Sumário: I. Introdução; II. A postura Weberiana; III. A postura Kelseniana; IV. Conclusões; V. Referências Bibliográficas.
Resumo: Sem dúvida nenhuma, Max Weber e Hans Kelsen representam dois dos mais importantes clássicos para o entendimento do fenômeno jurídico moderno. Ao nos debruçarmos sobre suas obras, verificamos que ambos visam explicar o conceito de Direito por duas vias que se interligam: enquanto o primeiro se atém mais estritamente ao campo empírico-causal, próprio da Sociologia do Direito, o segundo faz uso da dogmática jurídica, característico de sua Ciência do Direito.
I. Introdução
Sem dúvida nenhuma, Max Weber e Hans Kelsen representam dois dos mais importantes clássicos para o entendimento do fenômeno jurídico moderno. Desde início do século XX as respectivas obras de ambos pensadores foram incessantemente estudadas, revistas e comentadas nas cátedras de todo mundo, engendrando novas interpretações e classificações das mais diversas possíveis por onde quer que suas teorias exercessem influência. Enquanto o primeiro se atinha aos bancos da Sociologia, da Ciência Política, ou melhor, das Ciências Sociais como um todo, além de produzir importantes transformações no currículo acadêmico das escolas de Economia, o segundo gerava, de igual modo, severo impacto nas Humanidades, porém mais afeto à seara do Direito. Enquanto Weber representou um dos mais altos expoentes da sociologia jurídica, Kelsen, por sua vez, solidificou a mais expressiva referência no âmbito da dogmática jurídica.
A relação intelectual entre Weber e Kelsen é bastante fluida. Tal proximidade pode ser constatada na medida em que, além de serem autores contemporâneos, ambas as teorias tiveram inúmeros seguidores na Alemanha, bem como seus estudos foram paradigmas de interpretação em diversos pólos intelectuais na Europa pós-vitoriana. Segundo relatam os comentadores, nos anos de 1911 a 1913, época em que Weber desenvolveu sua Sociologia do Direito, Kelsen já havia publicado em 1911 sua primeira grande obra intitulada Hautptprobleme der Rechtstaatslehre. Na primeira edição de seu livro, conforme nos assinala Norberto Bobbio[1], Kelsen já citava Weber, indicando a acurada leitura do pensamento weberiano que naquele momento já despontava e se consolidava na Alemanha de início do século passado. Posteriormente, quando a obra póstuma Economia e Sociedade é lançada em caráter definitivo, Kelsen submete-a a algumas apreciações críticas, tendo inclusive publicado alguns artigos julgando a postura teórica weberiana[2]. Por fim, na obra Teoria Geral do Direito e do Estado, o autor vienense tece algumas considerações a respeito da sociologia jurídica de Weber, contestando alguns posicionamentos assumidos pelo pensador, cujos desdobramentos veremos mais adiante.
A discussão entre sociologia jurídica e dogmática jurídica trazida por Weber no seio de Economia e Sociedade remonta, em realidade, à celeuma engendrada por dois antecessores seus, Herman Kantorowicz e Eugen Erlich, precursores da chamada “Escola do Direito Livre” e do “Movimento Sociológico do Direito”, até então com relativa influência nas academias jurídicas alemãs[3]. Pregavam estes dois autores, em suma, basicamente a idéia de que a lei não poderia criar efetivamente o direito, visto que tal tarefa era destinada ao órgão vivo, ao elemento subjetivo do Direito, o juiz (giurisprudenzia). Deste modo, qualquer ciência que fosse válida deveria se pautar nos acontecimentos da realidade, nos elementos empiricamente constatáveis. Com tais formulações, criticavam severamente a ciência jurídica dos juristas que somente se atinavam às leis formalmente criadas pelo legislador. Além do mais, tais pensadores reivindicavam a função judicial como a verdadeira fonte de direito, visto que se tratava de efetivamente aplicar uma norma abstrata ao mundo fático, função esta materializadora do direito e que alcançava, portanto, fins práticos. Propunham, assim, a livre criação do Direito por parte do magistrado, além de defenderem a idéia de que a Sociologia do Direito seria a única e verdadeira ciência de estudo do Direito, posto que era a única que se volta a atingir ao escopo do próprio Direito, que é a transformação do mundo fático.
