Resumo: O trabalho tem por objetivo analisar a questão do aborto de bebês portadores de anencefalia fetal, sob a ótica jurídica, pois o aborto é uma prática milenar, porém sua aceitação ou reprovação social difere de nação para nação e ao longo do tempo. Na realização deste estudo utiliza-se o método dedutivo, partindo-se de uma construção geral que visa obter resultados específicos. Sendo adotada a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial como técnica de estudo, buscando relacioná-la com o posicionamento doutrinário acerca da matéria. Este estudo atingirá seu ápice com uma abordagem sobre a questão dos fetos anencefálicos no Brasil e a situação jurídica em que se encontram as mulheres que clamam pelo direito de interromper esta gestação. Diante disso, a polêmica recai sobre direito fundamental (a vida em formação), que se contrapõe ao princípio da dignidade da pessoa humana (amplamente defendido em toda a comunidade internacional). Sendo observado que a legislação brasileira permite o aborto em duas hipóteses, porém em ambas o feto está bem formado e tem plenas condições de vida extra-uterina, sendo assim nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico.
Palavras-chave: Aborto; Malformação Congênita; Anencefalia.
Sumário: Introdução, 1 noções históricas sobre o aborto ao longo da história, 2 ANENCEFALIA (1.1 Noções gerais sobre o feto portador de anencefalia fetal; 1.2 O aborto de fetos anencefálicos e o direito atual), Conclusão e Referências BIBLIOGRÁFICAS.
Introdução
Cita-se Da Vinci, em sua infinita sapiência afirmava que “pouco conhecimento, faz com que as criaturas sintam-se orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem desdenhosamente sua cabeça para o céu, enquanto que as cheias as baixam para a terra, sua mãe”. Sendo assim, apresenta-se esta humilde compilação sobre o aborto de bebês portadores de anencefalia fetal, á luz do ordenamento jurídico atual, a fim de contribuir com alguns esclarecimentos sobre tão turbulento assunto; o que será de grande valia para os operadores do Direito, vez que a polêmica que circunda o tema recai sobre direito fundamental (a vida), que se contrapõe ao princípio da dignidade humana (amplamente defendido em toda a comunidade internacional).
1 noções históricas sobre o aborto ao longo da história
O aborto, conceitualmente, é a interrupção da gravidez (com ou sem a expulsão de feto) que culmina com a morte do nascituro. Sua origem provém do latim “aboriri”, que significa “separar do lugar adequado”. O ato de abortar é milenar, existente desde os primórdios da humanidade, embora apresente como marca inicial registros feitos na China durante o século XXVIII antes de Cristo.
Sendo assim, constata-se que a prática de manobras abortivas sempre foi utilizada nos quatro diferentes pontos do globo terrestre. Entretanto, os povos primitivos, em sua maioria, não previam o aborto como um ato criminoso. Limitavam-se a tecer considerações de cunho religioso e moral. Posteriormente, quando o faziam, atribuíam a ele severas sanções.
No desenrolar da história, o aborto foi muito utilizado como método de controle do crescimento demográfico. Contudo, nasceram alguns detratores do aborto, os quais pretendiam defender não somente o ser em formação, mas também a gestante e a própria sociedade, em virtude do direito que assiste a esta de ter novos cidadãos.
Já as Sagradas Escrituras (a Bíblia) e o Código de Hamurabi, preocupavam-se menos com o aborto propriamente dito e mais com o ressarcimento ou compensação do dano causado, embora a Igreja Católica desde o princípio tenha se posicionado contrária ao aborto.
Cumpre salientar que no Egito antigo não havia punição para a mulher que realizasse a interrupção de seu estado gravídico.
Estudiosos como Aristóteles, Platão[1] e Sócrates[2] também deixaram alguns registros a cerca do tema.
Tratar sobre o aborto é sempre muito complicado, pois este problema é global e vem se arrastando ao longo dos tempos. Entretanto, cada nação busca solucioná-lo da forma mais adequada ao meio em que vive. As leis são distintas, porém todas apresentam pontos comuns, partindo sempre da ótica histórica, moral, religiosa e cultural de cada país.
Nos dias atuais são poucos os países que proíbem terminantemente o aborto. Mesmo sendo a questão complexa, muito polêmica e difícil de comportar um denominador comum, o número de legislações mais brandas vem crescendo rapidamente, principalmente nas duas últimas décadas. Ocorre que as barreiras legalmente impostas, inúmeras vezes culminam com um número assustador de abortos clandestinos e até mesmo de mortalidade materna. Este fato fez com que nos últimos anos, praticamente todas as leis referentes ao aborto passassem a permiti-lo, se não totalmente ou menos em algumas situações específicas.
No entanto, juridicamente a questão da licitude ou não do aborto de bebês anencéfalos ainda é uma incógnita, pois embora existam jurisprudências e pensamentos doutrinários, não há um posicionamento pacífico sobre a questão, tampouco uma norma especifica para esta situação fática.
Assim, o presente trabalho ter por escopo análise a situação atual da anencefalia, assim como realização de um estudo jurídico da questão, enfocando as correntes existentes no Brasil.
Ressalta-se que o direito penal pátrio desde os primórdios, apresentava normas de conduta referentes ao aborto.
No período Imperial, evidencia Costa (1999, p. 19) que:
“[…] o Código Criminal do Império regulamentava a matéria em seu Título II – “Dos crimes contra a segurança individual” – Capítulo I – “Dos crimes contra a segurança da pessoa e vida” – Secção III – “aborto” – nos artigos 199 a 200. A sanção penal consignada nessas disposições pressupunha a prática de aborto por terceiro, com ou sem o consentimento da mulher (in artigo 199), assim como o fornecimento, com o conhecimento de causa, de drogas ou quaisquer outros meios para fins abortivos ainda que a intenção não se realizasse (artigo 200). […]”.
No entanto, perante a legislação deste período era lícito o auto-aborto, ficando assim a mulher isenta de punição legal. O ordenamento jurídico visava, exclusivamente, punir ao terceiro responsável pela intervenção. Desse modo, facultava-se à gestante manter ou não a gravidez – sem que se atentasse contra a unidade do novo embrião humano. No entanto, na hipótese de aborto realizado através da intervenção de terceiros, tendo como desfecho a morte da gestante, o Código Penal de 1830 era bem claro. Remetia o fato às disposições gerais sobre o homicídio, atribuindo ao autor do delito penas distintas, conforme a consciência ou não, da gestante, frente à prática das manobras abortivas (COSTA, 1999).
