O acesso à justiça e o direito positivo no brasil em face da execução penal à luz do método APAC: uma análise político-jurídica

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Resumo: O Método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) mostra-se como estratégia de efetivação dos princípios constitucionais e infraconstitucionais relativos à execução penal que encontra limites de expansão enquanto sistema. A pesquisa social que considera a ação penal exercida sobre pessoas concretas evidencia incompatibilidade das políticas públicas de persecução e execução penal com a norma jurídica positivada. A  superação dos limites de expansão do Método é abordada sob uma perspectiva político-jurídica que considera os fatores reais de poder social e a luta de classes, de modo a contribuir para a proposta de um Direito que não se desligue dos princípios fundamentais da Justiça e do acesso à Justiça.[1][2]

Abstract: The APAC (Association for the protection and assistance of the convicted) Method is seen as a constitucional and infraconstitucional effectuation strategy whith regards to criminal enforcement which faces limits of expansion as a system. The social research wich considers criminal prosecution exerted on real people indicates there is incompatibility of criminal prosecution and enforcement public policies with tthe rule of law positively valued. The overcome of the criminal enforcement  method’s limits remains inside a political perspective which considers the real factors of social power and class struggle, in order to contribute to a new law proposal not disconected from the fundamental principles of Justice and acess to Justice.

Palavras-chave: Execução Penal. Método Apac. Justiça. Acesso À Justiça. Direito Penal.

Keywords: Criminal Enforcement. APAC Method. Justice. Access to Justice. Penal Law.

Sumário: Introdução. 1 O direito  positivo brasileiro e o acesso à justiça. 2 A execução penal à luz do método APAC: Uma análise arqueológica. 2.1 Os objetos do discurso. 2.2 Superfícies de emergência do discurso 2.3 Grades de especificação e instâncias de delimitação do discurso. 3 A execução penal a luz do método APAC e o direito positivo brasileiro. 3.1 Execução penal à luz do método APAC e acesso à justiça. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

  Este trabalho se propõe a analisar a execução penal e o financiamento penitenciàrio à luz do método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado), sua relação com o acesso à Justiça e com o Direito brasileiro, e, ao fazê-lo, deve, antes, definir e situar o objeto de sua análise em um campo conceitual objetivo e definir a abordagem e o procedimento de análise científica.

  O objeto da pesquisa consiste em interpretar as práticas, instituições, saberes, processos sociais e econômicos, acontecimentos, políticas, normas e técnicas, elementos que denominaremos enunciados. Enunciado é a instância que liga os fenômenos percebidos pelo sujeito à linguagem, é o dito ou o que se diz. As limitações da linguagem modificam o sentido do que se deseja transmitir ao sujeito. A representação dos enunciados pode ser verdadeira ou falsa à medida em que o discurso produz dissensos com a realidade.

A análise discursiva sucede, naturalmente, a enunciativa, considerando que um conjunto de enunciados agrupados mediante determinadas regras e relações constitui uma unidade discursiva.

  O objeto desta análise é uma formação discursiva: a execução penal à luz do método APAC e sua relação a outras duas estruturas de discurso que tem como objeto outras categorias do saber: o acesso à Justiça e o Direito positivo brasileiro. Para relacionar o método APAC com estas duas outras formações, é preciso definir cada uma destas, seus princípios gerais e regras, de acordo com os principais pensadores de sua estrutura e teoria.

  As duas formações discursivas mais amplas: o Direito brasileiro e o acesso à Justiça serão apresentadas segundo sua teoria geral e princípios. A execução à luz do método APAC será analisada, em seguida, enquanto discurso pelo método arqueológico, de modo a desconstruir e analisar sua estrutura discursiva. Após estes dois processos, o discurso analisado é confrontado com as premissas de maior amplitude.

  No tópico 1, serão apresentados os discursos do Direito Positivo Brasileiro e do acesso à Justiça, segundo sua teoria geral e princípios. A análise arqueológica do Método APAC enquanto discurso e a análise dedutiva proposta ocorrerão nos tópicos 2 e 3.

1 -O DIREITO  POSITIVO BRASILEIRO E O ACESSO À JUSTIÇA

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) é o ponto ideal de partida para a exposição da estrutura do Direito Brasileiro e, posteriormente, da lei de execução penal enquanto norma jurídica positiva do ordenamento brasileiro. A carta da República dispõe que A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito, segundo a norma disposta no artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil e tem como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

O Direito, visto como hierarquia discursiva institucionalizada, atua para que seu complexo de normas seja visto como um sistema coerente. Todavia, a ação de fatores reais de poder social opera de modo a construir um discurso jurídico que modifique as instituições do Estado. O Direito, na acepção de Ciência do Direito, é também um instrumento público sujeito à disputa ideológica, mesmo que sua existência institucional possa exigir um caráter de neutralidade.  Jill Blackmore observa que a noção de discurso chama atenção para a ideia de que o poder age por meio de hierarquias discursivas institucionalizadas pelas quais alguns disursos de políticas são tratados como “verdades” enquanto perspectivas mais radicais são marginalizadas. (LEWIN; SOMEKH, 2015, p. 256). 

  O Direito como ser é aquele ao qual referem-se os juízos de fato acerca da eficácia ou ineficácia das normas em relação às atividades de categoria inferior a elas (FERRAJOLI, 2006, p. 329), e também se sujeita ao equilíbrio de poder social. O Direito como dever-ser necessita de um fundamento de validade, visto que a estrutura do Direito tem um âmbito axiológico, isto é, que se refere a valores que empiricamente considerados tem conflito com a realidade, sendo a norma jurídica o instrumento de sua efetivação.

  O fundamento de validade do Direito brasileiro encontra-se na legitimidade do próprio Estado, legitimidade dada no âmbito do Direito Positivo e do Direito Natural, enquanto formações discursivas, mas também encontra seu fundamento de validade em fatos sociais, como na estrutura de organização do poder social, nos fatores reais de poder social considerando sua atuação ideológica e seu vetor, bem como nas perspectivas contratualistas do Estado.

  A lição de Alexandre Travessoni Gomes, na perspectiva da Teoria Geral do Direito e da lógica demonstra que a análise do Direito não pode desconsiderar sua perspectiva axiológica.

“Se o fundamento de validade de uma norma só pode ser uma norma superior, é certo que a investigação de tal fundamento não pode perder-se no infinito. É necessário, portanto, pressupor uma norma como a última e mais elevada. Como norma mais elevada, tem de ser pressuposta, pois, se fosse posta por uma autoridade, a competência dessa autoridade teria que se fundar em outra norma superior. Essa norma pressuposta, cuja validade não pode ser derivada de uma norma mais elevada e cujo fundamento de validade não pode ser posto em questão, é a norma fundamental.” (GOMES, 2004, p. 234)

Ao se deparar com a questão do fundamento de validade do Direito, o positivismo jurídico a enfrenta da seguinte forma: o fundamento de validade da norma é a norma fundamental ou superior, é a própria norma sistematicamente considerada de modo a não violar os valores morais e éticos nesta apregoada, isso significa que a validade da norma se encontra em si mesma. O positivismo não questiona, para além da norma fundamental, o valor fundamental que a ampara. Em sua Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen assevera que:

“[…] permanece fora de questão qual seja o conteúdo que tem esta Constituição e a ordem jurídica estadual erigida com base nela, se esta ordem é justa ou injusta; e também não importa a questão de saber se esta ordem jurídica efetivamente garante uma relativa situação de paz dentro da comunidade por ela constituída. Na pressuposição da norma fundamental não é afirmado qualquer valor transcendente ao Direito positivo”. (KELSEN, 1998, p. 141)

A legitimidade das normas jurídicas também repousa sob o manto do Direito Natural e sua relação com a Constituição do Estado. A legitimidade dada pela norma fundamental de Direito Natural pode se consubstanciar na transição para o Direito Positivo e de sua aplicação conforme a CRFB/1988.

