Resumo: O presente trabalho tem por fim mediato apresentar o resultado parcial obtido com atividades de pesquisa desenvolvidas em projeto de iniciação científica, cujo objeto principal é o estudo dos avanços biotecnológicos e seus impactos nas relações jurídicas. O tema abordado é a Maternidade de Substituição; essa prática, que envolve essencialmente técnicas de reprodução humana assistida, consiste, basicamente, na doação temporária do útero de uma mulher em favor da concretização do projeto parental idealizado por outra. No Brasil, é regulamentada tão somente pela Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, que não tem força de lei, não implica sanções, mas promove sua regulamentação estabelecendo parâmetros para que ocorra regularmente, sem que haja intuito mercantil. Diante desse contexto, e da constatação de que sua realização é mais freqüente do que se imaginaria, revela-se adequado e pertinente um estudo mais profundo acerca de seu tratamento no ordenamento jurídico pátrio, das propostas trazidas pelo Direito comparado, bem como das tendências legislativas demonstradas nos Projetos de Lei quem tramitam no Congresso Nacional.
Palavras-chave: Biodireito. Maternidade de substituição. Doação temporária de útero. Reprodução humana assistida. Filiação. Direito comparado.
1. INTRODUÇÃO
A possibilidade científica de uma mulher conceber filho biológico fora de seu útero, aliada à idéia de que poderão coexistir até três maternidades’[1], gera discussões na sociedade tanto de cunho ético como também jurídico, uma vez que desafia questões ligadas a institutos basilares do direito de família, tais como maternidade, paternidade, filiação e responsabilidade parental.
Sabemos que o Direito, para ser eficaz, deve amparar as transformações sociais trazidas pelo desenvolvimento tecnológico. Dessa forma, mostra-se necessário analisar como o nosso sistema jurídico trata (ou não) a questão. Nesse contexto, o Direito Comparado, por se apresentar em estágio legislativo bem mais avançado e, por conta disso, oferecer maior número de casos submetidos à tutela judicial, poderá ser utilizado como um importante instrumento de auxílio na elaboração de leis que dêem tratamento adequado e efetivo à maternidade de substituição no Brasil. E isso se dará, principalmente, por meio da adaptação das soluções estrangeiras à nossa realidade jurídico-social.
A metodologia de pesquisa utilizada foi basicamente doutrinária, nacional e estrangeira, jurisprudência pátria em relação ao tema (acerca da qual conclui-se ser escassa), e também entrevistas com médicos especializados em genética e reprodução assistida.
Os principais objetivos foram: debater sua repercussão para o direito de família, apurar a freqüência com a qual a prática ocorre; verificar, ainda, se existe a celebração de alguma espécie de contrato entre os envolvidos; apurar a concessão de autorizações especiais pelo conselho regional de medicina; adaptar as soluções estrangeiras para o Brasil, e talvez, propor diretrizes legislativas.
2. ASPECTOS MÉDICOS DA PRÁTICA
A doação temporária de útero é realizada por médicos especializados em reprodução humana. A exemplo, desde 1991, Dr. Magarinos realiza, sem a intervenção de outros médicos, todas as etapas das técnicas de reprodução assistida em seus pacientes. Para compreensão dos aspectos médicos da doação de útero, recorreu-se a uma entrevista com o médico e às informações disponibilizadas em seu sítio na Internet.[2]
A técnica da doação temporária de útero é indicada para mulheres com algum problema médico que impeça ou contraindique a gestação, tal como perda de útero, miomas grandes, malformações, sinéquias inoperáveis, endométrio que não se desenvolve, útero infantil, Rh negativo com sensibilização ao fator Rh, doenças transmissíveis ao bebê durante a gravidez (AIDS, Hepatite C, HTLV I e II) e etc.
Com essa técnica, a mulher pode ter um filho formado a partir de seu óvulo e do espermatozóide do marido, ou seja, pode ser a mãe genética de seu filho, ocorrendo a gestação no útero de uma mulher doadora. Se a mulher não for capaz de produzir óvulos férteis, ou o marido ou companheiro não for fértil, o casal pode recorrer a uma doadora de óvulos ou doador de sêmen (fecundação artificial heteróloga).
Para obter os óvulos, o médico recorre à estimulação ovariana por meio de hormônios e, com isso, muitos óvulos são produzidos ao mesmo tempo. A estimulação ovariana, se por um lado aumenta muito as chances de êxito, também representa o principal risco nos tratamentos. A dose e o tipo de hormônio a ser utilizado em cada paciente devem ser cuidadosamente estudados. Dentre os riscos da estimulação ovariana, o mais temido é a Síndrome de Hiperestimulação Ovariana (OHSS ou SHO), que nos casos mais severos pode levar ao óbito, o que ocorre em 0,5% das mulheres que desenvolvem a OHSS[3].