No decorrer dos anos alterações significativas ocorreram nos anos de 1890, 1940 e 1969.
Atualmente o ordenamento jurídico brasileiro prevê duas modalidades de manobras abortivas: as lícitas e as ilícitas. As quais estão positivadas nos artigos 124 a 128 do código penal.
Note-se que o artigo 124 do referido diploma legal trata do auto-aborto, o qual se configura quando a própria gestante, por sua conta e risco, efetua a execução material do ato delituoso por meios químicos ou físicos, independentemente de instigação ou auxílio de outrem.
A legislação penal brasileira também prevê punição para o aborto praticado por terceiro. Onde o artigo 125 dispõe sobre o aborto provocado sem o consentimento da gestante (o qual para configurar-se necessita indispensavelmente de duas situações: a interrupção do estado gravídico por qualquer pessoa que não a própria gestante; e que a mesma não tenha conhecimento do estado em que se encontra. Torna-se, assim, desnecessária sua negativa expressa, bastando simplesmente que meios abortivos sejam nela empregados à sua revelia) e o aborto provocado com o consentimento da gestante que está tipificado no artigo 126 do Código (giza-se que para a conduta do agente adequar-se ao tipo, o consentimento da gestante só precisa ser válido, não precisando necessariamente ser expresso). O ordenamento jurídico submete o aborto provocado por terceiro à qualificação, conforme aduz o artigo 127. Se em decorrência das manobras abortivas efetuadas restar à mulher lesão corporal de natureza grave, a sanção será aumentada em até um terço. Se o desfecho da situação for à morte da parturiente, a pena será duplicada.
Por fim, o artigo 128 do Código Penal traz as duas formas legais de aborto no Brasil as quais são: o aborto necessário ou terapêutico e o aborto sentimental ou em decorrência de estupro. Ressalta-se que além da situação fática adequar-se a pelo menos uma das hipóteses colacionadas acima, é necessário que o ato seja praticado por um médico, ficando a paciente a seus cuidados e em condições sanitárias adequadas.
Além do mais, o direito à vida encontra-se sedimentado no artigo 5º da Carta Magna do país e partindo-se desta premissa por óbice o aborto é um ato criminoso. Entretanto, doutrinadores defendem a descriminalização do aborto e também fundamentam suas idéias na Constituição Federal, conforme aponta Barchifontaine (1999), a brecha do texto constitucional para esta argumentação favorável ao aborto voluntário está na possibilidade livre de planejamento familiar entre o casal[3]. Tais doutrinadores enfatizam ainda que a prática do abortamento deva ser realizado pela rede pública de saúde nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal, invocando o artigo 196, da Norma Fundamental, segundo o qual a saúde é um direito de todos e um dever do Estado.
Uma vez verificadas as hipóteses legais e ilegais de aborto positivadas a legislação penal brasileira. E, que o ato de abortar, embora já pertença ao direito positivo, ainda gera discussões. Torna-se mais interessante a abordagem realizada a seguir, o qual versa sob o direito da mulher em interromper ou não sua gravidez, quando diagnosticado que em seu ventre carrega um feto portador de uma malformação congênita irreversível, denominada de anomalia.
3 – ANENCEFALIA
3.1 – Noções gerais sobre a anencefalia
A origem da anencefalia vem do grego, onde “An” significa sem e “Enkephalos” significa encéfalo (Vargas, 2004). Portanto, a anencefalia é uma malformação congênita resultante de defeito de fechamento do tubo neural[4]. Esta estrutura fetal é a precursora do Sistema Nervoso Central[5] e é a partir da formação do tubo neural que o Sistema Nervoso Central se formará.
Este defeito ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção, já que é neste período em que o tecido formado pelas células fetais, que se apresentava em uma forma plana, começa a transformar-se em um tecido que se invagina, formando pregas que começam a fechar-se por completo, formando, assim, uma estrutura tubular. Dessa arte, percebe-se que, no caso de anencefalia, o tubo neural não se fecha totalmente. O processo de fechamento do tubo neural se dá de forma incompleta e o indivíduo passa a ser portador de um defeito congênito, a anencefalia (Santos, 2007).
Salienta-se que o problema com o fechamento do tubo neural não ocasiona somente a anencefalia. Esta só ocorrerá se o defeito atingir a extremidade distal do tubo neural. Se, ao contrário, o defeito ocorrer na extensão do tubo neural, dar-se-á origem a outro tipo de má-formação, à espinha bífida, na qual o feto tem a espinha exposta ao líquido amniótico ou separada deste por uma camada de pele (FAYEL, et al, 2005).
Denota Berutti (2007, p. 01) que para um melhor entendimento sobre o processo de formação do tubo neural, é interessante que:
“[…] se proceda à transcrição da explicação do fenômeno realizada por um médico: Hacia fines de la 3ª semana del desarrollo, el embrión tiene la forma de un disco aplanado. En la zona media de su cara dorsal se origina la placa neural, conjunto celular que en el periodo al que aludimos, da comiezo a un proceso de plegamiento, de invaginación, que continua con una progresiva elevación de sus bordes hasta juntarse, transformándose en un canal que en sucesivas etapas va cerrándose hasta constituir un tubo totalmente cerrado de orientación longitudinal con respecto a los diámetros del embrión. Una semana después, el tubo neural presenta una región caudal más estrecha que da origen a la médula espinal y tres vesículas cerebrales, más dilatadas, de posición anterior, que dan lugar a la formación del encéfalo o cerebro. Desde la 4ª semana en adelante, si alguno de estos grupos celulares es dañado por un agente patológico, pueden producirse dos efectos opuestos: o matan al embrión o, de sobrevivir, el daño tenderá a ser definitivo, entre ellos, impedir el cierre total del tubo neural sitio y factor anátomo-topográfico desencadenante del proceso de anencefalia.”
Assim, percebe-se que, no caso do anencéfalo, o tubo neural não se fecha completamente. O processo de fechamento do tubo neural se dá de forma incompleta e o indivíduo passa a ser portador do defeito da anencefalia.