Dalmo Dallari aponta o Estado Constitucional como criação moderna, apresentando exceções, e considera que suas raízes estão no desmoronamento político medieval:

“O Estado Constitucional, no sentido de Estado enquadrado num sistema normativo fundamental, é uma criação moderna, tendo surgido paralelamente ao Estado Democrático e, em parte, sob influência dos mesmos princípios. Os constitucionalistas, que estudam em profundidade o problema da origem das constituições, apontam manifestações esparsas, semelhantes, sob certos aspectos, às que se verificam no Estado Constitucional moderno, em alguns povos da Antiguidade. Assim é que Loewenstein sustenta que os hebreus foram os primeirosa praticar o constitucionalismo, enquanto que André Hauriou é absolutamente categórico ao afirmar que “ o berço do Direito Constitucional se encontra no Mediterrâneo oriental e, mais precisamente, na Grécia”, havendo ainda quem dê primazia ao Egito. Entretanto, o próprio Hauriou fala no “caráter ocidental do Direito Constitucional”, explicando, como todos os que admitem o constitucionalismo na Antiguidade, que, com a queda de Roma, houve um hiato constitucional, que só iria terminar com o Estado moderno. Em conclusão, pois, o constitucionalismo, assim como a moderna democracia, tem suas raízes no desmoronamento do sistema político medieval, passando por uma fase de evolução que iria culminar no século XVIII, quando surgem os documentos legislativos a que se deu o nome de Constituição.” (DALLARI, 2009, p. 198.)

O período moderno é de enfraquecimento da Escola Teológica do Direito, do surgimento da Teoria de um Direito Transcendental na obra de Kant e do                                                                                    desenvolvimento da Escola Racionalista ou Contratual. Estas últimas escolas reconhecem a existência e a validade da norma fundamental, mas a subordinam a princípios de outra ordem. O reconhecimento que adotam da Teoria da norma fundamental visa a consubstanciação, na norma materialmente constitucional, dos princípios e garantias fundamentais que transcendem a norma positivada. Luigi Ferrajoli, sobre este âmbito de relação entre o Direito Positivo e o Direito Natural, observa que:

“A novidade representada pela constitucionalização dos princípios de direito natural no direito positivo – que em relação ao direito natural, “que não é”, é obviamente o único direito “que é” – consiste apenas em que este transformou-se numa estrutura complexa, que compartilha tanto a dimensão do ser como a do dever ser. A primeira dimensão é aquela à qual referem-se os juízos de fato acerca da eficácia ou ineficácia das normas em relação às atividades de categoria inferior a elas; a segunda é aquela à qual referem-se os juízos jurídicos acerca da sua validade ou invalidade em relação às normas superiores a elas”. (FERRAJOLI, 2006. p. 329)

A validade do Direito também repousa sobre outro elemento para além da norma positiva materialmente constitucional e para além da validade transcendental dada pelo Direito Natural: o equilíbrio de poder ou o vetor dos fatores reais de poder, estes são apontados por Ferdinand Lassale como “em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país.” (LASSALE, 1933. p. 30).

  Os fatores reais de poder que produzem a norma fundamental representam o fenômeno sociológico e histórico do Direito, mas nesta perspectiva do Direito, a força normativa da Constituição não pode ser ignorada. Se referindo à contribuição sociológica de Lassale, Konrad Hesse assevera que “essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado.”

  Hesse constata a força normativa da Constituição e do Direito Positivo, mas não pode os considerar como única fonte de norma social (dever-ser social) quando considera seus limites e a necessidade, por parte dos responsáveis pela ordem constitucional, de ter presente, na sua consciência, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição:

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“a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo; pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).” (HESSE, 2015, p. 4)

  Considerada a contribuição doutrinária dos dois autores, é preciso ver que a força normativa da norma constitucional não exclui a atuação dos fatores reais de poder na realidade concreta e histórica, sendo ela um dos próprios fatores na medida de sua eficácia.

O Direito e o Estado devem ser compreendidos, pois, em toda a sua estrutura. Sua estabilidade depende da estabilidade das forças sociais e dos valores que o constituíram, e a eficácia de seu poder normativo depende do desenvolvimento das forças sociais e dos valores que as constituíram dentro da estrutura social e do Estado. Deve, outrossim, ser considerada a estrutura tridimensional do direito, de modo que a norma jurídica não pode se desvencilhar dos valores e dos fatos sociais.

  O Controle de Constitucionalidade é uma das formas de exercício da força normativa da Constituição e da concretização dos princípios positivados, tenham estes validade transcendental ou material. Bem o assevera Carlos Frederico Braga da Silva em sua Análise normativo-teleológica do Projeto Novos Rumos na Execução Penal, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, à luz dos Direitos Humanos Internacionais:

“É sabido que o Direito Constitucional Brasileiro recebeu muita influência da doutrina constitucionalista norte-americana. No leading-case Marbury v. Madison foi afirmado que não se pode presumir que qualquer disposição da Constituição possa restar sem efeito e uma interpretação judicial não poderia ser construída nesse sentido, a não ser que a Constituição literalmente assim determinasse. Por sua vez, o Pretório Excelso já decidiu que embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativos e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional” (SILVA, 2008, p. 6)

  O exercício da força normativa da Constituição através do controle de constitucionalidade leva, inexoravelmente, à questão dos limites deste controle dentro da complexa estrutura social e estatal, e à questão dos limites da atuação do próprio Estado. A questão é: a efetivação da norma fundamental está restrita à atuação do Estado?

Segundo a norma constitucional positivada no artigo 1º da CRFB/1988, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”;deixando claro que o exercício do poder do Estado pressupõe a ação social, e esta ocorre através da Política. É preciso perceber que a efetivação da norma fundamental não pode estar restrita à atuação do Estado quando este é democrático, pois o Estado Democrático é instrumento político e jurídico do povo,na medida em que o equilíbrio de poder social e a luta de classes são contingentes da participação social e dos fins a serem alcançados pelo Estado. Não pode o povo tornar-se instrumento do Estado quando este restringe sua participação.

A norma fundamental brasileira estabelece que O Poder emana do Povo e se estrutura em três Poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário, adotados pela CRFB/1988 e pelo Estado brasileiros, os quais são exercidos por representantes. Numa perspectiva não positivista, observa-se que a ocupação social desses cargos públicos está sujeita à ação dos fatores reais de poder social, incluindo aí a força normativa da Constituição e legislação infraconstitucional, na medida de sua eficácia.

A legislação pode encontrar, no decorrer do movimento político, dificuldade de se concretizar enquanto jurisdição e juris-satisfação. Isso demonstra que a concretização e eficácia dos princípios constitucionais depende de um cenário histórico e político que os favoreça. A Ciência do Direito não pode considerar o Direito como um ordenamento ideal e sistematizado e para o qualtécnica jurídica é suficiente para dirimir as antinomias e conflitos internos; neste âmbito se discutem valores e possibilidades político-jurídicas de coesão e transformação  social.  A interpretação de Abner Barboza Sobreiro sobre o fenômeno político-jurídico, faz referência ao espaço social de atuação dos operados do direito.