Uma vez obtidos os gametas (óvulo e espermatozóide), o médico aplica a fertilização em laboratório para unir as duas células e formar o zigoto (primeira célula do corpo humano, com o material genético completo para o desenvolvimento e nascimento de um indivíduo). O zigoto, na etapa seguinte, é transferido para a doadora de útero onde se desenvolverá até o nascimento.
Na transferência de embriões para o útero, são observados alguns critérios bastante delicados. A transferência de um embrião não garante uma gravidez, sendo menor a possibilidade de sucesso quanto maior for a idade da mulher. Por isso são transferidos mais de um embrião para o útero, mas não muitos. É preciso calcular o número adequado a uma razoável probabilidade de êxito. Quanto maior o número de embriões transferidos, maior a possibilidade de uma gravidez múltipla (gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos…). Por isso as clínicas investem em novas técnicas para seleção dos melhores embriões, o que permite a redução do número de implantados e aumento da taxa de sucesso.
A seleção dos embriões pode ser feita também por diagnóstico genético pré-implantacional (PGD). O PGD consiste em remover 1 ou 2 células de cada embrião (geralmente 3 dias após a coleta dos óvulos), com o auxílio de um microscópio de micromanipulação, para estudos genéticos, antes de serem transferidos para o útero. O objetivo é selecionar embriões com menor risco de gerar crianças deficientes, bem como diminuir a taxa de abortos de causa genética. Alguns casais, no entanto, procuram a técnica para selecionar o sexo do seu futuro bebê. O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.358 de 1992, que estabelece Normas Éticas, a serem seguidas por profissionais médicos, que atuam em reprodução assistida, considera a técnica antiética, pois acarreta o descarte de embriões do sexo indesejado. O Dr Magarinos sugere nesse caso que se doem os embriões do sexo indesejado para outros casais inférteis, ou mesmo para pesquisas após terem permanecido congelados por pelo menos 3 anos.
Portanto, além dos riscos corridos pela doadora de óvulos na estimulação ovariana por hormônios, há a questão ética do descarte de embriões. O desenvolvimento das técnicas de fertilização reduz cada vez mais o número de embriões necessários para uma gravidez bem sucedida, reduzindo consequentemente o descarte. No entanto, mesmo com a ICSI, alguns embriões não chegam a ser transferidos.
Quanto ao embrião in vitro, não implantado no útero, pequena tem sido sua valoração como vida humana pelo direito brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, em 29 de maio de 2008, em julgamento da ADI 3510 que trata da constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança sobre pesquisas científicas com células-tronco, decidiu que o referido artigo, que permite a pesquisa científica com embriões humanos, não merece reparos. O relator Carlos Ayres Britto afirmou que a vida humana só começa com a nidação, ou seja, com o implante do embrião no útero da mãe. Só aquele implantado no útero materno pode vir a nascer e somente neste caso pode ser chamado de nascituro. Além disso, enquanto não tem cérebro formado, o embrião representa uma realidade distinta da pessoa natural, diz o relator. Percebe-se a discussão de três teorias na ADI 3510: uma que afirma que a vida humana começa na concepção (leia-se fecundação), outra que elege o momento da nidação (sexto ou sétimo dia após a fecundação) e uma terceira que reconhece a vida humana somente quando se inicia a atividade cerebral (décimo quarto dia de gestação). Ayres Britto simplesmente descarta a primeira acolhendo as outras duas teorias como igualmente aceitáveis para a tarefa de liberar as pesquisas com células-tronco.
A doação de útero não estava diretamente em questão no julgamento do STF sobre a lei de biossegurança. No entanto, o excedente de embriões produzidos na fertilização in vitro deixou de ser um problema depois do julgamento da ADI 3510. Resta-nos, agora, a análise das outras questões éticas e jurídicas levantadas pela técnica da doação de útero.
3. ADMISSIBILIDADE DA GESTAÇÃO POR 3º
3.1 – Possibilidade Científica e Admissibilidade Jurídica
O Brasil, assim como muitos países que possuem meios técnicos e qualificação específica, incorporou-se à tecnologia da chamada reprodução artificial assistida.
