Resumo: O presente estudo aborda, numa breve análise, a evolução dos direitos fundamentais em suas três dimensões, com maior ênfase à primeira dimensão, para conceituação da liberdade de crença. Com Proclamação da República o Brasil tornou-se um país laico, consequentemente, garantiu a liberdade de crença. A Constituição de 1988 prescreve essa liberdade, enaltecendo também a liberdade de culto religioso, e proteção as organizações religiosas. A imunidade tributária é um dos mecanismos escolhidos pela Carta de 1988 para assegurar o direito à liberdade de crença, como prescrevem o artigo 19, inciso I, e o artigo 150, inciso VI.
Palavras-chave: direitos fundamentais – liberdade – crença – culto – organização religiosa
Abstract: The present study boards, in a short analyse, the evolution of the fundamental rights in its three dimensions, with bigger emphasis on the first dimension, to define the freedom of belief. With Proclamation of the Republic, Brazil became a secular country, therefore has garanteed the freedom of belief. The Constitution of 1988 prescribes this freedom, elevating also the freedom of religious worship, and protection the religious organizations. The tax immunity is one of the mechanisms chosen by the Letter of 1988 to assure the right to freedom of belief, as prescribe the article 19, incise I, and the article 150, incise VI.
Key-words: fundamental rights – freedom of belief – immunity – temples –guarantee
INTRODUÇÃO
As gerações ou dimensões são processos evolutivos das conquistas dos direitos do homem em prol da liberdade, igualdade e fraternidade. Esse processo evolutivo pode ser dividido em três fases distintas, mas conexas. A primeira fase buscou a efetivação da liberdade, sem amarras estatais, para que o indivíduo pudesse percorrer sua trajetória sem qualquer intervenção por parte do Estado. Essa fase pleiteava uma abstenção do Estado nas relações intersubjetivas privadas, com intuito de proteger o indivíduo dos ataques do Estado, a sua essência (integridade física e psíquica) e a sua propriedade. A liberdade da primeira fase dos direitos essenciais do homem tornou possível que a consciência do indivíduo pudesse ser exteriorizada através da liberdade de pensamento. A possibilidade de o indivíduo transmitir a sua mais íntima reflexão acabou por originar outras espécies de liberdades, como a liberdade de crença religiosa.
A liberdade de pensamento, consagrada na primeira fase desses direitos, possibilitou a exteriorização da crença religiosa dos indivíduos, já que antes a pessoa humana era proibida de exteriorizar o seu pensar e mais ainda de divulgar a sua fé. A liberdade de crença iniciou seu caminho no Brasil com a separação da Igreja do Estado, com a Proclamação da República. A separação político-religiosa, conjugada com neutralidade religiosa adotada pelo Estado brasileiro, originou a criação de mecanismos constitucionais capazes de permitir o exercício da liberdade de crença.
Salienta-se que não foi utilizado o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, pelas prerrogativas temporais do parágrafo único do artigo 2º, do Decreto nº 6.583, de 29 de Setembro de 2008.
1. LIBERDADE DE PENSAMENTO
A liberdade de pensamento prevê o direito de exprimir, através de qualquer meio, o intelecto humano, isto é, trata-se da possibilidade/direito de exteriorização ou não[1] do pensamento, sem qualquer restrição[2], caracterizando a “liberdade de o indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha: quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de posição pública; liberdade de dizer o que se crê verdadeiro”.[3] Essa preocupação com a exteriorização do pensamente foi tratada na Declaração de Direitos do Homem de 1789, segundo a qual “ninguém pode ser perturbado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que a sua manifestação não inquiete a ordem pública estabelecida pela lei”.[4]
Nesta seara surge a diferenciação entre liberdade de consciência e liberdade de pensamento. Liberdade de consciência é o mandamento nuclear da liberdade de pensamento, pois o pensamento é a exteriorização da consciência humana, em outras palavras:
“A consciência é, pois o recinto mais recôndito do homem. Conseqüentemente ela é em princípio indevassável, salvo processo de caráter cirúrgico ou químico, como a lavagem cerebral.