“Com a Constituição Federal de 1988, positivaram-se garantias individuais e direitos sociais, sob a bandeira da redemocratização do Brasil. Viabiliza-se, novamente, o desenvolvimento econômico e social dentro de um Estado democrático de direito, a partir da garantias constitucionais referenciadas no modelo de bem-estar social. A ampliação das funções do Estado aumenta o campo para a atuação dos operadores do direito por dentro das instituições político-jurídicas, mesmo para ação a partir de uma pauta contra-hegemônica, a partir de uma perspectiva crítica, capaz de considerar a materialização teórico-social e ético-política do direito, para além do formalismo jurídico tradiciona”l. (MALISKA, apud SOBREIRO, 2007, p. 140)

  A execução penal no Brasil, tomando como ponto de partida a Lei 7.210 de 1984, que contém normas jurídicas de três ramos do Direito: o Direito Administrativo, o Direito Processual e o Direito Penal. Considera, portanto, a norma de direito material e a norma de direito processual.

  O Estado está envolvido na execução penal em suas esferas administrativa, processual, e jurisdicional. Mesquita Junior indica que a execução era estudada segundo os princípios dos Direitos Criminal, Processual e Administrativo e apresenta a lição jurídica de Florian: “Na realidade, conforme ensina Florian, a execução penal é fase de grande complexidade, e nela convergem regras jurídicas de três espécies: penal, processual e administrativa.” (Florian, apud MESQUITA JÚNIOR, 2010, p. 36)

        A ação do Estado na execução penal e nas referidas esferas do direito, como estruturado na norma constituconal, depende da relação de equilíbrio entre os poderes da República, por todos envolver.

  A ação dos Poderes da República se relaciona com os titulares de sua execução, não pode se admitir a ilusão de que o representante do Estado exerça estritamente a vontade do Estado, pois que a vontade do Estado é a sua vontade na medida da possibilidade fático-jurídica de execução dos seus desígnios. Neste contexto, os representantes do Estado se relacionam com a esfera jurídico-eleitoral e de provimento dos cargos públicos. Para se analisar a vontade do Estado expressa através da norma jurídica, deve-se considerar os processos de constituição, execução e garantia da aplicação normativa. O modo de provimento desses cargos, seja por exemplo de modo eletivo ou por concurso público, é uma rica base de pesquisa social e jurídica para entender o Estado, bem como o Direito como seu instrumento e  portador de suas contradições.

  Certo é que a execução penal ou execução criminal, como norma jurídica complexa, constitui ramo do Direito que tem a sua produção, validade e eficácia influenciadas pela ação e pelo equilíbrio dos três Poderes da República na ordem institucional e, na ordem social, pelas relações de poder político.

O direito ao acesso à Justiça, em uma concepção ampla, abrange a tutela jurisdicional em consonância com os demais princípios constitucionais e processuais: igualdade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa. O direito ao acesso à justiça é tido como um direito fundamental. 

Primeiramente, antes de tentar conceituar a expressão “acesso à justiça”, é necessário que primeiro seja abordado sobre o que vem a ser Justiça, e esta por sua vez, nas palavras de Aristóteles:

“[…] justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha própria, o que é justo, e que distribui, seja entre si mesmo e um outro, seja entre dois outros, não de maneira a dar mais do que convém a si mesmo e menos ao seu próximo  (e inversamente no relativo ao que não convém), mas de maneira a dar o que é igual de acordo com a proporção.” (ARISTÓTELES, 1979, p. 129.)

Ainda em busca do quem vem a ser Justiça, esta pode ser definida como “um valor de totalidade, acompanhando todos os outros valores, sendo a melhor possibilidade de entendimento dentro de uma situação com várias formas possíveis de entendimento societário”. (SOUZA, 2013, p. 41)

Conforme se deprende dos conceitos acima, tem-se que a justiça é a mais jurídica das virtudes, e que desta forma, sempre deve estar presente no seio da sociedade.

Partindo do pressuposto de que o acesso à justiça tem um caráter de produzir resultados que sejam individual e socialmente justos, Mauro Capelletti e Bryant Garthaduzem que a definição de acesso à justiça é tarefa difícil, pois, em um primeiro momento, significa dizer que as pessoas podem reivindicar seus direitos e resolver os seus litígios sob os auspícios do estado, sendo que este deve ser acessível a todos, em um segundo momento, significa dizer que possui um caráter socialmente justo. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 3).

O acesso a justiça possuiu como uma das suas finalidades a justiça social, vendo de uma ótica mais ampla, deve também ser visto como movimento transformador, e uma nova forma de conceber o jurídico, enxergando-o a partir de uma perspectiva cidadã, tendo a justiça social como premissa básica para o acesso a justiça.

Cabe ressaltar que a justiça social é um dos pilares da CRFB/1988, sendo uma construção moral e política baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva.

Contata-se que a tutela jurisdicional é exercida através da garantia de acesso à justiça e se constitui um dos maiores, senão o maior instrumento para garantir uma ordem jurídica justa, com capacidade a efetivar o exercício da cidadania plena.

Dito isto, prevalece que a justiça social sempre acaba sobressaindo, pois um pressuposto para o efetivo exercício da justiça, sempre visa o social, no qual deve-se ter a administração estatal voltada para a realização do Direito, danso instrumentos capazes para e efetividade do acesso a justiça, englobando a justiça social.

2  A Execução Penal à Luz do Método APAC: uma Análise Arqueológica.  

A denominação Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) pode ser tomada em diversas acepções. Segundo o conceito da apresentação do livro A execução penal à luz do método APAC, organizado por Jane Ribeiro Silva, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o método examinado constitui política pública de execução penal no Estado, instituída no ano de 2001 (TJMG, 2011 p. 6); “O Poder Legislativo, por meio da Lei 15.299/2004, reconheceu as APACs como entidades aptas a firmar convênios com o Poder Executivo, que, por sua vez, passou a destinar recursos para a construção e reforma dos estabelecimentos prisionais administrados pelas APACs.” (TJMG, 2011. p. 6). Segundo o mesmo documento:

“Cada APAC constitui uma entidade civil de direito privado, sem fins lucrativos, que adota,preferencialmente, o trabalho voluntário, utilizando o remunerado apenas em atividades administrativas, quando necessário. Possui estatuto próprio, tem suas ações coordenadas pelo Juiz da Execução Criminal da Comarca, com a colaboração do Ministério Público e do Conselho da Comunidade, conforme previsto em lei. […] A APAC de cada Comarca é necessariamente filiada à Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados e coordenada pelo Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.” (TJMG, 2011, p. 7)

O início da análise parte de pressupostos no campo da linguagem. Ao tratar sobre a análise do discurso, Alison Lee assevera que há uma mudança epistemológica, um questionamento radical quanto à natureza do conhecimento que fez com que se procure entender como se produz e representa o conhecimento, não é simplesmente se uma coisa é ou não é “verdade”; aponta ainda que a análise social concentra-se cada vez mais no discurso, definido de forma ampla, referindo-se a campos de significado e de poder que categorizam e regulam práticas sociais e tipos de pessoas , e também, na disciplina da linguística, onde se utiliza o termo discurso para denominar formas específicas de construção de sentido. (LEWIN; SOMEKH, 2015. p. 193)

  Neste tópico, o método APAC é inicialmente identificado como discurso: um conjunto de enunciados de diversos campos do saber que o compõe. O discurso designa, em geral, um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comum. (REVEL, 2005, p. 37).

