Sumário: 1. Sistematização da história da lógica. 2. Lógica e teoria do conhecimento: o caráter formal da lógica do processo telemático. 3. A complexidade cognitiva do dado-de-fato processual. 4. Cognição na metodologia e na lógica do processo. 4.1. Níveis e sentidos da cognição processual: a ideologia não desformaliza a lógica. 5. Notas conclusivas. 6. Bibliografia.
1. Sistematização da história da lógica.
Consciente do risco intelectual existente sobre os que se enveredam pela temática da lógica, podemos sistematizar a sua história em três principais períodos: 01o- aristotélico; 02o- booleano; 03o- contemporâneo.[1]
O primeiro período tem o seu marco inicial em Aristóteles. Este autor foi o primeiro grande sistematizador e difusor da lógica,[2] considerando-a, nos Analíticos anteriores, como uma “ciência demonstrativa”.[3] O estudo do discurso dos Sofistas e o do raciocínio de Platão abriram caminho para Aristóteles desenvolver o silogismo, primeiro instrumento lógico de análise formal do discernimento comum, o qual, segundo este filósofo, consiste no raciocínio concludente, onde: da suposição de algumas coisas, outras delas derivam necessariamente.[4] Foi a partir de Aristóteles que a lógica firmou-se como a ciência que estuda as leis ideais do pensamento. Sua origem etimológica radica no grego: logike, episteme, significando a ciência do logos.[5] Para reter a pura forma Aristóteles valeu-se de símbolos-de-variáveis, livrando-se de tudo que fosse extralógico para expressar o silogismo numa tríplice relação na qual o termo menor e o médio estejam contidos na totalidade do maior.[6] Foi com esta linguagem que este filósofo, nascido há 384 anos a.C., na cidade de Estagira, na Macedônia, atingiu o formalismo lógico, ou seja, a lógica como teoria formal. Para chegar ao silogismo, Aristóteles fez, efetivamente, uso de uma linguagem simbólica.[7] Mais ainda, somente conseguiu reter a “pura forma” utilizando-se precisamente de símbolos, empregando inclusive notações que serviam de linguagem às formas lógicas. Neste sentido, Vilanova comprova que Aristóteles chegou ao formalismo lógico não só pela recorrência a uma linguagem simbólica, até porque com isso alcançou apenas as variáveis de objeto e de predicado, mas, maiormente, pelo fato de criar notações autônomas através das letras.[8] A partir daí pôde-se saber formalmente, independentemente de qualquer correlação ou vinculação dos conteúdos fático-reais com os respectivos símbolos, que numa relação de includência:
se p implica v e v implica l, então p implica l.
A lógica aristotélica ficou conhecida na história como lógica clássica, ou lógica tradicional, que se sustenta em três princípios básicos: princípio da identidade, segundo o qual, todo objeto é idêntico a si mesmo: x = x; princípio do terceiro excluído, pelo qual, dentre duas proposições contraditórias uma delas é verdadeira, porque uma é a negação da outra: p v ﹁ p; princípio da contradição,[9] através do qual, dentre duas proposições contraditórias uma delas é falsa: ﹁(p Λ ﹁ p).[10]
O período aristotélico perdurou até o início do século XIX, e, segundo Newton da Costa, notabilizou-se pela sistematização de variados setores da lógica com realce para as escolas: peripatética, dos megários e a dos estóicos, bem como pela contribuição outorgada durante a Idade Média por W. Ockhan (1285-1348), que propôs uma lógica trivalente.[11]
O segundo período é delimitado pelo advento da Lógica de George Boole (1815-1864), que em paralelo com A. de Morgan (1806-1871), W. S. Jevons (1835-1882) e outros pensadores empregaram idéias algébricas à lógica. Portanto, resta caracterizado pelo uso da linguagem algébrica nos sítios da lógica.[12] É aqui que se encontra o prelúdio da lógica simbólica com o uso da álgebra atingindo desde as variáveis-de-objeto e variáveis-de-predicado, bem como as constantes lógicas.