Entretanto ressalta-se que a ocorrência da anencefalia não pode ser ligada a uma causa específica: é um defeito multifatorial. Especialistas a relacionam, principalmente, às deficiências de vitaminas do complexo B, especialmente o ácido fólico. Tanto que prescrevem a ingestão, através de alimentos e suplementos vitamínicos, desta substância nos três meses anteriores ao início da gestação e nos três meses posteriores à concepção. Igualmente, no Brasil, foi determinado o enriquecimento da farinha com o ácido fólico, a fim de prevenir o aparecimento de defeitos do tubo neural (Santos, 2007).
Dentre alguns fatores desencadeantes dos defeitos do tubo neural – especificamente da anencefalia -, é possível citar o álcool (que também pode gerar problemas psicológicos no feto), o tabagismo, o uso de antiepiléticos e outras drogas de todos os gêneros (lícitas e ilícitas), alterações cromossômicas (genéticas), histórico familiar, ou ainda exposição a altas temperaturas. No entanto, este rol não é taxativo[6] e não é possível precisar qual a contribuição exata de cada uma destas causas para que o tubo neural não seja corretamente cerrado.
Este defeito faz com que o cérebro do feto não se forme. Assim, verifica-se que o anencéfalo não possui nenhum tecido cerebral ou, se possuí-lo, este tecido é amorfo[7] e encontra-se solto no líquido amniótico. Não há, portanto, a formação dos hemisférios cerebrais e nem do córtex cerebral.
Cita Santos (2007, p. 20) que:
“Quanto ao tronco cerebral, este pode ou não apresentar defeitos, sendo mais comum que os apresente. No entanto, esta não é uma característica essencial. Disso se depreende que o feto anencefálico, em caso de o defeito não ter atingido o tronco cerebral, pode ser capaz de respirar sem a ajuda de aparelhos. Assim, o que se observa é que, em realidade, a anencefalia não se refere à lesão de todo o encéfalo, mas somente de uma de suas partes – mesmo que a maior e mais importante delas – o cérebro. Disso resulta que as funções superiores do Sistema Nervoso Central, como “consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade”, restam inexistentes em um feto portador de anencefalia, restando apenas funções inferiores, que controlam a respiração e as funções vaso motoras.”
A mencionada autora relata que quanto à extensão da lesão no cérebro, os médicos costumam classificar a anencefalia em holocrania ou holocefalia[8] e merocrania ou meroanencefalia[9]. Seu diagnóstico pode ser feito já a partir do terceiro mês de gestação (entre a décima segunda e a décima quinta semana), através da realização de ultra-sonografias. Isso porque o feto portador de anencefalia apresenta uma característica única e inconfundível: não possui os ossos do crânio, ou seja, a partir da parte superior da sobrancelha não há osso algum, razão pela qual sua cabeça não possui o formato arredondado. Sendo que, em alguns casos, há apenas o couro cabeludo que cobre a porção não fechada pelos ossos.
Para Santos (2007, p. 21), o feto anencefálico pode ser identificado visualmente, pois
“[…] além da abertura que existe em sua cabeça, o anencéfalo possui os olhos saltados em suas órbitas, justamente porque estas não ficaram bem formadas em razão da inexistência dos ossos do crânio. Outrossim, seu pescoço é mais curto do que o pescoço de um feto normal. Além do exame visual é possível a realização de exame biológico, através da análise dos níveis de alfa-fetoproteína no soro materno e no líquido amniótico. Estes níveis, da décima primeira até a décima sexta semana de gravidez, encontram-se sempre aumentados em gestações de anencefálicos”.
Desta forma, o diagnóstico da anencefalia é inequívoco e não existem possibilidades de erro.
Quanto aos números, é difícil precisar a incidência exata de casos de anencefalia. Acredita-se que a proporção de anencéfalos seja de seis décimos para cada mil nascidos vivos (clinicamente) e de oito a cada dez mil gestações, conforme aponta pesquisa efetuada por Gomes (2007, p. 01). Todavia, Martinez (2006), apresenta a proporção de um 1,4 para cada mil gestações avaliadas sem seleção. Com base nestes números fica claramente demonstrado que muitos dos fetos portadores desta malformação congênita (clinicamente) morrem antes mesmo do nascimento.
A dificuldade em precisar o número de gestações de anencéfalos se deve, primeiramente, ao fato de que muitos fetos morrem (clinicamente) ainda no útero materno e estas mães nem sempre levam este fato ao conhecimento de médicos ou de um hospital. Em segundo lugar, as genitoras de fetos anencefálicos que expõe o problema à sociedade são, geralmente, aquelas que necessitam de tratamento pela rede pública de saúde, já que as demais, uma vez que possuem melhores condições econômicas são assistidas por médicos particulares e, em sua maioria, efetuam com estes profissionais a interrupção de seu estado gravídico (SANTOS, 2007).
Assim, os números podem chegar a serem maiores do que os que as estatísticas de fato apontam. Mas, mesmo assim, já é possível perceber que o problema não é tão incomum quanto se imagina.
A gestação de um feto portador deste defeito congênito não é nada tranqüila para a futura mãe. Isso porque os efeitos psicológicos que uma gestação deste tipo provoca são intensos e devastadores para os sentimentos maternos e de sua família em geral. Imagine-se a situação psicológica dos pais, em especial da mãe, que fazem planos para seu filho, adquirem móveis, enxoval, discutem e planejam o nome do bebê, imaginam as características físicas e psicológicas que terá após o nascimento e que, de repente, sem aviso prévio, descobrem que o feto não possui qualquer tipo de chance de sobrevida (extra-uterina), mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer ainda no ventre materno. É inegável que os efeitos psicológicos sobre esta família, principalmente para esta mulher, são terríveis e inimagináveis. Isto sem mencionar que o prosseguimento desta gestação atenta contra todas as garantias de dignidade humana da mulher.
Além dessas conseqüências, a gestação de um anencéfalo pode trazer grandes riscos à saúde da gestante[10], tais como: o prolongamento da gestação além do período normal (isto ocorreria porque a gestante não teria a dilatação necessária para o parto), do aumento da pressão arterial[11] e do aumento do líquido amniótico (já que o feto anencefálico não se alimenta deste líquido, em razão de suas dificuldade em sugar e deglutir). Sendo que este último problema ocasiona dificuldades respiratórias e cardíacas à grávida, podendo levá-la ao óbito (FAYEL, et al, 2005).
