Don’t ask, don’t tell! Nada mais do que uma condenação à invisibilidade. Era a política que vigorava nos Estados Unidos e que acabou excluindo do exército 14 mil militares que assumiam sua identidade homossexual.
Revogada esta regra lá, parece que estão tentando impô-la aqui. Ao menos é o que transparece de duas recentes decisões do STJ que, de modo para lá de surpreendente, acabam de reconhecer uniões homoafetivas como meras sociedades de fato.[1] Visando cumprir “sua função uniformizadora”, a Terceira Turma cotejou decisões dos anos de 1998 e 2006, sem atentar a tudo o que já foi julgado depois destas datas, inclusive pela mesma Corte que, no ano de 2010, deferiu pensão por morte ao parceiro sobrevivente[2] bem como concedeu a adoção a um casal do mesmo sexo.[3] Assim indigitados julgamentos podem destruir tudo o que a jurisprudência vem construindo ao longo de uma década, já tendo sido superado o número de 800 decisões.[4]
O mais chocante é que o Relator, Desembargador convocado Vasco Della Justina, é magistrado do Tribunal de Justiça gaúcho e integrava as Câmaras Especializadas que se notabilizaram como as pioneiras no país em reconhecer como união estável a relação homoafetiva.
No ano de 1999 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fez migrar para as Varas de Família as ações envolvendo as uniões homossexuais.[5] Agora tal é a orientação dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Espirito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Santa Catarina.
Também foi da justiça gaúcha a iniciativa de, no ano de 2000, admitir as uniões como entidade familiar. Em face da omissão legal, por analogia, foram reconhecidas como união estável. Este passou a ser o entendimento das justiças de Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Norte, Ceará, Rondônia, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Maranhão, Santa Catarina, Alagoas e Pernambuco. Assim, além da homoparentalidade são concedidos direitos sucessórios, assumindo o parceiro sobrevivente a inventariança e desfrutando do direito real de habitação.
Outra não é a posição de todas as Regiões da Justiça Federal que de forma reiterada asseguram ao parceiro pensão por morte, direito previdenciário, inscrição em plano de saúde, visto de permanência e concedem indenização por dano moral.
Deste modo, não há como deixar de qualificar as decisões como discriminatórias, além de contraditórias com a própria orientação do STJ, não guardando coerência sequer com as manifestações de ministros do STF que vêm se manifestando de modo diametralmente oposto à ora sufragada. Ao depois, o próprio STF[6] e o CNJ[7] autorizam que os servidores incluam seus companheiros nos planos de saúde e benefícios sociais.
Cabe lembrar que o próprio Superior Tribunal Eleitoral reconheceu a inelegibilidade da parceira homossexual, o que só pode ser sustentado se admitida a presença um vínculo de natureza familiar.[8]
Mas esta não é a postura somente do Poder Judiciário. O Poder Executivo tem referendado em sede administrativa o que a justiça vem deferindo há longa data. Assim, a possibilidade de inscrição do parceiro como dependente do imposto de renda,[9] inserção como dependente para efeitos previdenciários,[10] concessão de visto de permanência[11] e inclusão do parceiro em plano privado de assistência à saúde[12] e garantido o recebimento do seguro DPVAT.[13]
No entanto, talvez o que mais evidencie o retrocesso das indigitadas decisões é encobrirem indisfarçável preconceito. Ver uma sociedade de afeto como mera sociedade de fato revela nítida postura discriminatória, pois encobre o comprometimento afetivo que une os parceiros. Ou seja, os condena à invisibilidade. Basta atentar à definição legal de sociedade de fato para se aperceber do lamentável equívoco (Código Civil art. 981): Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Ora, não há como dizer que duas pessoas que se envolvem afetivamente e passam a viver juntas, partilhando vidas e embaralhando patrimônio, têm por finalidade exclusiva o exercício de atividade econômica para dividir resultados. E, se a relação é meramente obrigacional não haveria como admitir que sócios adotem crianças, sejam admitidos como dependentes de planos de saúde ou façam jus a pensão previdenciária por morte.
Pelo jeito a justiça resolveu encobrir novamente os olhos com o véu do preconceito.
Informações Sobre o Autor
Maria Berenice Dias
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM