologia, conforme menções feitas anteriormente nesta monografia.
Do exposto sobre o princípio da igualdade, fica claro que esse é mais um dos princípios constitucionais na fundamentação da analogia entre as uniões estáveis homossexuais e as uniões estáveis reguladas pela Lei nº 9.278/96[8] e pelo Art. 1.723 do Código Civil de 2002[9], o que já começa a despontar na doutrina e em julgados nacionais.
4. ANALOGIA
Analogia é um dos institutos jurídicos utilizados na colmatação legal, previstos na Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro[10], que reza no Art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Fala-se em colmatação legal, porque, conforme se lê no aludido Art. 4º, a lei pode ser omissa, ou seja, o legislador considera que o ordenamento jurídico é incompleto, visto ser impossível a previsão de todos os fatos que requerem a sua regulação no Direito. Como exemplo, citam-se as uniões afetivo-sexuais estáveis que, à guisa de affectio maritalis, ocorrem entre homossexuais e necessitam de uma regulação jurídica explícita face ao ferrenho positivismo ainda vigente.
Sobre a incompletude do ordenamento jurídico, assim se expressa Costa (2001):
“A completude do ordenamento jurídico, defendida pelos positivistas, no propósito de ter respostas para todas as problemáticas humanas num único ordenamento, que necessariamente tem vigência espacial e temporal limitada, é um ideal que não pode ser alcançado. A estupenda e maravilhosa dinâmica da convivência humana, ao criar realidades a cada momento e ao apresentar nuances sempre novas em velhos fenômenos que se encontram sob cobertura do Direito, impede o alcance daquele ideal. A aplicação pura e simples das leis, especialmente em sua literalidade, sem uma análise mais acurada das especificidades do caso concreto (caso sub judice), pode encerrar a possibilidade do cometimento de injustiças. A situação fática pode conter interfaces tão inéditas que estas a coloquem fora do campo de incidência dos preceitos legais, em razão da não correspondência com os supostos jurídicos, o que pode não ser apreendido pelo jurista, ou este pode não querer tal apreensão, quando o dito jurista tem formação acadêmica míope ou é desacostumado à crítica da legislação, porque se apegou terrivelmente à ciência jurídica, descurando-se do estudo das disciplinas complementares e da interdisciplinaridade científica necessária no mundo atual, e porque não exerceu o espírito questionador (talvez em razão de achar-se preso a interesses egóicos e de nobreza duvidosa). A ideologia e a hermenêutica jurídicas possibilitam interpretações várias das normas insertas na positivação do Direito, cuja perfeição é impossível de ser atingida. Assim, ao finalizar-se a análise do tema deste artigo, as considerações finais são no sentido de que todo e qualquer ordenamento jurídico positivo é lacunoso, deixando parcela importante de sua integração ao jurista-intérprete. A completude é uma ilusão.”
A analogia, que está prevista no ordenamento jurídico para fazer face à mencionada incompletude, requer semelhança essencial entre as hipóteses A e B. São insuficientes as semelhanças não essenciais, uma vez que a analogia se fundamenta na essencialidade da semelhança entre as hipóteses.
Segundo Alípio Silveira apud Marchetti (2002, p. 60-61), “ ‘Fundamento da analogia não é a vontade presumida do legislador, que se tivesse previsto um caso determinado tê-lo-ia regulado de um dado modo, mas é antes o supremo princípio da igualdade jurídica, o qual exige que casos semelhantes devam ser regulados por normas semelhantes’ ”.
De conformidade ao exposto por Maria Helena Diniz apud Fernandes (2004, p. 148), o fundamento da analogia:
‘Encontra-se na igualdade jurídica, já que o processo analógico constitui um raciocínio ‘baseado em razões relevantes de similitude’, fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da aplicabilidade da norma a casos não previstos, mas substancialmente semelhantes, sem contudo ter por objetivo perscrutar o exato significado da norma, partindo, tão-só, do pressuposto de que a questão sub judice, apesar de não se enquadrar no dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão’.
No que pertine ao tema estudado na presente monografia, essa razão é o afeto, que caracteriza os relacionamentos regulados pelo Direito de Família e não está presente no fulcro das relações de cunho econômico-financeiro, normatizadas estas pelo Direito das Obrigações por se tratar de sociedades de fato.
Marchetti (2002, p. 45-46) assim se expressa ao conceituar o instituto da analogia:
“[…] definimos a analogia como um procedimento em que se estende um dispositivo legal a um caso semelhante não previsto porque socialmente passou-se a ser necessário sua regulamentação para a tutela do mesmo valor.
Mas o que significa que passou a ser necessária a regulamentação do caso?
Isso ocorre quando existe um sentimento de injustiça que, apesar da ausência legal, não aceita que o caso seja juridicamente irrelevante […]
É interessante que este sentimento – e não razão – não esclarece com certeza o que é o justo, mas é capaz de fazermo-nos levantar contra o que intuímos injusto, conforme nos ensinou Recaséns Siches:
‘Acontece freqüentemente que ao enfrentarmos um problema social, não podemos determinar com certeza qual seria a melhor das várias soluções que se apresentam como possíveis; porém, ao contrário, com firmeza e unânimidade sentimos e sabemos que uma determinada solução seria superlativamente injusta’.”
Para Maximiliano (2000, p. 212), a analogia:
“I. Pressupõe: 1º) uma hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva; 2º) a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; 3º) este elemento não pode ser qualquer, e, sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo. Não bastam afinidades aparentes, semelhança formal; exige-se a real, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistente no fato de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só a idéia geradora tanto da regra existente como da que se busca. A hipótese nova e a que se compara com ela, precisam assemelhar-se na essência e nos efeitos; é mister existir em ambas a mesma razão de decidir. Evitem-se as semelhanças aparentes, sobre pontos secundários (2). O processo é perfeito, em sua relatividade, quando a frase jurídica existente e a que da mesma se infere deparam como entrosadas as mesmas idéias fundamentais (3).”
