O bem de família à luz da atual concepção de entidade familiar

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Resumo: O presente trabalho aborda a análise do Bem de Família sob o enfoque da atual concepção de entidade familiar com o propósito de dirimir quaisquer dúvidas, questionamentos e interpretações acerca da possibilidade ou não da proteção do bem de família em se tratando das diversas entidades familiares existentes na contemporânea sociedade brasileira. Será apresentada uma evolução histórica social a fim de demonstrar a importância das transformações e o seu reflexo na interpretação na norma jurídica. Os conceitos de bem de família e da expressão “entidade familiar” serão expostos para melhor entendimento, utilizando a base doutrinária e jurisprudencial. A questão será tratada salientando a sua essência constitucional, ilustrando através de casos concretos os princípios constitucionais.

Sumário: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1. A Abordagem constitucional; 2.2. Breve evolução histórica social; 2.3. Conceito de Família; 2.4. O Bem de Família; 2.5. A proteção ao Bem de Família e o Matrimônio; 2.5.1. Conceito de Matrimônio; 2.5.2. Do Matrimônio à concessão da proteção ao Bem de Família; 2.6. A proteção do Bem de Família e a União Estável; 2.6.1 Conceito de União Estável; 2.6.2. Da União Estável à concessão da proteção ao Bem de Família; 2.7. A proteção ao Bem de Família e a União Adulterina; 2.7.1. Conceito de União Adulterina; 2.7.2. Da União Adulterina à concessão da proteção ao Bem de Famíla; 2.8. A proteção ao Bem de Família e a Família Monoparental; 2.8.1. Conceito de Família Monoparental; 2.8.2. Da Família Monoparental à concessão da proteção ao Bem de Família; 2.9 A proteção ao Bem de Família e a Família Anaparental; 2.9.1. Conceito de Família Anaparental; 2.9.2. Da Família Anaparental à concessão da proteção ao Bem de Família; 2.10. A proteção ao Bem de Família e a União Homoafetiva; 2.10.1. Conceito de Homoafetividade; 2.10.2. Da União Homoafetiva à concessão da proteção ao Bem de Família; 3. Considerações Finais; 4. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho se apresenta com o objeto o instituto denominado Bem de família, sendo este analisado sob o enfoque da atual concepção de entidade familiar prescrita e assegurada pelo ordenamento jurídico vigente.

O principal papel deste artigo jurídico foca-se no objetivo de dirimir quaisquer dúvidas, questionamentos e interpretações acerca da possibilidade ou não da proteção do bem de família em se tratando das diversas entidades familiares existentes atualmente na sociedade brasileira.

Desse modo, inicialmente, será exposto uma breve evolução histórica com a origem da família e comentando seu conceito a fim de que seja demonstrado o seu importante papel na formação social. Por tratar-se da célula embrionária que fomenta a evolução humana através de seus princípios, valores, costumes já consagrados neste núcleo familiar que sofrerá interação com os demais núcleos viventes, ocasionando, assim, as mudanças freqüentes na sociedade como um todo.

Ademais, fará parte deste trabalho o esclarecimento da expressão “entidade familiar”, citando exemplos das entidades existentes e que norteiam o cotidiano do indivíduo, destacando suas particularidades de modo a alcançar o objetivo supra citado. Destarte, será dada ênfase a cada formação familiar da sociedade hodierna, de modo a enquadrá-la ou não nos requisitos da chamada entidade familiar, valendo-se, assim, da proteção concedida pela lei ao bem de família.

Também será realizada uma elucidação acerca do bem de família, diferenciando o Bem de Família Voluntário ou Convencional disposto no Código Civil daquele salvaguardado pela Lei 8009/1990, além do salvaguardado, constitucionalmente, bem de família rural. Demonstrando, inclusive, as possibilidades casuísticas de sua ocorrência e os efeitos deles decorrentes.

Acrescenta-se que tal análise também receberá, com o intuito de torná-la mais rica e atual, o apoio dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como as divergentes interpretações e transformações ocorridas ao longo do tempo.

Neste sentido, cabe apontar que a matéria Bem de família tem essência constitucional, sendo pertinente a demonstração da ocorrência dos princípios constitucionais, tais como isonomia, propriedade, liberdade, dignidade da pessoa humana, dentre outros.

Ressalta-se, por fim, o destaque ao tema tratado haja vista as mudanças inerentes na sociedade, implicando, por sua vez, em rotineiras e prescindíveis interpretações das normas vigentes para que estas possam acompanhar aquelas. O estudo em questão deve ser visto como uma interpretação moderna do Código Civil de 2002 e da Lei 8009 de 1990, a fim de que sejam tratadas as situações de fato, como já vem sendo, acertadamente, algumas decisões jurisprudenciais.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. Abordagem Constitucional

A Carta Magna, este ano de 2008, completa 20 anos de existência, sua promulgação se concretizou após o longo e conturbado período da ditadura militar, no qual imperava a falta de liberdades. A Constituição de 1988 é um reflexo desse tempo, é considerada um instrumento jurídico e político, representando a consolidação do regime democrático como uma grande conquista da cidadania brasileira. Também recebeu o enfoque de Constituição Cidadã devido aos avanços nela descritos, entretanto, ainda há muito a se avançar quando se trata dos direitos do cidadão.