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O método adotado pra a análise do discurso é o arqueológico, um processo que busca definir os prórpios discursos enquanto práticas que obedecem a regras (FOUCAULT, 1987, p. 157) e que nesta pesquisa tem como principal referência a obra Arqueologia do Saber de Michel Foucault.

Judith Revel preleciona que o referido instrumento científico, mais do que uma descrição paradigmática geral trata-se de um corte horizontal de mecanismos que articulam diferentes acontecimentos discursivos (saberes locais) ao poder. (REVEL, 2005, p. 16). Conforme o método, o objeto da pesquisa é analisado da seguinte maneira: em primeiro lugar, o objeto da pesquisa, é identificado como formação discursiva; em seguida, são identificados seus objetos, as superfícies de sua emergência, suas grades de especificações e instâncias de delimitação. Finalmente, a síntese desses elementos do discurso é feita, identificando o discurso enquanto conjunto de enunciados que segue determinadas regras de funcionamento.

  A identificação como formação discursiva ocorre com adaptação do tema ao conceito de discurso. A identificação de seus objetos significa definir sobre o que se fala. As superfícies de emergência são os momentos e lugares de surgimento desses elementos como objetos do discurso, onde e quando se fala. As grades de especificação são as instâncias de divisão dos objetos dentro do próprio discurso, classificação do que se fala. As instâncias de delimitação são linhas divisórias que isolam o discurso dentro do campo universal dos saberes, são o que se pode falar dentro dessa formação discursiva.

  Concluída esta fase, ainda não se chegou propriamente às relações que constituem o discurso. Obtidos os elementos pelo processo arqueológico, analisa-se as relações que existem entre eles, de modo a descobrir porque os enunciados se relacionam, de que forma se relacionam e quais regras obedecem para que constituam uma unidade discursiva. Encontra-se, então, na formação discursiva, o próprio discurso, as regras e relações que coordenam os enunciados.

   O discurso analisado é, portanto, confrontado com os dois outros objetos desta pesquisa: o Direito Brasileiro e o acesso à Justiça, apresentados, segundo sua teoria geral, no capítulo anterior. O que se objetiva é relacionar a formação discursiva, melhor compreendida através da arqueologia, a duas outras formações, utilizando, para tanto, análises conceituais e teóricas produzidas pelo próprio campo discursivo. Relaciona-se o tema com discursos científicos estruturados, e produz-se uma síntese, através do método dedutivo.

  A síntese obtida é brevemente inserida em certo contexto, de modo a relacionar a síntese do trabalho à realidade jurídica, política, social e de valores brasileira.

2.1 Os Objetos do Discurso

Em primeiro lugar, os objetos do discurso são identificados. A questão é: sobre o que se fala.

  O sistema jurídico brasileiro, a execução da pena e a Lei de execução penal, bem como as instituições que executam a pena; a administração pública penal; o condenado, o recuperando, o internado; a assistência material, jurídica, educacional, social, religiosa, e ao egresso; do trabalho do condenado; da disciplina;dos órgãos de execução da pena; estabelecimentos penais; ressocialização; humanização; violência; segurança; coesão social;  são alguns dos objetos facilmente encontrados no discurso “apaqueano”. 

  A Lei de Execução Penal, Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984, objeto do discurso analisado, por exemplo, tem como objeto jurídico as normas relativas à execução penal, como publicado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na obra Execução Penal à Luz do Método APAC, que diz: “Organizada como literatura de comentários à Lei de Execução Penal, a presente obra somar-se-á àquelas da mais alta estirpe que se distinguem do conjunto já amorfo da produção jurídica nacional. Coligindo contribuições de grandes juristas, todos senhores de uma vida pública exemplar e dedicada ao Direito, a obra esquadrinha o regime jurídico da execução penal no âmbito do ordenamento nacional.” (TJMG, 2011)

  O sistema jurídico brasileiro, a execução e o financiamento da pena e a lei de execução penal são referenciados por Carlos Frederico Braga da Silva no artigo “Análise normativo-teleológica do Projeto Novos Rumos na Execução Penal, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, à luz dos Direitos Humanos Internacionais.”; bem como na resolução 663/2010 do TJMG, que dispõe sobre a estrutura e o funcionamento do Programa Novos Rumos, no âmbito do Tribunal de Justiça, e sua implementação em todas as comarcas do Estado de Minas Gerais.

A Resolução 443/2004 do TJMG dispõe, em seu art. 1º, que“Fica instituído o 'Projeto Novos Rumos na Execução Penal' com o objetivo de incentivar a criação das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados – APACs, apoiando sua implantação nas comarcas ou municípios do Estado de Minas Gerais.” (TJMG 2004)

  Diversos objetos do discurso podem ser identificados em TJMG, 2011, inclusive pelo nome dos capítulos ou tópicos, a intenção não é enumerá-los, mas demonstrar que são objetos que compõe uma formação discursiva conforme determinadas regras: Do Objeto e da Aplicação da Lei de Execução Penal; Do Condenado e do Internado; Da Assistência – Art. 10 e 11 da LEP; Da Assistência Material; Da Assistência à Saúde; Da Assistência Jurídica; Da Assistência Educacional, Social e Religiosa; Da Assistência ao Egresso; Do Trabalho; Dos Deveres e Dos Direitos; Da Disciplina; Dos Órgãos da Execução Penal; Dos Estabelecimentos Penais; Da Execução das Penas em Espécie; Dos Regimes; Das Autorizações de Saída; Da Remição; Do Livramento Condicional; Da Monitoração Eletrônica; Das Penas Restritivas de Direitos; Da Execução das Medidas de Segurança; Dos Incidentes de Execução; Do Procedimento Judicial. A estrutura da publicação é muito semelhante à divisão de títulos e capítulos da própria Lei de Execução Penal. Observa-se, facilmente, o caráter também jurídico-positivo do discurso.

2.2. Superfícies de Emergência do Discurso

  Uma grande mudança acontece no poder punitivo e na instituição da pena no Ocidente a partir do século XVIII: “É a época em que foi redistribuída na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas, nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes, projeto ou redação de códigos “modernos”: Rússia 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, uma nova era.” (FOUCAULT, 2014, p. 13).

Foucault descreve um processo de mudança no direito de punir na Europa e nos Estados Unidos que também se faz notar no Brasil pela análise da legislação penal e de execução penal: a abolição das penas corporais e o estabelecimento das penas privativas de liberdade e alternativas na legislação brasileira; um processo observado através dos sucessivos diplomas jurídicos penais: Código Criminal do Império, de 1830; Código Penal de 1890; Constituição de 1891; Código Penal de 1940; lei 3.274 de 1957; Lei de Execução Penal de 1984; Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, além de diversas leis esparsas. Nestes, a substituição das penas corpóreas pelas penas privativas de liberdade e penas alternativas inserem o Direito Brasileiro no processo de mudança do poder punitivo.

   O Brasil, até o ano de 1830 se submetia à legislação portuguesa, e, como colônia, não possuía código penal próprio; O livro V das Ordenações Filipinas previa as penas aplicáveis no Brasil, neste livro eram previstas a pena de morte, a pena de degredo para as galés ou outros lugares, penas corporais, de confisco de bens e multa e a humilhação pública do réu, não sendo, porém, previstos o cerceamento e a privação da liberdade.

  A prisão era vista, no período, como meio de evitar a fuga do condenado até que fosse executada a pena, e não como pena propriamente dita (ENGBRUCH; MORAIS DI SANTIS, 2012). No ano de 1830, o Código Criminal do Império traz mudança ao prever, no ordenamento jurídico brasileiro, a pena privativa de liberdade nos artigos 46 e 47, inclusive a prisão perpétua no artigo 34, mas também mantém parte da estrutura jurídico-penal colonial, estabelecendo as penas de morte, degredo, galés e banimento.

  O Código Penal da República de 1890 instala um regime penitenciário no país. Luís Antônio Francisco de Souza, em observação sobre o Código Penal de 1890, diz queo diloma penal representou para o perído principalmente uma ruptura normativa das práticas penais. “O Código Penal de 1890, com sua concepção principalmente clássica, em termos das doutrinas penais, representou, apesar dos dispositivos anteriormente citados, voltados para a repressão e o controle social de determinados segmentos da população, sobretudo uma ruptura com as práticas penais do passado escravista, ao instituir a generalidade e a imparcialidade dos critérios penais.” (SOUZA, apudALVAREZ; SALLA; SOUZA. p. 8). A primeira Constituição da República, no ano de 1891,percorre a mesma direção e traz a abolição das penas de morte, de galés e de banimento judicial.

 O Código penal de 1940, que passa a vigorar em 1942, estabelece a pena privativa de liberdade nas modalidades reclusão e detenção, e também traz disciplina sobre as medidas de segurança. O cumprimento da pena considera os regimes aberto, semi-aberto e fechado, sob uma diretriz ressocializadora. O referido Código, ainda em vigor após diversas emendas, tem como princípios a legalidade, o devido processo legal, a ressocialização do condenado e a humanização.

O regime penitenciário, no ano de 1957, teve uma lei específica editada, a lei 3.274 que dispõe sobre as normas gerais do regime penitenciário, em conformidade com o art. 5º, XV, b, da Constituição de 1946, dispositivo constitucional que devolveu à União a competência para legislar sobre o tema. Com a Emenda Constitucional 1, de 17 de outubro de .1969, a Constituição de 1967 , no artigoart. 8º, XVII, c, manteve a competência da União para legislar sobre regime penitenciário. (ALMEIDA, 2014)

A República, após a vigência do Código de 1940, carecia de uma legislação que tratasse de forma específica a execução penal. Em 1981, o Ministro da Justiça Ibrahim Abi Hackel cria, através da Portaria 429, de 22.07.1981 uma comissão coordenada pelo professor Francisco de Assis Toledo e composta por juristas como os Professores Renê Ariel Dotti, Benjamim Moraes Filho, Miguel Reale Júnior, Rogério Lauria Tucci, Ricardo Antunes Andreucci, Sergio Marcos de Moraes Pitombo e Negi Calixto, para elaboração de um anteprojeto para a Lei de Execução Penal, o qual se converteu na Lei nº 7.210 de 11 de Julho de 1984, a atual e vigente Lei de Execução Penal (ALMEIDA, 2014). A Lei baseia-se na efetivação da execução penal como forma de preservação dos bens jurídicos e de reincorporação do homem que praticou um delito à comunidade.

Nos dispositivos legais da CRFB/1988 os princípios constitucionais e garantias fundamentais do art. 5º, incisos XIV a LXVIII, da CRFB/1988 fazem especial referência ao poder punitivo do Estado, às liberdades individuais, à pena e sua execução. Estes dispositivossão fruto de um processo de mudança identificado no Direito, iniciado no fim do século XVIII e que se desenvolve de acordo com as características de cada território, nação e povo, num período de internacionalização de conhecimentos e práticas jurídicas. Esse fenômeno do direito, visto também como humanização e afrouxamento da severidade penal, é interpretado por Foucault à luz dos novos métodos de ação punitiva e de organização política do Estado, para ele, o que realmente ocorre é um deslocamento do objeto da ação punitiva e não um fenômeno quantitativo. Assevera ele que o:

“Afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse um fenômeno quantitativo: menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e 'humanidade'. Na verdade, tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva. Redução da intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente. Se não é mais ao corpo que se destina a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? […] Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. […] O aparato da justiça punitiva tem que se ater, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea”. (FOUCAULT, 2014, p. 22)

  Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a situação carcerária no Brasi (ano de 2014), o país possui 563. 526 pessoas pessoas presas, considerando a prisão domiciliar (147.937 pessoas) o número é de 711. 463 pessoas presas no sistema. O déficit de vagas no sistema é de 206. 307 vagas, e de 354.244 vagas se computada a prisão domiciliar. O relatório ainda mostra que 41% dos presos do sistema são provisórios, considerada a prisão domiciliar, a taxa é de 36% (CNJ, 2014). Os dados evideciam uma crise: um número alto de presos, um déficit de vagas, e um alto percentual de presos provisórios.

  No ano de 2014, as despesas totais do Poder Judiciário somaram aproximadamente R$ 68,4 bilhões, o que representou um crescimento de 4,3% em relação ao ano de 2013, e de 33,7% no último sexênio. Essa despesa equivale a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, a 2,3% dos gastos totais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios a um custo pelo serviço de justiça de R$ 337 por habitante. (CNJ, 2015)

  No Estado de Minas Gerais, o modelo de execução e financiamento apaqueano chega no início da década de 2000, através do Programa Novos Rumos.   

“O Programa Novos Rumos, que hoje coordena também outros campos de atuação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nasceu com a finalidade de coordenar a implantação do método que se examina como política pública de execução penal no Estado. Essa institucionalização ocorreu no ano de 2001 […]” (TJMG, 2011, p. 6).

  O discurso apaqueano expõe a ineficiência do sistema chamado “tradicional”, que funciona sob outras diretrizes administrativas e metodológicas; expõe, ainda, suas altas taxas de reincidência, as péssimas condições e superlotação do sistema penitenciário, além do descumprimento da lei e da violação de direitos presentes no sistema.

Segundo dados do TJMG do ano de 2011, o Projeto Novos Rumos conta com 84 comarcas que têm APAC em funcionamento ou em fase de implantação, beneficiando mais de 300 Municípios por todo o Estado de Minas Gerais. Além de oferecer novas vagas ao Sistema Prisional de Minas Gerais, ao longo dos anos, consolidou-se a missão de propagar a metodologia APAC como importante ferramenta para humanizar o Sistema de Execução Penal de forma a contribuir para a construção da paz social. Por outro lado, a APAC é o coroamento da incapacidade do Estado em gerir prisões, como aponta o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas em Liberdade (TJMG, 2011 p. 77).

  Estima-se, também, que a reincidência entre os egressos das unidades APAC gira em torno de 15% (quinze por cento), enquanto que os oriundos do sistema comum alcançam o percentual de 70% (setenta por cento). As dezenas de unidades APAC do Estado de Minas Gerais, que são mantidas por convênio, custam aos cofres mineiros 1/3 (um terço) do valor que seria despendido para manutenção do preso no sistema comum. (TJMG, 2011 p. 77).

O discurso e o método APAC surgem, pois, num contexto de ineficiência e superlotação do sistema penitenciário, que também, em tese, segue o ordenamento jurídico brasileiro, exemplo da Lei de execução penal; O sistema APAC se apresenta, no contexto, como uma solução, sem mudança legislativa, para efetivar o Direito Positivo Brasileiro e seus valores no que se refere à execução penal. As informações obtidas e as informações apresentadas pelo poder público demonstram os resultados positivos do método, sua legalidade e eficiência administrativa frente a uma execução penal que não reintegra o condenado socialmente.

2.3 Instâncias de Delimitação e Grades de Especificação

  O método APAC, como um método de execução e financiamento penal, tem seus limites influenciados pelo direito positivo. A execução penal, conforme o artigo 1º da Lei 7.210 de 1984 (Lei de Execução Penal) tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Como política pública, o discurso apaqueano contribui e se mostra como alternativa para o sistema penitenciário brasileiro e para o cumprimento do ordenamento jurídico brasileiro, bem como a efetivação dos direitos fundamentais positivados. 

Ao considerar as instâncias que delimitam o campo discursivo, se destaca a delimitação existente no campo normativo. A adaptaçãode um método social à legislação vigente e a construção conjunta de estruturas normativas pelo estado e a sociedade civil demonstra que a questão examinada extrapola os limites da execução penal e da norma de execução penal. O discurso apaqueano não é composto por objetos estritamente jurídicos. Os objetos do discurso são de diversos campos do saber.

O discurso analisado tem a necessidade de se vincular do ordenamento jurídico para que seja exercido como política pública, de outro lado, a confrontação deste discurso com o ordenamento significaria seu direcionamento político concreto com a finalidade de mudança legislativa, o que retiraria seu caráter de política pública passível de execução pelo Estado em virtude da não conformidade do método de execução penal com a legislação em vigor.

Grades de especificação são divisões que classificam os objetos da formação discursiva e auxiliam na compreensão das regras que regem a formação discursiva através da observação histórica. Conclui-se após identificar os objetos as superfícies de emergência e as instâncias de delimitação que existe um discurso cujos objetos se distribuem em diversos campos do saber, e a norma jurídica se apresenta neste caso como principal instância de delimitação do que se fala. Os objetos do discurso que extrapolam a perspectiva normativa poderiam ser classificados como fatos ou valores, dentro de uma grade de classificação tridimensional, numa concepção mais ampla do Direito.. A classificação do discurso mediante as três dimensões do Direito: fato, valor e norma, é uma grade de especificação dos objetos analisados que permite uma melhor compreensão do fenômeno discursivo principalmente na esfera político-jurídica.

  Existem, como elementos: fatos, sejam jurídicos ou naturais, valores, positivados ou não, e normas, sejam de Direito Positivo ou de Direito Natural. Existem, também, como campos de estudo e classificação dos objetos: a sociologia e a sociologia jurídica; a filosofia e a filosofia do direito; a História do Direito e a Ciência do Direito Positivo. Esta classificação dos objetos será desenvolvida no tópico seguinte: AExecução Penal à Luz do Método APAC e o Direito Brasileiro.

Sobre a pesquisa de políticas e mais especificamente a pesquisa da política como discurso, Jill Blackmore e Hugh Lauder prelecionam que a política como discurso considera as políticas parte de um sistema mais amplo de relações sociais que molda o que se diz e o que se pensa. Os textos de política surgem de determinados discursos de políticas, mas ao mesmo tempo produzem estes discursos. Desse modo, grupos e indivíduos posicionam-se e são posicionadospor tais textos e discursos, que condicionam em parte sua aceitação, rejeição ou modificação. Portanto, “para analisar discursos os pesquisadores de políticas precisam desvendar a índole normativa de decisões que parecem óbvias, inevitáveis ou naturais, testar juízos sobre asseverações de verdade e considerar modos socialmente mais justos de desenvolver políticas e práticas.” (LEWIN; SOMEKH; 2015, p. 255)

3- A Execução Penal à Luz do Método APAC e o Direito Brasileiro

As pesquisas comparativas das políticas públicas de execução penal colhidas indicam a eficiência do método APAC dos pontos de vista legal e financeiro em relação às unidades que não adotam este sistema. Embora mais coerente com a vertente ressocializadora de Lei de Execução Penal e tenha eficientes resultados financeiros para o Estado, o método APAC encontra dificuldades de se expandir enquanto sistema de execução penal. Neste diapasão, o atual sistema poderia ser melhor compreendido sob a ótica comparativa do conjunto de possibilidades de criminalização penal em abstrato e da ação punitiva exercida sobre pessoas concretas. Esta perspectiva no estudo das políticas públicas de execução penal permite descobrir de que modo os fatores reais de poder social direcionam a atuação do Estado e geram conflitos jurídicos.

  Como existe uma grande diversidade de objetos, e diversos discursos científicos que os analisam, é preciso dividí-los para uma melhor compreensão, mas sem esquecer que não existe divisão linear entre as ciências. Recorre-se à Teoria Tridimendional do Direito para estabelecergrades de especificação,que são instâncias de divisão taxonômica do discurso, queajudem na compreensão do fenômeno discursivo.

De acordo com esta, não há norma legal sem a motivação axiológica dos fatos sobre os quais os valores incidem. Daí a compreensão da norma jurídica como elemento integrante da relação fático-valorativa. Não é demais lembrar que só surgiu a citada teoria quando se reconheceu que fato, valor e norma se dialetizam de maneira complementar. (REALE, 2003)

A Teoria Tridimensional do Direito permite uma análise ontológica, axiológica e jurídica do fenômeno discursivo e da realidade social, como expõe Miguel Reale em suas Lições Preliminares de Direito:

“Desde a sua origem, isto é, desde o aparecimento da norma jurídica, – que é síntese integrante de fatos ordenados segundo distintos valores, – até ao momento final de sua aplicação, o Direito se caracteriza por sua estrutura tridimensional, na qual fatos e valores se dialetizam, isto é, obedecem a um processo dinâmico que aos poucos iremos desvendando. Nós dizemos que esse processo do Direito obedece a uma forma especial de dialética que denominamos “dialética de implicação polaridade”, que não se confunde com a dialética hegeliana ou marxista dos opostos. Esta é, porém uma questão que só poderá ser melhor esclarecida no âmbito da Filosofia do Direito. Segundo a dialética de implicação-polaridade, aplicada à experiência jurídica, o fato e o valor nesta se correlacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível a outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à estrutura normativa como momento de realização do Direito. Por isso é denominada também “dialética de complementaridade.”* (REALE, 2011, p.67) 

  O equilíbrio que a Teoria Tridimensional expõe em relação às dimensões do Direito, fato, valor e norma, encontra-se no plano ideal. Em um momento histórico onde o Estado Moderno enfrenta sua crise social e onde o Direito e a Ciência são necessários na construção de novos valores e processos de libertação humana, essa libertação se relaciona a todo o tempo com a atuação do Estado e do povo, segundo os processos de Controle do Estado e de Participação Popular. “ A questão social que eclodiu na segunda metade do século XIX colheu de surpresa a burguesia, impondo-se-lhe como o problema principal a que ela devia fazer frente e que ainda continua sendo o problema sem solução do Estado moderno.” (BOBBIO; MATTEUCCI; GIANFRANCO, 2000, p. 403)

  Este momento histórico também abarca a crítica ao Estado Social que enfrenta as contradições de sua Teoria; preleciona Foursthoff sobre a oscilação política do Estado que “os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das liberdades burguesas: liberdade pessoal, política e econômica. Constituem um dique contra a intervenção do Estado. Pelo contrário, os direitos sociais representam direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza social produzida. A forma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação.” (Foursthoff apud BOBBIO; MATTEUCCI; GIANFRANCO, 2000, p. 401).