Apesar do seu uso cada vez mais recorrente, principalmente a partir do nascimento do primeiro bebê de proveta em 1978, e do domínio dos meios técnicos e científicos necessários para a efetivação da maternidade de substituição, essa prática encontra verdadeiros óbices para sua realização nas lacunas do ordenamento jurídico.
Na realidade brasileira, constata-se que, atualmente, a grande dificuldade para se recorrer a avanços biotecnológicos como este reside muito mais em questões de ordem jurídica que no domínio da técnica necessária para o procedimento pelos profissionais.
Entretanto, tendo em vista que a maternidade de substituição gera conseqüências fáticas – o nascimento de uma nova criança, mister se faz que o Direito cumpra seu papel e regule essa nova realidade social.
No Brasil, a escassa regulamentação do assunto se limita à Resolução n.º 1.358/92, Seção VII do Conselho Federal de Medicina, na qual se determinada que sua utilização deve ser condicionada à existência de um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética, devendo ser a doadora temporária do útero parente até segundo grau da doadora genética. Além disso, impõe-se ainda que tal prática não tenha caráter lucrativo ou comercial.
Como resolver, então, questões de cunho ético, moral e social que se descortinam diante desse novo panorama? Como garantir à criança o direito de conhecer seu patrimônio genético? Pode a mãe receptora requerer alimentos? E se vier a sofrer algum dano, ou mesmo falecer, em decorrência da gestação, poder-se-ia responsabilizar o “locatário”? Como evitar que isso resulte em uma exploração das mulheres mais pobres? Enfim, há indagações ainda não abarcadas pelo Direito e que merecem uma atenção especial do legislador pátrio, posto que as consequências desse procedimento tornaram-se uma realidade.
Aspecto bastante polêmico com relação a este assunto é o que diz respeito à chamada procriação artificial post mortem. Neste debate acirrado, muitos se posicionam contrários a tal prática sob a alegação de que a criança nascida careceria de um pai, já que o mesmo já estaria falecido; não poderia desfrutar do convívio com o mesmo; e, principalmente, não poderia ser registrado como tal.
Do outro lado, no entanto, os defensores argumentam que a questão da filiação seria facilmente resolvida pelo simples consentimento deixado pelo de cujus, ainda em vida, demonstrando o seu intuito de reprodução quando do armazenamento de seu sêmen. Na ausência de qualquer declaração neste sentido pelo doador do sêmen o médico deverá ser responsabilizado, inexistindo, nesse caso, a filiação.
Surgem então problemas relativos aos direitos sucessórios. Essa criança nascida de uma reprodução assistida post mortem possui direito à herança? E como proceder se a mesma foi partilhada entre os herdeiros? Costuma-se afirmar que apenas a criança gerada com o consentimento do de cujus possuiria direito à herança. E, sendo assim, ainda que finda a partilha, o Direito pátrio apresenta solução para o caso: aplicar-se as mesmas regras utilizadas nos casos de reconhecimento de filiação por investigação de paternidade post mortem. Dessa maneira, não apenas é possível garantir à criança o vínculo de paternidade, como também lhe é assegurado o direito à herança deixada pelo seu progenitor por meio de uma petição de herança com nulidade de partilha, observada a prescrição quanto a direitos patrimoniais.
Cumpre tratar, ainda que brevemente, da utilização do procedimento por casais homossexuais. Impossibilitados de gerar sua própria prole, recorrem de maneira cada vez mais frequente a este método e, amparados pelo anonimato – muitas vezes solicitados pelo casal que tem o projeto parental, outras até mesmo imposto pela própria clínica que realizada a reprodução assistida – logram êxito sem precisar, para tanto, vencer barreiras do preconceito. Assim, é possível que casais homossexuais valham-se da técnica até mesmo em países como a Índia, onde a homossexualidade ainda é ilegal.
Destarte, posiciona-se favoravelmente ao uso da “maternidade de substituição” também por casais homossexuais que, em razão de sua opção sexual, não podem gerar filhos de maneira natural.
Por fim, não se pode olvidar de tratar da problemática relacionada à família monoparental. Muito comum nos dias de hoje, a chamada “produção independente” nada mais é do que uma pessoa solteira que decide ter um filho para criá-lo sozinha, sem o auxílio de um parceiro.
Parece plausível que indivíduos solteiros possam valer-se desse método. O que se costuma questionar neste caso é a questão do melhor interesse para a criança, entendendo muitos que o desenvolvimento psíquico daquela depende da estrutura familiar, a qual deveria ser formada pela figura de um pai e uma mãe. Todavia, tal entendimento encontra-se ultrapassado, sendo impossível negar o status de família também a diversos núcleos de convívio social, tais como a união estável, sobrinhos que moram com tios, irmãos que vivem juntos e, logicamente, as famílias monoparentais.