O Bem de família, regrado através da Lei 8009/90, encontra-se resguardado por lei ordinária, porém em conformidade com os ditames constitucionais, haja vista que a formação da sua proteção reputa-se a pilares erguidos de princípios constitucionais. Dentre os princípios fundamentais e sociais constitucionais que refletem este espírito cidadão da Carta está o da isonomia, da moradia, da propriedade e ainda o da dignidade da pessoa humana.

O direito à propriedade, contido no artigo 5 da Constituição da República Federativa do Brasil CRFB), remete a tempos primórdios, sob a  influência da Revolução Francesa que lutava, dentre outros direitos, pelo direito à propriedade privada. A propriedade é um direito fundamental salvaguardado pela ordem jurídica, assegurando a existência, funcionalidade e utilidade de coisa móvel, imóvel ou de marca. Tendo em vista o enfoque do bem de família, salienta-se que o proprietário de qualquer imóvel construído no território brasileiro é livre para administrar o seu bem, exercendo, assim, o aludido direito.

Cabe acrescentar que tal direito caminha em paralelo ao direito social da moradia que foi elevado ao status de direito constitucional, com a Emenda Constitucional 26/00, que alterou a redação do artigo 6 da CRFB. Contudo, no tocante à efetividade deste direito, desde sua publicação, não vigora com sucesso. Neste âmbito, cabe o comentário acerca do direito à Moradia, na qual pondera o respaldo jurídico e garantias judiciais entre os direitos individuais e os direitos sociais, salientando que naqueles a aplicabilidade das normas sociais são mais efetivas tendo em vista a existência de instrumentos assegurando-os, haja vista a possibilidade de impetração de Habeas Corpus e Mandado de segurança contra condutas arbitrárias do poder estatal. Enquanto que a ausência destes meios nos direitos sociais resulta numa carência de ação efetiva do Estado em prol da sociedade, ocasionando violação de direito essencial, já promulgado em cláusula pétrea.

Indubitável é, ainda na tangência da matéria constitucional, a importância de trazer ao debate o conceito de família que vem enfrentando transformações, conseqüências inerentes às mudanças sociais em diversos aspectos na sociedade. Essa nova roupagem da entidade familiar em nada surpreende dentro dos parâmetros jurídicos, uma vez que, conforme a teoria basilar da tridimensionalidade do estudo do direito, na qual um fato social será valorado e a partir desse julgamento de valor será criada a norma jurídica. Nesta ótica, surge um outro princípio de grande valia no estudo da família atual, especificamente por tratar este artigo do bem de família, o da proteção da família que abriga proteção a todas as espécies de entidades familiares, quer sejam oriundas do matrimônio, união estável, família monoparental e colocação em família substitutiva, adoção. A família tem que ser protegida para garantir o desenvolvimento de seus membros; a família é efetivamente o instrumento de realização e crescimento pessoal da pessoa humana.

À luz deste enfoque, encontra-se o princípio da isonomia que reza também o artigo 5, caput, da CRFB, o qual garante a igualdade entre os indivíduos que integram uma sociedade. Pode-se declarar como um dos mais significativos na Lei Maior, promovendo-o como aquele que demonstra de modo mais claro o caráter democrático almejado na criação da Constituição. Tal princípio prevê a igualdade de direitos entre todos os cidadãos, devendo estes receber tratamento idêntico, de modo a afastar a violação deste direito com a ocorrência de discriminações arbitrárias. Neste entendimento, no qual observa que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais de modo desigual, na medida da sua desigualdade. Assim, aufere-se que existem casos nos quais será dado um tratamento distinto, mas somente devido a características intrínsecas desta pessoa que mereça esta diferenciação. Um exemplo clássico é a prisão para mulheres e homens, além de serem separadas, a mulher possui o direito de permanecer na presença de seu filho recém nascido, devido a uma característica própria: o vínculo de dependência existente entre mãe e filho.

Pode-se, ainda, apresentar o princípio da liberdade (artigo 5, caput, CRFB), também constitucional, em se tratando das relações homoafetivas, estendendo essa liberdade ser a orientação sexual do indivíduo

É válido ressaltar que frente a todos os princípios comentados, o princípio da dignidade da pessoa humana os complementa, haja vista o seu cunho fundamental e, implicitamente, social que se encontra presente dentro da perspectiva do bem de família. É notório que a moradia de um indivíduo concede a ele e aos demais que também usufruem da morada, meios mais dignos de viver. A Lei Maior ao assegurar o seu direito a propriedade, assegura também o homem com uma vida mais digna.

Posto isto, a proteção ao bem de família enquadra-se de forma precisa nos preceitos pertinentes aos princípios constitucionais, a essência do resguardo da morada familiar é a Constituição Federal.

2.2. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA SOCIAL

A apresentação da evolução histórica social se faz necessária em função da importância que estas transformações geraram na sociedade para chegar na contemporânea concepção de entidade familiar.

A família de que cuida o legislador de 1916 é a tradicional, patriarcal, na qual o homem é o chefe da sociedade conjugal, o chamado varão. Neste tempo, os direitos da mulher casada são extremamente limitados.

A família ilegítima, aquela constituída fora do matrimônio, não é dada como relevante por aquele legislador, uma vez que se suas raras menções são feitas com o propósito de proteger a família legítima e não no intuito de reconhecer uma situação de fato, merecedora de proteção[1].

Dado ao grande número de ligações concubinárias constituídas, tendo como motivos os numerosos casamentos religiosos realizados com exclusão do âmbito civil, comuns no interior, em centros mais humildes; ou ainda pela ausência, felizmente ultrapassada hoje, da existência do divórcio, que surgiu somente em 1977 com a Lei do Divórcio (Lei 6515, de 26-12-1977).