O terceiro período (contemporâneo) inicia-se a partir do século XX e mantém-se até os dias atuais. É subdividido em duas etapas. A primeira, que vai até 1930, caracteriza-se: pela codificação da lógica modal moderna por C. I. Lewis; pela construção de uma lógica heterodoxa, alternativa à clássica, pelo holandês L. E. J. Brouwer e seu discípulo A. Heyting; pela contribuição do polonês Jan £ukasiewicz, que formulou os primeiros sistemas lógicos polivalentes, de modo distinto do pensado na Idade Média, superando, inclusive, o princípio da contradição pela demonstração de que o silogismo não era dele dependente.[13]
A segunda etapa desse período notabilizou-se pela lógica desenvolvida por G. Frege (1848-1925), que idealizou um sistema lógico com inúmeras semelhanças aos atuais, inclusive incursionando pela teoria da quantificação, afastando-se da forma algébrica e vertendo-se para o método lingüístico-proposional. Segundo parte considerável dos lógicos, dentre os quais destacou-se especialmente Russell, o método lingüístico é superior ao algébrico. As lógicas matematizantes também lograram desenvolvimento, sobretudo pela influência de Norbert Wiener (criador da cibernética) com o estabelecimento de um discurso lógico rigorosamente unívoco, sem o problema das ambigüidades próprias da linguagem humana.[14] Pelo cálculo sentencial obtém-se a superação da equivocidade própria da linguagem humana pela sua substituição por uma linguagem algebricamente uníssona.[15] Isso é deveras relevante para o desenvolvimento de nossa teoria sobre o processo telemático e, sobretudo, para a do cibernético, à medida que demonstra a possibilidade de tradução de problemas jurídicos, descritos pela linguagem jurídica, para uma linguagem computacional algébrica com recorrência à Inteligência Artificial. É marcada, ainda (esta fase) pelo teorema da incompleteza de K. Gödel; pela teoria geral dos processos computáveis de Allan Turing; a teoria da recursão de A. Church; a teoria de modelos de A. Tarski; pela introdução das técnicas de modelos construtivos, do forcing e modelos booleanos, comprovando-se “… a independência do axioma da escolha com relação aos outros axiomas da teoria de conjuntos, elaborando-se matemáticas não cantorianas etc.”; enfim, pelo advento de várias lógicas não clássicas. Como anota Newton da Costa, a lógica progrediu tanto na atualidade que restou inviável o domínio de todas as suas vertentes.[16]
Em resumo, pode-se classificar a lógica na atualidade em dois diferentes e grandes modelos: o lingüístico e o algébrico. Estes sistemas, por sua vez, envolvem inúmeras subespécies de lógicas, cuja análise escapa ao âmbito do objeto deste artigo. Portanto, aqui tomaremos a lógica enquanto ciência demonstrativa da ‘realidade’ processual cartácea e como pressuposto de sua transformação em ‘realidade virtual’[17].
2. Lógica e teoria do conhecimento: o caráter formal da lógica do processo telemático.
O advento da informática, sucedido pelo da telemática, outorgou uma nova realidade à lógica, transformando-a em algo concreto e palpável. A aplicação desses saberes ao direito processual, por sua vez, exige o estudo interdisciplinar das estruturas formais do pensamento. Porém, nossas injunções analíticas sobre a lógica não devem ser interpretadas como demonstração de adstrição de nossa forma de enxergar o direito ao universo estritamente formal-abstrato, livre dos influxos das valorações ideológicas inerentes aos que prolatam decisões judiciais.[18] Não desprezamos o conhecimento sociológico, psicológico, econômico e demais influências alopoiéticas sobre o direito. A visão proporcionada pela lógica não exaure o universo jurídico-processual, como diz Lefebvre: ela não se basta e não basta, tanto que inclusive Lourival Vilanova, lógico sabidamente positivista, apresentava-se contrário aos extremismos do dogmatismo, do sociologismo, do jusnaturalismo e do logicismo, também.[19]