Pode ainda, é certo, ser influenciada pelos meios de comunicação e outros métodos de persuasão. No entanto não há dúvida que o homem é senhor quase absoluto da sua consciência, podendo em conseqüência nutrir e alimentar toda sorte de opiniões.”[5]
O direito à liberdade de pensamento possibilita à pessoa humana formular juízos de valor sem a presença de amarras estatais ou morais impostas pela sociedade.[6] Neste mister, o direito à liberdade de pensamento reflete a carga valorativa do princípio da dignidade da pessoa humana. Essa liberdade poderá ser manifestada de inúmeras formas e maneiras[7] (fala, escrita, imagens e etc[8]) e foi prescrita pelo Legislador Constituinte pátrio de forma enfática, pois houve necessidade de tipificar na Ordem Constitucional a preservação dessa liberdade para evitar a repetição de fatos traumáticos, como os causados pela censura do regime militar. Para melhor ilustrar:
“A Constituição da República revelou hostilidade extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento. Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso da Assembléia Nacional Constituinte de dar expressão às liberdades do pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático. A livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado”.[9]
Kildare Gonçalves Carvalho discorre sobre o gênero liberdade:
“A liberdade, como núcleo dos direitos humanos fundamentais, não é apenas negativa, ou seja, liberdade de fazer o que a lei não proíbe nem obriga, mas liberdade positiva, que consiste na remoção dos impedimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam obstruir a auto-realização da personalidade humana, o que implica na obrigação do Estado, de assegurar os direitos sociais através de prestações positivas a proporcionar as bases materiais para efetivação daqueles direitos.”[10]
Alexandre de Moraes, discorre acerca da liberdade de pensamento estatuída no artigo 5º, inciso IV, da Constituição de 1988:
“[A liberdade de pensamento] engloba não só o direito de expressar-se, oralmente, ou por escrito, mas também o direito de ouvir, assistir e ler. Conseqüentemente, será inconstitucional a lei ou ato normativo que proibir a aquisição ou o recebimento de jornal, livros, periódicos, a transmissão de notícias e informações seja pela imprensa falada, seja pela imprensa televisiva. Proibir a manifestação de pensamento é pretender alcançar a proibição ao pensamento e, conseqüentemente, obter a unanimidade autoritária, arbitrária e irreal. Como proclamou Kant, citado por Jorge Miranda, “há quem diga: a liberdade de falar ou de escrever pode-nos ser tirada por uma ordem superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e com que correção pensaríamos nós se não pensássemos em comunhão com os outros, a quem comunicamos nossos pensamentos, e eles nos comunicam os seus! Por conseguinte, pode muito bem dizer-se que o poder exterior que arrebata aos homens a liberdade de comunicar publicamente os seus pensamentos, ele rouba também a liberdade de pensar.”[11]
A divisão ou classificação das liberdades prescritas na Constituição de 1988 contudo, não será objeto deste estudo, já que a limitação do tema implica na menção do gênero liberdade[12] de pensamento, para adentrar na análise da espécie liberdade de crença[13].
2. LIBERDADE DE CRENÇA
A liberdade de crença foi introduzida no pensamento jurídico através da Declaração de Direitos da Virgínia (1776), o qual ditava que “todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, segundo os ditames da consciência”. A primeira emenda à Constituição americana (1789) previa que o “Congresso não poderá passar nenhuma lei estabelecendo uma religião, proibindo o livre exercício dos cultos”.[14]
Na França, em 1789, a Declaração de Direitos do Homem, no artigo 10, determinava que “ninguém deve ser inquietado por suas opiniões mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. Posteriormente, em 1795, a Convenção Nacional ordenou a separação da Igreja do Estado. Nesta seara, “Napoleão assinou, em 1802, uma concordata com a Igreja Católica, tornando-a igreja oficial do Estado […] e em 1803, confraternizou com as igrejas protestantes”[15], e em 1905 foi novamente votada a separação entre Igreja e o Estado:
“O regime da concordata. Instaura-se em 1801, com a conclusão, entre Bonaparte, cioso de participação interna, e o papa Pio VII, de uma concordata que fixa o estatuto da Igreja católica na França pós-revolucionária. Leis posteriores transpuseram esse regime para as Igrejas protestantes e para o culto israelita.
O regime concordatário retoma da Declaração de 1789 o princípio da liberdade dos cultos. Mas estabelece entre eles uma distinção: uns simplesmente lícitos, os outros se beneficiam de um reconhecimento oficial por parte do Estado. São o culto católico, as duas principais Igrejas protestantes, o culto israelita. O reconhecimento confere aos cultos que dele se beneficiam um estatuto de serviços públicos: o Estado se incumbe da remuneração de seu clero e das despesas gerais do culto; impõe-lhes, em contrapartida, um controle bastante restrito.”[16]
Em relação à Constituição soviética de 1936, Pinto Ferreira elucida:
“[que o artigo 124 da Constituição soviética de 1936 previa]: “A fim de assegurar a liberdade de consciência ao cidadão, a Igreja na URSS está separada do Estado e a escola da Igreja”. Lenin, em seu trabalho Socialismo e religião, afirma que “a religião é uma das formas daquele jogo espiritual que sempre e em toda a parte, foi imposto às massas populares pela miséria” A religião é o ópio do povo, disse ele, uma espécie de aguardente espiritual que visa manter os escravos do capitalismo. Na atualidade, depois de uma intensa luta religiosa, a própria União Soviética (hoje extinta) assegurava não só a liberdade de crença como a de culto […]”.[17]
A Constituição brasileira de 1824 previa explicitamente que a religião católica continuaria a ser a religião oficial do império e autorizava oculto das demais religiões, desde que fossem realizados através do denominado culto doméstico, sem propagação pública, podendo ser realizadas somente no interior das residências dos seus fiéis[18] ou em outros espaços físicos, porém sem contudo possuir formas que indique que o local se trata de um templo.