Aos poucos, as decisões proferidas pelo judiciário inclinaram-se em defesa da concubina. Neste passo, constatou-se uma evolução, de maneira acentuada, sendo-lhe concedida direitos antes não cogitados.

O reconhecimento pela lei da situação de fato destes indivíduos se concretizou com o advento da Constituição de 1988, a qual consagrou a união estável, elevando seu status à condição de entidade familiar, protegida pelo Estado; bem como aquela composta por um dos progenitores e sua descendência, a conhecida família monoparental. Sendo oportuno, segue a transcrição do artigo 223 da Magna Carta de 1988 que consagrou este avanço social, concedendo a família esta especial proteção: “§ 3 Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”[2].Em se tratando da família monoparental, o parágrafo 4 do referido dispositivo também lhe fornece proteção: “§4 Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descentes”[3].

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2.3. CONCEITO DE FAMÍLIA

O vocábulo “família” pode ser visto sob o enfoque de mais de um prisma, podendo analisá-lo de maneira ampla ou restritivamente. Aquele pode ser observado diante de um grupo de pessoas que descendem, por consangüinidade, de um tronco ancestral comum, fazendo uso de um mesmo patronímico; ou ainda, abrangendo os consangüíneos em linha reta e os colaterais até o quarto grau[4].

Pode-se, ao invés da tentativa de conceituar família, enumerar institutos que regulam não só as relações entre pais e filhos, mas também entre os próprios conviventes, ou ainda, de pessoas ligadas por um vínculo não somente da consangüinidade, mas sim pela afinidade e afetividade. Dessa maneira, as unidades formadoras dos núcleos familiares seriam aquelas com origem no casamento, na união estável, na família monoparental, anaparental, pluriparental e nas famílias homoafetivas.

Cabe ressaltar que, diante da importância da família na sociedade, tendo em vista ser essa a construtora do alicerce social, o direito de família se encontra protegido pelo Estado. Neste aspecto, o interesse do Estado é maior que o individual, por esse motivo as normas concernentes à família, em sua maioria, são de ordem pública. Porém, a interferência do Estado não poderá ser demasiada a romper ocasionando a violação do princípio por ele mesmo assegurado: o da intimidade(artigo 5, X, CRFB).[5]

2.4. O BEM DE FAMÍLIA

Em nosso ordenamento jurídico, como a maioria dos demais países, não é admitida a responsabilidade pessoal das dívidas de um devedor, salvo em se tratando de inadimplemento de pensão alimentícia e depositário infiel (artigo 5, LXVII, CRFB).[6] Desse modo, o que ocorre é a vinculação desta responsabilidade ao seu patrimônio.

Atualmente, a matéria referente ao bem de família é regulada pelo Código Civil (art. 1711 a 1722), é o denominado Bem de Família Convencional ou Voluntário, e a Lei nº 8009/1990 que dispõe do Bem de família legal. Acrescenta-se que existe a instituição do bem de família rural, realizada através da Constituição Federal em seu artigo 5, XXVI, visando proteger a pequena propriedade rural.

Vale destacar que, após a publicação da Lei 8009 de 1990, o Código Civil de 2002 tratou do mesmo tema, entretanto, não se pode dizer que ocorreu a revogação daquela lei. Deve-se entender da seguinte forma: aquilo em que o Código Civil, sendo lei geral, se não opuser a lei especial, deve ser aplicado de forma subsidiária, visto que a norma especial prevalece sobre a geral.

Conforme disposto no artigo 1.712, Código Civil, pode ser instituído como bem de família somente o imóvel urbano ou rural, os respectivos bens móveis e também seus valores imobiliários, com a finalidade de conservar o imóvel e o sustento da família[7].

Em se tratando do bem de família legal (artigo 1, § único da Lei 8009/90), este pode ser alegado em qualquer tempo e grau de jurisdição. Para fazer jus ao benefício, é preciso que recaia sobre um único imóvel (urbano ou rural), onde seja residência do núcleo familiar; seja sobre as plantações e as benfeitorias de qualquer natureza; serão considerados com este efeito todos os equipamento, incluindo os de uso profissional; os imóveis de guarnecem a casa, possuindo como pressuposto a quitação destes[8]. Assim, com a comprovação destes requisitos, o devedor receberá a benesse da não concretização da constrição judicial de seu bem.

Porém, a impenhorabilidade é oponível, não sendo esta absoluta, em se tratando das hipóteses elencadas nos incisos do artigo 3 da Lei 8009/90, sendo elas: créditos dos trabalhadores domésticos e suas contribuições previdenciárias; o financiamento da casa própria (construção ou aquisição); impostos e taxas decorrentes do imóvel; hipoteca e ainda nos casos de fiança concedida nos contratos de locação[9].

 Cabe, ainda, uma ressalva no que tange aos possíveis efeitos destas previsões normativas. Em se tratando de bem voluntário, poderá gerar a impenhorabilidade e a inalienabilidade, ao passo que o bem de família legal somente poderá acarretar na impenhorabilidade.

Para finalizar este enfoque, de acordo com o art. 1711, caput, Código Civil, acrescenta-se que na hipótese do proprietário possuir 2 imóveis, um de pequeno e outro de grande valor, a impenhorabilidade recairá sobre aquele de menor valor[10], respeitando assim, o princípio da dignidade da pessoa humana. Entretanto, poderá o devedor se proteger pelo instituto do bem de família voluntário, limitando a instituição à fração de 1/3 de todo o seu patrimônio líquido, sob pena de excesso instruído se tornar ineficaz.

Portanto, ressalvados os casos previstos nos artigos 1715 do Código Civil e o artigo 3 da Lei 8009/90, nos quais a impenhorabilidade poderá ser oponível, tais institutos preservam o bem imóvel, bem como os móveis quitados que guarnecem a morada familiar.

2.5. A PROTEÇÃO AO BEM DE FAMÍLIA E O MATRIMÔNIO

2.5.1. Conceito de Matrimonio

A manifestação da vontade da união entre um homem e uma mulher de estabelecer um vínculo conjugal, reconhecido com a presença de um juiz, torna efetivo o laço do chamado matrimônio (artigo 1514 do Código Civil)[11].

O casamento cria deveres legais de diferentes naturezas, alguns de caráter patrimonial, outros não patrimoniais. Como finalidade social do casamento, pode-se apontar a criação e educação dos filhos, já as individuais remetem ao convívio sexual e o auxílio mútuo e recíproco[12].

2.5.2. Do O Matrimonio à concessão da proteção ao Bem de Família

Indubitável será a concessão às famílias oriundas dos laços sacramentais do casamento da proteção ao bem de família, seja voluntário ou legal. A união decorrente do matrimônio foi durante muito tempo à única a receber o amparo legal, assegurando-lhe direitos.

Essa proteção data do Código de 1916, tempo da sociedade patriarcal, com uma visão restrita de família, não reconhecendo aquelas havidas fora do casamento, essas recebiam a denominação de famílias ilegítimas. Neste momento, a conjuntura social impedia a dissolução do casamento, a mulher casada tinha seus direitos extremamente limitados não só pela lei vigente, mas também por seu esposo.

O alargamento do conceito de família ainda não era efetivamente questionado, a turbulência das novas entidades familiares ainda estava por vir. Assim, o legislador restringiu-se a conceder somente às famílias com origem no casamento à benesse do bem de família, marginalizando as famílias já existentes, porém ilegítimas, deste amparo.

2.6. A PROTEÇÃO AO BEM DE FAMÍLIA E A UNIÃO ESTÁVEL

2.6.1. Conceito de União Estável

Para se conceituar a União Estável faz-se necessário analisar a idéia de concubinato. Num primeiro momento, era visto como um ato imoral e desregrado o indivíduo que mantinha uma concubina, haja vista o julgamento social de que este relacionamento tinha um vínculo adulterino, sem estabilidade, baseado na relação sexual. Todavia, existia aquele que mantinham uma continuidade de suas relações sexuais, residiam sob o mesmo teto, se fazia presente à notoriedade pública desta relação, além de ambos os concubinos não possuírem impedimentos matrimoniais.

Dentro desta sistemática, a doutrina e jurisprudência, antes da Constituição Federal trazer a proteção à União Estável, pois esta ainda não era assim denominada, classificava o concubinato em puro (ou próprio) e impuro (ou impróprio). Destarte, ao concubinato puro lhe eram concedidos direitos, permitindo a produção de alguns efeitos (como a partilha de bens) se preenchesse algumas restrições contidas na legislação vigente. Já ao impuro tais direitos não eram proporcionados.

Com a inovação terminológica de entidade familiar introduzida com a Magna Carta, alguns autores preferem tratar a relação de concubinato puro como União Estável e aquelas classificadas como impuras, recebem a expressão “concubinato”, sem haver necessidade da identificação como impura, pois esta, por si só, já assim se configura[13].

O conceito de União Estável está descrito na Lei 9.278/96, em seu artigo 1723, no qual se aduz o reconhecimento da união estável como a entidade familiar, sendo esta realizada entre um homem e uma mulher, com notório conhecimento público da relação existente, além exigência da sua durabilidade e continuidade, tendo como objetivo maior à constituição de uma família[14].

Vale lembrar que, para enquadramento em entidade familiar, e assim, receber a benesse da proteção do Bem de família, faz-se preciso preencher os requisitos previstos nos parágrafos do aludido artigo.

Assim, não poderão ser chamadas de entidades familiares se os contraentes desta união possuírem impedimentos matrimoniais, estes elencados no artigo 1521, Código Civil[15]. Também não fará jus se estas possuírem causas suspensivas (art 1.523, Código Civil)[16] e só receberão a proteção se na mesma situação o casamento fosse permitido. Outro ponto de relevância é sendo os partícipes ainda casados com outras pessoas, entretanto, separados de fato, poderão obter a proteção e serem apontados como entidade familiar.

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2.6.2. Da União Estável à concessão da proteção ao Bem de Família

Com o advento da Constituição de 5 de outubro de 1988, foi suprimida a omissão pelo então legislador de 1916, o qual não reconhecida a situação de fato das famílias oriundas fora do matrimônio, as chamadas famílias ilegítimas. Como já exposto, a União Estável ganha uma nova roupagem, sendo elevada ao status de entidade familiar, conferindo-lhe, com a sua expressa declaração constitucional, direitos dantes inexistentes, apesar de já fazerem jus a esses.

Não resta dúvida, sendo mais que plausível o consentimento do benefício da proteção do Bem de Família nos casos em que a lei assim o declarar.

Vale transcrever, o trecho que concede a entidade familiar, devendo também ser a União Estável lembrada como espécie do gênero entidade familiar – como já comprovada -, e reafirmar a sua proteção ao Bem de família tanto voluntário, de acordo com o Código Civil : “Art 1.711. Podem os conjugues, ou a entidade familiar, mediante escritura pública, ou testamento, destinar parte do seu patrimônio para instituir o bem de família […]”[17]; bem como o legal (Lei 8009/90):“Art 1.O imóvel próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável[…]”[18].

Para corroborar com este entendimento, alguns julgados decidiram pela impenhorabilidade do bem de família em se tratando da reconhecida União Estável. Segue uma citação do Recurso Especial nº 103011/RJ: “Ementa. União Estável. Configurada a União Estável aplica-se, por inteiro, a disciplina da Lei 8009/90 […]”[19].

 As sentenças são baseadas em princípios constitucionais tais como a isonomia (Art 5, caput, da CRFB)[20] entre os indivíduos, uma vez que a presente relação é tão digna quanto aquela concretizada pelos laços matrimoniais. Não possuindo razão para a discriminação, já que existentes os pressupostos para a configuração da União Estável, retirando assim, qualquer resquício de imoralidade desta união.

Ainda no citado artigo, se verifica a proteção à propriedade. Ora, o bem de família sendo a morada familiar torna-se notória a proteção deste bem, tal como aqueles que quitados guarnecem este lar. Outrossim, cabe reforçar este amparo diante da garantia à moradia dentro dos direitos social, dispostos no artigo sexto do capitulado dispositivo.

Dentro deste esclarecimento principiológico, há relevância o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (Art 1, III, CRFB)[21] que reúne os supra citados princípios, visto que para a garantia de uma vida digna,  implicitamente, surge o conceito de igualdade e propriedade que lhe proporciona uma segurança dentro do ambiente social.

Em última análise que se passa a expor, com a atribuição do antigo pátrio poder, atualmente chamado de poder familiar, aos pais em relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados[22], torna mais efetiva e razoável a proteção ao bem da família, tendo em vista que esta garantia facilita aos pais proporcionar aos seus filhos o devido zelo material e moral dentro da morada familiar.

2.7. A PROTEÇÃO AO BEM DE FAMÍLIA E A UNIÃO ADULTERINA

2.7.1 Conceito de União Adulterina

A União Adulterina poderá ser conceituada através da tão temida vida paralela e tornou-se uma situação de fato, freqüente, em muitas famílias brasileiras. Todavia, como já foi exposta anteriormente, tal situação para ser considerada adulterina, ou ainda, para os autores que ainda preferem a expressão “concubinato”, não deve preencher os requisitos estipulados para a formação da União Estável.

Em suma, não estando os partícipes munidos do laço matrimonial, bem como dentro dos requisitos da União Estável, por exclusão, serão considerados concubinos, conseqüência de uma relação adulterina.

2.7.2. Da União Adulterina à concessão da proteção ao Bem de Família

  A base para análise da concessão ou não da proteção do Bem de família à União Adulterina é exatamente a sua caracterização como concubinato impuro, sendo certo que, a esta ultrapassada classificação ainda lhe pode servir com alguma valia quando estiver perante um caso de definição de União Estável ou Adulterina.

Desse modo, mister observar que o legislador admitiu o concubinato adulterino, quando um ou ambos os conviventes forem casados, porém separados de fato, com relacionamento duradouro e contínuo; deixando ao arbítrio do juiz decidir se se caracteriza, ou não, a união estável, por terem os conviventes o objetivo comum da constituição de uma família. Fica claro que neste caso, para ocorrer a proteção ao bem de família, é preciso que a união adulterina seja considerada união estável, e assim, possuir o título de entidade familiar assegurada pela lei.

Conseqüentemente, aquele que possuir a separação judicial já não mais se encontra na união aqui representada, visto que está ausente o adultério.

Para finalizar o raciocínio, a conclusão é de que se os conviventes não estiverem separados seja de fato ou judicialmente, torna-se óbvia a negação do amparo à proteção do bem de família, visto que vai de encontro aos valores morais, éticos e aos bons costumes semeados na sociedade e defendidos pela Constituição brasileira.

2.8. A PROTEÇÃO AO BEM DE FAMÍLIA E A FAMÍLIA MONOPARENTAL

2.8.1. Conceito de Família Monoparental

Para entender o vínculo monoparental é preciso atentar para a presença dos pressupostos da diferença de gerações entre seus membros e não haver relacionamento de ordem sexual entre eles[23]. Posto isto, a família monoparental pode ter origem na viuvez, separação, no divórcio, na adoção ou na inseminação artificial por mulher solteira.

2.8.2. Da Família Monoparental à concessão da proteção ao Bem de Família

A Carta Magna de 1988 deu amplitude ao conceito de família, abrangendo não somente aquela formada fora do casamento, nos casos da união estável, mas também, aquela composta por um dos progenitores e sua descendência, a chamada família monoparental.

Não há questionamentos acerca da concessão da proteção ou não a essa família do lar e a extensão dada aos móveis ali encontrados, haja vista a previsão expressa na Constituição em seu artigo 223, § 4[24], equiparando a família monoparental à entidade familiar.

 Vale salientar que a chegada a esse entendimento do legislador tem fulcro nos princípios constitucionais da isonomia, propriedade, moradia e da dignidade da pessoa humana, uma vez que são todos compatíveis com a situação de fato vivida pela família composta por uma dos progenitores e sua descendência.

Em se tratando, por exemplo, da condição do ser humano solteiro (a), tal como o viúvo (a), faz-se necessário, primeiramente, a realização da ponderação de valores entre o princípio da Legalidade (Art 5, II, CRFB)[25] e os princípios da Isonomia (Art 5, caput, CRFB)[26] e da Dignidade da pessoa humana (Art. 2, II, CRFB)[27].

Nessa linha, deve ser analisado se a interpretação literal da norma deverá prevalecer diante da interpretação realizada consoante ao sentido social do texto jurídico. Tendo em vista que a lei é silente nestes casos, não estando prescrita a proteção do bem de família, os solteiro e viúvos não são eleitos à condição de entidade familiar. Ocorrendo isso, não poderiam socorrer à Lei do bem de família, assim como não poderiam elegê-lo, voluntariamente, como bem de família, não obtendo, desse modo, o benefício da impenhorabilidade de sua morada e aos móveis quitados que fazem parte desta.

Não parece justo excluir tais indivíduos pelo simples fato de estes não estarem vivendo em grupo, e abandoná-lo sem proteção o indivíduo que já sofre com o doloroso sentimento da solidão.

Registra-se que esses indivíduos devem possuir os mesmos direitos daqueles que contraíram matrimonio, pois são assegurados a todos a igualdade entre os homens, não fazendo sentido esta discriminação daquele que mora sozinho, ocasionando na penhora do seu lar; ao contrário do casado, pois a este lhe foi fornecido o amparo legal do bem de família. Ambos, de alguma forma, fizeram jus ao seu lar, e assim, ambos devem receber tal benefício, tornando eficaz o princípio da isonomia (Art. 5, caput, CRFB)[28].

Ainda nesta perspectiva, merece destaque a propriedade privada (Art. 5, caput, CRFB)[29] que também é garantida ao homem, e esta se encontra amarrada ao direito social da moradia (Art 6, caput, CRFB)[30].

Para solucionar tão impasse, a jurisprudência já assentou o entendimento que a norma do bem de família não se limita ao resguardo da família, seu escopo é direcionado à proteção de um direito fundamental da pessoa humana: a moradia.

Diante disto, a decisão de sua nivelação ao status de entidade familiar foi mais do que acertada pelo legislador, não cabendo a interpretação de uma forma de compensação, mas sim como uma constatação da situação de fato que este núcleo familiar possui todas as características de uma família.

Posto isto, deverá ser conservada a teleologia da norma, interpretando-a no seu sentido social, garantindo o teto para cada pessoa, seja ela solteira, viúva, divorciada, pouco importando. Nota-se, tal posicionamento conforme Resp 182223/ SP:“[…]Data venia, a Lei 8009/90 não está dirigida a um número de pessoas. Ao contrário – à pessoa […].”[31]

2.9. A PROTEÇÃO AO BEM DE FAMÍLIA E A FAMÍLIA ANAPARENTAL

2.9.1 Conceito de Família Anaparental

Tendo como ponto de partida a vasto conceito de família atual, pode-se auferir que não se faz necessária à diversidade de sexo, bem como a diferença de gerações para gerar efeitos no direito de família. A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estrutura com este propósito, deve ter seu reconhecimento como a família anaparental[32].

2.9.2. Da Família Anaparental à concessão da proteção ao Bem de Família

Seria duplamente injusto se a família anaparental não recebesse a proteção do bem de família, uma vez que esta já carrega o sofrimento da ausência de seus genitores, pois sua constituição se dá através dos irmãos. Merecem sim a proteção estatal igualitária aos demais casos de entidades familiares, visto que, assim como ocorre na família monoparental, os princípios constitucionais da isonomia, propriedade, moradia e da dignidade da pessoa humana devem ser preservados. Não há como negar que esta estrutura tem como base tratar-se também da composição de uma família.

2.10. A PROTEÇÃO AO BEM DE FAMÍLIA E A UNIÃO HOMOAFETIVA

2.10.1. Conceito de União Homoafetiva

A busca de um conceito para a família homoafetiva torna-se difícil diante da tão arraigada concepção da relação interpessoal entre um homem e uma mulher, em muitos dos casos, constituídos pelos laços matrimoniais.

A homossexualidade remete a tempos passados, acompanha a história do homem, entretanto, sempre foi vivida clandestinamente na sociedade. Atualmente, diante de inúmeras uniões homossexuais, não cabe mais a homossexualidade ser vista como uma doença, pecado. Assim, o termo “homossexualismo” foi substituído por homossexualidade, pois o sufixo “ismo” significa doença, enquanto que “dade” quer dizer modo de ser[33].

2.10.2. Da União Homoafetiva à concessão da proteção ao Bem de família

A Constituição de 1988 reconheceu a existência de relações havidas fora do casamento, assim, prestou sua proteção tanto à União estável como a às famílias monoparentais. O artigo 226 da CRFB é uma norma de inclusão, baseada no vínculo afetivo e da constituição de uma família, não deveria excluir as relações sem diversidade de sexos, pois estas também possuem o intuito da constituição da família.

Para tanto, é preciso trazer à tona os princípios norteadores do direito, a frente o princípio da dignidade humana. Os princípios da igualdade e liberdade estão expressos na Magna Carta, concedendo proteção a todos, sem distinção de qualquer natureza, assim, sem discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade. O homem, conforme assegurado constitucionalmente, tem a liberdade de escolha de sua orientação sexual, porém, tal direito é afrontado com condutas preconceituosas. Posto isso, fica claro o desrespeito ao indivíduo em função da sua orientação sexual, violando a dignidade da pessoa humana, pois não há como ser digna a vida de alguém que se torna invisível perante a sociedade, sem a proteção do ordenamento jurídico.

A omissão da lei, neste caso específico, tem raízes na moral e nos bons costumes sociais, fazendo com que semeie no legislador o medo de aprovar projetos de lei que visem assegurar direitos às uniões homoafetivas. Assim, o temor da perda de seu eleitorado lhe inibe de tomar decisões mais enérgicas a favor da homoafetividade. A omissão não deve ser uma opção ao codificador, a carência deste não pode ser refletida como ausência de direito.

Registra-se que na Lei de Introdução ao Código Civil em seu artigo 4, é dita que ao juiz cabe decidir, mesmo sendo a lei omissa, utilizando da analogia, costumes e dos princípios gerais do direito[34]; deve-se, ainda, como indica o artigo 5 da LICC, que a decisão deve atender aos fins sociais a que a lei se dirige, visando o bem comum[35]. Desse modo, a leitura da lei, ou nos casos de sua ausência, deve ser feita com o intuito de uma decisão justa e democrática, não devendo limitar-se a pura interpretação literal da norma.

A jurisprudência tem adotado um entendimento que tais uniões constituem as sociedades de fato, titulada no artigo 981 do Código Civil, nas quais são as pessoas que celebram um contrato com a obrigação de contribuírem entre si, com bens ou serviços, e as suas partilhas dos resultados[36]. Merece ser analisada tal hipótese, uma vez que a origem do vínculo entre essas duas pessoas não é de obrigação negocial, sem a finalidade de obtenção de lucro, mas sim a amorosa, de afeto, carinho.

A modificação deste entendimento iniciou-se com a justiça do Rio Grande do Sul, em 1999, concedendo a competência para as decisões acerca das uniões homoafetivas para os Juizados especializados da família[37]. Outro importante julgado foi, também pela justiça gaúcha, em 2001 que reconheceu a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, proporcionando ao companheiro o direito à herança: “[…] Não se permite mais farisaímos de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas […]. O patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável […]”.[38]

Uma importante constatação, realizada pela Desembargadora Maria Berenice Dias, ao analisar o conceito legal de família na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), insere as uniões homoafetivas na sociedade. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a mulher, acabou por cunhar um novo conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros[39]. A referida lei em seu artigo 2 expõe que: “Toda mulher, independentemente de raça, etnia, orientação sexual […] goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. Complementando este entendimento, o artigo 5, do mesmo diploma, dispõe que independem de orientação sexual todas as situações que configuram violência doméstica e familiar. Podendo ser interpretado como as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidades familiares [40].

Com todas as transformações decorrentes da sociedade, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar pelos tribunais passou, ainda que timidamente, a se fazer presente no judiciário. Felizmente, o princípio da dignidade da pessoa humana começa a preponderar sob o preconceito.

Posto isto, apesar da não disposição expressa do legislador, mas conforme as orientações jurisprudências, as uniões homoafetivas começam ser consideradas entidades familiares, possuindo, com este status a proteção do bem de família, insusceptível de ser penhorado, salvo suas exceções na lei.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade está em constante transformação. A evolução histórica social foi delimitada por fatos sociais que fomentaram nos indivíduos a busca do reconhecimento de seus direitos.

A intervenção do Estado na sociedade, ajudou a instituir o casamento como uma regra de conduta a fim de organizar a estrutura social. Ditou-se para cada um dos ocupantes da estrutura – pai, mãe e filhos -, papéis bem definidos, facilitando o controle estatal.

A sociedade dos tempos passados era a patriarcal, com forte influência religiosa, possuindo o pai função dominadora no núcleo familiar, ausentes eram os direitos da esposa e vontades dos filhos. Aos poucos, essa realidade foi perdendo sua força. A chegada da Revolução Industrial forçou o ingresso da mulher no mercado de trabalho, refletindo numa mudança nos papéis exercidos dentro da composição familiar, ganhando espaço e reconhecimento de direitos. O Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) e a Lei do Divórcio(EC 9/1997 e Lei 6.515/1977) também auxiliaram na conquista desses direitos.

Neste contexto, inúmeros já eram os casos de uniões apreciadas somente no âmbito religioso, tendo como conseqüência a invisibilidade no campo civil, ocasionando o não reconhecimento de direitos. O advento dos métodos anticonpcionais e a inseminação artificial ensejou uma independência social cuja afetação se deu tanto nos homens como nas mulheres. Aquela antiga concepção de família oriunda dos laços matrimoniais, instituída pelo Estado como exemplo de conduta a ser seguido, não mais era considerada única.

Aos poucos, os novos vínculos são formados, ora pela consangüinidade, ora pela afinidade, ora pela afetividade. Não havia mais espaço para a marginalização destas novas relações. A busca do reconhecimento dos direitos humanos frente ao Estado fomentou uma revolução, na qual o Estado se viu forçado a regulamentar tais situações de fato, não mais sendo possíveis a sua mera abstenção do caso.

A Constituição de 1988 veio suprir uma lacuna legislativa de há muito tempo carecedora de integração. Ela foi conseqüência desse crescente ímpeto de mudança movido pela sociedade marginalizada. O reconhecimento da União Estável e da família monoparental (artigo 226,  3 e 4 da CRFB) configurou um avanço significativo em prol do indivíduo, uma vez que já possuía em sua relação o caráter familiar, entretanto, não lhe eram concedidos os direitos de tal.

Dentro deste contexto, é notória a essência dos princípios constitucionais na regulamentação dos direitos de família. Pode-se elencar como primordial o princípio à dignidade da pessoa humana (artigo 1, III, CRFB) , devendo as normas jurídicas serem interpretadas à luz deste princípio. Há de se reconhecer que o seu campo de incidência é bastante vasto, porém, indispensável. Ao prover este princípio, dentro do estudo em questão do bem de família, outros princípios são desencadeados, tais como o princípio fundamental da propriedade privada (artigo 5, caput, CRFB) junto com o direito social da moradia (artigo 6, caput, CRFB). Ora, fica clara a ligação entre estes, uma vez que a concessão da proteção da morada familiar proporciona uma vida mais digna aquela família, ajudando a prover, com presteza, o desenvolvimento dos indivíduos do núcleo familiar.

As aparentes diferenças num primeiro momento entre as contemporâneas entidades familiares não podem engessar o pensamento do legislador, nem mesmo promover preconceito entre os indivíduos da estrutura social como um todo. É salvaguardado o princípio da isonomia (artigo 5, caput, CRFB) na Lei Maior, devendo a norma jurídica instituir a igualdade entre os homens. Deve-se tratar os iguais de maneira igual, assim como os desiguais de forma diferenciada na medida de sua desigualdade. Sua efetividade se dará conforme o caráter das relações comparadas, de modo que, estando presentes os pressupostos basilares e a sua visão de constituição de uma família, não poderá ocorrer a discriminação na concessão de direitos entre aquelas. Corroborando com esta linha de pensamento, pode-se apresentar o princípio da liberdade (artigo 5, caput, CRFB), também constitucional, em se tratando das relações homoafetivas, estendendo essa liberdade a orientação sexual do indivíduo.

Registra-se que a sociedade é um ser mutante. Inegável são as transformações nos valores e bons costumes, devendo, assim, também ser as leis. A lei é um reflexo da sociedade atual, porém, aquela nem sempre consegue acompanhar os largos passos galgados pela coletividade. Posto isto, redobrado é o trabalho da doutrina e jurisprudência a fim de resguardar os direitos ainda não regularizados pelo ordenamento jurídico. Na lacuna na lei, não pode o juiz ausentar-se da decisão, devendo este proferir sentença baseado na analogia, costumes e nos princípios norteadores do direito. Cabe salientar que a interpretação do juiz deve sempre atender os fins sociais, visando o bem comum.

No que tange à ponderação de valores entre a norma expressa, implícito está o princípio da legalidade (artigo 5, II, CRFB), com a sua interpretação literal da norma jurídica, e interpretação teleológica. Deve-se, claro, sacrificar aquela em prol da busca do bem maior: uma sociedade justa.

Em conclusão, a jurisprudência em muito avançou na concessão dos direitos em defesa das atuais concepções de entidade familiares, garantindo, significantemente, a proteção do bem de família aos mais diversos núcleos familiares. Todavia, a não regulamentação ainda causa distanciamento de algumas composições familiares das demais que recebem, de modo expresso, o amparo legal. A mentalidade social avança com o desprendimento de preconceitos arraigados de tempos passados, basta agora que a lei a acompanhe.

 

Referências
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Notas:
[1] RODRIGUES, Silvio, Direito Civil: direito de família, v.6, 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 254

[2] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988, p. 118

[3] Ibid, p.119

[4] DE PAULO, Antonio. Pequeno Dicionário Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p.153

[5]BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988, p.10

[6] Ibid, p.14

[7] BRASIL. Código Civil e Constituição Federal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.224

[8] Ibid, p. 285

[9] Ibid, p.285

[10] Ibid, p. 224

[11] BRASIL. Código Civil e Constituição Federal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.198

[12] WALD, Arnaldo. O novo direito de família. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 53

[13] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v.6, p. 258

[14] BRASIL. Código Civil e Constituição Federal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 225

[15] Ibid, p. 199

[16] Ibid, p. 200

[17] Ibid, p.224

[18] Ibid, p. 284

[19] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp nº 103011/RJ. Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO. Data do julgamento: 25.03.1997, DJ 16.06.1997

[20] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988, p. 10

[21] Ibid, p. 9

[22] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito de família. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v.6, p. 356

[23] DIAS, Maria Berenice. Manual do direito das famílias. 4.ed. São Paulo: RT, 2006, p.194

[24] BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988, p. 118

[25] Ibid, p. 10

[26] Ibid, p.10

[27] Ibid, p. 9

[28] Ibid, p. 10

[29] Ibid, p.10

[30] Ibid, p.15

[31] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp nº 182223/RJ. Relator: Ministro SÁLVIO FIGUEREDO TEIXEIRA. Data do julgamento: 06.02.2002, DJ 07.04.2003

[32] DIAS, Maria Berenice. Manual do direito das famílias. 4.ed. São Paulo: RT, 2006, p.46

[33] Ibid, p. 183

[34] BRASIL. Código Civil e Constituição Federal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1

[35] Ibid, p.2

[36] Ibid, p, 124

[37] DIAS, Maria Berenice. Manual do direito das famílias. 4.ed. São Paulo: RT, 2006, p.189

[38] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp nº 272.742.742/PR. Relator: Ministro NANCY ANDRIGHI. Data do julgamento: 28.05.2001, DJ 17.03.2001

[39] DIAS, Maria Berenice. Manual do direito das famílias. 4.ed. São Paulo: RT, 2006, p. 190

[40] Ibid, p.191


Informações Sobre o Autor

Raquel de Siqueira Martins

Advogada com Pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho


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