  Quando se parte da premissa de que a realidade social dos condenados a pena privativa de liberdade no Brasil deve ser analisada de forma ampla, para além dos limites do Direito Positivo, enfrentado a oscilação entre “liberdade” e “participação” presente na realidade do Estado e do Povo, fica claro que as soluções para os examinados problemas do cárcere, da ressocialização, e do sistema de financiamento e execução da pena no Brasil encontram-se, também, para além da estrutura do Direito Positivo.

Isto não significa que a análise positivista será desconsiderada, significa que outros elementos presentes na tridimensionalidade do Direito, principalmente políticos ( ou que dizem respeito à relação entre os seres humanos e entre estes e o Estado), precisam ser considerados. Como exemplo, e evidenciando a rede de poderes que impera em uma sociedade para além do Estado, Foucault assevera que “[…] nem o controle, nem a destruição do aparelho de Estado, como muitas vezes se pensa – embora, talvez cada vez menos – é suficiente para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes que impera em uma sociedade.” (FOUCAULT, 1979, p. 4-5)

  Ao confrontar o discurso apaqueano com a Teoria Tridimensional do Direito, percebe-se que ele tem como objetos três elementos do Direito, considerando a estrutura tridimensional, fatos, valores e normas, porém as duas primeiras dimensões do direito são vistas de forma mais ampla, pois, o elemento norma está limitado pelo próprio Direito Positivo e pela estrutura do Estado. Isso quer dizer que, se a natureza das relações de Poder e da configuração dos Fatores Reais de Poder é mutável, é preciso considerar a mutabilidade do Direiro Positivo e de sua interpretação segundo a dinâmica dos fatores reais de poder dentro do próprio Estado, não somente em um período de constituinte, mas, também, sob a égide de uma Constituição.

Ionete de Magalhães Souza, ao abordar a relação entre realidade e normatividade constitucional, preleciona que a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, sua essência é a vigência, e “pelo poder da eficácia é que a Constituição imprime ordem e conformação à realidade política e social. Realidade e normatividade são diferenciadas, sem serem separadas e confundidas. A constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”. Aponta ainda, sobre a CRFB/88, a existência de limites, ao dizer que a Constituição trouxe avanços referentes aos direitos e garantias individuais mas, no âmbito dos direitos sociais, não houve avanço considerável; assevera também que a Constituição Federal teria caminhado mais se fizesse intangíveis, dentro da normatividade constitucional, aqueles direitos fundamentais já consagrados, que regem as relações mútuas entre o trabalho e o capital. (SOUZA, 2013, p. 54-55).

Estado, Direito e Política são objetos que, mesmo divididos em ciências ou disciplinas distintas, possuem real comunicação de discursos e enunciados. A relação entre Direito e Política é nítida:

“Todo Estado implica um entrelaçamento de situações, de relações, de comportamentos, de justificativas, de objetos, que compreende aspectos jurídicos, mas que contém, ao mesmo tempo, um indissociável conteúdo político. De fato não é possível estabelecer-se a nítida separação entre o jurídico e o político, sendo inaceitável, neste ponto, a proposição de Kelsen, que pretendeu limitar a Teoria Geral do Estado ao estudo do Estado “como é”, sem indagar se ele deve existir, por que, ou como, sendo-lhe vedado também preocupar-se com a busca do “melhor Estado”. […] No mesmo sentido é a observação de Miguel Reale, que, após ressaltar o caráter de ciência de síntese, peculiar à Teoria Geral do Estado, demonstra que o Estado apresenta uma face social, relativa à sua formação e ao seu desenvolvimento em razão de fatores sócio-econômicos; uma face jurídica, que é a que se relaciona com o Estado enquanto ordem jurídica; e uma face política, onde aparece o problema das finalidades do governo em razão dos diversos sistemas de cultura. Na verdade, é impossível compreender-se o Estado e orientar sua dinâmica sem o direito e a política, pois toda fixação de regras de comportamento se prende a fundamentos e finalidades, enquanto que a permanência de meios orientados para certos fins depende de sua inserção em normas jurídicas”. (DALLARI, 2009, p. 127)

  A natureza social e política da questão a lume é evidente. O método apaqueano tem resultados admiráveis quando se fala de ressocialização no sistema penitenciário brasileiro, não possui fins lucrativos, cumpre a norma jurídica de execução penal e traz menores despesas ao Estado.  A CRFB/1988 prevê, em seu artigo 37, como princípios da administração pública, a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, porém, a expansão do método que se mostra efetivador princípios constitucionais ainda é pequena e encontra resistência.

  Em matéria publicada em 15 de abril de 2014, o site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconhece o método e estimula sua expansão: “Entre os mais de 550 mil detentos do Brasil, aproximadamente 2,5 mil recebem tratamento diferenciado, que tem produzido resultados animadores em termos de reinserção social. Eles cumprem pena nas 40 unidades onde é aplicado o Método APAC(Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), responsável por índices de reincidência criminal que variam de 8% e 15%, bem inferiores aos mais de 70% estimados junto aos demais detentos. A expansão dessa metodologia tem sido recomendada durante os mutirões carcerários que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realiza em todo o País.” (CNJ, 2014)

  Em Minas Gerais, “segundo o secretário de Estado de Defesa Social, Bernardo Santana, as vantagens do Método Apac se revelam no custo e no grau de ressocialização. Ele citou que a manutenção de um preso no sistema prisional convencional em Minas Gerais chega atualmente a quase R$4 mil por mês, ao passo que a média na rede Apac é de pouco mais de R$ 900. Já o íncide de reincidência no crime dos egressos dos CRS’s é de aproximadamente 20%, contra uma taxa próxima de 80% nos sistema prisional comum”. (FBAC, 2015)

  A Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados informa que, atualmente (2015), há 35 Apac’s em Minas Gerais em funcionamento com um total de 2,7 mil vagas. (FBAC, 2015). Dentro de um Universo de 151 unidades e mais de 57 mil presos, segundo a Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS, 2015), o método APAC ainda atinge a menor parcela dos condenados.

A nível nacional, o número de pessoas presas no sistema considerando a prisão domiciliar é de 711. 463 pessoas, sendo 563. 526 presas no sistema. (CNJ, 2014). O déficit de vagas no sistema é de 354.244 vagas computada a prisão domiciliar, e de 206.307 o déficit do sistema. O relatório mostra que 41% dos presos do sistema são provisórios, considerada a prisão domiciliar, a taxa é de 36% (CNJ, 2014). Os dados do CNJ também apontam número pequeno de recuperandos pelo método APAC em relação aos que cumprem a pena em instituição “tradicional”. O grande número de presos, o grande déficit de vagas, e o alto percentual de presos provisórios evidenciam a crise do sistema penitenciário e do direito de punir no Brasil.

Os dados colhidos mostram que o método APAC surge como alternativa, mas, atualmente, é aplicado a um percentual pequeno das pessoas que cumprem pena privativa de liberdade no Brasil e no estado de Minas Gerais.