Pois bem, como se pôde antever, é grande a dificuldade de precisar-se uma definição para a lógica, e isto se deve tanto à ambivalência que a expressão derivativa (logos) possui quanto à diversidade de sentidos atribuídos por cada pensador, de acordo com suas respectivas ideologias. Em Hegel, por exemplo, encontramos a expressão ciência da lógica a designar o “… sistema de leis ontológicas, um conjunto articulado de categorias que expressam os modos de ser da própria realidade”.[20] Do ponto de vista lingüístico, de acordo com Newton da Costa, o sistema lógico pode ser representado por uma classe de técnicas capazes de proporcionar a extração de novas proposições a partir de conjuntos dados de proposições. Logo, através da lógica, é possível: “… efetuar inferências e edificar teorias. Com o auxílio da lógica, assim, obtêm-se conclusões de dadas premissas e, ademais, pode-se deduzir conseqüências dos princípios básicos que definem uma ciência”.[21] A lógica, portanto, proporciona sempre um ponto de vista sobre o conhecimento, mas, apesar disso, não se deve considerar como sinônimas as expressões: ‘lógica’ e ‘teoria do conhecimento’. Johannes Essen evidencia que, em sua acepção restrita, a lógica vincula-se à correção formal do pensamento, prescindindo da referência concreta aos objetos, ao passo que a teoria do conhecimento verte-se precisamente para a significação objetiva do pensamento, sem, no entanto, prescindir daquela referência aos objetos.[22]
Disto se evidencia que a lógica incide tanto sobre o mundo real quanto sobre o conhecimento construído a partir da realidade, possibilitando, inclusive, uma valoração cognitiva em níveis diferentes.[23] Aliás, já em Kant encontramos uma subdivisão do conhecimento derivada de suas duas principais fontes: receptividade das impressões; e a capacidade decorrente da representação da receptividade das impressões, e que nos permitem conhecer um dado objeto. Na primeira, o objeto do conhecimento nos é oferecido. Na segunda, ele é pensado com base naquela representação, de modo que o conhecimento é constituído por intuições e conceitos.[24] Assim, pode-se subdividir os planos cognitivos em: transcendental e empírico-positivo, sendo que aquele condiciona este. A teoria do conhecimento, por sua vez, arrima-se na correlação indispensável que prioritariamente é posta: “em sua universalidade, entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento em geral”.[25] Para Reale, bem que seria possível denominar a teoria do conhecimento de lógica, no entanto, tal proposta estaria a empregar a expressão (lógica) em sua acepção ampla, de maneira a abranger a lógica transcendental (gnoseologia) e a lógica positiva, acarretando a inconveniência da imprecisão bem anotada por Essen, como vimos acima.
Em homenagem ao desiderato que nos propomos, parece-nos lucidamente possível vincular a lógica a dois distintos tipos de investigação científica: a formal ou analítica, com destinação às pesquisas pertinentes à validade formal das proposições, onde situamos a lógica informática, telemática e cibernética; e a concreta (metodologia), afeta às injunções fáticas estabelecidas entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível do sistema processual, constituindo-se num processo explicativo dos seus mais variados setores. Aquela se revela como atividade abstracionista, esta é empirista.
O fato de o processo judicial constituir-se num fenômeno possuidor de uma metodologia própria denuncia que bem se lhe aplica a lógica concreta, sem dúvida, pois que consiste em atividade jurídica ontológica, sobretudo porque tem por causa de pedir determinados fatos jurídicos ocorrentes no mundo do ser e que, associados ao pedido, designam o objeto litigioso da cognição processual a ser procedida pelo juiz (sujeito cognoscente). Mas, apesar disso, nem a lógica do processo tradicional cartáceo e, menos ainda, a do processo telemático podem ou devem ser concebidas apenas como metodologias (lógicas concretas), ou, por outro lado, como meras espécies do gênero lógica geral (analítico-formal) aplicadas à atividade jurisdicional (como quis Kelsen). A lógica do processo telemático exige indispensavelmente uma transmudação da linguagem jurídica em linguagem computacional, algoritmizada. Assim, requererá o uso de proposições aléticas (mas não binárias, pois têm de ser compostas por mais de dois valores) tradutoras da realidade jurídico-deôntica a fim de permitir o processamento eletrônico de informações processuais. Logo, a lógica do processo telemático é também lógica formal[26] (própria e diferenciada da lógica geral utilizada com exemplificações processuais) vertida para uma duplicidade metodológica: a jurídico-processual e a telemática, donde também se realça explícito o seu enquadramento na modalidade de lógica paraconsistente.