“[A Constituição Imperial garantia] uma proteção especial à religião católica apostólica romana (…) e restringe o culto público de outras religiões, na forma do seu art. 5º. (…) [A] disposição constitucional não só garantiu uma justa tolerância, mas concedeu a liberdade essencial, o culto não só doméstico, mas mesmo em edifícios apropriados e para isso destinados, não devendo somente ter formas exteriores de templos”.[19]
O Império manteve o catolicismo como religião oficial até ser extinto com a Proclamação da República. A partir da primeira Constituição republicana, de 1891, o Brasil passou a ser classificado como um país laico[20], retirando o catolicismo como religião oficial, tornando-se um Estado neutro[21], e autorizando o indivíduo a escolher ou não uma religião, como previa o artigo 72 do referido Texto Constitucional:
“Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
§ 3º – Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. (…)
§ 7º – Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.”
João Barbalho, citado por Anna Cândida da Cunha Ferraz, descreve o valor normativo-social do § 3º do artigo 72 da Constituição de 1891:
“A fé e piedade religiosa, apanágio da consciência individual, escapa inteiramente à ingerência do Estado. Em nome de princípio algum pode a autoridade pública impor ou proibir crenças e práticas relativas a este objeto. Fôra violentar a liberdade espiritual; e o protegê0la, bem como às outras liberdade, está a missão dele. Leis que restrinjam, estão fora de sua competência e são sempre parciais e danosos. É certo que nenhuma poderá jamais invadir o domínio do pensamento; este libra-se acima de todos os obstáculos com que se pretenda tolhê-lo. Mas as religiões não são coisas meramente especulativas e, se seu assento e refugia é o recinto íntimo da consciência, têm também regras a crença de que são resultado, ou a quem andam anexos. E – se ao Estado não toca fazer-se pontifique, sacerdote nem sacristão, e tampouco dominar a religião e constituí-la instrumento de governo, … sendo exato que o Estado nada tem a ver com a fiel, com o crente, mas só em todas as relações, do poder público é dever assegurar aos membros da comunhão política, que ele preside, a livre prática do culto de cada um e impedir quaisquer embaraços que o dificultem ou impeçam, procedendo nisso de modo igual para com todas as crenças e confissões religiosas …”.[22]
A Constituição republicana de 1891 que o tornou o Brasil um país laico (neutro, indiferente) adotou o modelo norte-americano, que prega mesmo, sendo o Estado laico, há um reconhecimento da religiosidade do povo[23]. Essa constatação foi descrita por Tocqueville:
“La religión que, entre los norteamericanos, no se mezcla nunca directamente con el gobierno de la sociedad debe, pues, ser considerada como la primera de sus instituciones políticas (…) No sé si todos los norteamericanos tienen fe en su religión, porque ¿quién puede leer en el fondo de los corazones?; pero estoy seguro de que la creen necesaria para el mantenimiento de las instituciones republicanas. Esta opinión no pertenece a una clase de ciudadanos o a un partido, sino a la nación entera. Se la encuentra en todos los rangos sociales.”[24]
Essa neutralização estatal na imposição da escolha da religião transporta intrinsecamente o direito de liberdade de pensamento, permitindo que o indivíduo possa livremente escolher ou não, rejeitar, mudar ou aderir à religião que lhe for mais conveniente[25]–[26], já que “a crença pode manifestar-se pela conduta individual, notada pelos que com o indivíduo convivem, sem que a pessoa pretenda com isso proselitismo”[27], como salienta Jorge Miranda:
“A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinar crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres. (…)
Se o Estado, apesar de conceder aos cidadãos, o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar, aí não haverá liberdade religiosa. E também não haverá liberdade religiosa se o Estado se transformar em polícia das consciência, emprestando o seu braço – o braço secular – às confissões religiosas para assegurar o cumprimento pelos fiéis dos deveres como membros dessas confissões.”[28]
Sendo a liberdade de pensamento o núcleo valorativo do tema sob análise, “cada indivíduo deve ser livre para poder manifestar sua escolha em relação à fé em matéria transcendental, escolhendo acreditar ou não em um Deus (ou em vários deuses), escolhendo ter ou não uma religião”[29], como descrevem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos:
“[Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 18] Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar a religião, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
[Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, artigo 18] 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, consciência e religião. Esse direito incluirá a liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade de manifestar sua religião ou crença, individualmente ou coletivamente, pública ou privadamente, por meios de cultos, celebrações, práticas e ensino. 2. Ninguém será submetido a coerções que possam restringir sua liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias crenças só poderá estar sujeita a limitações estabelecidas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos fundamentais e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados-Partes no presente pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, de tutores legais, de assegurar a educação moral e religiosa de seus filhos, de acordo com suas próprias convicções.”