“244 – II. Não bastam essas precauções; cumpre também fazer prevalecer, quanto à analogia, o preceito clássico, impreterível: não se aplica uma norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi estabelecida. Não é lícito pôr de lado a natureza da lei, nem o ramo do Direito a que pertence a regra tomada por base do processo analógico. Quantas vezes se não verifica o nenhum cabimento do emprego de um preceito fixado para o comércio, e transplantado afoitamente para os domínios da legislação civil, ou da criminal, possibilidade esta mais duvidosa ainda!”
4.1 As uniões estáveis homossexuais são juridicamente análogas às uniões estáveis heterossexuais
Quanto às uniões estáveis homossexuais, inaceitável é aplicar-lhes a legislação atinente às sociedades de fato, porque, ainda que nestas possa existir afeto entre os sócios, a possível afetividade dos sócios entre si não é essencial para configurar tais sociedades, que requerem, por imperativo, o intuito de lucro econômico-financeiro. As sociedades de fato se formam sob o aspecto econômico-financeiro, sendo-lhes pressuposto o objetivo de alcançar lucros nessa esfera do relacionamento humano, significando que o afeto possivelmente presente entre os seus integrantes não é o elemento que determina a sua formação. Além disso, tal afeto não está presente nas relações dos sócios entre si em todas as sociedades de fato. Soma-se também a constatação de que esse afeto, em tais sociedades, é deveras diferente do afeto presente nos relacionamentos familiares.
No âmbito familiar, o que prepondera em sua constituição não é a busca de lucros na economia e nas finanças domésticas, porém o afeto entre as pessoas que se relacionam com o objetivo de constituir família, a qual, no limiar do século XXI, não mais se restringe ao paradigma do casal heterossexual. As relações familiares contemporâneas dão-se em razão do afeto nelas presente, pois o afeto é a essencialidade de sua constituição, vale dizer, o seu pressuposto. Esse afeto, inclusive, é de natureza diversa do afeto que pode existir entre os membros de uma sociedade de fato.
A união estável homossexual é uma autêntica sociedade de afeto e, por conseguinte, uma família, apesar de nem todos os relacionamentos homossexuais constituírem verdadeira união estável, da mesma forma que muitos relacionamentos heterossexuais não constituem união duradoura, pública e contínua.
Observa-se que não há semelhança entre a união homossexual formada como entidade familiar e a sociedade de fato, o que afasta incontinênti a probabilidade de analogia entre elas.
Por sua vez, a essencialidade de semelhança existe entre a união estável regulada em lei e a união homossexual estabelecida com objetivo de constituir família. O ponto de intersecção essencial entre elas é o afeto, que caracteriza as diversas e não paradigmáticas entidades familiares hodiernas, realidade que não deve ser menosprezada em um Estado laico como o Brasil, não jungido atualmente às religiões, especialmente à Igreja Católica Apostólica Romana, Estado independente, pois, do preceituado pelas religiões abraçadas por seus nacionais.
Para José Lamartine Corrêa de Oliveira apud Matos (2004, p. 15), “ ‘só uma concepção personalista do Direito, centrada em torno da dignidade ontológico-axiológica da pessoa humana, pode oferecer base segura à construção de um verdadeiro Estado de Direito’ ”. É inerente ao Direito Brasileiro essa concepção, pois a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (Carta Política de 1988, Art. 1º, inciso III).
Por sua vez, Matos (2004, p. 15-17) alude ao movimento atual de personificação ou repersonalização do Direito Civil. Esse movimento, que atinge necessariamente o instituto da família, significa um novo olhar sobre o papel social do Direito Civil, implicando a priorização dos valores esposados pelo ser humano contemporâneo, dos quais podem ser destacados a relevância da personalidade humana e o natural afeto a ensejar os inter-relacionamentos quando se trata de família, restando de somenos importância o formalismo jurídico e as referências ao patrimônio, pois “O que importa, em verdade, é o enfoque personalístico da afetividade” (MATOS, 2004, p. 16-17), vislumbrando a pessoa humana não no sentido individualista, porém dinâmico de convivência com seus pares. Isso não é tendência, mas realidade presente em nível mundial.
O princípio da dignidade da pessoa humana – “ ‘cuja função diretriz hermenêutica lhe é irrecusável – traduz a repulsa constitucional às práticas, imputáveis aos poderes públicos ou aos particulares, que visem expor o ser humano, enquanto tal, em posição de desigualdade perante os demais, a desconsiderá-lo como pessoa.’ ” (EDILSON PEREIRA NOBRE JUNIOR apud MATOS, 2004, p. 170, nota de rodapé nº 39). Ao ser aplicado esse princípio ao Direito de Família, tem-se que:
“ ‘é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.’ ” (GUSTAVO TEPEDINO apud GAMA, 2000, p. 60)
“‘Não é mais o indivíduo que existe para a família, mas a família e suas formas de constituição que existem para o desenvolvimento pessoal do indivíduo, em busca de sua aspiração de felicidade.’ ” (EDUARDO CAMBI apud GAMA, 2000, p. 59)
a família “ ‘é formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes.’ ” (PIETRO PERLINGIERI apud GAMA, 2000, p. 54)
Segundo Matos (2004, p. 27), o casamento deixa de ser instituição na contemporaneidade e cede lugar à família eudemonista, que se alicerça no afeto e tem o objetivo de realizar personalisticamente os seus membros. Sobre isso, João Baptista Villela apud Matos (2004, p. 27) refere-se à “ ‘passagem de um organismo preordenado a fins externos para um núcleo de companheirismo a serviço das próprias pessoas que a constituem’ [refere-se à família]”.
O novo Direito de Família tem como enfoque, pois, o afeto. Isso imperativamente deve ser levado em conta para o reconhecimento jurídico explícito das uniões estáveis homossexuais. Como não há no ordenamento jurídico pátrio, até o momento, uma norma que se aproxima ainda mais da regulação que a união estável homossexual requer e, ainda, como não há semelhança entre esta e a sociedade de fato, contudo com a união estável regulada pela Lei nº 9.278/96[11] e pelo Código Civil de 2002[12], deve ser aplicada a analogia das uniões estáveis homossexuais com as uniões estáveis de que trata a referida lei. Tal analogia é a solução autorizada pela legislação atual, conforme o Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro[13] e o Art. 126 do Código de Processo Civil[14].