“[…] 15-33% dos anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves, incluindo defeitos cardíacos como hipoplasia de ventrículo esquerdo, coarctação da aorta, persistência do canal arterial, atresia pulmonar e ventrículo único”.
Ainda, com relação às características da anencefalia, é importante ressaltar que está malformação congênita não deve ser confundida com deficiência. A anencefalia é uma malformação fetal que inviabiliza, na totalidade dos casos, a vida extra-uterina do indivíduo em formação, sendo que quase a metade dos fetos portadores deste problema congênito falecem ainda no ventre materno. Ribeiro (2003) apresenta o percentual de 65% (sessenta e cinco por cento) como representativo de óbitos intra-uterinos de portadores de anencefalia. Em relação à deficiência, leciona Anis (2004, p. 94) que “[…] pode ser definida como lesões, limitações das atividades ou restrições de participação”. Pode, também, decorrer da idade da pessoa, de acidentes ou ser congênita. O autor supramencionado atenta que “[…] deficiência não é incompatível com a vida, tanto que o Brasil, segundo o Censo realizado em 2000, teria mais de quatorze pontos percentuais de sua população portadora de algum tipo de deficiência”.
3.2 – O aborto por anencefalia e o direito atual brasileiro
Atualmente, com o desenvolvimento da Genética Humana e da Medicina Fetal, há maneiras super eficazes de diagnosticar a anencefalia, sendo inexistentes as chances de um diagnóstico incorrer em erro. Assim, torna-se desumano submeter a gestante a este tormento psicológico, a não ser que esta assim deseje.
Todavia, o Código Penal Brasileiro, como se vê, ainda é bastante conservador em matéria de aborto. “Isso se deve muito provavelmente à influência que ainda exerce sobre o legislador certos setores religiosos. O processo de secularização do Direito ainda não terminou. Confundem-se, ainda, religião com Direito”, assim aponta Gomes (2004, p. 36). Vieira (2004) acrescenta que a questão principal que envolve o aborto de bebês anencefálico gira em torno do direito da mulher de decidir sobre o destino do feto e de dispor sobre seu próprio corpo.
No entanto, a norma penal pátria permite aborto somente em duas situações, já elencadas anteriormente. Mas o aborto por anencefalia não está expressamente previsto na legislação penal do país, tampouco outras situações de malformação do feto[12]. Também não se permite o chamado aborto a prazo,[13] nem o aborto social ou econômico. Segundo Coutinho (2007) na esfera mundial, praticamente todos os países desenvolvidos já pacificaram a questão e autorizam o aborto anencefálico, porém os países em desenvolvimento, assim como o Brasil, ainda discutem o assunto e tecem considerações a respeito.
Vieira (2004, p. 32) afirma que “a Justiça não pode se distanciar dos avanços científicos, devendo sempre acompanhar as mudanças éticas e culturais da sociedade […]”. Reforçando este entendimento Dias (2004) compila que a ausência de norma não pode servir de justificativa para que os magistrados eximam-se de julgar as situações reais. Acrescenta que a solução é manejar os instrumentos alcançados pela própria lei para colmatar as lacunas existentes.
Todavia, a questão do aborto por anencefalia é tão complexa e abarca inúmeros fatores dividindo pensamentos e posicionamentos nos diversos setores da sociedade, principalmente no universo jurídico.
Nesse âmbito (jurídico) formam-se três corrente distintas. Há quem defenda que o aborto esses casos recaiam sobre a inexigibilidade de conduta, outros defendam a hipótese de excludente de ilicitude, e por fim há os que rogam que o fato é materialmente atípico, uma vez que, o feto portador de anencefalia fetal, diferentemente de um bebê normal, só sobrevive enquanto estiver no ventre materno. Para Cernicchiaro (2004), a discussão tende a se tornar cada vez mais complexa e polêmica na medida em que a ciência desvendar as leis da natureza humana.
O primeiro grupo de pensadores, conforme relata Coutinho (2007, p. 07) afirmam que “[…] a doutrina da inexigibilidade surge no direito estrangeiro, inicialmente no Tribunal do Império Alemão – Reichsgerich, e […] modernamente se observa seus reflexos seguros na legislação de países como o Paraguai […].”
No entanto, para melhor compreensão desse posicionamento faz-se necessário definir o que é a culpabilidade. Fragoso apud Coutinho (2007, p. 08), afirma que “[…] é a responsabilidade de conduta ilícita (típica e antijurídica) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia nas circunstâncias em que o fato ocorreu conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao Direito”.
Conde (1988, p. 132) registra que é necessário analisar o que ele chama de “[…] elementos específicos da culpabilidade: a imputabilidade, conhecimento da antijuridicidade do fato praticado e exigibilidade de um comportamento distinto”.
Ajunta o autor supradito que:
“Normalmente, o direito exige comportamento mais ou menos incômodos ou difíceis, mas não impossíveis. O direito não pode, contudo, exigir comportamentos heróicos: toda norma jurídica tem um âmbito de exigência, fora do qual não se pode exigir responsabilidade alguma. Essa exigibilidade, ainda que seja dirigida por padrões objetivos, é, em última instância, um problema individual: é o autor […], no caso concreto, que tem que se comportar de um modo ou de outro. Quando a exigência da norma coloca o indivíduo fora dos limites da exigibilidade, faltará esse elemento e, com ele, a culpabilidade.”
A idéia de inexigibilidade de conduta diversa é um princípio regular e informador do ordenamento jurídico. Para Coutinho (2007) a própria culpabilidade exige comprovação, pois embora tenha o agente conhecimento e consciência de que praticou um fato típico, antijurídico e culpável na situação em que se encontrava, não seria aconselhável do ponto de vista legal, impor-lhe uma sanção penal, e segundo ele é exatamente nessa situação que se encontra a mãe que carrega no ventre um feto anencéfalo.
Para verificar-se a inexigibilidade de outra conduta toma-se por medida o homo medius, isto é, o juízo de culpabilidade implica na reprovação pessoal do autor do fato, partindo-se do pressuposto de que este tem capacidade mediana de discernimento (COSTA, 1980). Conforme leciona Campos (1998, p. 21):
“A pessoa pode ver-se compelida a praticar determinada conduta, embora ciente de que seja ela contrária a lei, não obstante, sujeita a punição, porque qualquer ser humano normal, mas mesmas condições teria igual comportamento, não sendo este, assim, censurável”.