Nessa seara, José Afonso da Silva afirma:
“Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o livre agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.”[30]
Neste raciocínio, Maria Lúcia Karam disserta:
“[…] livre, o indivíduo, naturalmente, deve poder pensar e acreditar naquilo que quiser. É esse o campo da liberdade de pensamento, de consciência e de crença. É um campo que diz respeito somente ao indivíduo, não podendo sofrer qualquer interferência do Estado. É um campo essencialmente ligado à própria idéia existente de democracia, pois sem um pensamento livre não existe a possibilidade de escolha que está na base dessa idéia[31].”
Canotilho assevara acerca da laicidade estatuída na Constituição portuguesa de 1911:
“Se no tocante à estrutura organizatória da República a Constituição de 1911 não fez senão recolher as ideias do liberalismo radical (e nem todas), quanto a outros domínios tentou plasmar positivamente, em alguns artigos, o seu programa político. Um dos pontos desse programa era a defesa de uma república laica e democrática. O laicismo, produto ainda de uma visão individualista e racionalista, desdobrava-se em vários postulados republicanos: separação do Estado e da Igreja, igualdade de cultos, liberdade de culto, laicização do ensino, manutenção da legislação referente à extinção das ordens religiosas (cfr. art. 3.°, n. 4 a 12). O programa republicano era um programa racional e progressista: no fundo, tratava-se de consagrar constitucionalmente uma espécie de pluralismo denominacional (cfr. Const. 1911, art. 5/3), ou seja, a presença na comunidade, com iguais direitos formais, de um número indefinido de colectividades religiosas, não estando nenhuma delas tituladas para desfrutar de um apoio estadual positivo. “Igrejas Livres no Estado indiferente”, eis o lema avançado por Manuel Emídio Garcia. Relativamente à autoridade política, a religião deixa de ser um tema público para se enquadrar na esfera dos assuntos privados, a não ser quanto à vigilância da própria liberdade religiosa. E não há dúvida que a filosofia liberal se impunha neste sector com uma lógica indesmentível: uma sociedade politica-mente democrática, assente no relativismo político, postula também uma sociedade religiosamente liberal, tolerante para com todos os credos, aceites e praticados pelos cidadãos. O equilíbrio religioso originaria como consequência inevitável a secularização da educação, dado que um estado laico não pode tolerar um monopólio de orientação a favor de uma religião (cfr. art. 3.710).
Este programa laicista, embora pretendesse ser “um ideário” global de cariz essencialmente cultural (F. CATROGA), resvalou algumas vezes para um anticlericalismo sectário ao pretender impor-se como um “projecto de hegemonização de uma nova mundividên-cia”. Era certo que as forças clericais, quase sempre ao lado das forças legitimistas e nobiliárquico-feudais, estavam agora contra a República, mas um programa laicista não se devia confundir com anti-clericalismo. Ao polarizar-se a política religiosa na ideia de deslocação da religião do “espaço público” para o “espaço privado” pretendia-se neutralizar os poderes simbólico, político e cultural do catolicismo, o que favoreceu a aglutinação das forças católicas contra o regime republicano. Estas forças passaram a acusar a República de ser não “a católica” mas “anticatólica“.[32]
No mesmo sentido, Jorge Miranda aduz sobre a Constituição portuguesa de 1911:
“A Constituição de 1911 foi marcada por este espírito (embora dela não conste expressamente o principio da separação decretada em 22 de abril desse ano pelo Governo Provisório). Por um lado, garantiu formalmente a liberdade de consciência e de crença e a igualdade política e civil de todos os cultos (art. 3º, n. 4 e 5); por outro lado, adoptou medidas restritivas da actividade de confissões religiosas, dirigidas especialmente contra a Igreja Católica.”[33]
A laicidade foi introduzida no ordenamento jurídico francês “a partir de 1880, confirmada pelo artigo 1º da Constituição de 1958 que a torna um dos caracteres básicos da República, a laicidade do Estado é a base ideológica do regime da liberdade religiosa”.[34]
No Estado brasileiro a laicidade foi analisada por Nilton de Freitas Monteiro:
“A laicidade não é apenas uma questão afeta às religiões. O Estado não assume qualquer tipo de religião ou crença filosófica, sem embargo de optar por valores éticos considerados juridicamente protegidos. Na ciência do direito, por exemplo, há uma séria disputa entre uma visão jurídica “positiva” e uma visão jurídica “jusnaturalismo”. Não caberia ao Estado posicionar-se por esta ou aquela tendência. Do mesmo modo, não cabe ao Estado ser “socialista” ou “liberal”, ou então “marxista-leninista”, como na velha União Soviética. Pode, no entanto, o Estado, mediante métodos democráticos, optar, por exemplo, por uma lei que discipline a repartição dos lucros entre os empregados (uma idéia que alguém poderia julgar socialista) ou uma lei que transfira à iniciativa privada serviços públicos essenciais (algo que seria ligado à visão liberal). O mesmo se diga em relação a determinados valores sociais, que acabam se tornando valores juridicamente protegidos, sem embargos de serem dedutíveis de uma visão proveniente desta ou daquela religião. É natural que as ideologias e as crenças influam na sociedade e na elaboração das leis; mas não cabe ao poder públicos assumir este ou aquele conjunto de idéias ou crenas religiosas, de modo direto e explícito.”[35]
A abstenção do Estado nas crenças individuais e a neutralidade na definição de uma religião oficial foi objeto de preocupação na atual Constituição, que em seu artigo 19, inciso I, prescreve que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou com seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”, como assevara Maria Lúcia Karam:
“O Estado não está “autorizado a adotar uma religião oficial, nem impor qualquer crença, devendo respeitar e tratar todos os indivíduos igualmente, o Estado consequentemente não pode legislar com base em pautas ditadas por representantes dessa ou daquela religião.”[36]
A liberdade de crença foi analisada na obra de Canotilho, sob a perspectiva dos direitos fundamentais:
“A quebra de unidade religiosa da cristandade deu origem à aparição de minorias religiosas que defendiam o direito de cada um à verdadeira fé. Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a ideia de tolerância religiosa e a proibição do Estado em impor ao foro íntimo do crente uma religião oficial. Por este facto, alguns autores, como G. JELLINEK, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais. Parece, porém, que se tratava mais da ideia de tolerância religiosa para credos diferentes do que propriamente da concepção da liberdade de religião e crença, como direito inalienável do homem, tal como veio a ser proclamado nos modernos documentos constitucionais”[37]
A liberdade de crença autoriza o indivíduo a escolher uma religião, bem com a não escolher nenhuma.[38] Essa escolha não poderá ser influenciada por ações estatais[39].
Neste contexto, é ofensivo a liberdade de crença o emprego de símbolos religiosas em repartições públicas. Isto é:
“A decisão por ter ou não ter uma crença é, assim, assunto do indivíduo, e não do Estado. O Estado não pode nem lhe prescrever nem lhe proibir uma crença ou religião. Faz parte da liberdade de crença, porém, não somente a liberdade de ter uma crença, mas também a liberdade de viver e comportar-se segundo a própria convicção religiosa […].
A liberdade de crença garante, especialmente, a participação em atos litúrgicos que uma crença prescreve ou na qual encontra expressão. A isso corresponde, no sentido oposto, a liberdade para não participar de atos litúrgicos de crença não compartilhada. Essa liberdade refere-se, do mesmo modo, aos símbolos por meio dos quais uma crença ou uma religião se apresenta.
O Art. 41 GG [que protege a liberdade de crença] deixa a critério dos individuos decidir quais símbolos religiosos serão por ele reconhecidos e adorados e quais serão rejeitados. Em verdade, não tem ele direito, em uma sociedade que dá espaço a diferentes convicções religiosas, a ser poupado de manifestações religiosas, atos litúrgicos e símbolos religiosos que lhe são estranhos.
Deve-se diferenciar disso, porém, uma situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem liberdade de escolha, à influência de uma determinada crença, aos atos nos quais esta se manifesta, e aos símbolos por meio dos quais ela se apresenta […].
O Estado, no qual convivem seguidores de convicções religiosas e ideológicas diferentes ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas coexistências pacíficas quando ele mesmo se mantém neutro nas questões religiosas[40].”