3. A complexidade cognitiva do dado-de-fato processual.
Na generalidade lógica, o conhecimento é considerado como um fato, ainda que seja possível discutir as possibilidades de expandi-lo ou aperfeiçoá-lo. Na especificidade da lógica processual, o conhecimento também há de ser aceito como um fato. Ao tratar do assunto, Lefebvre aponta as seguintes características do conhecimento: praticidade, isto é, antes de se elevar ao nível teórico deve-se começar pela experiência, pois apenas a prática notabiliza-se como capaz de pôr-nos em contato com as exigências objetivas; socialização e historicidade.[27] Trasladando as características genéricas do conhecimento para a especificação do direito processual, constatamos a presença de todas elas, mas realçamos o caráter relacional da cognição processual sem o qual os demais não se concretizam no universo jurisdicional. Na lógica processual, independentemente de tratar-se de relação processual telemática ou cartácea, a idéia de causa de pedir está a exigir a ocorrência de um fato,[28] que não deixa de ser social e histórico, sobre o qual se centrará a cognição judicial. Aliás, o nosso CPC, 282, III, ao adotar a teoria da substanciação, requer do autor, já na petição inicial, a demonstração não apenas de um único fato, mas de dois: cronologicamente falando, primeiramente, exsurge o fato referente à causa de pedir remota (fato instituidor do direito material em face das partes), porque historicamente antecede à causa próxima; em seguida, ocorre o segundo fato, que representa a causa próxima (fato agressor ou ameaçador de agressão do direito subjetivo a ser discutido no processo). Esses dois fatos devem constar da petição inicial, porque assim impõe a metodologia processual. E é por conta dessa metodologia que, na lógica processual, o dado de fato objeto do conhecimento jurisdicional será sempre complexo, pois pressupõe a ocorrência de dois fatos jurídicos.[29]
O conhecimento processual, então, inicia-se pela experiência fática traduzida pelo objeto litigioso do processo (causa de pedir associada ao pedido) e daí formaliza-se pela análise lógica das questões suscitadas e discutidas na relação jurídica processual, bem como pelas cognoscíveis de ofício pelo juiz (CPC, 267, § 3o). A idéia de Kant de secionar o conhecimento em empírico e formal cai como uma luva na nossa teorização processual, pois assim como todo conhecimento tem como ponto de partida a experiência,[30] todo processo pressupõe e parte da experiência relacional humana, ainda quando vinculado a ato advindo da natureza ou perpetrado por animais referirá mediatamente a relações humanas. Mas isto não quer significar, necessariamente, que a experiência sempre designe um fato concreto, como reconheceu Kant. É que o nosso próprio conhecimento pode ser considerado como ponto de partida dele mesmo, neste contexto é que se pode falar de conhecimento: 01- apriori, ou seja, independente da experiência fática e de todas as impressões dos sentidos, subdividindo-se em puro e não puro (neste último, a proposição embute um conceito extraído da experiência, mas dela se afasta); 02- e a posteriori, isto é, atrelado ao empirismo.[31] Para nós, a lógica do processo telematizado atrela-se a uma vivência fático-causal-pretérita representada pela lide,[32] isto é, pelo conflito de interesses pré-processual motivador da propositura subseqüente de uma demanda judicial,[33] porém em ambiência digitalizada, algoritmizada em mídia eletrônica. Assim, inserir-se-á na classificação kantiana de cognição a posteriori. E o dado de fato na lógica processual telemática é complexo não só porque o CPC adota a teoria da substanciação, mas, sobretudo, porque, além da dualidade fática inerente à causa de pedir, a telematização do fenômeno processual pressupõe a criação de um novo fato processual: a digitalização da relação processual, que requer o emprego de notações algorítmico-aléticas em substituição às notações lingüísticas tradicionais representativas dos atos processuais.
4. Cognição na metodologia e na lógica do processo.
A lógica do processo, portanto, consiste numa atividade cognitiva a posteriori, pois, sendo a relação processual do tipo “causal”, está a exigir a ocorrência de fatos jurídicos antecedentes ao processo (a causa petendi). O processo, contudo, apresenta-se sempre como relação jurídica angular-conseqüente, inclusive quando a ação for do tipo declaratória (preventiva e também quando tiver havido violação a direito: CPC, 4o, p. ún).[34] Até as ações incidentais têm uma causa antecedente.[35] A lógica do processo telemático, por sua vez, além disso, impõe a ocorrência do fato telemático, que acentua a graduação da complexidade processual porque importa na digitalização da relação processual.
Considerando, então, que o nosso sistema processual, analisado desde o ponto de vista da dogmática do CPC brasileiro, é tripartido em: pressupostos processuais, condições da ação e mérito, a lógica processual telemática representa um ponto de vista sobre o “conhecimento” desta realidade jurisdicional virtualizada. Logo, a cognição processual telemática pode versar sobre matéria afeta aos pressupostos processuais (extrínsecos ou intrínsecos), condições da ação ou mérito,[36] pois o conhecimento processual pode, também, ser submetido a cortes epistêmicos. Os limites desse ponto de vista, todavia, são delineados por alguns princípios processuais instituidores da metodologia processual.
Os limites da metodologia processual condicionam a lógica que se formaliza a partir da linguagem tradutora desse mesmo fenômeno. Sem deixar de consistir numa análise formal do pensamento jurisdicional, o desenvolver da lógica processual é caracterizado por inegável paraconsistência (no sentido lógico da expressão), que dentre outros escopos, presta-se à aplicação do princípio da proporcionalidade ao processo visando à superação do princípio lógico-formal da contradição. Assim, e tomando como exemplo as restrições existentes nos artigos 264 e 294 do CPC, pode o juiz homologar acordo ou transação referentes à matéria não posta em juízo (CPC, 475-N, III – lei 11.232/05). Veja-se que esta última regra, na verdade introduzida pela lei 10.358/01, ao alterar o artigo 584, III, agora revogado pela lei 11.232/05, afasta a incidência daquelas duas anteriores (CPC, 264 e 294). Não se diga haver contradição lógica entre os dispositivos, pois, sempre que a norma permissiva do acordo incidir, haverá o afastamento das outras, aparentemente conflitantes ou realmente conflitantes.
A cognição permitida pela lógica do processo consubstancia-se, ainda, em conhecimento: inercial, para fins de propositura da demanda, pois, segundo o princípio da inércia ou dispositivo (CPC, 2o e 262, parte inicial), nenhum juiz poderá prestar a tutela jurisdicional senão quando a parte (nos casos de jurisdição contenciosa) ou o interessado (nos de jurisdição voluntária[37]) o requererem nos casos e formas legais; e oficioso, para efeito de impulsionamento da prática de atos processuais (CPC, 262, parte final). A cognição da lógica incidente sobre a relação processual também há de observar o fenômeno ‘metodológico’ da extensão da provocação da parte autora, para fins de análise cognitivo-conseqüente (CPC, 128 e 460), isto é, no sistema jurídico brasileiro não se pode desenvolver raciocínio lógico-processual para além do postulado pelo demandante, pois adviria uma conclusão incompatível com a metodologia respectiva, exceto para as exceções admitidas pela própria lei. Em resumo: o pedido delimita a sentença e, da mesma forma, a conseqüência conclusiva da lógica do processo.
Algo semelhante acontece quando o princípio da inércia tem sua incidência afastada. Apesar do contido nos artigos 2o e 1.104 do CPC, por exceção, pode o juiz iniciar uma relação processual de jurisdição contenciosa ou voluntária sem a provocação da parte ou do interessado, como ocorre na hipótese do inventário onde os herdeiros, credores ou o MP não postularem a sua abertura (CPC, 989). Isto também pode ocorrer nos procedimentos de jurisdição voluntária de alienações judiciais (CPC, 1113), por exemplo. Pelas mesmas razões acima invocadas, não há que se falar impossibilidade de desenvolvimento de uma lógica processual formal por obstação do princípio lógico da contradição. Se por um lado é fato que o artigo 2o impõe a provocação da parte ou do interessado para a proposição da relação processual, por outro, o 989 só incide em hipótese especialíssima. E quando isso ocorrer não haverá contradição lógica, mas a não incidência do artigo 2o. Apenas uma dentre duas normas com conteúdos antagônicos há de incidir, acarretando a inexistência de antagonismo lógico-processual. Simplesmente, para o caso concreto, apenas uma norma tem incidência.
