O clamor por pena de morte e prisão perpetua sob o argumento da fragilidade das leis atuais

Resumo: O Direito Penal tem que exercer na sociedade um papel transformador, para tanto, cumpre marejar a restauração da segurança jurídica e o equilíbrio entre o crime e sua penalização.

Palavras Chaves: Pena de Morte; Criminalidade; Direito Penal; Punição; Controle.

Abstract: The criminal law has to play in society a transformer paper, for many, meets marejar the restoration of legal certainty and the balance between the crime and its penalty.

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Keyword: Death Penalty; crime; Criminal Law; punishment; Control.

Sumário: Introdução; 1. Violência punitiva: um fenômeno trazido do passado; 2. O clamor por sangue ou por justiça?;  3. Tecnologia do Poder Punitivo; 4. A política do direito de punir; Bibliografia.

Introdução

A sociedade passou por um longo período para se estabilizar como um Estado de Direito quando o respeito à pessoa humana passou a ter consonância e determinante, considerada avançada. A dignidade do ser humano passou a assumir o primeiro e mais importante plano na sociedade chamada moderna, a preocupação em ao menos oferecer condições de justiça igualitária começou por distinguir-se em todas as camadas sociais tornando possível imaginar uma mudança brusca no paradigma. O Direito Penal com sua forma de penalização passou a exercer papel fundamental nesta metamorfose de inovações, as penas cruéis foram substituídas pela pretensão de penas que pudessem reinserir a pessoa criminosa na sociedade, havendo com isso uma reintegração e resocialização. O caminho até este momento foi árduo, houve muitos erros, muitos excessos, muita vingança com o nome de justiça, mas se recobrou o senso crítico e se avançou para um estado de coisas mais razoáveis e aceitáveis.

Contudo, acontecimentos marcantes começaram a conspirar contra esta conquista após séculos de labuta.

A violência descontrolada e sem precedentes passou a povoar diariamente os jornais escritos e televisivos assombrando a todos com sua face mais cruenta. Crimes bárbaros constantemente noticiados e repetidamente reproduzidos a exaustão, geram um inconformismo e repúdio passando a ser tema diuturnamente discutido em todos os meios de comunicação. E como se só isso por si não bastasse, as redes sociais com seu longo poder de alcance passaram também exercer um papel decisivo neste debate.

Mudanças de humor e de perspectiva tomaram conta destes meios de massa e o que se está presenciando é quase que a volta a um sistema medieval onde o clamor por uma resposta mais dura e pronta das autoridades passou a ser exigida de forma assustadora. Vídeos com cenas de pessoas das mais diversas formações e atividades usando da chamada “justiça com as próprias mãos” passaram a ser frequentes e a vibração e culto a estes personagens, algumas vezes anônimas outras escancaradas tem sido frequente. Estes têm sido tratados quase como heróis da sociedade.

O bom senso está sendo relegada a posição de escárnio e quase nada se tem feito para impedir esta verdadeira escalada de violência. O direito está anos luz de se quer ser discutido o que se presencia é o clamor da violência em troca da violência deflagrada, a pena em regime recluso, a quantidade de anos a ser cumprido está sendo abandonado pela justiça imediata e sumária, com a volta da frase no mínimo temerária: “bandido bom é bandido morto”. A proposta de pena de morte é assunto diário dos telejornais e, não raro em salas de aula nos cursos de Direito.

O quadro que se avizinha não é dos melhores uma vez projetar uma volta a um passado que só se deveria visitar para aprender através dos erros praticados. Este fantasma tem assumido voz, controle e tomado à frente das conquistas até aqui conseguidas.

A proposta deste trabalho é discutir com uma visão crítica da história a violência exacerbada usando como pano de fundo a sociedade contemporânea buscando no filósofo Michel Foucault em especial sua obra Vigiar e Punir, elementos que contraste o suplício na execução da pena, pela reflexão que esta volta ao passado transformaria a sociedade. Para tanto se perscrutará esta obra, trazendo a baila outros escritores que compactuam de forma sensível ao tema, propondo discussão e conversando com o assunto traçando paralelo com as ideias prolatadas apresentando o contraponto entre questões de direito, sociologia e filosofia para então responder as premissas propostas.

A atenção à coluna vertebral do tema será perseguida para tornar o texto límpido e claro, possibilitando a discussão e a crítica, sempre pronta e aceita para que o tema não assuma o caráter de “verdade absoluta”. 

Dentro da pretensão não há a minimização da pena, ou a discussão dos problemas acontecidos para uma pessoa viver no crime. O que se propõe discutir é sim a forma como se está alardeando fazer a aplicação da penalização de delitos. Não haverá a defesa inconsequente de que se deve permitir o não cumprimento de pena, o que se busca é discutir se o melhor caminho, se a saída é fazer a justiça acontecer mesmo que se necessário com as próprias mãos. Este perigo de se julgar, condenar e aplicar sumariamente uma penalização (por exemplo, o linchamento) é que não se pode conceber num Estado de Direito. O pior caminho é se achar no direito de assumir o papel de promotor, juiz e carrasco.

Há mecanismos que outros países usaram e foram bem sucedidos para mudar este quadro aterrador sem, contudo, exercer o papel de Tribunal de Justiça independente. Buscar a todo custo manter o direito, a coerência neste debate é de suma importância uma vez ser este o caminho sensato e coerente a ser exercido.

Diante desta constatação fatalista cumpre perguntar: Qual o tipo de sociedade se espera construir com esta ideia de vingança? Qual o papel que o direito deve assumir doravante? Aonde uma sociedade com esta sede de vingança chegará? A violência como resposta a violência empregada é a solução? Qual o papel da mídia e das redes sociais nesta ideia?

Manter esta linha de questionamento respondendo estas questões passa ser sumamente importante sendo o cerne desta obra.

1. Violência punitiva: um fenômeno trazido do passado

As cores da violência mais cruel podem ser visitadas ao se buscar ler e estudar sobre a forma como as penas eram aplicadas nos séculos passados. A aplicação da pena era um espetáculo popular apregoado como forma de inibir e acabar com a possibilidade da existência do crime na sociedade.

Assumindo forma de um espetáculo público como uma celebração, as pessoas do povo eram convidadas a presenciarem a execução das sentenças onde o suplicio era a forma mais comum de se vindicar o que se chamava de justiça. Não raro as formas mais cruéis eram aplicadas publicamente dilacerando, queimando, amputando, usando cavalos para partir a pessoa ao meio, degolação, o uso de todas as espécies de instrumentos cortantes com lâminas, estripamento, toda sorte de tortura, as mais lancinantes possíveis eram exercidas para devolver o sentimento de punidade tão importante no fomento do poder do Estado de punir.

“O mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso seria impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho do Estado. Estes recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em seus mecanismos e efeitos, se situa num nível completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio.” (FOUCAULT: 2008, p.26).

Basileu Garcia também descortina este período, demonstrando como o suplício assumir um papel determinante na aplicação da pena.

“Para se ter idéia do que representou no passado o sistema de atrocidades judiciárias, não será necessário remontar a mais longe que há três séculos. Na França, por exemplo, ainda depois do ano de 1700, a pena capital era imposta de cinco maneiras: esquartejamento, fogo, roda, forca e decapitação. O esquartejamento, infligido notadamente no crime de lesa-majestade, consistia em prender-se o condenado a quatro cavalos, ou quatro galeras, que se lançavam em momento em diferentes direções. A morte pelo fogo verificava-se após ser amarrado o condenado a um poste, em praça pública, onde era o corpo consumido pelas chamas. E costume houve, também, de imergir o sentenciado em chumbo fundido, azeite ou resina ferventes. O suplício da roda era dos mais cruéis: de início, o paciente, que jazia amarrado, era esbordoado pelo verdugo, até se lhe partirem os membros. Em seguida era colocado sobre uma roda, com a face voltada para o céu, até expirar.” (GARCIA: 1956, p. 15 e 16).

Esta instrumentalização que Foucault se refere é sem dúvida o cerne da questão, pois era a forma do Estado/Poder demonstrar publicamente sua força e o controle que deveria ser respeitado a todo custo, sem que houvesse nenhuma dúvida e se quer tentativa de burlar esta orla de predomínio. Tal era o modelo ostentado por esta instituição uma dominação total e completa do individuo.

“A violência, excesso, abuso, sim, talvez; mas no fundo desses excessos, violências e abusos não é simplesmente, não é fundamentalmente a maldade do príncipe que vai estar em questão. O que está em questão, o que explica isso tudo é que o governo, no momento em que viola essas leis da natureza, pois bem, ele simplesmente as desconhece. Ele as desconhece porque ignora sua existência, ignora seus mecanismos, ignora seus efeitos. Em outras palavras, os governos podem se enganar. E o maior mal de um governo, o que faz que ele seja ruim, é ele ser ignorante”. (FOUCAULT: 2008, p. 23)

Para entender melhor esta época e os atos do poder de governar, vale lembrar: “Como prática governamental há de se entender a forma como o poder soberano transita dentro da esfera de comando. É importante não perder de vista o manto sagrado atribuído ao soberano impingindo assim, características de deus a seu comando, pessoa e função, habilitando-o a desenvolver sem muita preocupação a extensão de seu domínio. Não é difícil perceber a ausência de compromisso em não errar, uma vez estar perto da infalibilidade dos deuses o que permite fatalmente criar as mais diversas possibilidades de governar, sem o receio de que mesmo errando alguma consequência recaia sobre seu governo. Foucault afirma, contextualizando esta questão que “quem governa tem um objetivo ilimitado”. (FOUCAULT. O nascimento da clínica. 2008. p. 10)” (DUARTE: 2014, p. 37).

O que chama atenção nesta descrição toda era o envolvimento da população vibrando e a cada ato de tortura extrema empregada, como se disso dependesse suas vidas futuras, era possível ver famílias inteiras assistindo e presenciando esta danação, inclusive com seus filhos ainda infantes como se fosse o programa predileto a ser assistido.

Contudo, não se tem notícia do fim do crime nestes tempos, nem tampouco que a violência praticada por criminosos tenham acabado.

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Cumpre lembrar as palavras de Magalhães Noronha ao tratar da existência e permanência do crime incrustado na Sociedade:

“A história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou.” (…) – (NORONHA: 1991, p. 20). 

O que se via era a troca explícita dos atos delituosos pelo suplício sem que com isso houvesse se quer o fim dos atos criminosos. O que se percebe na leitura crítica deste tempo é que à medida que a tortura, suplício, e violência contra o criminoso crescia, o crime não diminuía, se assim não fosse, por que então se retirou das sentenças esta forma de punição? Qual foi o resultado desta prática em termos de fim do crime?

Vejamos o que é dito sobre este tempo:

“Vivo em uma época que, por causa de nossas guerras civis, abundam os exemplos de incrível crueldade. Não vejo na história antiga, nada pior do que os fatos dessa natureza, que se verificam diariamente e aos quais não me acostumo. Mal podia eu conceber, antes de o ver, que existissem pessoas capazes de matar pelo simples prazer de matar; pessoas que esquartejam o próximo, inventam engenhosos e desconhecidos suplícios e novos gêneros de assassínios, sem ser movidos nem pelo ódio nem pela cobiça, no intuito único de assistir ao espetáculo dos gestos, das contrações lamentáveis, dos gemidos, dos gritos angustiados de um homem que agoniza entre torturas.” (MONTAIGNE: 1996, p. 367)

O texto do filósofo Montaigne foi escrito em 1580, o que contextualiza o tempo aqui apresentado, demonstrando que havia por parte de várias pessoas uma abjeta aversão pelo espetáculo empreendido, não impedindo que muitas outras vibrassem e assistisse de forma participativa todo este dantesco espetáculo.

Diante desta descrição dantesca se permite pensar que havia se instituído de forma clara e evidente a violência autorizada, sem penalização, o Estado podia exercer tal implemento sem contudo ser culpado.

Assim se pode descrever a questão pungente da violência:

“A violência se expressa no excesso, na gratuidade, na banalidade com que se apresenta no dia-a-dia (…) vem-se infiltrando profundamente no tecido das relações sociais. É cada vez mais parte do cotidiano (…) o impacto desse quadro na vida subjetiva se exprime tanto na corrosão dos laços sociais – na destruição dos espaços de convivência e ação comuns, no isolamento cada vez maior dos indivíduos e no abandono de horizontes compartilhados quando no campo do sofrimento psíquico e da psicopatologia (…) ela está entranhada em nossa estrutura social e permeia o tecido de nossos laços intersubjetivos. (…) O declínio do poder em função da redução da capacidade de agir em conjunto cria um caldo para o florescimento da violência. Como compreender as raízes dessa violência? Qual seu impacto na experiência subjetivados indivíduos?”(BEZERRA: 2005, p116,118.).

Pode se indagar também sobre a forma de se julgar os crimes, quanto de justiça era fornecido para aplicação de castigos desta monta? Como eram os julgamentos praticados nesta época? Havia possibilidade do contraditório? O advogado de defesa tinha acesso ao processo e tempo hábil para apresentar uma defesa razoável?

A título de apreciação vejamos como eram conduzidos estes julgamentos:

“De acordo com a ordenação de 1670, que resumia, e em alguns pontos reforçava a severidade da época precedente, era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa. Por seu lado, o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a natureza da causa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações. Ele constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença.” (FOUCAULT: 2008, p.32)

Este quadro aterrador demonstra a celeridade dos julgamentos e a não preocupação com a defesa do réu. O acesso praticamente nulo da defesa demonstra quão zeloso em punir era o Estado, e quão pouco valor se dava a amplitude da defesa. A temeridade talvez nunca descoberta seja se este processo pródigo tenha punido quantos inocentes, uma vez não ser dada a defesa condições de em sua plenitude desbaratar o arcabouço jurídico da época. Afirmar que todos os condenados, todos que passaram pelo suplício foram realmente culpados, diante do texto exposto é uma temeridade, e com isto em mente fica claro que a justiça era algo que passava longe da pena e que o importante era sem dúvida demonstrar o poder do Estado em punir, do que descobrir a questão primal, se a pessoa condenada era realmente culpada dos crimes a ela imposta.

Para que se possa ainda pensar sobre este fato cumpre lembrar-se de Cesare Beccaria:

“Mas, a superstição e a tirania os perseguem; acusam-nos de crimes impossíveis ou imaginários; ou então são culpados, mas somente de terem sido fiéis às leis da natureza. Não importa! Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgá-los criminosos, têm prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com solenidade, aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática que goza lentamente com suas dores. Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso será o culpado para evitá-los. Acumulará os crimes, para subtrair-se à pena merecida pelo primeiro. Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática, são também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis. O mesmo espírito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o punhal nas mãos do assassino e do parricida. Do alto do trono, o soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos só imolavam os tiranos para possuírem novos. À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma, semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado da barbárie. A gente se habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão.” (BECCARIA: 1999, p. 62,63).

A busca do direito e não de saciar o povo com sangue de vingança deve ser o grande objetivo do direito. Resguardar o que se chama justiça deve ser o grande ideal de qualquer Estado que pretenda governar regido pelo senso de equidade devendo se afastar de promover barbáries em nome de uma pseudojustiça.

O direito tem que exercer na sociedade um papel transformador e para tanto, cumpre marejar a restauração da segurança jurídica entre o crime e a sua penalização.

Lembrar-se da obra a Luta pelo Direito é salutar, ainda mais em tempos onde se clama por sangue:

“A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques da injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo – nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta pelos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza. O Direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos mas ainda de uma nação inteira.” (IHERING: 1999, p. 1)

É sumamente importante relembrar que o direito busca a paz e não a guerra, não o sangue pelo sangue, não a vingança por vingança é à base de toda estrutura que se tem pretensão de chegar como sociedade equânime. Exigir que se buscasse justiça sem ao menos oferecer mecanismos para seu uso é empreender um Estado totalitário onde a decretação de sentenças não possa ser contestada é começar a ruir toda a luta pelo direito. O contraditório em qualquer processo penal é de tal importância que denega-lo seria o mesmo que partir para uma execução sumária sem ao menos haver um julgamento.

A admissão de sentenças prolatadas sem o direito de defesa, sem ouvir a parte, sem se importar na busca da verdade, macula o direito e o expõe a risco de desaparecer. Há se esperar equilíbrio de um Estado como instituição para apaziguar os ânimos daqueles que são imediatistas.

2. O clamor por sangue ou por justiça?

O contexto histórico era favorável a este tratamento ao criminoso por ser uma sociedade violenta em seu matiz, as guerras eram travadas corpo a corpo e duravam décadas, espalhando um rastro de sangue e terror, de forma especial ao velho continente, a Europa em todos os seus rincões. Então presenciar cenas onde o sangue era um fim em si mesmo era comum, era costume.

A própria estrutura da sociedade onde as pessoas caçavam e matavam animais para comer dava este condão sanguinário, tornando algo sem importância presenciar atos onde o sangue a ser derramado era comum. Com isto em mente visitar a história do direito penal é currial para compreender a extensão destes atos e perceber como se é visto este período com a lente da violência chamada de justiça.

“A historia do Direito penal é uma historia de crimes moraes, de tyrannias, de horrores, de tormentos, e de sangue, que fazem estremecer a humanidade, que hoje contempla os factos, e que não póde, na presença delles, deixar de recuar tremendo. Parece impossivel, que hovessem legisladores, juizes, executores da alta justiça, a representar activamente nas repetidas scenas de supplicios os mais variados, todos corporaes, todos afflictivos, a respeito dos quaes a imaginação do homem procurasse com esmero a preferência e a invenção de martyrios os mais dolorosos contra seres da mesma espécie, contra irmãos, contra filhos. Os homens, peóres que as feras, a pretexto de punir os malefícios, commeteram crimes mais reprehensiveis, que os que pretenderam reprimir. Deram o exemplo de crueldade, da violação dos direitos individuaes, e dos da propriedade” (Theoria do Direito Penal, vol. 1, p. XXX/XXXI). (grafia original) (DOTTI: 2004, p. 124).

Sucumbindo a violência muitas vezes desproporcional, se justificava com o findo de proteger o Estado e seu regente impondo o medo e temor. A ideia de reabilitação, resocialização ou mesmo reinserção estavam distantes e não havia se quer o pensamento de poder o criminoso passar por um processo de remissão de seus crimes, uma vez praticado o ato criminoso ele deveria ser punido com rigor.

O clamor por sangue era costumeiro, sua exigência algo determinante para a chamada justiça vindicativa, segundo a mentalidade da época, o controle do governo sobre a população afastando de forma cabal as pessoas da possibilidade do crime.

Na esteira desta postura cumpre notar o seguinte, o que se entendia como suplício?

“O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação —que reduz todos os sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em “mil mortes” e obtendo, antes de cessar a existência, the most exquisite agonies.6 O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios ou língua furados).” (FOUCAULT: 2008, p.31).

Como se pode perceber havia toda uma estratégia para aplicação de um suplício e ainda, todo um ritual a ser seguido, para que aquele que estava sendo supliciado não morresse antes do momento certo, antes de proporcionar um espetáculo magistral de dor e agonia. Havia um código jurídico da dor.  Foucault apresenta em preto e branco com funcionava:

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“Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada, lábios ou língua furados).” (FOUCAULT: 2008, p. 31).

O que o suplício significava:

“Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jaucourt]; e acrescentava: é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade.” (FOUCAULT: 2008, p.31).

A justiça era facilmente confundida com vingança se sobrepondo facilmente a uma punição exemplar. A medida desta pseudo justiça era a dor causada, ou o sentimento de retribuir o mal cometido. Percebe-se a falta de compromisso de entender valores humanos, a vida, a dignidade era tratada como moeda de pouco valia e os atos de revanche eram facilmente percebidos.

De lições práticas, o abandono dos atos ilícitos praticados, o fim do delito, não era pensado na época, o que se fazia crer que era sangue por sangue, suplício por suplício, sofrimento por sofrimento. Cumpre lembrar as palavras de Beccaria:

“Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos.” (BECCARIA: 1999, p. 50).

Tendo este pano de fundo onde os países que praticavam estes “tormentos mais atrozes” não se livravam dos crimes mais horrendos, verifica-se que o fato de estarem instituídas estas penalizações brutais não diminuía nem tampouco arrefecia a criminalidade e prática de crimes. Com isto em mente é fácil perceber que o castigo imposto não corroborava com a diminuição da violência. Se assim era, então qual o papel do suplício? Justiça ou vingança? Aplacar a ira dos populares ou estabelecer a força do Estado Monarca? O que de fato e verdade havia nesta postura do governante?

“Abandonando o arcabouço dessas ideias medievais, o Estado assume a política interna e há então necessidade de um poder de polícia. Surge um Estado de polícia voltado às pessoas residentes no Estado e que necessitam serem controladas. Surgem tratados de polícia, com diferentes normas sistematizando o objeto da polícia – sendo este quase infinito. Em suma, quem governa o Estado e tem que controlar os súditos através do poder público, passa a ter um objetivo ilimitado, pois se trata de um estado de equilíbrio sempre desequilibrado para manutenção de seu povo, em que a relação Estado/ Súdito é sempre frágil, deixando assim os habitantes do Estado sempre a necessitar do governo de forma total e segura – não para o povo, mas para quem governa. Nesse Estado de polícia não há limitação em seus objetivos, demonstrando ser a razão do Estado atingir em seu apogeu uma forma ilimitada de controlar seus habitantes.” (DUARTE: 2014, p. 33).

Os espetáculos eram demonstrações de poder e força do Estado, era uma forma de apresentar ao povo o controle do monarca e a amplitude alcançada por ele, sem que com isso perdesse seu objetivo central que é controlar os “súditos”, de forma a não terem controle sobre a própria vida. Essa dependência gerada por este poder é claramente observável e transmitir esta dependência é o cerne de quem pretende controlar.

Neste ponto requerer justiça, ou equidade era totalmente desnecessário para o governante, afinal o suplício servia com outros propósitos e não somente a aplicação de uma pena. Era acima de tudo empreender a visão de predomínio, de disciplina, de controle.

A ideia de justiça estava longe de ser compreendida, estava distante de ser desejada e a busca do imediatismo e a retribuição por atos danosos ocupavam o desejo de quase todos. Como entender a justiça se ela não era propagada?

Para tanto cumpre construir o que começou a mudar neste conceito mal compreendido:

“A idéia de justiça é certamente o ponto de partida não apenas para a História do Direito, como também para o despertar da reflexão ética, nos primeiros tempos da vida histórica. Desde as sociedades mais primitivas, sempre houve a preocupação de instaurar normas e fixar princípios que asseguram não apenas a ordem, como também a sobrevivência dos grupos humanos.” (PISSARRA E FABBRINI, 2007, p. VII).

À medida que o tempo se passou e a mudança de segurança do poder central do monarca começou por ruir, as práticas extensivas de violência no suplício começaram por ser abandonadas dando lugar ao conceito de justiça restaurativa. Importava agora substituir o suplício por elementos que substituíssem e aplacasse o clamor popular. Mas o poder deveria ser mantido a todo custo, então as formas cruentas foram aos poucos sendo trocadas por penas de caráter menos aflitiva, ao menos visivelmente. Começou-se a repensar esta ideia de espetáculo para tornar menos público à aplicação da pena.

“Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos suplícios. Hoje existe a tendência a desconsiderá-lo; talvez, em seu tempo, tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com exagerada ênfase como “humanização” que autorizava a não analisá-lo. De qualquer forma, qual é sua importância, comparando-o às grandes transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, com regras unificadas de procedimento; o júri adotado quase em toda parte, a definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e essa tendência que se vem acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos culpados? Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.” (FOUCAULT: 2008, p. 12).

Os suplícios públicos começaram a deixar de existir na forma de penalizar o culpado e se passou há tomar seu tempo, não mais seu corpo como forma de sacrifício pelo mal causado. É de se pensar que este abandono do suplício, ou a pena impingida ao corpo deixou de existir porque seu resultado foi pífio, inexpressivo, não alcançou um dos objetivos centrais que era intimidar a prática delituosa. Com isso percebe-se que punir de forma exemplar não diminuiu a violência dos atos humanos, nem tampouco desenvolveu um senso de medo para continuar a praticar todos os atos criminosos.

A necessidade de repensar a forma como seria aplicada a pena aos que cometessem crimes passou a ser de suma importância, mesmo vergando o viés de perceber que o poder central tinha seu crédito em assim fazer, praticando os espetáculos, ficou claro que depois de todas as revoluções ocorridas esta prática não seria mais tolerada, e que o próprio governante poderia ser vítima da própria ânsia de vingança, a mudança passou a ser mais do que necessária, passou a ser iminente.

Fica evidente que havia diferenças entre alguns seres humanos dentro da sociedade, alguma inclinação para maldade, para o crime, para o delito. Agora se precisava chegar à forma como se deveria praticar o que começa a surgir com muita força: a justiça. O equilíbrio da justiça passava pela maneira como se ia buscar punir aqueles que se desviassem dos princípios e leis estabelecidas.

“Primeiro, os homens descobriram suas diferenças individuais. Depois, notaram ser impossível fundar sobre essas diferenças suas normas de conduta. E foi assim que chegaram a descobrir a necessidade de buscar um princípio que ficasse acima dessas diferenças. Dessa forma, a noção de justiça surgiu da necessidade de instaurar normas capazes não apenas de fixar os limites do uso da força e do exercício do poder, como também de restabelecer o equilíbrio nas relações entre pessoas.”(PISSARRA E FABBRINI, 2007, p. VII).

O exercício do poder passava agora pelas relações com as pessoas da sociedade, estabelecendo equilíbrio e equidade. O uso da força, demonstrações de dureza, de crueldade, sai de cena para entrar o uso do equilíbrio, da equidade, do justo sentido.

É perceptível que a própria população se cansou dos espetáculos de suplício e começou por esperar verificar certa bondade do poder dominador. A sede de sangue passa a ser substituído pela sede de justiça, os valores apregoados pelos pensadores, filósofos começam a assumir forma e a reivindicar o exercício da prudência, ao estabelecer a prática de como se deve cobrar a culpa das pessoas que são condenadas. Não bastava mais apenas apontar o culpado, aqueles que teriam que responder pelo crime, agora se observava a maneira como eles seriam tratados, o grau de civilidade empregado para torna-lo sociável, e como se daria este processo de ressocialização. Essa mudança de paradigma se deve aos novos valores empregados após a revolução francesa e a independência americana.

Com essa mudança de pensamento, a sociedade começa a avançar para não aceitação do emprego da força, do derramamento de sangue a qualquer tempo, e a retomada de uma vida plural em sociedade.

Rousseau dispõe de maneira absolutamente eficaz sobre esta ideia:

“Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria. Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a resistência, impedindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto. Essa soma de forças só pode nascer do concurso de muitos: sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação […].” (ROUSSEAU: 1999, p. 69).

Houve com isso apenas uma mudança na forma, não no projeto final de controle do poder central, mas mesmo assim esta mudança arquitetou algo mais sutil, mas leve em comparação com os grandes espetáculos proporcionados à época dos suplícios.

Cumpre notar as palavras que Foucault descerra ao tratar deste momento onde se repensa esta prática e a substitui por outra mais palatável, menos chocante:

“A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração.” (FOUCAULT: 2008, P. 12).

Havia é claro um longo caminho para descobrir o que se fazer para proporcionar a justiça as penas aos transgressores. Qual a medida certa? Como aplica-la de forma a servir de exemplo? Qual a dosimetria adequada? Como evitar excesso e mesmo assim servir de referencial para desestimular a novas práticas?

Considerando que a demonstração de poder estava ainda alicerçada e combalia à sombra do governante, nada mais salutar do que se instituir leis que ancorassem esta travessia sem tumultuar as pretensões de exercício de força e poder. As palavras de Montesquieu soam sonoras a este respeito:

“A experiência mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder faça parar o poder. Uma Constituição pode ser de tal modo que ninguém será obrigado a fazer coisas que a lei não obriga, nem será impedido de fazer as que a lei permite. Para o cidadão, a liberdade política é esta tranqüilidade de espírito que provêm da opinião que cada um possui de sua segurança. E, para que se tenha essa liberdade, é preciso que o governo seja de tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão.” (MONTESQUIEU, 1995, p. 118).

O poder sem controle é o desejo de todo governante, o sonho de realizar sem nenhum tipo de fiscalização seus projetos, sem haver sem censura e sem haver qualquer tipo de contrariedade, mas é claro que esta ideia deve ser solapada em sua nascente, uma vez a história demonstrar o que ocorre quando assim um governante é deixado sem reservas alguma.

Cumpre observar como se dá estas mudanças na seguinte citação:

“Percebemos uma mudança significativa calcada em novos mecanismos, em seus efeitos e também em seus princípios. Isso não significa imaginar que com essa arte de governar haverá um apagamento, supressão ou até abolição da razão de Estado, conforme apresentado. É uma forma de se adaptar e, dentro dessa adaptação se proteger usando esses novos mecanismos que lhe oferta a possibilidade de permanecer no governo, ou seja, no poder. A busca concentra-se em se manter governando. As mudanças chegam com novidades aqui e acolá, em mudanças na vivência social.” (DUARTE: 2014, p.39).

E como se pode construir este poder? Foucault respond

“Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo  como se começa a conhecer e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz.” (FOUCAULT. 2003, p. 114)

Desta forma se arquiteta a função do poder, sem a necessidade de repressão, censura exclusão ou impedimento, nesta máxima aparente de liberdade, de abertura se esconde o pior tipo de controle, pois, sem demonstrar seus tentáculos, o Estado assume como que invisivelmente manter tudo sob sua égide e mãos, sem, contudo precisar criar espetáculos. A mudança de postura é evidente e clara, assume-se um aspecto quase que democrático, propõe a liberdade, mas, no entanto está fiscalizando, controlando, dominando absolutamente tudo. Por isso, o saber é libertador, se impõe contra esta forma de governo, de regência invisível, destrona a possibilidade de imposição, de inibição disciplinar, Foucault apresenta dessa forma esta questão:

“Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa.” (FOUCAULT: 2003, p.171).

Esta espécie de controle é o mais danoso, pois não tem limites não mostra seus aspectos tolhendo seus cidadãos, sua aparência é dulcificada, quase inofensiva, mas por trás de toda esta aparência há um monstro sedento por sangue.

Sobra apenas à possibilidade de sentir seus efeitos, sua sede pela prática do poder sem limites, sua disciplina exacerbada. Este é sem dúvida o pior dos mundos.

Foucault apresenta sem sofismas esta questão e como se livrar das algemas que se impõe neste sistema:

“Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa” (FOUCAULT. 2003, p.171).

O saber em toda sua grandeza é libertador, proporciona condições de libertar dos grilhões do poder imposto pelo Estado. Mesmo que haja o recuo na questão do suplício do corpo, descortinando novas pretensões e um sistema diferente, a ideia central e constante é de controlar.

Foucault apresenta como o Estado se transforma para começar a exercer seu controle:

“O panoptismo é um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua em correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de normas. Este tríplice aspecto do panoptismo – vigilância, controle e correção – parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade. (FOUCAULT: 2005, p. 103).

*Panoptismo – sig. panóptico, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir, constitui uma ‘máquina’, idealizada por Bentham no século XVIII, cuja arquitetura é formada por uma torre central e uma construção circular periférica. Nesta se encontram indivíduos a serem vigiados – prisioneiros, loucos, escolares, trabalhadores, isolados em células, formando “uma coleção de individualidades separadas” – enquanto naquela se encontram os vigias. As salas da construção periférica são determinadas por janelas externas (por onde entra a luz) e por janelas internas (frente à torre central). E é justamente essa a eficiência do dispositivo panóptico: “ver sem ser visto”; à torre é possível ver tudo o que acontece no prédio externo, ao passo que este nem sabe se é, ou não, vigiado. “A visibilidade é uma armadilha”. As conseqüências são imediatas: separados pelas paredes – cada um em sua célula – os indivíduos são analisados individualmente. Já a possibilidade de serem vigiados a todo instante incita um sentimento de auto-regulamentação. Ou seja, o indivíduo constrói (ou assimila) uma série de condutas que permanecem dentro de um limite aceitável – o bom senso não é transgredido. Nas palavras do autor, o dispositivo induz “um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”, com um objetivo inicial, base representativa do panoptismo: disciplinar. (FOUCAULT: 2008).

**Panoptismo – segundo Foucault “é um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas. Este tríplice aspecto do panoptismo – vigilância, controle e correção – parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade”. (FOUCAULT: 2005, p. 103).

***Panoptismo – Foucault amplia sua ideia de panoptismo com a seguinte declaração: “Em uma sociedade como a sociedade feudal não se encontra nada semelhante ao panoptismo. Isto não quer dizer que em uma sociedade de tipo feudal ou nas sociedades europeias do século XVII não tenha havido instâncias de controle social e de punição e recompensa. Entretanto, a maneira pela qual elas se distribuíam era completamente diferente da maneira através da qual elas se instalaram no fim do século XVIII e no começo do século XIX. Vivemos hoje em uma sociedade programada, no fundo, por Bentham, uma sociedade panóptica, sociedade onde reina o panoptismo”. (FOUCAULT: 2005, p.103).

A busca pela informação correta, pela liberdade, por justiça não deve deixar de fazer parte da história mais cara do homem. Se recuar aceitar imposições desproporcionais é de suma importância, para tanto, as palavras de Bobbio reflete bem este espírito empreendedor:

“(…) direito do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhe são reconhecidos alguns direitos fundamentais. (…) Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”  (BOBBIO: 1992, p. 68).

Começa a aparente era dos direitos, onde a busca de garantias fundamentais arregimentando soluções mais pacificas, e menos conflitosas estendendo benefícios de um processo mais coeso voltado à busca do ser humano na sociedade, e dando a parcial visão de transparência e cuidado da pessoa humana.

Na visão Foucaultiana todo este cuidado era estritamente calculado e pensado para parecer algo onde demonstrasse certa mudança da sociedade, contudo, o mesmo controle anterior e disposição de se manter a disciplina desejada seriam mantidos sem parcimônia alguma. O texto Foucaultiano continua a destilar a forma como toda esta mudança se daria:

“Mas se analisarmos de perto as razões pelas quais toda a existência dos indivíduos se encontra controlada por estas instituições, vemos que se trata, no fundo; não somente de apropriação, de extração da quantidade máxima de tempo, mas também, de controlar, de formar, de valorizar, segundo um determinado sistema, o corpo do individuo. Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, poderíamos mostrar que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire uma significação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como o corpo capaz de trabalhar.” (FOUCAULT, 2005, p. 119).

Se faz necessário se dizer que a LEP( Lei de Execução Penal) no seu art. 31, caput, aqui no Brasil determina que todo preso deve trabalhar, assim reza o texto legal: “O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade”. (Curiosamente, por motivos incompreensíveis, os presos aqui no Brasil, em quase sua maioria não trabalham).