Na mesma sintonia[41], Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco analisam os valores prescritos no artigo 19, inciso I, da Constituição de 1988:
“A laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé. Não impede a colaboração com confissões religiosas, para o interesse público (CF, art. 19, I). A sistemática constitucional acolhe, mesmo, expressamente, ação conjunta dos Poderes Públicos no âmbito de cultos religiosos, como é o caso da extensão de efeitos civis ao casamento religioso. Nesse sentido, não há embaraço – ao contrário, parecem bem-vindas, como ocorre em tantos outros países – a iniciativa como a celebração de concordata com a Santa Sé, para a fixação de termos de relacionamento entre tal pessoa de direito internacional e o país, tendo em vista a missão religiosa da Igreja de propiciar o bem integral do indivíduo, coincidente com o objetivo da República de “promover o bem de todos” (art. 3º, IV, da CF). Seria erro grosseiro confundir acordos dessa ordem, em que se garantem meios eficazes para o desempenho da missão religiosa da Igreja, com a aliança vedada pelo art. 19, I, da Constituição. A aliança que o constituinte repudia é aquela que inviabiliza a própria liberdade de crença, assegurada no art. 5º, VI, da Carta, por impedir que outras confissões religiosas atuem livremente no País.”[42]
Concedendo à pessoa o direito de liberdade de crença, o artigo 5º da Constituição de 1988 estabeleceu textualmente que “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantia, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” [43] (inciso VI) e, consequentemente “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa[44], fixada em lei” (inciso VIII)[45].
Neste mister, o inciso VIII, do artigo 5º da Constituição de 1988 prescreve a chamada escusa de consciência, que é conceituada nas palavras de Celso Ribeiro Bastos:
“[é] o direito reconhecido ao objetor de não prestar o serviço militar nem de engajar-se no caso de convocação para a guerra, sob o fundamento de que a atividade marcial fere as suas convicções religiosas ou filosóficas. É verdade que o Texto fala em ‘eximir-se de obrigação legal a todos imposta’, e não especificamente em ‘serviço militar’. É fácil verificar-se, contudo, que a hipótese ampla e genérica do Texto dificilmente se concretizará em outras situações senão aquelas relacionadas com os deveres marciais do cidadão (…). Na redação atual, fica certo que em primeiro lugar há uma possibilidade de invocação ampla da escusa de consciência. Mas desde que feita valer para evadir-se o interessado de uma obrigação imposta a alguns ou a muitos, mas não a todos. É o que deflui a primeira parte do dispositivo: ‘ninguém será privado de qualquer dos seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política’. A regra não prevalece se a invocação se der diante de obrigação legal a todos imposta. Aqui o Texto oferece a possibilidade de uma prestação alternativa fixada em lei. Esta não apresenta ainda um cunho sancionatório. Limita-se a constituir uma forma alternativa de cumprimento da obrigação. Caso, contudo, haja recusa ainda do cumprimento, aí sim é que se abre a oportunidade para aplicação de pena de privação de direitos. De quais? O Texto aponta a resposta no art. 15, IV: perda ou suspensão dos direitos políticos”.[46]
Assim, a escusa de consciência é um dos mecanismos que o Sistema Constitucional criou para o livre exercício da liberdade de crença – no caso, liberdade religiosa.[47]
Vale mencionar que a invocação da proteção de Deus descrita no preâmbulo da Constituição de 1988 “não significa que aqueles que não acreditam em Deus não estarão abrangidos pela garantia constitucional”[48], já que o Texto Maior protege e autoriza a criação de qualquer culto religioso, bem como protege a liberdade do indivíduo de optar em não escolher qualquer religião. E, nesse sentido, o STF entendeu que ele não possui eficácia jurídica (força normativa), tanto que as Constituições estaduais não estão obrigadas a transcrever a expressão sob a proteção de Deus em seu conteúdo.[49]
Nesse mister, Alexandre de Moraes versa sobre a subjetividade do preâmbulo:
“[…] o Estado brasileiro, apesar de laico, não é ateu, como comprova o preâmbulo constitucional, e, além disso, trata-se de um direito subjetivo e não de uma obrigação, preservando-se, assim, a plena liberdade religiosa daqueles que não professam nenhuma crença”.[50]
O preâmbulo da Constituição de 1988 traduz o entendimento de que o Brasil não é um Estado ateu, isto é, há igualdade entre as diversas e diferentes religiões, enquanto o artigo 19, inciso I, do Texto Constitucional determina a laicidade do Estado, bem como a proibição de embaraço aos cultos religiosos, como esclarecem Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:
“O Estado brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu, como se deduz do preâmbulo da Constituição, que invoca a proteção de Deus. Admite igualmente, que o casamento religioso produza efeitos civis, na forma o disposto em lei (…) a laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé.”[51]
Nesse mister, não há conflito entre o preâmbulo e o artigo 19, inciso I, da Constituição de 1988, visto que a expressão sob a proteção de Deus possui um caráter subjetivo.