Do exposto nesta monografia, constata-se que se aplica a analogia entre as uniões estáveis heterossexuais e as uniões homossexuais duradouras, públicas, contínuas e estabelecidas visando à constituição de família, pois, além do permissivo legal e do que ensina a doutrina acerca da analogia como instituto voltado para a colmatação da lei:
1) a dignidade da pessoa humana não aceita exceções;
2) a igualdade é de todos (heterossexuais, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais) e afasta distinções desarrazoadas;
3) o juiz não pode e não deve eximir-se de seu mister face à lacuna ou obscuridade legal e, inexistindo normas legais aplicáveis à espécie, cabe-lhe recorrer aos institutos de colmatação, entre estes a analogia (Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro[15] e Art. 126 do Código de Processo Civil[16]);
4) o juiz, ao aplicar a lei, há de atender a seus fins sociais e às exigências do bem comum (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro[17], Art. 5º), que são as exigências voltadas para o bem de todos, incluindo o das minorias;
5) a sociedade brasileira há de ser livre, justa e solidária, sem preconceitos e discriminações, devendo erradicar a marginalização e reduzir as desigualdades sociais, pois se vive em Estado Democrático de Direito e a República Federativa do Brasil tem a cidadania como um de seus fundamentos (Constituição da República de 1988, Arts. 1º e 3º). Também devem ser levadas em conta as grandes mudanças por que passam as sociedades em nível mundial, até porque “[…] Um Estado democrático valoriza positivamente a pluralidade. […]” (LOPES, 2000). Conforme ensina Mello, L. (2005):
“A despeito da inexistência de uma proteção jurídica expressa e inequívoca, observa-se que o processo de construção social da conjugalidade homossexual aponta para a afirmação do entendimento de que as relações afetivo-sexuais estáveis entre gays e entre lésbicas vêm se materializando como uma das novas formas de institucionalização de vínculos familiares no Brasil, principalmente quando se tem em vista a crescente legitimidade da autonomização da sexualidade em relação à reprodução e à conjugalidade, o questionamento da dimensão supostamente natural da família e do sistema de sexo e gênero e a ampliação do campo semântico das noções de direitos humanos e de cidadania, de forma a englobar os direitos sexuais e reprodutivos. […]
Assim, numa perspectiva sociológica, pode-se dizer que as relações amorosas estáveis entre homossexuais começam a ser vistas como uma das modalidades de família que passa a ganhar visibilidade social no final do século XX, com o casal conjugal sendo concebido menos como grupo organizado e hierarquizado, destinado à reprodução biológica, e mais como espaço de exercício de amor e de cooperação mútua, consagrado à reprodução social. […].”
Por isso, os princípios que regem as uniões normatizadas pela Lei nº 9.278/96[18] e pelo Código Civil de 2002[19] devem ser aplicados às uniões estáveis homossexuais. Da mesma forma que as uniões normatizadas pela referida lei, também são realidades fáticas inegáveis as uniões afetivo-sexuais estáveis entre indivíduos que têm o mesmo sexo comumente denominado biológico. Para as uniões estáveis homossexuais, exige-se, pois, a igualdade de tratamento jurídico dispensado às uniões estáveis que ocorrem entre pessoas de sexo biológico diverso. Tratar desigualmente essas duas realidades é agir sem razoabilidade, o que significa infringir flagrantemente o princípio da igualdade.
Resta citar Marchetti (2002, p. 79-81), cuja lucidez ensina que:
“A finalidade do direito é garantir a pessoa humana do indivíduo. Quando o direito desvia-se desta sua finalidade, torna-se opressão. Por isto, quando a criação judicial se faz através da analogia, o juiz deve sempre levar em conta a finalidade do direito que é garantir a pessoa humana do indivíduo, sobretudo quando em conflito contra a coletividade ou o Estado. Inexiste razão social ou de Estado que possa prevalecer sobre a pessoa humana do indivíduo. […]
[…] há direitos fundamentais da pessoa humana que precisam prevalecer absolutamente, inexistindo exceções, já que sem o indivíduo a sociedade perece.
Desta maneira somente é legítimo o uso da analogia para prestigiar os direitos da pessoa humana do indivíduo. Prestigiar os direitos da sociedade em sacrifício dos direitos do indivíduo não garante nada, pois o mais forte não precisa de garantia. A garantia tem por destinatário o mais fraco. […] o direito [é] instrumento de garantia.
[…] existe um espaço em que nenhuma vontade humana (individual ou coletiva) prevalece; neste espaço até os mais fortes têm que obedecer e os mais fracos têm seu direito absoluto. São os direitos fundamentais da pessoa humana do indivíduo.”
Face ao discutido nesta monografia, não há dúvida de que as uniões estáveis homossexuais são análogas às uniões estáveis heterossexuais reguladas pela Lei nº 9.278/96[20] e pelo Código Civil de 2002[21]. Essas duas realidades estão fortemente presentes na sociedade brasileira e devem ser tratadas igualmente, considerando-se o conhecimento científico atual em matéria de Sociologia, Antropologia, Medicina e Psicologia, bem como os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
4.2 Julgados Históricos
Majoritariamente, a jurisprudência brasileira atual expressa o entendimento de que as uniões estáveis homossexuais são sociedades de fato, aplicando-lhes o Direito das Obrigações e a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal[22]. Porém, questiona-se tal entendimento.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, após a a publicação da Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996[23], apresenta alguns julgados pioneiros e vanguardistas, que reconhecem a analogia das uniões estáveis homossexuais com as uniões estáveis heterossexuais, levando em consideração, principalmente, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Nos referidos julgados, bem como nos que lhes seguem, evidenciam-se as várias argumentações dos Desembargadores. Os votos carreiam informações históricas, antropológicas, sociológicas, psicológicas, de direito comparado e outras, que constituem inestimável acervo para o inafastável estudo hodierno das uniões geralmente designadas homoafetivas.