Não há fundamentos que afirmem que a família monoparental possa ser prejudicial ao desenvolvimento da criança. O único cuidado que se deve ter é para que isso não represente uma conquista pessoal, devendo-se sempre primar pelo bem-estar da criança, garantido constitucionalmente (Artigos 227, 229, CRFB).
Diante do exposto, urge que o Direito regule todas essas novas situações, estabelecendo limites para a utilização das técnicas de reprodução assistida, levando-se sempre em consideração valores éticos, morais e sociais.
3.2 Natureza jurídica da maternidade substituta.
Há muita polêmica a respeito da natureza jurídica da Maternidade de Substituição. Atualmente, nos EUA e na Índia a técnica é aceita[4] e realizada por meio de Contrato de Gestação, no qual a mãe substituta obriga-se a entregar o bebê aos pais que idealizaram o projeto parental, logo após o parto.
Este acordo é criticado, uma vez que constitui uma ameaça à dignidade da criança, pois se mesmo antes do parto ela já é considerada uma pessoa em desenvolvimento, não pode, portanto, ser objeto de um contrato, pois tem direitos que devem ser respeitados[5].
É prejudicial também à mãe substituta, pois, mesmo se esta não doou o material biológico (óvulo), nos ordenamentos jurídicos pesquisados, mãe é aquela que gera a criança e, portanto, ela não poderia renunciar ao seu estatuto jurídico de mãe, pois representa um direito familiar, de relevância pública, sendo assim, indisponível.
Caso a mãe substituta seja casada, seu marido também renunciaria ao estatuto jurídico de pai, já que presume-se dele[6] a paternidade da criança nascida de sua esposa.
Vale ressaltar ainda uma hipótese não definida no contrato: se a criança nascer com alguma doença ou deficiência, poderia ser repudiada pelos pais que a idealizaram, uma vez que desejaram uma criança perfeita; e a mãe substituta também poderia não aceitá-la. Logo, no caso de um conflito negativo, expõe-se a perigo o melhor interesse da criança fruto deste ajuste.
Há outra corrente de estudiosos[7] que consideram a Maternidade de Substituição um Instituto, comparado à Adoção. Contudo, diferente desta, em que privilegia-se o interesse da criança, de cujo poder familiar os pais foram privados; na maternidade de substituição busca-se satisfazer o interesse do casal infértil ou futuros pais. Portanto, não há como defender o interesse de uma criança que não foi sequer gerada.
4. Conflito e atribuição de maternidade.
Superadas as questões preliminares sobre a possibilidade científica e jurídica da maternidade de substituição, assim como os seus modos de execução e sua natureza jurídica, cumpre enfrentar o tema do conflito de maternidade.
A doutrina traz possibilidades distintas de ocorrência do dissenso: o conflito positivo e o negativo.[8] A primeira ocorre quando tanto a idealizadora da maternidade por substituição, que pode ser também a cedente do óvulo ou não, quanto a cedente do útero, também chamada parturiente, manifestam o desejo de assumir a maternidade da criança e criá-la como se filho fosse. Outra se verifica quando os mesmos sujeitos supracitados optam, simultaneamente, por negar a maternidade a uma criança vindoura, idealizada por uma pessoa, e gestada por outra.
Historicamente, a doutrina e a jurisprudência pautavam-se na presunção explicitada pelo brocardo latino mater semper certa est (a mãe é sempre certa), pois sua determinação se dava pela gravidez e parto. Contudo, ante a possibilidade da gravidez por substituição, essa presunção deixa de prosperar totalmente, impondo-se novos critérios de aferição da maternidade[9].
O primeiro critério é a atribuição da maternidade à gestante e parturiente, ou seja, a quem dá à luz uma criança. Decorre de longo entendimento jurídico, cuja influência pode até mesmo ser depreendida da leitura dos artigos 52, parágrafo1º e 54, parágrafo 7º, da Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos)[10].
De fato, ainda hoje essa atribuição é a adotada, inclusive tendo em vista que a maternidade de substituição ainda é exceção. Contudo, em que pese ser notório que o ordenamento pátrio tenha adotado esse posicionamento, no próprio Código Civil se encontra abertura para ressalvas, a exemplo do artigo 1.615.
O segundo critério é o biológico, mais precisamente o genético, que atribui a maternidade à doadora do óvulo, aquela cujo material genético será herdado pelo infante. Essa hipótese é a utilizada comumente na justiça para se aferir a paternidade. São os casos dos famosos “testes de DNA”, que hoje podem também ser úteis na determinação da maternidade.
A jurisprudência optou por esse parâmetro em algumas oportunidades, como no julgado abaixo, proveniente de Minas Gerais:
“Indenização – Danos morais – Pedido sucessivo – Investigação de troca de bebês – Hospital – Exame de DNA – Pagamento de despesas – Cumulação de pedidos – Erro essencial de fato – Teoria da actio nata – Prescrição – Não-ocorrência – A ação que busca investigar filiação, maternidade e paternidade é imprescritível. É possível a cumulação de pedido sucessivo cominatório com pedido indenizatório. Havendo erro essencial quanto a fato que a parte ignorava, referido erro impede o curso do prazo de prescrição da ação. Segundo a teoria da actio nata, somente após revelado o fato desconhecido que mantinha a parte em erro substancial é que tem início a contagem do prazo de prescrição da ação[11].”
A crítica à utilização desse critério está no reflexo do próprio método de fertilização adotado, homólogo ou heterólogo, ou seja, de acordo da técnica aplicada, estaremos de antemão atribuindo a maternidade a provedora do óvulo, independentemente de ser a idealizadora do projeto familiar ou a cedente do útero. Contudo, ante a análise do direito comparado entende que na hipótese de fertilização heteróloga conjugada à maternidade de substituição, ou seja, além de ceder o útero a gestante cede também o óvulo, a ela é atribuída a maternidade independemente do projeto parental de outra. Há que se ressalvar que não se tem notícia também, de hipótese em que uma mulher cede um óvulo e outra o útero, para que uma terceira assuma o papel materno após o parto.
O terceiro critério é o da afetividade. Por esse critério, atribui-se a filiação à relação sócio-afetiva estabelecida entre duas pessoas, sendo uma delas a dotada de animus maternal. Esse critério, embora a primeira vista mais apropriado, tem apuração prática mais difícil na ocorrência de um conflito. Pois, havendo disputa entre duas supostas mães, que pode ocorrer tanto no período gestacional quanto logo após o parto, como estabelecer quem possui o vínculo sócio-afetivo com o bebê? Nesse caso, permanece a dúvida se devemos atribuir essa afetividade aquela que planejou o bebê, e depositou confiança na gestação por uma terceira, ou se devemos reconhecer o apego daquela que acompanhou o desenvolvimento de uma vida em seu útero. Situação que causa igual perplexidade seria o conflito negativo, pois como avaliar afetividade se ambas as mães em potencial rejeitam a vida em formação ou o bebê recém-nascido em questão?
No Direito comparado observa-se que a maioria dos países atribui a maternidade à gestora. Porém, a justificativa não tem fundamento, em última análise, no critério de escolha legal da parturiente, mas sim na nulidade de um eventual contrato em que a gestante tenha se comprometido, onerosamente ou não, a ceder seu útero para gerar uma criança. É o que se verifica, a título exemplificativo, na Nova Zelândia, Bulgária, Inglaterra, França, Espanha e Argentina, além de Portugal, este último com algumas ressalvas às hipóteses em que não há onerosidade na cessão do ventre.
Por fim, podemos concluir que todos os critérios até o momento não se demonstraram satisfatórios a atribuir a maternidade a uma das mulheres envolvidas no conflito, seja ele positivo ou negativo.[12] Nesse caso, nos parece mais arrazoado que seja feito um juízo que conjugue os critérios acima, a luz do princípio da dignidade da pessoa humana, nesse caso explicitado pelo atendimento ao melhor interesse da criança. A aferição do melhor interesse, objeto de fundamentações judiciais em outras esferas, e positivada no artigo 43, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)[13], e artigo 1.625 do Código Civil, deve levar em conta o importante fator de que, via de regra, a cedente do ventre, gestante, não possuía, até a concepção, o menor ideal de mãe. Muitas das vezes, pelo contrário, tinha convicção que não desejava a maternidade e por isso ofertou seu útero à terceiros, no gesto altruísta de possibilitar àqueles concluir o sonho parental. Obviamente, essa ausência de animus inicial deve ser sopesada com o maior benefício à integridade psicofísica da criança, enquanto pilar de sua dignidade.
A ponderação supramencionada não se distancia da adotada pela Corte Suprema de Nova Jersey no caso concreto denominado Baby M.[14], no qual o valor preponderante para determinar a que família seria entregue o bebê foi aquela que tivesse melhores condições, não apenas econômicas, mas também sociais, de educá-lo[15].