3. LIBERDADE DE CULTO E DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA
Como conseqüência da liberdade de crença, a liberdade de culto prevê que a externação espiritual necessita de um local físico para sua manifestação[52], isto é, a liberdade de culto é a exteriorização pública (popular) da liberdade de crença, bem como é o suporte para manifestação da liberdade de cultuar a religião escolhida, anteriormente, pela pessoa humana. Em outras palavras:
“A religião não pode, como de resto acontece com as demais liberdades de pensamento, contentar–se com a sua dimensão espiritual, isto é: enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai procurar necessariamente uma externação, que, diga-se de passagem, demanda um aparato, um ritual, uma solenidade, mesmo que a manifestação do pensamento não requer necessariamente”[53].
A exteriorização da liberdade de crença e a proteção quanto realização do culto, assegura os locais destinados à externação da liberdade de crença, isto é, os templos:
“[…] a liberdade de culto, forma outra porque se extravasam as crenças íntimas (art. 5º, VI). A liberdade do culto religioso é garantida, bem como os locais de seu exercício e as liturgias, na forma determinada pela lei. Assim, a lei definirá o modo de proteção dos locais consagrados aos cultos e às cerimônias”[54].
“Liberdade de culto: a religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às tradições, na forma indica pela religião escolhida.”[55]
A liberdade de culto fortalece a liberdade de crença, pois na vigência da Constituição Imperial 1824 previa-se a liberdade de crença, mas se negava a liberdade de culto pública, já que a exteriorização da religião que não fosse a católica somente poderia ocorrer na privacidade do lar do cultuador.[56] Com a Proclamação da República, passou-se a proteger não somente a liberdade de crença, mas também o local do culto. O artigo 5º, inciso VI, da atual Constituição prescreve, taxativamente, a liberdade de culto e a proteção aos locais da exteriorização da liberdade de crença. Essa proteção inibe o ataque fiscal do Estado. Isto é, a liberdade de culto é assegurada pela Constituição de 1988, que veda qualquer obstáculo quanto à manifestação da liberdade de crença.[57]
A externação da liberdade de crença não é absoluta, já que a prática de liturgias não pode afrontar valores e regras sociais já impostas pela sociedade. O culto deve ser exercido em harmonia com os demais direitos fundamentais, evitando-se a colisão com outro direito fundamental[58], já que não é permitido ao Estado sobrepor a liberdade de culto a outros valores também protegidos pelo Sistema Constitucional, como a proteção à vida e à dignidade da pessoa humana.[59]
A liberdade de crença e de culto tornou o Brasil um Estado laico, autorizando o nascimento, em território nacional, de várias religiões, isto é, foi conferida a igualdade plena entre os cultos religiosos. Essa liberdade permitiu a constituição e funcionamento dos cultos sob a máscara da personalidade jurídica prevista pela legislação civilista[60], isto é, as organizações religiosas “funcionam sob o manto da personalidade jurídica que lhes é conferida nos termos da lei civil, conforme prescreve o § 1º, do artigo 44, do Código Civil:
“Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: (…)
IV – as organizações religiosas; (…)
§ 1º – São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”
Com o reconhecimento dos cultos através da personalidade jurídica conferida pelo ordenamento jurídico, nasce o dever jurídico do Estado de não impor dificuldades e/ou embaraços na criação de organizações religiosas[61], haja vista a obrigação constitucional do Estado de não embaraçar a criação de entidades religiosas através da tributação de impostos sobre templos religiosos[62], a qual será melhor explanada no último capítulo.
O não embaraço não significa a possibilidade de criação de templos religiosos pelo próprio Estado[63], já que há proibição de criação de templos religiosos pelo Estado, que, entretanto, tem o dever de não constranger, não embaraçar, não dificultar a criação e a manutenção dos templos religiosos pelas organizações religiosas.
Trabalhando na mesma sintonia, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins aduzem:
“A liberdade religiosa consiste na livre escolha pelo indivíduo da sua religião. No entanto, ela não se esgota nessa fé ou crença. Demanda uma prática religiosa ou culto como um dos seus elementos fundamentais, do que resulta também inclusa, na liberdade religiosa, a possibilidade de organização desses mesmos cultos, o que dá lugar às igrejas. Esse último elemento é muito importante, visto que da necessidade de assegurar a livre organização dos cultos surge o inevitável problema da relação destes com o Estado”.[64]
Note-se que dever de não embaraçar e de não constranger a criação e manutenção dos templos religiosos pelo Estado não significa que exista vínculo de dependência ou aliança, como preceitua o artigo 19, inciso I, da Constituição de 1988 que proíbe, textualmente, qualquer vínculo direto entre o Poder Público e as organizações religiosas[65].