Parte da Doutrina entende que todas as causas de exclusão da culpabilidade se assentam num princípio maior, qual seja a Inexigibilidade de Outra Conduta. Sendo assim, consoante Coutinho (2007, p. 10) que:
“A doutrina das justificativas supra-legais funda-se na afirmação de que o direito do Estado, por ser estático, não esgota a totalidade das possibilidades de previsão legal, sendo impossível esgotar todas as causas de justificação da conduta humana no plano da vida social. Partindo-se desta premissa pode-se afirmar antijuricidade nada mais é do que a lesão de determinado interesse vital aferido perante as normas de cultura reconhecidas pela sociedade, sendo assim, afirma-se que não se deve apreciar o antijurídico apenas diante do direito legislado, mas também das normas de cultura. Além do que o legislador não é o oniciente, não lhe sendo dado o dom de prever todas as hipóteses e casos que a vida social possa apresentar nos domínios do Direito Penal”.
Os defensores dessa linha de pensamento justificam seu entendimento na parte da doutrina que admite a exclusão da culpabilidade. Afirmam que uma vez constatada a hipótese de que a vida seria inviável por grave anomalia acometida ao feto, não há dúvida, de que a previsão legal deveria ser favorável ao abortamento, por que não seria justo submeter a gestante ao intenso sofrimento de carregar consigo o feto sem a menor perspectiva de vida futura (COUTINHO, 2007).
Consoante os ensinamentos do autor supramencionado, além dos autores já citados, compartilham desse entendimento André Eduardo de Carvalho Zacarias, Aníbal Bruno e Damásio de Jesus.
Denota-se que no ano 1997, o Senador Íris Resende, constituiu uma Comissão para atualizar da Parte Especial do Código Penal e assim deu origem a segunda corrente de opiniões referentes ao aborto de portadores de anencefalia fetal.
A necessidade do referido trabalho fundamenta-se no fato de que embora a parte geral tenha passado por reformas em 1984, a parte especial vigente ainda é a mesma de 1940, ou seja, apresenta uma redação envelhecida, com conceitos muitas vezes ultrapassados. Após sua conclusão o anteprojeto foi entregue ao Senador Renan Calheiros.
Cernicchiaro (2004, p. 27) traz que:
“A Comissão, sensível à realidade dos fatos, dado o Direito ser complexo normativo, atenta ao contexto axiológico da sociedade, distinta do Brasil dos anos 40, conferiu particular atenção ao Título I – Dos Crimes Contra a Pessoa. No Capítulo I – Dos Crimes Contra a Vida – analisou as modalidades delituosas de aborto (mantido o nomen iuris, não obstante sugestões para substituí-lo por – abortamento). Relacionou, ademais, dada a delicadeza do tema, os casos reunidos sob o nomen iuris – Exclusão da ilicitude – anotado no art. 128, III: “há fundada probabilidade, atestada por dois médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias que o tornem inviável”.
Assim sendo a Comissão, ampliou a extensão do aborto legal. Mantém o aborto necessário e deu nova redação ao aborto ético, além do estupro (por “violação da liberdade sexual, ou emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”). Além disso, quando houver fundada probabilidade, atestada por dois médicos, de que o nascituro apresenta graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, seria lícito a gestante decidir se interrompe ou não sua gestação. Porém conforme registra a Exposição de Motivos, o aborto “deve ser procedido de consentimento da gestante, ou quando menor, incapaz ou impossibilidade de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro”, além da não-oposição justificada do cônjuge ou companheiro (CERNICCHIARO, 2004). Giza-se que o anteprojeto não impõe a interrupção da gravidez, apenas exclui a ilicitude, não obrigando a grávida há aguardar o final da gestação.
Consequentemente esta teoria possui diversos adeptos, à exemplo aponta-se a Deputada Luciana Genro e o Deputado Pinotti, os quais também apresentaram projetos de Lei referentes à positivação do aborto de fetos anencefálicos.
Cernicchiaro (2004, p. 24) destaca que:
“[…]. Não se trata de sacrifício de futuro ser humano, em circunstâncias injustificadas. Ao contrário, antecipa-se à natureza, cientificamente demonstrada, que a gravidez não levará a reprodução a bom termo. Com isso, evitar-se-á também o trauma da decepção de haver concebido um ser anômalo, com os dias contados de vida. […]”.
E fundamenta sua tese no princípio da dignidade humana, acrescentando que não parece nada razoável não conceder a gestante o direito de interromper seu estado gravídico nos casos de gravidez anencefálica; pois para ele o ser humano também se caracteriza pela constituição física e a gravidez só se justificaria para reproduzir o Homem, sendo que a ausência de cérebro dos anencéfalos afeta profundamente as características físicas do próprio Homem. Habib (2004, p. 08) também tece considerações a respeito, dizendo que:
“[…] negar à mulher o direto de praticar o abortamento de um indivíduo que não traz consigo características humanas, a capacidade de conhecer o mundo, entende-lo, de amá-lo ou odiá-lo, não parece ser a trilha mais justa. O Estado não pode ser intervencionista e esse ponto, sob pena de, em nome de um pretenso direito à vida, negar outro direito não menos importante, o da liberdade, […].”
No entanto, no ano de 1998 à matéria foi incansavelmente debatida na Câmara dos Deputados devido à apresentação de um projeto de lei. Mas os debates em torno do tema geraram reações adversas e, até mesmo, agressivas de diversos segmentos da sociedade, o que levou a casa legislativa a deixar o projeto temporariamente de lado. (flasches, 1998).
Gomes (2007, p. 01), pertence à classe que roga ser o aborto de bebês anencéfalicos um fato materialmente atípico. Afirma ainda pico. o materialmente atdores juristas, pertence a classe que afirmam eformas em 1984, a parte especial vigente ainda que em 2004,
“[…] tentando buscar uma solução para essa compilada questão […], a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, por intermédio do Advogado Luiz Roberto Barroso, com fundamento na CF (artigo 102, § 1º)[14], bem como na Lei 9.882/99, ingressou no STF com “ação de descumprimento de preceito fundamental”. (ADPF 54/DF), visando obter da Corte Suprema interpretação conforme a Constituição de vários dispositivos do Código Penal, justamente os que cuidam do delito de aborto (CP, arts. 124, 125, 126 e 128).”