4.1 Experiências do direito comparado
Em que pese a maternidade de substituição não ser prevista pela legislação pátria, vários outros países dispõem de dispositivos legais coercitivos acerca do tema, relacionando-o, inclusive não só com o ramo cível o Direito, mas também com as esferas administrativa e, até mesmo, criminal.
Exemplo mais patente é o tratamento dado à tal prática pela legislação alemã. Nesse país, a gestação por outrem é vedada pela Lei de Proteção aos Embriões, que, em seu art. 1º, tipifica como crime a conduta daquele que proceder à fecundação artificial em mulher que esteja disposta a ceder definitivamente o seu filho a terceiros após o nascimento, podendo a pena ser desde multa até prisão por três anos.
Na Espanha, quanto à maternidad subrogada, o direito espanhol considera ilícito todo contrato de gestação no qual uma mulher renuncie à maternidade em favor de outrem, levando em conta que o corpo humano está fora do comércio jurídico e não pode ser objeto de contrato. Assim, tal contrato é cominado de nulidade com base nos artigos 1305 e 1306, c.c. artigos 1271 e 1275, todos do Código Civil espanhol[16].
Desse modo, tal contrato não poderá ser executado diante da nulidade da qual é portador, com expressa previsão no artigo 10-1 da Lei nº 35/1988, sendo a solução para resolver a questão da maternidade dada pelo artigo 10-2, da mesma lei, ou seja, o parto. Em relação à paternidade, o artigo 10-3 da mesma lei ressalva que ela poderá ser reclamada de acordo com as linhas gerais de reconhecimento ou estabelecimento. Sendo a mulher gestante casada, o parto também influenciará a paternidade para o fim de estabelecer que seu marido será o pai jurídico da criança, ainda que o sêmen utilizado tenha sido do ‘pai intencional”.[17]
Na França[18] e em Portugal[19] também existe vedação expressa em leis específicas sobre reprodução humana assistida, e também nos seus respectivos Códigos Civis.
Entretanto, outra posição é adotada pelos Direitos inglês e norte-americano. Nos EUA, a partir da década de 80, alguns Estados constituíram comissão para estudar e apresentar sugestões sobre a técnica da maternidade-de-substituição, sendo que no ano de 1987 houve julgamento reconhecendo a constitucionalidade de tal prática – o mencionado caso do Baby M. Todavia, entidades médicas norte-americanas recomendam que as práticas de reprodução assistida somente sejam realizadas em favor de casais estéreis, o que representa a não-aceitação da técnica por mera conveniência.
Acerca da maternidade-de-substituição, o Direito Inglês, com o Surrogacy Arrangements Act, de 1995, proibiu peremptoriamente tal prática de forma remunerada, prevendo sanções para aqueles que descumpram a norma. Por outro lado, admitiu implicitamente sua utilização quando realizada sem qualquer remuneração.
No que se refere à filiação, a sub-rogada é a mãe legal. Dessa forma, o modo pelo qual os pais intencionais obtêm judicialmente o direito a registrar a criança é o chamado Parental Order – um instrumento jurídico semelhante à adoção, sendo caracterizado por ser uma versão mais simples e rápida.[20] No entanto, a questão não é tão simples.
A Lei de 1990 instituiu mecanismo de controle realizado pelo Human Fertilization and Embriology Authority, que necessariamente verifica e fiscaliza tais práticas, determinando quais são os ‘pais jurídicos’ da criança por meio da ordem parental (parental order), ou seja, o casal que manifestou consentimento em procriar através de tal técnica.[21] Pode-se concluir que tal restrição foi instituída de modo a proibir qualquer criação de embriões fora do corpo humano, bem como a guarda de material fecundante sem a licença concedida pela autoridade instituída em 1990. Daí decorre que, pelo direito inglês, toda a prática relacionada à maternidade-de-substituição, e também fertilização in vitro de material de terceiro doador, somente possa ser realizada em clínicas licenciadas, sob pena de ser considerado o pai jurídico da criança aquele que doou o material fecundante [22] – o que se mostra em total discordância com proteção à intimidade do doador, vigente no direito brasileiro.
5. Vazio normativo e o papel do CRM
Nos últimos anos o desenvolvimento tecnológico e das Ciências biomédicas vem aumentando consideravelmente. Todo esse desenvolvimento traz implicações para o indivíduo e para a sociedade de um modo geral. As mudanças são notadas e influenciam não somente as relações privadas, mas trazem consequências sociais onde é necessário ter como base paradigmas de dignidade humana, moral social e ética a fim de que se possa lidar de uma maneira adequada com o desenvolvimento para que ele não traga conseqüências prejudiciais para a sociedade atual e vindoura.