II. A postura Weberiana
Max Weber, por sua vez, assumiu postura diferenciada frente a seus predecessores e, em verdade, encerrou posições mais coerentes ante a concepção do caráter autônomo das ciências, já amplamente aceito pelos pensadores na época. Criticou Kantorowicz e Erlich porque ambos tentaram reduzir a Ciência do Direito a uma disciplina sociológica, portanto tendo ambos investido-se de caráter valorativo em suas teorias, tese incompatível com a neutralidade axiológica pregada por Weber, como vimos no capítulo sobre seus ensaios metodológicos. Segundo entendia, a ciência jurídica ou dogmática jurídica e a sociologia do direito não poderiam jamais ser justapostas, de maneira que ambas ocupam lugares distintos, isoladamente consideradas. Tal discussão engendrada por seus antecessores – e que posteriormente é retomada por Kelsen, só que de maneira inversa, tendo a dogmática jurídica certa “prevalência” sobre a sociologia jurídica[4] – basicamente era pertinente a problemas de ordem metodológica e não poderiam ultrapassar esta esfera, como o estabelecimento de primazia de uma pela outra e vice-versa. É necessário ressaltar que Weber evita, como fizeram Kantorowicz e Erlich, cair em uma postura “sociologista”, promovendo adequadamente a distinção entre ambos os conceitos e seus respectivos âmbitos de validade.
Emprestando alguns conceitos e idéias de Jellinek[5] de “validade ideal” (a validade de uma norma frente ao conjunto de outras normas) e “validade empírica” (a validade de uma norma frente a um grupo de pessoas que se orienta perante essa norma ou com relação a um grupo de normas), Weber trata de evidenciar essas duas perspectivas de modo a esclarecer suas lógicas internas e operar sua distinção fundamental entre a dogmática e a sociologia jurídicas. Nosso autor já inicia o capítulo referente à “Economia e as Ordens Sociais” de sua Economia e Sociedade deixando evidente sua intenção:
Quando se fala de ‘direito’, ‘ordem jurídica’ e ‘norma jurídica’, deve-se observar muito rigorosamente a diferença entre os pontos de vista jurídico e sociológico. Quanto ao primeiro, cabe perguntar o que idealmente se entende por direito. Isto é, que significado, ou seja, que sentido normativo, deveria corresponder, de modo logicamente correto, a um complexo verbal que se apresenta como norma jurídica. Quanto ao último, ao contrário, cabe perguntar o que de fato ocorre, dado que existe a probabilidade de as pessoas participantes nas ações da comunidade – especialmente aquelas em cujas mãos está uma porção socialmente relevante de influência efetiva sobre essas ações –, considerarem subjetivamente determinadas ordens como válidas e assim as tratarem, orientando, portanto, por elas suas condutas[6].
Depreende-se desta passagem que Weber reduz a tensão entre dogmática jurídica e a sociologia do direito a um cariz estritamente metodológico. Ele considera que quando tratamos da primeira ciência servimo-nos do método lógico-normativo, ao passo que na segunda utiliza-se o método empírico-causal, este típico da Sociologia. O método lógico-normativo possui a finalidade de verificar no interior de um “cosmos de regras abstratas” suas regras de validade, realizando uma verificação de compatibilidade lógica das normas em um ordenamento. Esta operação, portanto, situa-se no plano ideal, ou seja, no pensamento racional, no plano das idéias. Já o método empírico-causal investiga o comportamento dos indivíduos frente a um sistema de regras, avaliando a potencialidade de suas condutas se subsumirem àquelas disposições, ou ainda, orientarem-se segundo o conteúdo da norma, ainda que não cumprindo o que disposto nela.