Enfatiza o referido jurista que não se pede a Suprema Corte para legislar[15] e sim, para decidir (conforme as normas e princípios constitucionais), se o aborto anencefálico é ou não um fato típico. Segundo ele é uma questão de tipicidade penal, não de ativismo Judicial. Embora a problemática da anencefalia merecesse uma legislação própria pertinente ao assunto, uma vez que a discussão versa sobre vidas humanas – a do feto (propriamente dita) e a da mãe (seu destino, sua liberdade, sua dignidade, etc.).
Diante da atual situação, a questão posta na citada Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, é saber se o aborto anencefálico acha-se ou não inserido no âmbito da proibição legal, ou seja, se esse tipo aborto está ou não enquadrado na norma proibitiva derivada dos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal Brasileiro.
Em julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio deferiu a liminar que passou a apoiar com eficácia, erga omnes[16], os casos de aborto de bebês anencefálos. Entretanto em outubro do mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal cassou a liminar, por sete votos a quatro, sob o argumento de que esta era satisfativa. Pois, uma vez feito o aborto, caso a matéria da ação não fosse julgada procedente, a situação seria irreversível.
Esclarece Gomes (2007, p. 01) que:
“O tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da tipicidade material fazem parte três juízos valorativos distintos: juízo de desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado jurídico e juízo de imputação objetiva do resultado. O resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico), para ser desvalioso (desaprovado), precisa reunir quatro características: (a) concreto; (b) transcendental; (c) grave (não insignificante) e (d) intolerável. A quarta exigência que advém do resultado jurídico desvalioso é a intolerabilidade da ofensa. A ofensa, portanto, além de real, transcendental e grave, deve ser também intolerável […]. Seja por força da exigência de que relevante somente pode ser a ofensa intolerável (princípio da fragmentariedade do Direito penal), seja em razão da teoria da adequação social, o fato é atípico quando não perturba […] o convívio social justamente porque a ofensa é tolerada pela (quase) unanimidade da comunidade ou não é desarrazoada.”
Diante do exposto, o próprio autor conclui “[…] que não há resultado jurídico desvalioso quando o resultado não é desarrazoado[17]. Esse é o fundamento jurídico para não se reconhecer crime na conduta de quem pratica o aborto anencefálico”. Todavia, no momento em que o Supremo Tribunal Federal cassou a liminar duas questões ficaram pendentes. A primeira é se a via da ação de descumprimento de preceito fundamental é adequada para se discutir o tema proposto? E, a segunda, no tocante ao mérito, pois os Ministros não adotaram uma posição sobre o aborto anencefálico. Sendo assim, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde apontou na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental[18], como violados os preceitos da dignidade da pessoa humana[19]; do princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade[20]; e o direito à saúde[21]. E, como ato do Poder Público, causador da lesão, elencou o conjunto normativo ostentado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, do Código Penal Brasileiro.
Gomes (2007, p. 03) aduz que “[…] como se percebe, de um lado está o interesse público na proteção do bem jurídico; a vida (do feto); de outro está o interesse individual e geral de liberdade, que […] se sintetiza na dignidade da pessoa humana. […]”. A polêmica então recai sobre: O que deve ter primazia ante o ordenamento jurídico?
Na situação focalizada, conforme cita o doutrinador apontado acima, requereu-se, na inicial, em última análise, a interpretação conforme a Magna Carta brasileira, a fim de explicitar que os dos referidos dispositivos do Código Penal não se aplicam aos casos de aborto de fetos portadores de anencefalia. Pretendendo-se que a Suprema Corte emitisse uma declaração no sentido de que o aborto anencefálico não se enquadra no âmbito da proibição penal. Que este é um fato (materialmente) atípico.
Conforme os apontamentos de Gomes (2007), em 27 de abril de 2005, o Supremo concluiu, por sete votos a quatro[22], pela admissibilidade (e adequação) da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental. Restando ainda a necessidade de se examinar o mérito da questão.
Múltiplas foram às razões invocadas para o juízo de admissibilidade favorável da referida ação, como:
“[…] (a) que a questão do aborto anencefálico é muito relevante; (b) que no atual estágio há muita insegurança nessa área; (c) que são muito relevantes os direitos e interesses envolvidos (vida do feto, liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que há muitas decisões discrepantes sobre a matéria; (e) que não há outro meio jurídico mais idôneo para se discutir o tema; (f) que é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de constitucionalidade por se tratar de direito pré-constitucional, etc.” (Gomes, 2007, p. 03).
Ajunta o autor que “[…] vários Ministros do STF já deram evidências, em julgamentos ou entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por interromper a gravidez, se for detectada a anencefalia”. Corroborando com o posicionamento dos ditos ministros, afirma a Diniz (2003, p. 41) que “[…] as mulheres devem ser livres para decidir sobre sua reprodução […]” e conforme seus apontamentos esta situação é amplamente aceita nos círculos bioéticos internacionais. Assim, por ocasião da concessão da liminar, o Ministro Marco Aurélio, relator da ação, autorizou a antecipação do parto nesses casos em todo o país, delineando que a hipótese não se tratava de aborto, porquanto, in casu, não havia chance de sobrevivência do feto fora do ventre materno.
Também existe muita controvérsia sobre o exato enquadramento dogmático do aborto anencefálico, pois o foco da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, como já dito, é meramente obter da Suprema Corte uma declaração de que o aborto anencefálico não se enquadra nos tipos legais desse delito, positivados nos artigos 124 a 126, do Diploma Penal do país. Ou seja, sua pretensão não tem por escopo a elaboração, tampouco à alteração do artigo 128, conforme sustentaram os ministros que votaram contra a admissibilidade da referida ação (Gomes, 2007).