O desenvolvimento tecnológico e biomédico demonstra que o direito não é capaz de dar sempre respostas satisfatórias para todas as novas questões que emergem de tantos fenômenos que modificam a sociedade. Pois há, na verdade, uma ambivalência trazida com as experiências e avanços tecnológicos, pois da mesma forma que trazem benefícios para o ser humano podem por outro atacar diretamente o direito a vida e a procriação.
A maternidade de substituição não está devidamente regulamentada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Há um verdadeiro vazio normativo que gera uma insegurança e acaba por tornar mais escasso o número de pessoas que se utilizam desta técnica a fim de terem satisfeito o seu projeto parental.
A única regulamentação existente a respeito da maternidade de substituição vem do Conselho Regional de Medicina[23]. Há projetos de lei que pretendem a regulamentação da prática, mas até a presente data nada foi devidamente regulamentado para acabar com a insegurança da ausência normativa.
A Resolução 1358/92 do CFM autoriza o médico a praticar a gestação por substituição nos casos em que um problema de saúde impeça ou contra-indique a gestação da mãe que tem o projeto parental. Além disso, a doação de útero deve ser não lucrativa ou não comercial e a doadora deve ser parente de até 2º grau com aquela que pretende ser mãe, sendo os demais casos sujeitos a aprovação do CRM.
O Conselho Regional de medicina pretende com isso evitar a prática indiscriminada dessa espécie de reprodução assistida e a comercialização da gravidez. Ao impedir que a maternidade de substituição se realize entre mulheres que não sejam parentes, pretende-se que não haja a colocação de um preço em uma gestação que deve ser de afeto.
Porém, essa restrição do parentesco até o segundo grau acaba também, em muitos casos, por impedir a pratica em determinadas situações. Diz a resolução do CRM que em casos excepcionais poderá haver a autorização do órgão para casos em que a mãe substituta não seja parente dos pais que pretendem a realização do projeto parental.
Entrevista realizada com o Dr. Antônio Eugenio Magarinos Torres do Centro Médico Richet, Barra, RJ, restou comprovado que há uma excessiva burocratização que acaba impedindo a realização do procedimento. O médico chegou a tentar submeter casos ao Conselho quando não havia o parentesco necessário entre a doadora do útero e a mãe que possui o projeto parental, mas a burocracia não possibilitou o procedimento da maternidade substituta.
A ausência normativa e as dificuldades impostas pelo Conselho Regional de Medicina acabam impedindo a prática da maternidade de substituição e de certa forma incentivando a clandestinidade, pois na verdade a maternidade de substituição acaba ocorrendo à margem da existência de regulamentação específica.
Diante dos fatos, é forçoso reconhecer a necessidade de regulamentação da maternidade de substituição no ordenamento jurídico brasileiro a fim de que a prática possa ser realizada de acordo com parâmetros estabelecidos evitando-se assim a clandestinidade e dando segurança jurídica às gestantes e às pessoas que pretendem a realização do projeto parental.
As técnicas de reprodução humana assistida são um grande marco da evolução do biodireito. Cada vez mais as sociedades de diversos países do mundo vêm se utilizando de tais técnicas para verem satisfeitos seus desejos de procriação e realização familiar. Na maternidade de substituição terceiras pessoas se encontram envolvidas no ato de geração de um novo ser. Portanto, novos paradigmas precisam ser analisados e confrontados sem nunca se perder de vista a dignidade da pessoa e a afetividade como base de qualquer relação familiar e humana.
Desta forma, não há ainda definição a respeito da natureza jurídica desta técnica, constituindo-se de elementos diversos, sendo assim um fato híbrido e inédito no mundo jurídico.
CONCLUSÃO
A procriação sempre foi fenômeno de grande relevância, tanto para a vida do ser humano, individualmente considerado, por ser forma de sua realização pessoal, como para a própria existência da sociedade, por ser forma de garantir a sua perpetuação. Tal é sua importância, que qualquer obstáculo para a sua concretização é configurada como um mal capaz de gerar graves problemas psicológicos ao casal, assim como se dá com a infertilidade e esterilidade. Na busca constante do homem para superar tais problemas, surgem às técnicas de reprodução medicamente assistidas como forma alternativa de substituir a reprodução natural, possibilitando às pessoas gerar filhos quando não podem naturalmente os conceber.