Trata-se dos seguintes julgados:
“Agravo de Instrumento nº 599075496, julgado pela Oitava Câmara Cível em 17 de junho de 1999. Fixa-se a competência das Varas de Família para os julgamentos que envolvem relações afetivas, incluindo-se nestas os relacionamentos homoafetivos. […] Apelação Cível nº 598362655, julgada pela Oitava Câmara Cível em 1º de março de 2000. Afirma-se a possibilidade jurídica de pedido que, alicerçado em união estável homossexual, é feito por um dos companheiros, ficando afastada a carência de ação. […] Apelação Cível nº 70001388982, julgada pela Sétima Câmara Cível em 14 de março de 2001. Nesse julgado, que é um marco na história judicial brasileira, concedem-se direitos sucessórios a companheiro homossexual, analogamente ao que ocorre nas uniões estáveis, sendo as uniões homoafetivas reconhecidas como entidades familiares. […] Apelação Cível nº 70002355204, julgada pela Sétima Câmara Cível em 11 de abril de 2001. Resta configurada juridicamente viável a justificação que tem como objetivo comprovar a convivência sexual-afetiva entre duas pessoas do mesmo sexo. […] Apelação Cível nº 70003016136, julgada pela Oitava Câmara Cível em 08 de novembro de 2001. Assegura-se a companheiro homossexual o direito real de habitação. Apelação Cível nº 70005733845, julgada pela Segunda Câmara Especial Cível em 20 de março de 2003. Decide-se a favor da possibilidade jurídica do uso da ação declaratória para fins de reconhecimento de relação jurídica, reconhecendo-se que isso se aplica também à união estável de pessoas do mesmo sexo. […] Embargos Infringentes nº 70003967676, julgados pelo Quarto Grupo de Câmaras Cíveis em 09 de maio de 2003. Faz-se a analogia das uniões estáveis homoafetivas com as uniões estáveis de que trata expressamente o ordenamento jurídico pátrio, ficando reconhecidos os direitos hereditários de companheiro homossexual. […] Apelação Cível nº 70005488812, julgada pela Sétima Câmara Cível em 25 de junho de 2003. Além de ficar reconhecida como união estável a relação dita homoerótica, determina-se a partilha de bens consoante o regime de comunhão parcial. […] Apelação Cível nº 70006542377, julgada pela Oitava Câmara Cível em 11 de setembro de 2003. Fica reconhecida a união estável entre homossexuais. […] Na Apelação Cível nº 70007243140, julgada pela Oitava Câmara Cível em 06 de novembro de 2003, é feita a analogia da união homossexual com a união estável. […] No Agravo de Instrumento nº 70008631954, julgado pela Oitava Câmara Cível em 24 de junho de 2004, o Des. José S. Trindade (Relator), sobre a ação de reconhecimento e dissolução de união estável homossexual, manifesta o entendimento de que a matéria deve ser discutida no âmbito do Direito de Família, sendo competentes, para isso, as Câmaras de Família. […] Sobre o Provimento nº 06/04-CGJ, oriundo da Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e que acrescenta parágrafo único ao Art. 215 da Consolidação Normativa Notarial Registral (CNNR), o Des. Antônio Carlos Stangler Pereira (Relator), na Apelação Cível nº 70007911001, julgada pela Oitava Câmara Cível em 1º de julho de 2004, cita artigo do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, para quem esse Provimento ‘é até redundante [ex vi da CNNR, arts. 215, inciso VII, e 217, bem como da Lei dos Registros Públicos, art. 127, inciso VII e parágrafo único], embora se trate de uma redundância necessária, ante a persistência de alguns em não visualizar o óbvio’ (p. 7) e o registro não tem o condão de constituir a união homossexual como união estável, porém apenas apresenta as finalidades probatórias, de conservação e de autenticação de data, concernentes ao relacionamento afetivo, não constituindo relações jurídicas e não gerando efeitos contra terceiros, mas sendo um registro preventivo. Conforme o Des. Rui Portanova (Revisor) na Apelação Cível nº 70007336019, julgada pela Oitava Câmara Cível em 1º de julho de 2004, face ao disposto no Código Civil de 2002 não há que se falar em analogia das uniões homossexuais com a sociedade de fato: ‘tal analogia é totalmente inadequada’ (p. 8). Para esse Desembargador, a única possibilidade de analogia, ainda que remota, existia tão somente na vigência do Código Civil de 1916. Realmente, é o que salta aos olhos quando são interpretados, sob a ótica gramatical, o Art. 1.363 do Código de 1916 e o Art. 981 do novel Código, pois a sociedade de fato, na contemporaneidade e à luz do novo Código Civil, tem como centro gravitador o exercício de atividade econômica, o que não se aplica às uniões homossexuais, cuja razão de ser é a convivência afetiva e não a econômica. Na Apelação Cível nº 70009791351, julgada pela Sétima Câmara Cível em 10 de novembro de 2004, fica claro que, ao se considerar o Art. 226, § 3º, da Carta Política de 1988, a exceção não pode ser interpretada ampliativamente. Nesse julgado, o Des. José Carlos Teixeira Giorgis afirma que é possível a união estável entre homossexuais (p. 11). A mesma tese é aceita pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos, que entende ser possível a analogia das uniões homossexuais com as uniões estáveis (p. 11). […] Na Apelação Cível nº 70009550070, julgada pela Sétima Câmara Cível em 17 de novembro de 2004, faz-se judicialmente o reconhecimento da união homossexual. […] Nos Embargos Infringentes nº 70011120573, julgados em 10 de junho de 2005, o Quarto Grupo Cível expressa o entendimento de que a união estável homossexual é uma entidade familiar. […]” (COSTA, 2006, p. 64-75)
Verifica-se a existência de julgados similares oriundos do mesmo Tribunal e de outros Órgãos Judiciários, os quais também fazem a analogia das uniões estáveis homossexuais com as uniões estáveis heterossexuais.
5. ESTADO DE DIREITO E SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
Com a Revolução Inglesa no final do século XVII, começa a surgir o Estado de Direito. Tem início a primazia da lei, norma que se impõe coercitivamente com o respaldo estatal[24].
A lei se torna o centro gravitacional do Direito. Sua grande importância faz com que, nesse momento, lei e Direito sejam considerados sinônimos, o que enseja a presença do positivismo jurídico como doutrina necessária à consolidação do novo Estado.
Todavia, os fatos sociais se tornam cada vez mais complexos e levam à evolução das concepções acerca do Estado de Direito. A lei[25] deixa de ser compreendida como sinônimo de Direito e passa a ser interpretada e aplicada em conformidade com os ditames constitucionais, ou seja, segundo a Lei das Leis: a Constituição do Estado.
Passa a viger o pós-positivismo[26] e a supremacia da Constituição se alça à categoria de princípio inabalável do Estado de Direito. Assim sendo, quaisquer leis e atos normativos devem ser elaborados, interpretados e aplicados segundo o disposto na Constituição, destacando-se os princípios constitucionais.
5.1 Memórias Constitucionais e Sua Função para o Estudo do Direito Constitucional
A assertiva segundo a qual existe neutralidade[27] no Direito não corresponde à verdade. Da mesma forma, quando se pretende interpretar e aplicar as normas jurídicas, não há que se falar em neutralidade.
Toda e qualquer interpretação apresenta valorações[28]. Por outro lado, as ideologias[29] constituem elemento intrínseco aos indivíduos, sem exceções.
Ademais, a interpretação implica a existência de conhecimentos prévios do intérprete, os quais funcionam como a base com que se (re)constrói o conhecimento. Pode-se acrescentar que isso vem ao encontro do que se afirma no parágrafo anterior, ou seja, antes de iniciar a interpretação de uma norma jurídica, o intérprete já dispõe de um cabedal de conceitos e valores que, afinal, constituem o alicerce com o qual se torna possível a (re)construção do conhecimento. No mesmo sentido, cita-se An-Na’im (2000, p. 41), segundo o qual “toda pessoa sempre interpreta […] em termos de seu conhecimento e experiência de mundo”.
Eis a razão para se falar em “memórias constitucionais” e “pré-compreensão” (COELHO, 2001, p. 5), vale dizer, o conjunto prévio de conhecimentos, valorações e vivências do intérprete que lhe permitem proceder à interpretação de uma norma jurídico-constitucional e do Direito em sua generalidade.
A existência dessas memórias antecedentes à interpretação é que contribuem decisivamente para a evolução do Direito, pois elas podem ensejar interpretações diversificadas dos fatos sociais e das normas jurídicas. Assim é que surgem julgados vanguardistas[30] e doutrinas que trazem entendimentos novos acerca da mesma realidade sócio-jurídica. Com isso, o Direito se modifica, embora a literalidade das normas positivadas continue a mesma.
A partir de tais considerações, dá-se continuidade, no presente trabalho monográfico, ao estudo da concessão de pensão a companheiro homossexual de servidor público regido pela Lei nº 8.112/1990[31].
5.2 Papel da Constituição para o Processo de Criação e Desenvolvimento do Ordenamento Jurídico
Conforme registrado no presente capítulo, inicia-se, com o surgimento do Estado de Direito, a primazia da lei enquanto norma imposta pelo Estado. A lei se torna o sinônimo do Direito, segundo a doutrina dominante: o positivismo jurídico.
A complexidade da vida social, entretanto, possibilita a revisão das ideologias atinentes ao Direito e, por conseguinte, a evolução do próprio Direito. Com isso, reconhece-se a natural preponderância da Constituição, a lei das leis, e consolida-se o entendimento segundo o qual a lei, por si, não representa todo o Direito e acima dela encontra-se a Constituição, cujos dispositivos norteiam a elaboração, a interpretação e a aplicação das leis e dos atos normativos em geral.
O positivismo jurídico é revisitado e surge o pós-positivismo, que realça a supremacia da Constituição enquanto princípio relevantíssimo do Estado de Direito. A partir disso, assenta-se o entendimento de que as leis e os atos normativos devem ser elaborados, interpretados e aplicados consoante o disposto na Constituição, que é a Lei Maior de um Estado e que, por tal razão, cria e desenvolve o ordenamento jurídico.
Com a promulgação e a publicação da Carta Política, o ordenamento jurídico é (re)criado e, mais que isso, desenvolve-se a partir dos princípios e das demais normas constitucionais.
Com a (re)inauguração do ordenamento jurídico através da Carta Política, impõe-se a elaboração, a interpretação e a aplicação das leis e dos outros atos normativos em conformidade com os novos dispositivos constitucionais, porque a Constituição é a Lei Maior do Estado e disso decorre o princípio da sua supremacia.
Permanecem as leis compatíveis com os princípios e as demais normas constitucionais (leis recepcionadas). O mesmo não ocorre com as leis contrárias à Constituição (leis não recepcionadas). Busca-se, pois, manter o ordenamento jurídico segundo a sua Lei Maior, tanto que se prevê o controle de constitucionalidade formal e material das leis e dos atos normativos genericamente considerados, de forma que as disparidades de positivação, interpretação e aplicação do Direito, quanto à Magna Carta, não tenham guarida.
Os fatos sociais doravante surgidos devem ser interpretados e normatizados segundo os dispositivos constitucionais, destacando-se os princípios existentes na Constituição, quer sejam os princípios expressos, quer sejam os princípios implícitos, que decorrem dos primeiros. A Magna Carta, assim, também contribui decisivamente para a positivação do Direito, isto é, enseja a (re)criação do ordenamento jurídico e, por conseguinte, a sua evolução com vistas ao atendimento das velhas e novas demandas sociais.
A inexistência de normatização legal em face de determinados fatos sociais, v. g., pode ser superada através da (re)interpretação e da aplicação do ordenamento jurídico à luz dos dispositivos constitucionais. Exemplo marcante são as uniões estáveis homossexuais, que têm sido corretamente analisadas por alguns julgados, destacando-se os oriundos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, segundo os quais essas uniões, tal como ocorre com as uniões estáveis heterossexuais, caracterizam-se precipuamente pelo afeto, o que determina a aplicação do Direito de Família.