Destaca o jurista supradito que isso seria viável se observado o âmbito da tipicidade material, o qual exige três juízos valorativos distintos; o primeiro compreende o juízo de desaprovação da conduta (cabe ao juiz verificar se o agente, com sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante); já o segundo versa sobre o juízo de desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado que consiste na ofensa ao bem jurídico) e o último é o juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ser a realização do risco criado ou incrementado). Sendo assim, conclui-se que quando se tem presente a verdadeira e atual extensão do tipo penal, que abrange a dimensão formal-objetiva[23], a dimensão material-normativa[24] e a dimensão subjetiva nos crimes dolosos. O aborto dos portadores de anencefalia elimina a dimensão material-normativa do tipo, ou seja, a tipicidade material, não sendo a morte, nesse caso, arbitrária. E, ajunta que a base dessa valoração decorre de uma minuciosa análise (em cada caso concreto), entre o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante) e o interesse geral de liberdade
(que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal). Mas, no aborto anencefálico parece não haver dúvida que o resultado jurídico (lesão contra o bem juridicamente tutelado, a vida do feto) não é desaprovado ante o ordenamento jurídico. Pois, todas as normas e princípios constitucionais invocados na ação de descumprimento de preceito fundamental conduzem a uma única conclusão, a de que não se trata de uma morte – ou sua antecipação.
Para Gomes (2007, p. 05),
“Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em resultado jurídico desvalioso (ou intolerável). Ao contrário, trata-se de resultado juridicamente tolerável, na medida em que temos, de um lado, uma vida inviável (todos os fetos anencefálicos morrem, em regra poucos minutos após o nascimento), de outro, um conteúdo nada desprezível de sofrimento (da mãe, do pai, da família etc.).”
Podendo-se afirmar tudo em relação ao aborto anencefálico, menos que seja um caso de morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito em respeito a outros interesses sumamente relevantes (como a saúde da mãe, sobretudo a psicológica), pois conforme Gomes (2007, p. 06),
“o fato é atípico justamente porque o resultado jurídico não é desarrazoado. Basta compreender que a expressão “provocar o aborto” do artigo 124 significa “provocar arbitrariamente o aborto” para se concluir pela atipicidade (material) da conduta. Esse, em suma, é o fundamento da atipicidade do aborto anencefálico.”
E, consoante seus ensinamentos, é preciso que se constate, com absoluta certeza, a inviabilidade da vida do feto, pois é essa inviabilidade (cientificamente certa) aliada aos demais interesses relevantes que estão em jogo (sofrimento da gestante, a angústia, os problemas de saúde, os problemas mentais e psicológicos, a dignidade humana, etc.) que tornam a antecipação do parto, ou a interrupção da gravidez, uma medida razoável. Fora das hipóteses de inviabilidade certa da vida, jamais se pode consentir com a prática o aborto, por que assim estaríamos sendo complacente com um verdadeiro atentado contra um direito fundamental (a vida humana).
É importante notar que o aborto anencefálico não se equipara ao aborto profilático[25]. Este consiste em ato criminoso, pois embora o feto apresente limitações, sua vida (extra uterina) é perfeitamente viável, enquanto aquele exclui a tipicidade material e a morte (antecipada) do feto, só se justifica, porque sua vida (extra uterina) é inviável, ou seja, já esta anulada. Nisso reside uma grande diferença entre tais situações. Enfatiza Gomes (2007) que a inviabilidade da vida quanto ao anencefálico é absoluta e cientificamente certa. Essa é a razão de não se vislumbrar arbitrariedade na antecipação do parto.
Alguns médicos, bem como alguns operadores do direito, segundo Gomes, (2007, p. 07) argumentam “[…] que o melhor seria deixar a criança nascer, aproveitar dela alguns órgãos vitais importantes (para transplantes) e só depois esperar a sua morte”. Mas essa é uma questão extremamente delicada, porque a extração de órgãos só é permitida após a morte cerebral e o feto anencefálico conta com malformação do cérebro, mas não se pode afirmar quando ocorre sua morte cerebral.
O jurista supramencionado narra que aqueles que ainda sustentam o respeito à vida do feto devem atentar para o seguinte:
“[…] em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o feto malformado. Se até em caso de estupro, em que o feto está bem formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico. Lógico que a gestante, por suas convicções religiosas, pode não querer o aborto. Mas isso constitui uma decisão eminentemente pessoal (que deve ser respeitada). De qualquer maneira, não pode impedir o exercício do direito ao abortamento para aquelas que não querem padecer tanto sofrimento […].” (sem grifos no original).
No caso do aborto por anencefalia autorizado pelo Ministro Marco Aurélio não havia razão razoável que justificasse a não-autorização. Consoante Giorgi (207, p. 01), “[…] o Ministro […] apreciou a questão dos fetos anencefálicos sob a ótica da “dignidade humana”, “legalidade”, “liberdade” e “autonomia de vontade” da gestante, dizendo que “… a situação concreta foge à glosa própria do aborto”.
Para Gomes (2004, p. 37)
“[…] Andou bem o Ministro Marco Aurélio em autorizar o aborto anencefálico. Fará muito bem o STF em definir com clareza essa questão, que é angustiante […]. Aliás, não só o STF deve firmar posição inequívoca sobre o tema, também cabe ao legislador deixar isso evidente no Código Penal. […].”
Afirma o autor suprafocalizado que o Brasil ainda não pacificou o assunto, tampouco criou uma norma que não deixasse dúvida sequer pairando no ar, devido à lentidão do processo de secularização do Direito. Segundo ele dogma é dogma e Direito é Direito. E, o processo de separação entre Direito e religião deve ser concluído o mais rápido possível e os resquícios da confusão entre eles devem ser eliminados.
Compartilhando deste entendimento, o advogado Luis Roberto Barroso, autor da ação impetrada junto a Suprema Corte que pugnou pela autorização do aborto anencefálico, afirmando em uma entrevista que “as leis não podem ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja” (Gomes, 2007. p. 00). Em outra oportunidade disse que:
“[…]. Obrigar uma mulher a conservar em seu ventre, por longos meses, o filho que não poderá ter, impõem a ela sofrimento inútil e cruel. Adiar o parto, não será uma celebração de vida, mas um ritual de morte, viola a integridade física e psicológica da gestante, em situação análoga à da tortura. […]” (COUTINHO, 2007, p. 06).
Corroborando com o posicionamento de Barroso, Habib (2004, p. 08) afirma que: “[…]. Se o nascimento desse feto for motivo de sofrimento para a gestante, assim por ela considerado, o Estado não tem o direito de impor-lhe esse sofrimento, porque senão estará sendo algoz, inquisidor, insensível e moralista”.