No entanto, o artigo 5º, inciso VII, da Constituição de 1988 prescreve que “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares[66] de internação coletiva[67]”, ou seja, poderá ocorrer colaboração entre o Estado e as organizações religiosas, nos termos da lei. Essa colaboração deve trilhar o caminho da igualdade, já que o Estado não poderá privilegiar uma religião em detrimento de outra. Assim, não há prestação de assistência religiosa pelo Estado, face ao seu caráter laico, mas tal prestação deverá ser realizada pelas organizações religiosas. Neste pensar, Anna Cândida de Cunha Ferraz pacifica o assunto em foco:
“[o artigo 19, inciso I, da Constituição de 1988] indica, com segurança, a adoção, no Brasil, da separação entre Estado e Religião, já de pronto revela, também, que o modelo adotado é o da separação atenuada: de um lado, porquanto toca de perto o problema da liberdade de consciência e de crença, admitindo os cultos religiosos; de outro, vez que determina a neutralidade do Estado, no sentido de não subvencionar ou não adotar cultos religiosos, bem como não embaraçar-lhes o funcionamento, proibindo qualquer dependência ou aliança entre os cultos e seus representantes, ressalvando, apenas, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”[68]
Neste mister, a Constituição de 1988 protege a liberdade de crença e culto, bem como às organizações religiosas. A liberdade de culto é a exteriorização popular da liberdade de crença e está assegurada a sua manifestação. O impedimento de embaraço é traduzido nas palavras de Kildare Gonçalves Carvalho:
“A Constituição assegura, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII), mas no artigo 19, I, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (vedações de natureza federativa) estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. E para evitar que o Estado crie embaraços à liberdade de religião, o texto constitucional instituiu a imunidade de impostos sobre os templos de qualquer culto (art. 150, VI, b).”[69]
Dessa forma, essa proteção não se limita somente à possibilidade de externação do pensamento religioso, estendendo-se também aos locais da prática de liturgias. Impõe-se ao Estado o dever de não embaraçar e não restringir o exercício regular dos cultos religiosos.
CONCLUSÃO
Dentre os direitos fundamentais de primeira dimensão, a liberdade de pensamento autoriza o indivíduo a faculdade de externar ou não sua consciência, possibilitando expressar valores e convicções pessoais, desde que essa externação não afronte direitos alheios. Assim, a liberdade de pensamento acabou por refletir diversas outras liberdades, como a liberdade de crença, objeto deste estudo.
No Brasil, a liberdade de crença foi instaurada com a separação da Igreja do Estado com a Proclamação da República em 1891. Para melhor ilustrar essa evolução, até então o Estado intitulava a religião católica como a oficial, tolerando as demais, desde que fossem exercidas na privacidade do lar dos indivíduos adeptos. Essa separação tornou o Brasil um país laico, autorizando o exercício público do culto religioso para as demais religiões. Essa liberdade de externar ou não a fé, foi reconhecida por todas as Constituições posteriores à Proclamação da República.
A neutralização do Estado quanto a escolha de uma religião oficial permitiu que os indivíduos pudessem escolher ou não determinada religião, tendo, ainda proibido embaraços, por parte do setor público, à criação e realização dos cultos religiosos. Tal proibição está prescrita na Constituição atual em seu artigo 19, inciso I, ratificando, assim, os valores emanados pela primeira Constituição republicana.
Para garantir o direito à liberdade de crença, a Constituição de 1988 prescreve não somente referido o direito, mas também protege o local destinado ao culto religioso. Nesse pensar, o culto poderá ser exercido em qualquer lugar público, sem qualquer interferência estatal. A proteção ao local do culto religioso assegura, por conseguinte, a entidade religiosa mantenedora do culto, isto é, a proteção contida na Constituição de 1988 não está restrita à crença e à realização do culto, mas também à pessoa jurídica de direito privado, que organiza, realiza, e mantém o culto religioso. Essa proteção visa evita embaraços na realização do culto religioso, posto que o Sistema Constitucional utiliza-se da imunidade tributária para proteger os templos de qualquer culto (qualquer religião, sem qualquer discriminação) das investidas fiscais do Estado contra as entidades religiosas.
Informações Sobre o Autor
Nilson Nunes da Silva Junior
Mestre em Direito pela UNIFIEO; Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP; Professor de Direito de Direito de Administrativo e Tributário da Anhembi Morumbi; Advogado em São Paulo.