Novas regras de combate à lavagem de dinheiro no Brasil

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou recentemente a Instrução CVM nº 463, de 08 de janeiro de 2008, que altera as normas que coíbem crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, anteriormente instituídas pela Instrução CVM nº 301, datada de 16 de abril de 1999, e também estabelece novas disposições acerca dos procedimentos a serem cumpridos para o acompanhamento de operações realizadas por pessoas politicamente expostas.

A legislação penal vigente[1] tipifica como crime de “lavagem” ou lavagem de dinheiro (money laundering) ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedades de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de crime: (i) de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; (ii) de terrorismo e seu financiamento; (iii) de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; (iv) de extorsão mediante seqüestro; (v) contra a Administração Pública, inclusive a exigência para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; (vi) contra o sistema financeiro nacional; (vii) praticado por organização criminosa; (viii) praticado por particular contra a administração pública estrangeira.

Consideram-se operações relacionadas com terrorismo ou seu financiamento aquelas executadas por pessoas que praticam ou planejam praticar atos terroristas, que neles participam ou facilitam sua prática. Igualmente se incluem nessa definição as operações executadas por entidades pertencentes ou controladas, direta ou indiretamente, pelas referidas pessoas, e por pessoas ou entidades que atuem sob seu comando[2].

As novas normas da CVM visam alinhar a regulamentação às recomendações internacionais do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI)[3] sobre combate à “lavagem”, ao financiamento do terrorismo e à supervisão de operações financeiras realizadas por pessoas publicamente expostas, e tem por finalidade prevenir o uso do sistema financeiro para a prática dos ilícitos citados.

Para efeitos dessa nova regulamentação, considera-se “pessoa politicamente exposta” aquela que desempenha ou tenha desempenhado, nos últimos cinco anos, cargos, empregos ou funções públicas relevantes, no Brasil[4] ou em outros países e territórios estrangeiros e em suas dependências, bem como seus representantes, familiares e outras pessoas de seu relacionamento próximo. Enquadra-se nessa categoria qualquer cargo, emprego ou função pública relevante, exercido por chefes de estado e de governo, políticos de alto nível, altos servidores dos poderes públicos, magistrados ou militares de alto nível, dirigentes de empresas públicas ou dirigentes de partidos políticos. A definição de “familiares” abrange os parentes da pessoa política exposta, na linha direta, até o primeiro, incluindo ainda o cônjuge, companheiro e enteado.

O referido prazo de cinco anos deve ser contado, retroativamente, a partir da data de início da relação de negócio ou da data em que o cliente passou a se enquadrar como pessoa politicamente exposta.

As principais alterações introduzidas pela CVM estão relacionadas a novas obrigações que deverão ser cumpridas pelas pessoas jurídicas que, em caráter permanente ou eventual, tenham como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos e valores mobiliários. Essas regras aplicam-se igualmente às entidades administradoras de mercados de bolsa e de balcão organizado e demais pessoas referidas na legislação penal[5], que se encontrem sob a disciplina e fiscalização exercida pela CVM, bem como aos administradores das pessoas jurídicas. Atingem, portanto, especialmente as atividades de bancos, corretoras e administradoras de fundos e demais entidades equiparadas, bem como da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e das demais instituições congêneres[6].

As instituições deverão ter fichas cadastrais de todos os seus clientes devidamente atualizadas, promovendo essa atualização em períodos não superiores a 24 meses, e manterão registro de toda transação envolvendo títulos ou valores mobiliários, independentemente de seu valor, de forma a permitir a verificação da movimentação financeira de cada cliente, com base em critério definido nos procedimentos de controle da instituição, em face da situação patrimonial e financeira constante de seu cadastro, considerando: (a) os valores pagos a título de liquidação de operações; (b) os valores ou ativos depositados a título de garantia, em operações nos mercados de liquidação futura; e (b) as transferências de valores mobiliários para a conta de custódia do cliente.

Todas as transações ou propostas de transações com títulos ou valores mobiliários deverão ser comunicadas pela instituição à CVM no prazo de 24 horas a contar da sua ocorrência, a menos que não seja objetivamente permitido fazê-lo. Existem sérios indícios de crime de “lavagem”, ou de ilícito com ele relacionado, no caso de qualquer transação ou proposta de transação que apresente características excepcionais quanto às partes envolvidas, à sua forma de realização ou aos instrumentos utilizados para documentá-la, ou em que não haja fundamento econômico ou jurídico para justificar a realização dessa transação ou proposta de transação. Quando se tratar de cliente considerado pessoa politicamente exposta, esse fato deverá ser expressamente mencionado no comunicado enviado pela instituição à CVM.

Os cadastros e registros e a respectiva documentação deverão ser conservados pela instituição à disposição da CVM durante um período mínimo de cinco anos, a partir do encerramento da conta ou da conclusão da última transação realizada em nome do respectivo cliente. O aludido prazo poderá ser estendido indefinidamente na hipótese de investigação comunicada formalmente pela CVM à pessoa ou instituição.

A regulamentação anterior já continha uma relação bastante extensa das operações, envolvendo títulos ou valores mobiliários, que merecem especial atenção por parte das instituições acima mencionadas, que agora foi revista e ampliada e passou a abranger[7]:

(I) operações cujos valores sejam objetivamente incompatíveis com a ocupação profissional, os rendimentos e/ou a situação patrimonial ou financeira de qualquer das partes envolvidas, tomando-se por base as respectivas informações cadastrais;

(II) operações realizadas entre as mesmas partes ou em benefício das mesmas partes, nas quais haja seguidos ganhos ou perdas para algum dos envolvidos;

(III) operações que evidenciem oscilação significativa em relação ao volume e/ou freqüência de negócios de qualquer das partes envolvidas;

(IV) operações cujos desdobramentos contemplem características que possam constituir artifício para burlar a identificação das pessoas efetivamente envolvidas e/ou respectivos beneficiários;

(V) operações que evidenciem mudança repentina e objetivamente injustificada no que diz respeito às modalidades operacionais usualmente utilizadas pelos envolvidos;

(VI) operações cujas características e/ou desdobramentos evidenciem atuação, de forma contumaz, em nome de terceiros;

(VII) operações realizadas com a finalidade de gerar perda ou ganho para as quais falte, objetivamente, fundamento econômico;

(VIII) operações com a participação de pessoas naturais residentes ou entidades constituídas em países e territórios que vierem a ser considerados como não cooperantes no âmbito da prevenção e repressão à lavagem de dinheiro, nos termos das cartas-circulares editadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF)[8];

(IX) operações liquidadas em espécie, se e quando for permitido;

(X) transferências privadas de recursos e de valores mobiliários, sem motivação aparente;

(XI) operações cujo grau de complexidade e risco sejam incompatíveis com a qualificação técnica do cliente ou de seu representante;

(XII) depósitos ou transferências realizadas por terceiros, para a liquidação de operações de cliente, ou para prestação de garantia em operações no mercados de liquidação futura; e

(XIII) pagamentos a terceiros, sob qualquer forma, por conta de liquidação de operações ou resgate de valores depositados em garantia, registrados em nome do cliente.

As operações acima descritas devem ser analisadas em conjunto com outras operações conexas e que possam fazer parte de um mesmo grupo de operações ou que possam guardar qualquer tipo de relação entre si. Especial atenção deverá ser dispensada ainda às operações em que participem as seguintes categorias de clientes: (a) investidor não residente, especialmente quando constituído sob a forma de trust e sociedade com títulos ao portador; (b) investidor de private banking, que é a área da instituição financeira responsável pelo atendimento dos clientes com grandes fortunas; e (c) pessoa politicamente exposta.

As instituições deverão desenvolver e implementar manual de procedimentos de controle, para viabilizar a fiel observância das disposições da regulamentação da CVM, e manter programa de treinamento contínuo para funcionários, destinado a divulgar os procedimentos de controle e de prevenção à lavagem de dinheiro. Cada instituição deverá ter um diretor responsável pelo cumprimento dessas obrigações, ao qual será franqueado o acesso aos dados cadastrais de clientes e quaisquer informações a respeito das operações realizadas. Além disso, a instituição deverá:

– adotar medidas de controle, de acordo com procedimento prévia e expressamente estabelecidos, que procurem confirmar as informações cadastrais de seus clientes, de forma a evitar o uso da conta por terceiros e identificar os beneficiários finais das operações;

– identificar as pessoas consideradas politicamente expostas;

– supervisionar de maneira mais rigorosa a relação de negócio mantida com pessoa politicamente exposta; e

– dedicar especial atenção a propostas de início de relacionamento e a operações executadas com pessoas politicamente expostas oriundas de países com os quais o Brasil possua elevado número de transações financeiras e comerciais, fronteiras comuns ou proximidade étnica, lingüística ou política. No caso de relação de negócio com cliente estrangeiro que também seja cliente de instituição financeira fiscalizada por autoridade governamental assemelhada à CVM, admite-se que as providências previstas nessa regulamentação sejam adotadas pela instituição estrangeira. Ficará, todavia, assegurado à CVM o acesso aos dados e aos procedimentos adotados.

Foi concedido um prazo de 90 dias a contar do dia 9 de janeiro de 2008 para que as instituições adaptem seus procedimentos internos às modificações introduzidas pela Instrução CVM 463/2008.