Observa-se, que a anencefalia não é uma situação rara no nosso país. Leciona Gomes (2004, p. 37), que são registrados apenas “[…] no Hospital das Clínicas em São Paulo, todo mês, […] 2 ou 3 casos […]” de anencéfalos. Isso vem causando muita dor e aflição para as pessoas envolvidas, sejam elas: familiares, enfermeiros ou médicos – os quais muitas vezes ficam indecisos e perdidos, sem saber o que fazer. Para o jurista anteriormente mencionado “[…] é chegado o momento de nos posicionarmos em favor do não-sofrimento inútil do ser humano. O pior que se pode sugerir (ou impor) no mundo atual é que alguém padeça sofrimentos inúteis”.
Conforme Gomes (2004), no ano de 2004, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana[26], órgão consultivo da Presidência da República, manifestou-se favoravelmente ao aborto de fetos portadores de anencefalia. Afirmando que o Supremo Tribunal Federal decidiria em breve a matéria, porém até então nenhuma medida foi realmente adotada.
Conclusão
Com base em tudo que foi exposto, pode-se inferir que o aborto é uma prática que caminha junto com a humanidade no desenrolar de sua história, e que quanto mais avançar a ciência, mais polêmica e complexa ficará a problemática que a envolve.
Denota-se, ainda, que o Código Penal Brasileiro preceitua valores e conceitos, muitas vezes já ultrapassados, pois seu texto ainda é praticamente o mesmo desde 1940.
Também se atenta para o fato de que a sociedade modifica-se constantemente e assim é impossível o Direito positivo prever todas as situações e problemas sociais hoje existentes. A questão sobre a qual versa o aborto anencefálico é recente e o ordenamento jurídico do Brasil ainda não a prevê.
Todavia, muitas mulheres não desejam passar nove meses abrigando em seu ventre um ser que enterrarão pouco tempo após o nascimento. Estas, por suas vezes, vêem-se compelidas a suplicar ao Poder Judiciário por autorizações para interromper a gestação quando diagnosticado que o feto é portador de anomalia fetal. Mesmo não havendo uma norma a respeito, não há como o Direito ignorá-la, até porque, conforme os números apontados anteriormente observa-se que a situação não é tão rara quanto se pensava.
A tendência é que cada vez mais casos cheguem aos tribunais. Daí surge a necessidade e a urgência de uma norma clara e objetiva, pois os magistrados atualmente ficam a tatear na escuridão.
A questão, efetivamente, não é nada simples, pois de um lado há a inviolabilidade da vida do feto e do outro há a liberdade da mulher (de dispor sobre seu próprio corpo). Há que se considerar, ainda, os riscos gerados por este tipo de gestação, o tormento psicológico vivido pela mãe desde a descoberta do problema e, principalmente, o aspecto da sua dignidade humana. Não há dúvida de que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 assegura a inviolabilidade da vida, mas o direito não é uma ciência estática e não existe direito absoluto. Portanto, feliz foi o Pacto de São José da Costa Rica e a redação do art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos que diz: “ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. A interpretação desta lei, claramente, cai como uma luva ao caso do aborto de portadores de anencefalia fetal.
Sobretudo, sob a ótica global, a regulamentação e, por conseguinte, a autorização do aborto por anencefalia fetal é a prática atual dos países desenvolvidos. Diferentemente do Brasil, aqueles já pacificaram a questão do aborto anencefálico e concedem à mãe, em comum acordo com o genitor, se assim estes desejarem, o direito de, nos casos de anencefalia, interromper a gravidez.
Outro ponto relevante é que no Brasil existem três correntes distintas referentes ao aborto de fetos anencefálicos, mas estas diferem quanto à fundamentação jurídica da questão. Todavia, concordam que o Estado deve facultar a mulher o direito de decidir neste tipo de situação sob pena de se desrespeitar o princípio da dignidade humana da mulher, bem como de submetê-la a um sofrimento inútil, uma vez que, independentemente de sua conduta, o resultado final é um só, a morte do feto a qual ocorre, geralmente, ainda no ventre materno.
Deve-se ressaltar, outrossim, que, nas hipóteses em que a legislação pátria autoriza a prática do aborto, o feto possui viáveis expectativas de vida, o que se diferencia cabalmente do tema relativo à anencefalia onde, nesta última hipótese, não resta qualquer esperança de vida ao produto da fecundação. Dessa arte, vê-se uma diferenciação crucial das hipóteses recriminadas pela legislação nacional para com a hipótese aventada neste trabalho concernente à anencefalia, qual seja, a “expectativa de vida” do organismo humano em desenvolvimento, presente nas hipóteses elencadas na legislação penal repressiva; ausente, plenamente, na anencefalia.
Uma vez que o Código Penal brasileiro já prevê duas hipóteses de aborto permitido, quais sejam, a da gravidez proveniente de estupro e a da gravidez em que há risco à vida da gestante, sendo que nessas duas hipóteses, frise-se, o feto possui expectativa de vida, nada mais plausível que a mesma legislação nacional vir a prever, doravante, e com urgência, a interrupção de uma gestação de feto anencéfalo a qual, além de também gerar profundas conseqüências psíquicas negativas à mãe, à semelhança do que ocorre na gravidez proveniente de estupro, e além de causar, também, danos potenciais à sua saúde, à semelhança do que ocorre com a gravidez geradora de aborto terapêutico, contempla em seu desenvolvimento produto de fecundação desprovido de qualquer expectativa de vida.
Por fim, com o estudo que se realizou neste singelo trabalho, infere-se que a autorização legal, e mesmo a judicial enquanto aquela não advier, do aborto de feto anencéfalo, além de obedecer a uma tendência mundial do Direito moderno, também contempla aspectos lógicos e incontestáveis os quais, em seu conjunto, elidem qualquer justificativa plausível para a manutenção de uma gravidez que, além de inútil à proliferação e à manutenção da espécie humana, só vem a causar horror e sofrimento desnecessário àquela mãe que, por ser do seu instinto natural, almeja, tão-somente, dar à luz a um descendente o qual possa amá-lo e educá-lo durante o seu desenvolvimento pelas vicissitudes de nossa vida terrena.
Informações Sobre o Autor
Eliana Descovi Pacheco
Graduada em Direito pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ), Especializanda em Direito Constitucional pela Universidade Comum do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em parceria com a Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.