Assim é que a Constituição enseja a criação e o desenvolvimento do Direito, seja recepcionando determinadas leis e certos atos normativos, seja impondo específicas elaborações, (re)interpretações e aplicações de ambos, notadamente perante os fatos sociais aparentemente ao desamparo jurídico.
5.3 Métodos e Princípios de Interpretação das Normas Constitucionais
A relevantíssima importância da Constituição implica a grande responsabilidade de seus intérpretes, motivo pelo qual sempre é salutar discutir a interpretação das normas constitucionais.
Devido à complexidade da hermenêutica, destaca-se a vantagem de existirem vários métodos e princípios de interpretação das normas constitucionais.
Seis métodos de interpretação constitucional podem ser relacionados:
1) método jurídico ou hermenêutico-clássico – a Constituição, pelo fato de ser uma lei em sentido amplo, há de ser interpretada tal como se interpretam as leis infraconstitucionais, observando-se, pois, os aspectos que estão presentes nos atos legislativos e que dão origem às conhecidas modalidades de interpretação: genético, filológico, lógico, histórico e teleológico;
2) método tópico-problemático[32] – os princípios e as normas constitucionais, dado o seu grau de indeterminação (abertura de significados), possibilitam inúmeras interpretações, cuja validade se encontra no argumento por elas apresentado, ou seja, o poder argumentativo de que se constitui determinada interpretação pode ou não levá-la a prevalecer perante outras interpretações, uma vez que vence o melhor argumento;
3) método hermenêutico-concretizador – a interpretação se inicia com os conhecimentos de que dispõe o intérprete, a fim de que a norma se concretize em face de determinada situação concreta; a interpretação da norma começa com os conhecimentos prévios do intérprete;
4) método científico-espiritual – a Constituição transcende o sentido formal pelo fato de apresentar denotações políticas e sociológicas, o que torna flexível a sua interpretação comparativamente à interpretação das leis infraconstitucionais;
5) método normativo-estruturante – as normas constitucionais não se apartam da realidade à qual elas se aplicam;
6) método da comparação constitucional – as Constituições de dois ou mais Estados são comparadas entre si.
Para se obter o melhor resultado da interpretação, esses métodos devem ser utilizados conjuntamente, uma vez que nenhum deles é completo.
Além dos métodos mencionados, alude-se aos princípios de interpretação constitucional, os quais podem ser assim resumidos:
1) princípio da unidade da Constituição – a norma constitucional não deve ser interpretada isoladamente, mas em relação à totalidade das normas constitucionais, porque estas formam uma unidade: a Lei Maior;
2) princípio da concordância prática ou da harmonização – à luz do caso concreto, nenhuma norma constitucional deve prevalecer à custa da negação das demais normas constitucionais;
3) princípio da correção funcional – a repartição de competências, constante na Constituição, deve ser observada;
4) princípio da eficácia integradora – a integração sociopolítica deve ser mantida;
5) princípio da força normativa da Constituição – deve-se garantir a normatividade da Constituição;
6) princípio da máxima efetividade – o conteúdo da norma deve ser mantido e, concomitantemente, o mais alto grau de efetividade há que ser dado à norma constitucional;
7) princípio da proporcionalidade ou razoabilidade – as normas devem ser necessária e adequadamente sopesadas;
8) princípio da interpretação conforme a Constituição – deve-se optar pelas interpretações que demonstrem a constitucionalidade da norma e, dentre essas, pela que seja mais consentânea com a Constituição.
Nesta monografia, interpretam-se a Constituição e a Lei nº 8.112/1990[33] especialmente sob os métodos hermenêutico-clássico e hermenêutico-concretizador e, ainda, com destaque para os princípios da unidade constitucional, da concordância prática e da interpretação conforme a Constituição.
6. Lei nº 8.112/1990: requisitos materiais de constitucionalidade e interpretação conforme a Constituição Cidadã de 1988
As leis devem ser consentâneas com a Carta Política, haja vista o princípio da supremacia da Constituição, motivo pelo qual o ordenamento jurídico prevê o controle de constitucionalidade.
Atos normativos também se sujeitam a esse controle, que não é exclusivo das leis.
A inconstitucionalidade pode ser por ação ou omissão, bem como originária ou superveniente.
Na inconstitucionalidade por ação, a normal legal ou o ato normativo infringe os princípios constitucionais. Por outro lado, na inconstitucionalidade por omissão, a falta de norma legal ou ato normativo infringe os dispositivos constitucionais, quando estes determinam a atuação do Poder Público.
A inconstitucionalidade é dita originária, quando a lei ou o ato normativo já nasce em confronto com as normas constitucionais. Por sua vez, a inconstitucionalidade é classificada como superveniente, quando a lei ou o ato normativo nasce constitucional, porém se torna inconstitucional devido a seu confronto com uma posterior Emenda à Constituição ou uma posterior interpretação da Carta Política em face da realidade social.
Quanto à concessão de pensão para companheiro homossexual de servidor público regido pela Lei nº 8.112/1990[34], não há que se falar em inconstitucionalidade por omissão, uma vez que existe norma legal acerca dessa matéria, qual seja, a referida lei em seu Art. 217, inciso I, alínea “c”, dispositivo segundo o qual “o companheiro ou companheira designado que comprove união estável como entidade familiar” é beneficiário da pensão vitalícia.
Há possibilidade de a Lei nº 8.112/1990[35] ser considerada inconstitucional sob as classificações “por ação” e “originária”, desde que se entenda que, respectivamente, essa lei infringe a dignidade da pessoa humana e a igualdade como princípios jurídicos de estatura constitucional e o faz desde a sua origem. Vale dizer que a mencionada lei, sob o enfoque dessa possibilidade, nasce eivada de inconstitucionalidade por infringência a esses princípios da Constituição Cidadã de 1988.
Outra análise que pode ser feita acerca da Lei nº 8.112/1990[36] conclui por sua constitucionalidade, pois utiliza o enfoque da interpretação conforme a Magna Carta de 1988. Assim, a lei não fica sujeita à exclusão do ordenamento jurídico pelo controle concentrado de constitucionalidade, nem se sujeita à falta de aplicação aos casos concretos pelo controle difuso de constitucionalidade. Essa é a conclusão do autor da presente Monografia, isto é, entende-se que a lei não é inconstitucional, porque a citada lei:
– faz referência irrestrita às uniões estáveis, sem especificar as uniões heterossexuais e sem excluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo biológico, o que implica o devido respeito ao princípio constitucional da igualdade, sem quaisquer diferenças de tratamento para com as várias configurações sociais das famílias hodiernas;
– atende aos fins constitucionais pertinentes à concessão de pensão, que é garantir os meios indispensáveis de subsistência a companheiro em união estável, o que significa a devida proteção à família, que é a base da sociedade (Carta Política de 1988, Art. 226, caput) e, atualmente, não se restringe à família heterossexual formada por pai, mãe e filhos.
A Lei nº 8.112/1990[37] prestigia, pois, a interpretação conforme a Constituição de 1988, em face da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, e da igualdade, um dos principais princípios do Direito pátrio.
A constitucionalidade da Lei nº 8.112/1990[38] deve ser analisada, ainda, a partir de considerações atinentes à prognose legislativa e à inconstitucionalidade superveniente.
6.1 Lei nº 8.112/1990 e Prognose Legislativa
O controle de constitucionalidade das leis tem sido objeto de estudos científicos contemporâneos, haja vista o que se denomina “prognose legislativa”.
Com a teoria tridimensional do Direito, constata-se que este é formado por fato, valor e norma. Em assim sendo, os fatos sociais que ensejam o surgimento das leis devem ser necessariamente considerados quando da interpretação e aplicação do Direito, bem como quando se procura averiguar se as leis estão revestidas de constitucionalidade. Eis em que consiste o tema ora proposto, que também requer a reinterpretação do Direito em face das novas demandas sociais.
Embora a metodologia clássica de controle de constitucionalidade não leve em conta a chamada prognose legislativa, esta há de ser analisada, dada a sua inquestionável importância enquanto elemento a ser observado na interpretação e aplicação do Direito. Com isso, o processo hermenêutico se mostra mais completo e, portanto, mais apto a desvendar o sentido e o alcance verdadeiros da lei sob análise, inclusive em razão do uso do método tópico e da razoável dilação probatória, sempre com vistas à maior compreensão dos fatos sociais passados, presentes e futuros.
Quando se fala em prognose legislativa, faz-se referência aos fatos históricos, atuais e futuros sob os quais deve ser vista a lei que é objeto de controle de constitucionalidade, de forma que os diversos métodos de interpretação jurídica estejam presentes e garantam o maior grau possível de colmatação das lacunas da lei. Assim é que as interpretações histórica, sociológica e sistêmica se mostram indispensáveis e complementares entre si, possibilitando que a incompletude inerente ao Direito não seja razão para o silêncio do Poder Público em face das demandas judiciais.[39]
Os fatos históricos propiciam o estudo das várias circunstâncias que ensejam a criação das leis e a evolução do Direito. Por sua vez, os fatos atuais propiciam a reinterpretação do ordenamento jurídico e a sua aplicação consoante as novas nuances da realidade, ao passo que os fatos futuros, previstos a partir da análise da herança histórica e do presente, originam a propositura de projetos de lei para fazer face às demandas sociais emergentes.
No controle de constitucionalidade, por conseguinte, não se pode fazer tábula rasa de tais considerações, visto que o pleno atendimento das necessidades sociais, através do Direito, constitui tarefa inadiável do Estado.
Assim é que se afirma ser imperioso o controle de constitucionalidade das leis, ainda que determinada prognose legislativa não se concretize no mundo fático, pois o Direito deve, na medida do possível, antecipar-se ao acirramento das referidas necessidades sociais, a fim de bem instrumentalizar o Poder Público com vistas ao cumprimento das finalidades estatais.
Para a efetivação do controle de constitucionalidade sob o aspecto da prognose legislativa, o Tribunal Constitucional há de fazer um estudo detalhado dos fatos legislativos e, para isso, deve contar com a colaboração de terceiros, como cientistas renomados e entidades civis de amplo reconhecimento social. Fica constatada a importância do que se conhece sob a expressão “amicus curiae”, que implica a aceitação da razoável dilação probatória em matéria de controle de constitucionalidade das leis em face da prognose legislativa.[40]
Essa participação mais estreita da sociedade no controle de constitucionalidade das leis, via “amicus curiae”, verifica-se no Brasil, sendo exemplo a atuação da Conectas Direitos Humanos, do Escritório de Direitos Humanos de Minas Gerais (EDH) e do Grupo Gay da Bahia (GGB) como “amicus curiae” na ADPF nº 132, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de autoria do Governo do Estado do Rio de Janeiro e cujo pedido é o reconhecimento da união estável homossexual.
Os Poderes Públicos não devem perder de vista o enfoque da prognose legislativa, como também não devem desconsiderar a evolução do Direito e do conhecimento científico em geral. Somente com essas considerações imprescindíveis, há de ser devidamente reconhecida a premente necessidade da defesa, proteção e promoção dos direitos de gays e lésbicas, cidadãos tanto quanto os heterossexuais e, por conseguinte, merecedores do mesmo tratamento jurídico pelo Estado Brasileiro, que é laico. A esse respeito, a Lei nº 8.112/1990[41] deve ser, no mínimo, interpretada segundo os princípios de estatura constitucional, destacando-se o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade.
6.2 Lei nº 8.112/1990 e Inconstitucionalidade Superveniente
No atual modelo brasileiro de controle de constitucionalidade, admite-se a inconstitucionalidade superveniente.
Quando se promulga e publica uma Carta Política, as leis e os atos normativos até então vigentes devem ser analisados à luz do novo Direito Constitucional Positivo, uma vez que a referida Carta ocupa o ápice do ordenamento jurídico (princípio da supremacia da Constituição).