Notas:
[1] Essa definição está prevista no artigo 1º da Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998 (“Lei de Lavagem de Dinheiro”), que dispõe sobre crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para a prática desses ilícitos; cria o Conselho de Atividades Financeiras (COAF), e dá outras providências. Essa lei foi posteriormente alterada pela Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002.
[2] Conforme a definição adotada pela nova redação do § 3º do artigo 7º da Instrução CVM 301/1999, dada pelo artigo 1º da Instrução CVM 463/2008.
[3] A denominação em inglês desse organismo internacional é Financial Action Task Force on Money Laundering (FAFT). O FAFT foi criado em 1989 pelo G-7, no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com a finalidade de examinar medidas, desenvolver políticas e promover ações para combater a “lavagem”.
[4] No Brasil, são consideradas pessoas politicamente expostas: (i) os detentores de mandatos eletivos dos Poderes Executivo e Legislativo da União; (ii) os ocupantes de cargo, no Poder Executivo da União:  (a) de Ministro de Estado ou equiparado; (b) de natureza especial ou equivalente; (c) de Presidente, Vice-Presidente e Diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; ou (d) do Grupo de Direção e Assessoramento Superiores (DAS), nível 6, e equivalentes; (iii) os membros do Conselho Nacional de Justiça, do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores; (iv) os membros do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República, o Vice-Procurador-Geral da República, o Procurador-Geral do Trabalho, o Procurador-Geral da  Justiça Militar; os Subprocuradores-Gerais da República e os Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal; (v) os membros do Tribunal de Contas da União e o Procurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União; (vi) os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Presidentes de Tribunal de Justiça, de Assembléia Legislativa e de Câmara Distrital e os Presidentes de Tribunal e de Conselho de Contas de Estados, de Municípios e do Distrito Federal; e (vii) os Prefeitos e Presidentes de Câmara Municipal de capitais de Estados.
[5] Segundo o caput do artigo 9º da Lei nº 9.613/1998, que é a legislação penal aplicável neste caso, sujeitam-se às obrigações de identificação dos clientes e manutenção de registros e de comunicação de operações financeiras suspeitas as pessoas jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: (a) a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira; (b) a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial; (c) a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários. E o parágrafo único desse mesmo artigo esclarece que se sujeitam às mesmas obrigações: (i) as bolsas de valores e bolsas de mercadorias ou futuros; (ii) as seguradoras, as corretoras de seguros e as entidades de previdência complementar ou de capitalização; (iii) as administradoras de cartões de credenciamento ou cartões de crédito, bem como as administradoras de consórcios para aquisição de bens ou serviços; (iv) as administradoras ou empresas que se utilizem de cartão ou qualquer outro meio eletrônico, magnético ou equivalente, que permita a transferência de fundos; (v) as empresas de arrendamento mercantil (leasing) e as de fomento comercial (factoring); (vi) as sociedades que efetuem distribuição de dinheiro ou quaisquer bens móveis, imóveis, mercadorias, serviços, ou, ainda, concedam descontos na sua aquisição, mediante sorteio ou método assemelhado; (vii) as filiais ou representações de entes estrangeiros que exerçam no Brasil qualquer das atividades listadas no aludido artigo 9º, ainda que de forma eventual; (viii) as demais entidades cujo funcionamento dependa de autorização de órgão regulador dos mercados financeiro, de câmbio, de capitais e de seguros; (ix) as pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, que operem  no Brasil como agentes, dirigentes, procuradores, comissionarias ou por qualquer forma representem interesses de ente estrangeiro que exerça qualquer das atividades referidas no artigo 9º; (x) as pessoas jurídicas que exerçam atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis; (xi) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem jóias, pedras e metais preciosos, objetos de arte e antiguidades; (xii) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor ou que exerçam atividades que envolvam grande volume de recursos em espécie.
[6] Em decorrência das novas regras, as Bolsas também deverão realizar um acompanhamento cuidadoso de pessoas politicamente expostas, ampliando o rol de hipóteses de comunicação de operações suspeitas à CVM e estabelecendo procedimentos cadastrais diferenciados para os clientes de alto risco, assim consideradas as pessoas que possam ser alvo de investigações ou com condenações por crimes de “lavagem”.
[7] Nessa relação, os novos itens incluídos são os incisos (ii), (vii), (viii), (ix), (x), (xi), (xii) e (xiii).
[8] Atualmente não existem países ou territórios classificados como não cooperantes na luta contra a lavagem de dinheiro, de conformidade com deliberação tomada na primeira Reunião Plenária do mandato XVIII do GAFI/FATF, ocorrida em outubro de 2006. O COAF segue as recomendações desse organismo internacional.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Walter Douglas Stuber

 

sócio fundador de Walter Stuber Consultoria Jurídica, atuando como advogado especializado em direito empresarial, societário, financeiro e mercado de capitais e autor de inúmeros artigos publicados nessa área em revistas jurídicas nacionais e internacionais.

 

Adriana Maria Gödel Stuber

 

Walter Stuber Consultoria Jurídica

 


 

logo Âmbito Jurídico