A dogmático-jurídica para Weber possui uma peculiaridade especial: ela se situa na esfera do dever-ser (Sollen), conquanto que lida com a forma de melhor regular (prescrever) condutas e organizá-las sistemática e logicamente de modo a se criar um sistema isento de contradições e exigível perante seus destinatários. Como ele próprio no ensina, a dogmático-jurídica: “propõe-se a tarefa de investigar o sentido correto de normas cujo conteúdo apresenta-se como uma ordem que pretende ser determinante para o comportamento de um círculo de pessoas de alguma forma definido, isto é, de investigar as situações efetivas sujeitas a essa ordem e o modo como isso ocorre”[7]. Assim entendido, investiga a dogmática jurídica quais as hipóteses em que uma norma será considerada proibida, permitida, concessiva, explicativa, integrativa dentre outros tipos, de sorte a se imporem como uma ordem àqueles a elas sujeitas. “Para esse fim”, continua Weber, “assim procede: partindo da vigência empírica indubitável daquelas normas, procura classificá-las de modo a encaixá-las em um sistema sem contradição lógica interna. Este sistema é a ‘ordem jurídica’ no sentido jurídico da palavra”[8].
Por outro lado, entende-se por sociologia jurídica na obra weberiana o estudo do comportamento dos indivíduos frente às normas vigentes e a determinação em que grau se verifica a orientação dos homens por esse conjunto de leis (ordem legítima). A tarefa sociológica na seara do Direito se atém a investigar, no plano da realidade, do acontecer fático, o que se sucede no comportamento das pessoas que se submetem a um ordenamento e de que maneira se verifica sua orientação segundo esta ordem legítima. Como bem interpreta Julien Freund, assinala que a sociologia jurídica
tem por objeto compreender o comportamento significativo dos membros de um grupamento quanto às leis em vigor e determinar o sentido da crença em sua validade ou na ordem que elas estabeleceram. Procura, pois, apreender até que ponto as regras de direito são observadas, e como os indivíduos orientam de acordo com elas a sua conduta[9].
Vislumbra-se que a preocupação de Weber em situar esses limites específicos, ao que se infere, destina-se a não permitir a confusão entre aqueles assuntos referentes aos aspectos normativos e aqueles situados no acontecer social (empíricos). Tal tarefa decorre da diferenciação quanto as regras do “ser” (Sein) e do “dever-ser” (Sollen) – de tradição kantiana –, na qual o comportamento humano orientado conforme a norma é de incumbência de estudo da sociologia jurídica, atuar este que se situa no plano do “ser”, da realidade fática, ao passo que as regras jurídicas, a forma de sua criação, qual seu conteúdo a ser prescrito, qual sua organização em um sistema lógico interno isento de contradições, tais matérias seriam da alçada da dogmática jurídica resolver, posto que se situam na esfera do “dever-ser”. Fica evidente tal consideração quando nos reportamos ao próprio Weber, quando assevera com propriedade:
a ordem jurídica ideal da teoria do direito [leia-se aqui dogmática jurídica] não tem diretamente nada a ver com o cosmos das ações (…) efetivas [objeto da sociologia jurídica], uma vez que ambos se encontram em planos diferentes: a primeira, no plano ideal de vigência pretendida; o segundo, no dos acontecimentos reais[10].
Um ponto bem peculiar é necessário não deixar obnubilar-se: a sociologia jurídica é responsável de investigar o comportamento dos indivíduos conforme um ordenamento jurídico posto (vigente)[11] , orientando-se por ele. Não se trata aqui de que esse comportamento é o que se dá observando a lei, na qual se segue ou obedece à norma disposta. Um estelionatário, a fim de se livrar do peso da lei, orienta-se segundo a norma com o fito de escapar a ela. Ele visa aplicar a máxima diligência em não ser descoberto, porque, ao se orientar conforme a norma, percebe que aquele comportamento é reprovável e sujeito à sanção. Atente-se aqui para o fato de que a observância ou não observância normativa não é requisito essencial para determinar o que é e o que não é tarefa da sociologia jurídica investigar. Assim, basta a ação do indivíduo conforme a ordem prescrita para que encontremos matéria de análise. Como Weber explica: “O fato de pessoas quaisquer se comportarem de determinada forma porque a consideram prescrita por normas jurídicas é, sem dúvida, um componente essencial da gênese real empírica, e também da perduração, de uma ‘ordem jurídica’”[12]. E complementa sua idéia em um outro trecho:
Também é desnecessário [dizer] (…) que todos os que compartilham a convicção do caráter normativo de determinadas condutas vivam sempre de acordo com isso. Isso também nunca ocorre (…). O ‘direito’ é para nós [segundo a ótica da sociologia jurídica] uma ‘ordem’ com certas garantias específicas da probabilidade de sua vigência empírica[13].
III. A postura Kelseniana
Mas nem com tamanha clareza e discernimento Weber deixou de ser criticado. Hans Kelsen foi um de seus principais contendedores, sem que em virtude disso tenha deixado de reconhecer a clarividência do pensamento weberiano sobre a definição da sociologia jurídica. O movimento positivista na época em que Weber produz suas obras já é bastante acentuado e por diversas partes da Europa vão surgindo diferentes teorias que, de maneira comum, convergiam para um ponto central, consistente na idéia de se reduzir o Direito a um universo de normas jurídicas criadas e impostas pelo Estado. O Pandectismo na Alemanha, representado por Bernhard Windscheid como seu expoente máximo; a Escola da Exegese francesa, que influenciou diretamente na confecção do Código Napoleônico; passando pela Escola Analítica na Inglaterra, cuja premissa era fundada na necessidade da codificação dos textos legais, pregada principalmente por John Austin; até Hans Kelsen, já no início do século XX, tem-se praticamente um século de surgimento e consolidação do pensamento positivista/pré-positivista, representando uma forte tendência crescente nas universidades e nos tribunais da época[14].
Kelsen já havia tecido severas críticas a Kantorowicz e Erlich contestando o posicionamento desses autores conquanto a afirmarem ser a Sociologia do Direito a única ciência capaz de definir o fenômeno jurídico, de forma a reduzir a ciência do direito a uma disciplina sociológica[15]. Assim, Kelsen entendia que a Sociologia Jurídica não era uma ciência autônoma, visto que, necessariamente, para definir seu objeto, teria de recorrer a conceitos elaborados pela Ciência do Direito, fato este que encerrava uma substancial dependência conceitual daquele campo de conhecimento para com esta ciência. E tal razão, dentro do esquema analítico kelseniano, possui uma fecunda coerência. Kelsen, ao tratar o fenômeno jurídico como um sistema de normas válidas, ou seja, leis que estariam em conformidade com aquelas que lhes seriam diretamente superiores, hierarquicamente organizadas, até se chegar ao preceito fundamental (Grundnorm), fundamento de validade de todo o sistema jurídico, o pensador vienense reduz o âmbito do estudo da Ciência Jurídica à norma (ou ao conjunto delas), excluindo da ciência jurídica os fenômenos sociais, políticos e psicológicos, os quais seriam objetos da Sociologia, Ciência Política e Psicologia, respectivamente. Era assim que conferia “pureza” à teoria do Direito[16]. De tal sorte, as definições de “norma”, “ordenamento jurídico”, “ordem jurídica” eram de incumbência da dogmática jurídica resolver, visto que estes eram seus objetos próprios. A sociologia jurídica, portanto, para Kelsen, não poderia jamais ser considerada como uma ciência autônoma por lhe faltar conceitos próprios, sendo que para isso teria de recorrer à Ciência do Direito (dogmática jurídica) e dali extrair a definição de “norma”, “ordenamento” e “ordem jurídica” para fundamentar suas teorias. Notória era a dependência da sociologia jurídica em relação à ciência do direito no que pesa a esta interface conceitual. Em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, o autor vienense, tece alguns apontamentos às posturas weberianas, apesar de sobrelevar a astúcia de Weber em definir o âmbito de atuação da sociologia jurídica:
O valor de uma descrição de Direito positivo em termos sociológicos é ainda mais diminuído pelo fato de que a sociologia só pode definir o fenômeno do Direito, do Direito positivo de uma comunidade particular, recorrendo ao conceito de Direito tal como definido pela jurisprudência normativa. O objeto da jurisprudência sociológica não são normas válidas – as quais constituem o objeto da jurisprudência normativa – mas a conduta humana. Que conduta humana? Apenas a conduta humana tal que, de um modo ou de outro, está relacionada ao ‘Direito’.