4.1. Níveis e sentidos da cognição processual: a ideologia não desformaliza a lógica.
Já acentuamos que o conhecimento é um fato complexo envolvedor de vários planos ou níveis. Adentremos, agora, no deslinde desta questão. O primeiro nível lógico refere ao sujeito cognoscente, que pensa, sente, quer e decide; o segundo, ao ato-de-conhecer, ou seja, à ocorrência psíquica ou subjetiva; no terceiro, encontramos o dado-de-fato, objeto do conhecimento; no quarto plano lidamos com a linguagem, que fixa e comunica o conhecimento;[38] no quinto, estaremos diante da proposição. Este último é o nível mais importante do conhecimento, pois, como garantia Lourival Vilanova, a plenitude lógico-cognitiva acontece no nível proposicional porque será por meio de uma proposição que se declarará se o conceito-predicado é, ou não, válido para o conceito-sujeito.[39]
Pois bem, como se vê, existem vários planos ou níveis no conhecimento e sua integralidade somente ocorrerá abrangendo-se a todos eles, porque o conhecimento é um fato complexo e cada plano ou nível corresponde a um seu componente, a um seu aspecto, a uma abstração, apenas. Como estes componentes estão sempre intimamente relacionados só haverá conhecimento integral na medida em que o ato-de-conhecer abranger a todos os níveis. No universo processual jurisdicional, o sujeito cognoscente (o juiz) constitui-se em imprescindível pressuposto de existência, desenvolvimento[40] e validade da relação processual e da lógica processual também, pois a metodologia do processo condiciona sua lógica. E muito embora a sentença traduza atividade silogística, fazendo o magistrado uso da lógica deôntica, o tipo de lógica mais apropriado para o processo, sem dúvida, é o dialético, em virtude de a relação processual conformar-se através de indispensável diálogo, interlocução entre os sujeitos processuais e de ter por escopo a resolução de uma situação concreta litigiosa[41]. Pelos meandros da procedimentalização da relação processual o juiz efetiva o seu ato-de-conhecer. E esta atividade cognitiva, no âmbito da lógica processual, não se resume ao exercício das denominadas tutelas de conhecimento, isto é, nas ações declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas lato sensu e nas mandamentais.
Em ciência processual, a tutela de conhecimento é aquela que visa a composição, a resolução da lide.[42] É através da tutela de conhecimento que o magistrado irá “conhecer” acerca dos fatos e do pedido, para, ao aplicar o direito, subsumindo a fattispecie ao ordenamento jurídico, dirimir controvérsias de acordo com a orientação valorativo-ideológica que orienta a sua hermenêutica construída sobre as normas existentes no sistema jurídico. Observe-se que a hermenêutica pode conferir mais de um sentido à interpretação de uma mesma norma jurídica e isto depende de uma ‘decisão’ ideológica do juiz que pode, inclusive, anteceder a decisão que ele tomará no processo. Mas isso também não desformaliza a lógica processual, à medida que a decisão judicial haverá de obedecer à premissa adotada pelo juiz, ou seja, a valoração normativa até pode variar, mas a decisão que acontece em sucessivo não pode destoar do seu respectivo ditame lógico, sob pena de cometimento de teratologia intrínseca.
A cognição no processo civil incide sobre fatos e sobre direito. Fala-se, então, em cognição vertical e horizontal. A cognição horizontal cinge-se à extensão fática e à amplitude do conhecimento do juiz na causa e se relaciona com os elementos objetivos do trinômio processual: pressupostos processuais, condições da ação e mérito. Pode a cognição horizontal ser plena ou parcial. Plena é a cognição horizontal integral, total, estende-se sobre toda a extensão fática da causa. Parcial é a cognição na qual o conhecimento do juiz restringe-se a questões tópicas da causa, não se estendendo sobre toda a complexidade factual envolvida pelo processo.[43]
A cognição vertical mantém relação de pertinência com a profundidade do exame, subdividindo-se em: exauriente e sumária[44]. A cognição exauriente visa pôr fim à incerteza existente sobre o conflito de interesses discutido no processo de conhecimento. Neste, não há limites à cognição vertical.[45] No processo de conhecimento, a cognição além de exauriente pode ser também plena, quer se trate de procedimento comum ordinário, quer do sumário ou sumaríssimo específico dos juizados especiais, acarretando a formação de coisa julgada material.[46] A cognição sumária, por sua vez, é típica dos juízos de probabilidades que envolvem situações de aparência de direito, de verossimilhança. Por essa razão não podem decidir a lide: restringem-se, assim (tais juízos), às tutelas cautelares e antecipatórias.[47]
Esses juízos cognitivos processuais podem ser perpetrados através da lógica processual, inclusive os de probabilidade.[48] Como dissemos a pouco, o conhecimento lógico pode dar-se também nas outras espécies de tutelas, que não possuem destinação cognitiva, em sentido processual científico. Logo, o fato de o ato-de-conhecer da lógica do processo poder incidir sobre tutelas de execução, cautelares e em procedimentos de jurisdição voluntária,[49] denuncia que a cognição lógica não tem a mesma significação da cognição processual, sendo absolutamente compatível com atividades jurisdicionais garantidoras do resultado útil do processo principal, mesmo que estas tutelas não se enquadrem no gênero tutela de conhecimento. A cognição da lógica processual, portanto, traduz atividade dialético-proposicional destinada a delimitar procedimentos, aprofundar a análise de argumentos jurídicos e delinear os limites das variadas possibilidades decisionais a serem proferidas por sujeitos cognoscentes de modo horizontal, pleno ou parcial, e vertical, exauriente ou sumário, e, sobretudo, permitir a retroalimentação do sistema processual através da correção de eventuais entropias: técnicas ou ideológicas, envolvendo, assim, o rastreamento decisional in procedendo e in judicando.
5. Notas conclusivas.
Na época clássica, a lógica arcaica era vertida para a ontologia, consistia numa forma de dizer e descrever as estruturas do real. Mas não era apenas um exercício mental metafísico ou ontológico, pois já em Parmênides vislumbrava-se a lei lógica da identidade, todavia, a concepção de uma lógica material em sentido proposicional rigoroso, à época, não é crível.[50] É que o material, o concreto de que se serve a lógica, não deixa de ser formal: “No campo da lógica tudo é formal”,[51] não obstante o ponto de partida do conhecimento possa quedar-se no mundo existencial. Na atualidade, o corte feito entre o concreto e o formal é apenas uma renúncia momentânea e metodológica, pois o interesse pelo mundo real é sempre retomado porque é nele que se encontra o sujeito cognoscente (o juiz, no caso da lógica processual). Neste contexto, hodiernamente, a lógica material é definida como uma função pragmática e semântica da própria lógica.[52]
Para bem situar a lógica no plano do conhecimento deve-se estabelecer que o ponto de partida de toda ciência empírica reside na experiência dos fatos. Ao passo que o ponto de partida da lógica formal está na linguagem científica. Tanto a lógica aristotélica quanto a lógica simbólica são formais e são, também, sempre posteriores à reflexão material metodológica proferida com base nos fatos.[53] Pela mesma razão, ao juízo lógico-processual precedem os fatos vinculados à causa de pedir e que delineiam o conflito objeto da demanda, e que serão formalizados por denotação lingüística específica, onde apenas os sujeitos-de-direito-processual (os incapazes, inclusive)[54] e condutas processuais podem ser tidos como valores das variáveis das respectivas proposições lógico-processuais.
A metodologia é tarefa dos cientistas de cada uma das áreas específicas do conhecimento, somente eles são aptos a investigar o seu campo científico particular.[55] Por isso, a lógica processual há de ser desenvolvida por juristas, e não por qualquer jurista, mas por juristas processualistas também conhecedores das estruturas lógicas. A distinção entre lógica e metodologia, portanto, reside na constatação de que cada campo científico tem um método próprio, assim o método de uma determinada ciência não é eficaz para se aplicar a outras. Cada ramo científico, então, é detentor de método particular. Lógica, todavia, não é metodologia porque suas proposições são aplicáveis para qualquer ramo do conhecimento humano.[56] A metodologia encontra-se localizada no sítio interior de cada ramo científico, ao passo que a lógica está sobre qualquer um desses ramos.[57]
Mas a distinção entre lógica e metodologia não impede a concepção de uma lógica verdadeiramente jurídica. A lógica jurídica, da qual a processual faz parte, não perde a sua característica formal, posto que possuidora de uma estrutura capaz de abranger o objeto jurídico, cuja natureza é deôntica. E o que torna possível a idéia de uma lógica jurídico-processual é o fato de ela proporcionar a formalização da linguagem jurídica denotativa dos conteúdos exclusivos do universo jurídico-processual, o conteúdo das normas jurídicas processuais. Podemos dizer que a lógica processual, apesar de constituir-se como espécie do gênero ‘lógica jurídica geral’, distingue-se desta porque sua ocorrência perpetra-se numa ambiência conotada por um verdadeiro empirismo deôntico, isto é, porque pressupõe o conhecimento do ordenamento jurídico em sua dinâmica normativa na qual os atos processuais constituem-se em realidade pragmática. E quando a tecnologia telemática é aplicada ao fenômeno processual, aí este empirismo deôntico há de ser traduzido em proposições lógico-aléticas, sem as quais o computador não é capaz de traduzir a realidade processual em universo digitalizado.