Bárbara Rodrigues Peçanha Araújo, ao discutir a possibilidade e dificuldade de expansão do método apaqueano, considerando as diversas dimensões do Direito aqui discutido, sob a ótica do direito penal mínimo, constata que o método não é compatícel com com o sistema punitivista de encarceramento em massa  que existe atualmente, aponta que os estabelecimentos das APAC's não comportam muitos indivíduos, que o método depende do auxílio de voluntários, sem a presença de agentes penitenciários ou policiais, e que existe o acompanhamento individual dos recuperandos. A possibilidade de expansão do métodose relaciona com um sistema de direito penal mínimo, abordado na teoria do direito penal mínimo defendida por Luigi Ferrajoli. (ARAUJO, 2015, p. 39)

Se o modelo de encarceramento que opera como sistema no Brasil entra em conflito com a possibilidade de expansão do método APAC, a abordagem política através de um Direito Penal mínimo traz consigo necessariamente a redução da população carcerária.

O atual sistema pode ser melhor compreendido sob a ótica comparativa do conjunto de possibilidades de criminalização penal em abstrato e a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, as criminalizações primária e secundária. Este fenômeno será abordado no próximo tópico sob a ótica do acesso à Justiça.

A expansão do método está condicionada a fatores principalmente políticos, consideração que deve ser levada em conta pela Ciência do Direito, não se restrigindo à Ciência do Direito Positivo. Se o chamado modelo de encarceramento em massa tem natureza política, sua substituição por um modelo de direito penal mínimo compatívem com a ampliação do Método APAC passa por considerações dessa natureza.

3.1 Execução Penal à Luz do Método Apac e o Acesso À Justiça

Ananlisando o ordenamento jurídico brasileiro sob a ótica do acesso à Justiça, questiona-se o conjunto de possibilidades de criminalização penal em abstrato na ordem jurídica, a criminalização primária, e a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas. A criminalização secundária, que é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, ocorre quando quando os órgãos estatais detectam um indivíduo, a quem se atribui a prática de um ato primariamente criminalizado, sobre ele recaindo a persecução penal. A criminalização secundária, na concepção de Eugenio Raul Zaffaroni, possui duas características: seletividade e vulnerabilidade, pois há forte tendência de ser o poder punitivo exercido precipuamente sobre pessoas previamente escolhidas em face de suas fraquezas, a exemplo dos moradores de rua, classes sociais subjugadas, e usuários de drogas. Este fenômeno guarda íntima relação om o movimento criminológico conhecido como labeling approach (teoria da rotulação ou do etiquetamento): aqueles que integram a população criminosa são estigmatizados, rotulados ou etiquetados como sujeitos contra quem normalmente se dirige o poder punitivo estatal. A perspectiva do jurista argentino revela um método de análise das instituições de persecução penal que pode ser considerado pelo Direito brasileiro a partir da análise de quem, em concreto e em amplitude estatística, sofre a persecução penal, de quais são as suas causas e quais são as suas consequências.

“Em se tratando da porta de entrada da justiça penal, o seu acesso é bastante generoso e orientado, embora seja uma resposta apenas simbólica. Há uma indicação estatal definida e contundente, revelando a importância da submissão às normas penalizantes, seja ainda em um processo de criminalização primária, na eleição em abstrato da conduta que deve ser reprovada penalmente, seja na criminalização secundária, onde serão selecionados os que de fato serão submetidos à ação punitiva do Estado. O processo de criminalização primária é tão "imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu levá-lo a cabo em toda a extensão nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável" . Por outro lado, em face da limitação de se atuar no concreto, na subsunção da ação punitiva, há um direcionamento da criminalização secundária, "apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário” (Zaffaroni apud REIS, 2013, p. 3).

O ideal iluminista libertário para o direito penal foi aos poucos cedendo espaço ao modelo de defesa social (escola positivista), que amparado no enganoso temor ao delinquente, "mantém a estrutura de perscrutar o criminoso na sua subjetividade e construir mecanismos de proteção da sociedade contra o inimigo", que se identifica especialmente com os habitantes das camadas mais vulneráveis da população. Morais da Rosa alerta que o direito penal "possui papel estratégico na manutenção do sistema" , ou seja, a estratégia que utiliza a coerção legitimada para fins de seleção, repressão e punitividade. E é nesse ambiente que, contraditoriamente, a intervenção do Estado deixa de "estar associada às garantias e em respeito aos direitos das pessoas" e "demonstra radical potência para romper com a legalidade, produzindo ofensa aos direitos humanos de todos os envolvidos", vítimas, acusados e condenados. (Morais da Rosa apud REIS, 2013, p. 16)

  Neste diapasão, algumas leituras sobre o método “tradicional” e o método APAC frente à sua relação com a Política são necessárias. O acesso à Justiça não pode ser visto apenas em um plano teórico. A efetivação dos princípios constitucionais está sujeita a diferentes configurações dos fatores reais de poder social, considerando a força normativa da Constituição também como um fator. A política também é normativa. Os formuladores de políticas tentam mudar comportamentos mediante a distribuição de recursos escassos e, ao fazê-lo, eles mudam valores (LE GRAND, apud LEWIN; SOMEKH; 2015, p. 253).

A revisão da concepção marxista de dialética como materialismo histórico, ampliando, também, a visão idealista hegeliana acerca do pensamento dialético fez Gramsci perceber que é quando as classes subjugadas se organizam em busca de se apropriarem da política através do processo educativo, que estas começam a formar uma nova concepção de hegemonia baseada na gestão democrática e popular do poder. (Semeraro apud SOBREIRO, 2007, p. 34-35).

  No âmbito político-jurídico brasileiro, a interpretação do Direito deve considerar suas várias dimensões fenomenológicas num plano concreto e político, para além da dimensão do ideal e em direção à construção de um projeto de desenvolvimento nacional soberano e libertário.

Considerações Finais

A análise da Execução Penal à Luz do Método APAC e seu relacionamento com o acesso à Justiça e o Direito positivo demonstra que, na perspectiva deste, o Método APAC mostra-se como estratégia de efetivação dos princípios constitucionais e infracontitucionais relativos à execução penal que encontra limites de expansão enquanto sistema. Embora seja mais coerente com o espírito ressocializador da Lei de Execução Penal e tenha eficientes resultados financeiros para o Estado, o método APAC encontra dificuldades de se expandir enquanto sistema de execução penal; há incompatibilidade das políticas públicas de execução penal com a norma jurídica positivada pela Lei de Execução Penal, com a Execução Penal à Luz do Método APAC e a CRFB/1988.  A pesquisa social e jurídica  que considera os fatores reais de poder social e a luta de classes demonstra que a ordem jurídica é portadora de contradições sociais manifestadas muitas vezes pela antinomia e crise de eficácia das normas. A identificação do tratamento institucional e político que atua sobre as classes subjugadas pela estrutura de poder social leva à proposta de um Direito que não se desligue dos princípios fundamentais da Justiça e do acesso à Justiça.

 

Referências
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Notas:
 
[1] Trabalho orientado pela profa. Ionete de Magalhães Souza, Professora da Unimontes. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutora pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA), em Buenos Aires (Argentina). Advogada.

[2] Projeto de Artigo apresentado à Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, pelos acadêmicos Ariane Cristina Soares Rubim e Heros Hegel Ladeia Maciel, referente ao Projeto de Pesquisa, coordenado pela Profª Coordenadora geral Drª  Cynara  Silde Mesquita Veloso, denominado “Execução Penal à luz do Método Apac (Associação de Assistência e  Proteção aos Condenados) Em Montes Claros: desafios e perspectivas de sua consolidação”, sob a orientação da Profª. Dra. Ionete de Magalhães Souza

Informações Sobre os Autores

Heros Hegel Ladeia Maciel

Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)

Ariane Cristina Soares Rubim

Acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)


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