(…)
Até agora, a tentativa mais bem-sucedida de definir o objeto de uma sociologia do Direito foi feita por Max Weber. Ele escreve: ‘Quando nos ocupamos com ‘Direito’, ‘ordem jurídica’, ‘regra de Direito’, devemos observar estritamente a distinção entre um ponto de vista jurídico e um sociológico. A jurisprudência pede as normas jurídicas idealmente válidas. Ou seja… qual significado normativo deverá ser vinculado a uma sentença que aparenta representar uma norma jurídica. A sociologia investiga o que efetivamente está acontecendo na sociedade porque existe certa possibilidade de que os seus membros acreditem na validade de uma ordem e adaptem (orientieren) a sua conduta a essa ordem’. Daí, segundo essa definição, o objeto de uma sociologia do Direito é a conduta humana que o indivíduo adaptou (orientiert) a uma ordem porque considera essa ordem como ‘válida’; e isso significa que o indivíduo cuja conduta constitui o objeto da sociologia do Direito considera a ordem da mesma maneira que a jurisprudência considera o Direito. Para ser objeto de uma sociologia do Direito, a conduta humana deve ser determinada pela idéia de uma ordem válida[17].
Note-se a proximidade da idéia divisória entre Kelsen e Weber no que toca à dogmática jurídica e à sociologia do direito. Enquanto uma se preocupa com o exame das normas e suas relações lógico-sistemáticas, a outra se atém ao campo de perquirição do comportamento do indivíduo perante essas normas. Esse é o ponto que mais coincide entre os autores concernente às suas conceituações. Ao passo que a sociologia jurídica se ocupa das tarefas do “ser” (Sein), a dogmática jurídica está ligada ao teor prescritivo, do dever-ser (Sollen). Sem embargo, o principal enfoque diferenciador entre os estudiosos reside na questão da total autonomia da sociologia do direito. Enquanto Weber irá afirmar que a sociologia jurídica tem método e objeto próprios, quais sejam, o método empírico-causal e como objeto o comportamento humano perante a norma, Kelsen, apesar de concordar com o âmbito desta última categoria (esfera do “ser”), insiste em afirmar que, para esse comportamento ser estudado, há a necessidade da sociologia jurídica recorrer ao conceito de “norma” (entenda-se “norma”, “ordenamento jurídico”, “ordem jurídica”) elaborado pela ciência do direito, o que afetaria terminantemente sua autonomia como ciência, visto que teria de se valer de conceitos que estão fora da sua esfera de alcance.
É importante lembrar que, malgrado outras divergências de menor relevância, um outro ponto fundamental de disparidade entre Kelsen e Weber se funda no conceito de “validade”. Enquanto o primeiro entende a validade “como a existência específica de normas”[18], quando elas nascem e se perpetuam dentro do ordenamento jurídico, observado o critério de estar em conformidade com a que lhe é hierarquicamente superior, e dotadas, portanto, de obrigatoriedade (critério meramente formal); Weber já entende validade quando a orientação das ações sociais se dá em função da norma jurídica (ou de normas jurídicas)[19], quando os homens se comportam pautando suas condutas perante a norma. A contrario sensu, caso os indivíduos desconsiderassem essa regra legal e não pautassem suas ações orientadas por ela, indubitavelmente teria ela perdido sua validade. Cabe ressaltar, por fim, que esse comportamento segundo a norma não induz necessariamente a ser em conformidade com a norma (sinônimo de observância), conforme detalhado anteriormente.