Diferentemente de Kelsen, que não admite a existência de uma lógica jurídica, mas apenas a aplicação da lógica formal para resolver problemas jurídicos,[58] com motivos e visões diferentes, Vilanova e Perelman, dentre outros, provam sua existência. Este último, contudo, considera a lógica jurídica como espécie de argumentação retórica, ou seja, como lógica não formal veiculada através de silogismos que, porém, não garantem as respectivas conclusões (entimemas).[59] Lourival Vilanova, contrariamente, a enxerga como lógica que formaliza a linguagem jurídica e expressa a conotação das normas jurídicas, possuindo estruturas formais acolhedoras do objeto deôntico-jurídico. E sendo este objeto deôntico-normativo particular e distinto dos objetos gerais, resta subjacente que as variáveis da norma jurídica, apesar de poderem ser substituídas por fatos naturais, coisas ou pessoas, somente sujeitos-de-direito e condutas jurídicas podem ser valores das variáveis da lógica jurídica.[60]
Nesta última explicação encontra-se a motivação que adotamos para defender a existência de uma lógica jurídica geral. E é dela que extraímos substratos para concluirmos que a lógica do processo telemático é formal, pois parte da linguagem jurídica, que é descrita sob modais deônticos, para transformá-la em linguagem computacional cujos conectivos são aléticos. Somente assim, com esta tradução da linguagem jurídica deôntica em alética, que é perpetrada por softwares tradutores dotados de inteligência artificial (provando a compatibilidade entre lógica alética e deôntica), é que os computadores capacitam-se para retratar a realidade processual em mídia eletrônica. E o fato de até as máquinas computacionais de última geração terem de recorrer ao alfabeto binário para que o hardware possa executar comandos emanados do software, não significa isto que apenas proposições jurídicas de dois valores possam ser retratadas na lógica do processo telemático. Os programas expertos dotados de inteligência artificial já são plenamente capazes de executar comandos lógicos com proposições de inúmeros valores, e não apenas dois. Concluindo, a lógica do processo telemático é do tipo formal, porque transforma a linguagem jurídica deôntica em linguagem jurídica alética expressando os significados e permitindo a concretização das normas jurídicas processuais.
Enfim, a questão da ideologia da decisão judicial constitui-se num problema extralógico, onde se constata que a lógica processual atua na condição de mecanismo serviente à vontade judicial. A questão dos possíveis sentidos decisionais permitidos pelo sistema jurídico, a bem da verdade, reflete o problema contido na tensão existente entre dogma e liberdade, que, segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, designa mesmo “… uma tensão entre a instauração de um critério objetivo e o arbítrio do intérprete”. E como não se pode admitir que os juízes decidam apenas baseados em suas convicções pessoais, até porque não possuem legitimidade para isso, e, sobretudo, porque se correria o indesejado risco de a sociedade civil cair na balburdia da arbitrariedade jurisdicional, por tudo isso é que se deve vincular as decisões judiciais aos valores contidos nos princípios jurídicos, como quer Tércio: “deve haver uma interpretação e um sentido que prepondere e que ponha um fim prático à cadeia das múltiplas possibilidades interpretativas”.[61] Assim, apesar de ser possível a construção de interpretações conflitantes e, ao mesmo tempo válidas, não se pode admitir a imposição de valoração pessoal do julgador em detrimento dos valores do Estado Democrático de Direito: nenhum juiz tem poder para decidir contra texto de princípio jurídico ou, maiormente, de norma constitucional. Essa idéia vem cada vez mais ganhando adeptos na atualidade, tanto que sentenças proferidas contra a Constituição não fazem, jamais, coisa julgada material.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Freire Pimentel
Professor do PPGD da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professor da Faculdade de Direito do Recife (FDR-UFPE). Pós-doutorado (Universidade de Salamanca – Espanha, com bolsa da CAPES). Doutor e Mestre (FDR-UFPE). Advogado (1989-1991). Promotor de Justiça (1991-1992). Juiz de Direito Titular da 29ª Vara Cível do Recife – TJPE. Diretor da Escola Judicial Eleitoral do TRE-PE. Desembargador Eleitoral do TRE-PE. Membro da Associação Norte e Nordeste dos Professores de Processo (ANNEP). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).