Resultado de avanços no campo da biotecnologia, a Reprodução Humana Assistida (RHA) possibilita que casais inférteis tenham condições de ter um filho, quando submetido a uma de suas técnicas. Apesar de parecer um procedimento simples, a RHA gera inúmeras discussões ético-jurídicas que ainda não possuem respostas concretas. No Brasil, a medicina reprodutiva já se encontra bastante desenvolvida, mas é regulamentada apenas pela Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, a qual apresenta normas éticas para o uso das técnicas de reprodução artificial, sendo apenas um documento de caráter normativo profissional, que não tem força impeditiva. No entanto, vários Projetos de Lei se encontram em trâmite na Câmara ou no Senado e visam regulamentar a utilização das técnicas de RHA
É certo que existem inúmeros dilemas envolvendo os avanços científicos e as questões morais, notadamente nos campos relacionados à vida e à morte. Todavia, é perfeitamente possível a compatibilização e a harmonização entre tais campos do conhecimento humano com base nos valores eleitos pela comunidade para servir de referencial nos intricados casos que se apresentarem. Assim, o ritmo veloz das descobertas no campo da biotecnologia produz imediatas repercussões sociais que, de todo modo, também recepciona os valores culturais e morais insculpidos no curso da evolução histórica. A atividade científica, como espécie de atividade humana, não pode ser exercida sem o referencial maior em nível teleológico: a pessoa humana.
De tal sorte, ao fim da elaboração do presente trabalho, revelou-se a atualidade e relevância do tema em comento, mostrando-se necessária uma readaptação do direito à nova realidade das técnicas de reprodução artificial, a fim de evitar, ou pelo menos, diminuir ao máximo, os efeitos danosos do progresso científico e os conseqüentes ataques à dignidade da pessoa humana, determinando-lhe um rumo, sem impedir seu desenvolvimento.
Nesse contexto, observa-se a reiteração de uma prática contemporânea à descoberta das possibilidades científicas advindas das TRHA, regulada de forma escassa pela Resolução 1358/92 do CRM, a saber, a maternidade de substituição, por meio da qual uma mulher é inseminada com material genético diverso do seu – tem-se, pois, a possibilidade de coexistirem até três espécies de maternidade: aquela que ‘doa’ o útero; aquela que doa o material genética e aquela que participa tão somente do projeto parental, sendo, assim, a mãe de intenção.
No que se refere à admissibilidade de tal prática pelo ordenamento jurídico pátrio, pode-se constatar que ainda existe enorme dissenso, sendo certo que a realidade brasileira destoa daqueles países nos quais existe maior preocupação com os rumos a serem tomado pelo biodireito. Como exemplos , temos os sistemas normativos de países da comunidade européia – extremamente conservadores, cujas regras chegam até mesmo a tipificar a ‘gestação por outrem’ como crime, punindo-o com pena privativa de liberdade, e os sistemas como os dos Estados Unidos e Inglaterra que, a seu turno, chancelam e até mesmo fomentam a prática da maternidade de substituição em seus países.
Conclui-se, pois, ser necessária a construção de um sistema normativo efetivo e, sobretudo, eficaz acerca da maternidade substituta no Brasil, uma vez que a insegurança jurídica gerada pela ausência de critérios e diretrizes exatas é capaz de transformar a realização de um projeto parental em conflitos judiciais intermináveis. Entretanto, somente após a realização de debates e discussões envolvendo todas as entidades e as pessoas interessadas nos temas, é que se alcançará uma normatização transparente, clara e consensual – sempre obediente, repise-se, aos valores e princípios que fundamentam a ordem jurídica brasileira, entre elas a dignidade da pessoa humana, o solidarismo, o personalismo, o pluralismo, a justiça social, e a especial proteção estatal às entidades familiares.
Notas:
3. Queda a salvo la posible acción de reclamación de la paternidad respecto del padre biológico, conforme a las reglas generales.
Informações Sobre os Autores
Flavio Alves Martins
Prof. Adjunto de Direito Civil na UFRJ e na UNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da UNIFLU. Coordenador Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas
Juliana Carvalho Brasil da Rocha
Acadêmica na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Integrante do Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas. Bolsista CNPq/PIBIC
Beatriz Santos Carvalho
Acadêmica de Direito na UFRJ
Bernardo Antonio Gonçalves Monteiro
Acadêmico de Direito na UFRJ
Luis Felipe Freind dos Santos
Acadêmico de Direito na UFRJ
Marina Rodrigues Martins
Acadêmica de Direito na UFRJ
Nathalia Martins Barbosa de Queiroz
Acadêmica de Direito na UFRJ