Norberto Bobbio aponta com extrema agudeza esse ponto de intersecção entre Weber e Kelsen:
(…) Malgrado a diversidade do objeto de análise sociológica de Weber e jurídica de Kelsen, bem como malgrado a diferença de terminologia, Weber e Kelsen concordam sobre um ponto de vista extremamente importante, qual seja, a da distinção dos pontos de vistas do sociólogo e do jurista e das duas esferas do ser e do dever-ser, dos quais tratam as duas ciências (…) Kelsen considera que a distinção é necessária, e que o critério de distinção proposto por Weber é correto… (…) [20].
Embora convergisse teoricamente com Weber no que toca à necessidade de separação e do estabelecimento desses critérios de diferenciação entre sociologia do direito e dogmática jurídica, Hans Kelsen, em contrapartida, não poupou ríspidas críticas às propostas conceituais indicadas por Weber em sua sociologia jurídica. Segundo afirma, não se pode asseverar que é tão somente objeto deste ramo de estudo aquelas ações que se dão frente a uma norma jurídica, orientadas por ela. Se assim fosse, as condutas delituosas cometidas por uma pessoa, sem que ela se desse conta de que aquele comportamento era típico, enquadrado como fato criminoso, não estariam submetidos à avaliação da sociologia jurídica, tendo por fundamentação o fato de que ela não se comportou tendo como baliza a norma penal. Tal ponto da argumentação merece maior fundamentação:
A definição de Max Weber do objeto da jurisprudência sociológica: a conduta humana adaptada (orientiert) pelo indivíduo atuante a uma ordem que ele considera válida, não é inteiramente satisfatória. De acordo com sua definição, um delito que foi cometido sem que o delinqüente tivesse qualquer consciência da ordem jurídica não seria considerado um fenômeno relevante. Neste aspecto, a sua definição do objeto da sociologia é obviamente muito restrita. Uma sociologia do Direito que investiga as causas da criminalidade também levará em consideração delitos que foram cometidos sem que o delinqüente adaptasse (orientieren) a sua conduta à ordem jurídica. Todo ato que, de um ponto de vista jurídico, é um ‘delito’ é também um fenômeno que pertence ao domínio da sociologia do Direito, na medida em que existe uma possibilidade de que os órgãos da sociedade reagirão contra ele, executando a sanção estabelecida pela ordem jurídica. Ele é um objeto da sociologia do Direito mesmo se o delinqüente cometeu o delito sem pensar no Direito. A conduta humana pertence ao domínio da sociologia do Direito não por ser ‘orientada’ à ordem jurídica, mas por ser determinada por uma norma jurídica como condição ou conseqüência. Apenas por ser determinada pela ordem jurídica que pressupomos como válida é que a conduta humana constitui um fenômeno jurídico. A conduta humana assim qualificada é objeto da jurisprudência normativa; mas é também objeto da sociologia do Direito na medida em que efetivamente ocorreu ou provavelmente ocorrerá. Esta parece ser a única maneira satisfatória de traçar um limite entre a sociologia do Direito e a sociologia geral. Esta definição, assim como a formulação de Max Weber, demonstram claramente que a jurisprudência sociológica pressupõe o conceito jurídico de Direito, o conceito de Direito definido pela jurisprudência normativa[21].
No entendimento de Kelsen, como vemos no texto, a única ciência capaz de definir o que viria a ser “direito” seria a Ciência do Direito, tendo a sociologia jurídica dependência direita desta para a sua formulação. Em que pese a argumentação do autor vienense, inúmeras conclusões podemos traçar com base a nos afastarmos mais dessa posição e nos aproximarmos do esquema analítico weberiano.