As leis que se coadunam com os princípios e as demais normas de natureza constitucional continuam a ter validade, contrariamente às leis que vão de encontro aos dispositivos da nova Carta. Daí falar-se em leis recepcionadas e leis não recepcionadas pela Lei Maior vigente.
Por outro lado, as leis surgidas após o advento da nova Carta podem ser ou não constitucionais, seja do ponto de vista formal, seja sob a ótica material. Verificam-se, pois, os requisitos formais e materiais de constitucionalidade dessas leis, a fim de que não tenham validade as leis díspares em relação à Carta Política.
A inconstitucionalidade superveniente pode ocorrer, ainda, quando a lei, até então constitucional, colide com os dispositivos de uma (nova) Emenda à Constituição[42].
Em todos os casos, o que se busca é um ordenamento jurídico conforme a Carta Política. A fim de que seja garantido o alcance desse desiderato, faz-se presente o controle de constitucionalidade.
Além disso, os fatos sociais não previstos na lei podem exigir normatização, o que implica a evolução do Direito, seja através de lei nova, seja por intermédio da reinterpretação dos princípios constitucionais. A esse respeito, realidade deveras ilustrativa são as uniões afetivo-sexuais estáveis entre pessoas do mesmo sexo biológico. Há julgados históricos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os quais expressam o entendimento de que tais uniões devem ser analisadas segundo os preceitos do Direito de Família, haja vista a presença inafastável do afeto, elemento que, aliado à lacuna presente no ordenamento jurídico positivado, enseja a analogia dessas uniões com as uniões estáveis heterossexuais normatizadas pela Lei nº 9.278/1996[43] e pelo Código Civil[44]. Assim, sobrevindo uma Emenda Constitucional que, por exemplo, expressamente normatize as referidas uniões homossexuais, as leis contrárias aos novos dispositivos da Magna Carta estarão eivadas de inconstitucionalidade superveniente.
As novas demandas sociais, pois, exigem respostas do Poder Judiciário, considerando-se que o ordenamento jurídico positivado é incompleto, ou seja, incapaz de prever e normatizar satisfatoriamente toda a realidade social. Acredita-se que as uniões estáveis homossexuais, por exemplo, encontram-se prestes a alcançar o merecido reconhecimento jurídico expresso por parte dos Poderes Públicos, oportunidade na qual as leis preconceituosas e discriminatórias em relação a gays e lésbicas apresentar-se-ão eivadas de inconstitucionalidade superveniente, uma vez que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e, como um de seus maiores princípios, a igualdade, além de a Lei Maior de 1988 expressamente proibir a discriminação por motivo de sexo.
Em ocorrendo vacatio legis, possível é a inconstitucionalidade superveniente, ou seja, se uma lei ingressa no ordenamento jurídico com vacatio legis e, antes de sua entrada em vigor, surge uma Emenda à Constituição (ou uma Carta Constitucional) com diferente normatização acerca da matéria de que trata essa lei, pode ocorrer a inconstitucionalidade superveniente.
Enfim, a superveniência de inconstitucionalidade de leis e atos normativos ocorre, seja em razão de uma nova Carta Magna, seja devido às Emendas Constitucionais ou, ainda, graças à interpretação do Direito em face das novas realidades sociais dignas de normatização jurídica. Essa última hipótese pode ocorrer, por exemplo, em sede de Ação Declaratória de Constitucionalidade, cuja decisão definitiva de mérito tem eficácia erga omnes e vincula todo o Poder Judiciário e a Administração Pública Direta e Indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Segundo a exposição sobre a inconstitucionalidade superveniente, vê-se que esta, atualmente, não se aplica à Lei nº 8.112/1990[45] e que outra conclusão não é possível, visto que:
– a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental do Direito Brasileiro;
– a igualdade, que é princípio constitucional e também direito individual, constitui uma das cláusulas pétreas da Carta Magna de 1988;
– há de se buscar, sempre que possível, a interpretação consoante a Carta Magna de 1988;
– essa lei, até a presente data, não é objeto de ação constitucional e não existe, portanto, decisão do Supremo Tribunal Federal acerca de sua (in)constitucionalidade no que se refere à concessão de pensão para companheiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cidadania deve ser exercida com plenitude, pois assim exige a dignidade da pessoa humana. A igualdade, por sua vez, afasta discriminações desarrazoadas e, por conseguinte, juridicamente inaceitáveis.
Tais constatações se aplicam a gays e lésbicas e abrangem seus relacionamentos afetivo-sexuais estáveis, que visam a constituição de núcleos familiares.
Se a dignidade é inerente ao ser humano, sem exceção; se a igualdade deve ser de todos na lei e perante a lei; se a homossexualidade não é doença, distúrbio e perversão, mas um produto sócio-cultural; não há por que discriminar os homossexuais, impingindo-lhes tratamento indigno e desigualitário.
Verifica-se que as uniões afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo biológico, quando duradouras, públicas e contínuas, são análogas às uniões estáveis de que tratam a Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996[46], e o novo Código Civil[47], tendo em vista os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, bem como a definição doutrinária e a previsão legal de analogia.
Por outro lado, se a seguridade social destina-se à pessoa e à família do servidor público; se a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990[48], materialmente é constitucional e, considerando-se o princípio da supremacia da Constituição, deve ser interpretada e aplicada de conformidade aos ditames constitucionais; não há por que negar a concessão de pensão a companheiro homossexual de servidor público, desde que comprovada a união afetivo-sexual estável.
Assim, não resta dúvida de que essa pensão deve ser concedida no âmbito da Administração Pública, sob pena de flagrante e inaceitável infringência aos princípios maiores presentes na Carta Política de 1988 como os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, os quais, necessariamente, informam todo o Direito pátrio.
_SUPERVENIENTE.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2008.
Informações Sobre o Autor
Wellington Soares da Costa
Bacharel em Direito, Pós-Graduado em Direito Constitucional e Direito Administrativo.