IV. Conclusões
Ao que parece, o mérito maior de Weber foi o de distinguir o âmbito de atuação de cada um desses ramos do conhecimento, a saber, a dogmática jurídica e a sociologia do direito. Também se prestou, na mesma medida, a elucidar quais as metodologias – a lógico-normativa e a empírico-causal – que ambas as ciências se valiam para entender seus objetos específicos. Assim, vislumbra-se que Weber indubitavelmente não negou o caráter científico a nenhuma das duas ciências. Em realidade, cada uma analisa o Direito sob prismas diferentes e de forma alguma excludentes. Pelo contrário. Enquanto que a dogmática jurídica estabelece a melhor forma possível de se elaborar e organizar normas, dentro de um sistema coerente e isento de contradições e, acima de tudo, exigível, a sociologia do direito atua do outro lado verificando se aquelas normas efetivamente estão sendo seguidas e em que grau pelos seus destinatários. E nisto servirá de auxílio àquela para elaboração de normas cada vez mais eficientes e que cumpram o fim almejado pelo legislador.
A idéia básica da sociologia jurídica, seu objeto por excelência, reside na análise das ações dos homens, verificando se, com efeito, a conduta deles se subsume à norma ou não, se se afasta dela ou se aproxima. Entretanto, há que se ressaltar que não se parte de uma relação da norma para com os indivíduos, mas ao contrário. Weber inclusive levanta a hipótese, embora exagerada, entretanto em nada fictícia, de que uma sociedade poderá reorganizar-se segundo preceitos socialistas sem que, no entanto, com isso se altere um artigo de lei. Ocorre muitas vezes que a população se orienta segundo um hábito, ato este embora originalmente criado por prescrições legais, mas que de forma alguma a massa possui conhecimento da vigência ou mesmo da existência dessa norma que gerou esse hábito. Não se pode aí afirmar que é hipótese de observância à lei, a não ser no sentido postulado por Kelsen (subsunção formal). Torna-se evidente que a pessoa não se orientou segundo a norma, mas a um costume ou uso vigente. E para a sociologia jurídica essa diferença é gritante.
Segundo Kantorowicz, “a Dogmática sem a Sociologia está vazia. A Sociologia sem Dogmática está cega”[22]. São duas formas distintas de se encarar o fenômeno do Direito que, inadvertidamente, complementam-se entre si. E quanto a este aspecto Weber foi um pioneiro e ao mesmo tempo um democrata de academia (que nos perdoem o uso impróprio do mote). Em seu íntimo, cria ser possível existirem tantas ciências quantos pontos de vista específicos para o exame de um problema e, em função disso, não há que pensar que já esgotamos todas as possibilidades. Pela sua posição alheada à diversidade científica, refutava impetuosamente as teses de teóricos, especialistas ou filósofos que intentassem reduzir a realidade ou um fenômeno a uma perspectiva apenas. Tal era o teor das críticas que sempre atacava Auguste Comte e sua tese da hieraquização das ciências sob a égide do positivismo, para não falarmos de tantos outros autores.
Em razão das ciências serem autônomas, pelos seus próprios fundamentos intrínsecos, nenhuma jamais poderia servir de base ou modelo à outra. É impensável conceber a prevalência da sociologia jurídica em relação à ciência do direito como pensavam Kantorowicz e Erlich e, de maneira contrária, a primazia da segunda para com a primeira, como entendia Hans Kelsen. A pedra de toque elucidada por Weber foi justamente possuir a coerência e o discernimento analítico em separar cada uma dessas ciências e relegá-las aos seus respectivos campos de validade, preservando suas autonomias e suas lógicas internas, as quais interpretam o Direito sob pontos de vista diferentes, porém ambas dotadas de harmonia e coerência interpretativa.
É apenas assim que podemos situar em Weber as nossas diretivas mais veementes.
Informações Sobre o Autor
Daniel Barile da Silveira
Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de Brasília (UNB). Tal artigo é parte integrante do trabalho de iniciação científica desenvolvido frente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) intitulado “O Direito como Ordenamento Normativo Coativo: uma análise sobre a racionalidade na sociologia jurídica de Max Weber”. O artigo foi publicado em resumo no XII Simpósio Internacional de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo (XII-SIICUSP), e na íntegra pela Revista Urutaguá (UEM – Universidade Estadual de Maringá – v. 5, 2004) e pela Revista Universitária das Faculdades Integradas Toledo – Araçatuba (v. 6, 2003).