 O governo não deixaria sua disposição em controlar tudo e todos, apenas daria uma pequena abertura como demonstração de evolução, mas mantendo as rédeas totalmente em suas mãos.

“Relações de poder, não relações de sentido. A História não tem sentido, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrario, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas.” (FOUCAULT. 2003, p. 05)

As relações de poder que o Estado defende e mantém está acima do interesse humano, está voltado a manter a todo custo seu poder expandi-lo, sem nenhuma cerimônia, o que afinal parece ser uma constante na história da humanidade. Um poder controla a maioria das pessoas, enquanto sobrevive acima de qualquer julgamento, parâmetro e ou qualquer prestação de contas. Por mais que se possa ver certa mudança da monarquia para a República, os resquícios reais, monárquicos ainda podem ser vistos e sentidos.

Os detentores do poder se sentem como deuses, como onipotentes, pois o poder ensoberbece, embriaga seus ocupantes de cargos como se eles fossem invencíveis e estivessem acima do bem e do mal.

A história comprova isso de forma absoluta, não há quem tenha ocupado o posto mais alto de um país que em algum momento, ou em todo ele tenha se comportado como Imperador.

Esta convivência com o poder inebria do mais simples ao mais orgulhoso, ao mais humilde ao orgulhoso, todos sucumbem a seu vitupério. Não há quem escape, todos são engolidos e devorados.

3. Tecnologia do Poder Punitivo

 Uma vez acabado a época dos suplícios havia necessidade de se reformular a aplicação da pena, agora contando com o tempo daqueles que transgredissem as leis, os recolhendo ao cárcere, e tomando seu tempo como forma de punição. Analisando com acuidade este momento da história, não escapa ao filósofo a sensibilidade de perceber o que realmente estava acontecendo:

“Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. E a “reforma” propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.” (FOUCAULT: 2008, p. 69 e 70).

Havia ciência de que só esta manutenção da pessoa em cárcere não seria suficiente para desconstruir a ideia de punição ao corpo, veja o que o texto Foucaultiano apresenta neste período.

“O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e “humanidade”. Na verdade, tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva. Redução de intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente. Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo: Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo” (FOUCAULT: 2008, p. 18)

Como se pode ver pelo que o filósofo afirma a mudança era apenas de objetivo, ou seja, aparente, não visceral, não transformadora nem muito menos redentora. A figura humana ainda é tratada como objeto, o crime ainda possuía rosto, só não se faz mais os espetáculos sangrentos, suplícios públicos, estes atuam na esfera do coração, do intelecto, da vontade, como se escreveu “que o castigo […] fira mais a alma do que o corpo”. Desta feita a trajetória deixa de ser sangrenta e cruenta para ser desmoralizadora aviltante a pessoa, rompendo com a dignidade de quem sofrerá tal pena, que roube a paz, qualquer possibilidade de virtude, de equilíbrio, que destrua a dignidade em sua íntima relação com a mente e o corpo, que não sobre nenhuma faísca de humanidade, que transforme a pessoa num condenado marcado pela sociedade. Em suma Foucault evoca a forma como o poder agora atua sobre o corpo:

“Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atividades, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana. O século XVIII encontrou um regime por assim dizer sináptico de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre o corpo social.” (FOUCAULT: 2008, p. 131).

Ora, diante disso, qual a diferença do suplício público que poderia conduzir a morte e tal situação aviltante? A morte da pessoa levada ao cárcere é social, não carnal. E os efeitos desta morte social certamente se estenderia a toda sua família. Percebe-se que a mudança enfim não trouxe lenitivo? Percebe-se que a pseudo mudança de padrão não trouxe solução?

[…] “a prisão foi o grande instrumento de recrutamento. A partir do momento que alguém entrava na prisão se acionava um mecanismo que o tornava infame, e quando saía, não podia fazer nada senão voltar a ser delinquente. Caía necessariamente no sistema que dele fazia um proxeneta, um policial ou um alcaguete. A prisão profissionalizava.” (FOUCAULT: 2008, p. 133).

O problema continua tão vivo como sempre foi à medida redirecionada não altera a condição, não consegue estabelecer se quer a possibilidade de uma transformação social, o que se vê pura e simplesmente é a troca de um castigo pelo outro, de uma punição por outra, sem ao menos se preocupar em tratar do problema em si, mas afasta-lo do seio da sociedade, como em todos os tempos se fez.

Qual a origem do problema crime? Por que as pessoas continuam a delinquir? O que leva uma pessoa a despeito do que se apregoa na sociedade buscar uma vida de crimes? Como diminuir esta contínua ascensão? Quais mecanismos poderiam se buscar para ressocializar uma pessoa contumaz na prática do crime?

O que se vê desde sempre é a despreocupação com estas indagações, trocando possíveis soluções por simples contorno do problema, encarcerar, tirando o individuo de circulação e saciar o descontentamento popular com este incomodo. Simples assim!

Descrevendo este problema crônico, Foucault, levanta a situação de forma real e sem rodeios:

“Que as punições em geral e a prisão se originem de uma tecnologia política do corpo, talvez me tenha ensinado mais pelo presente do que pela história. Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo. Os objetivos que tinham, suas palavras de ordem, seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa de paradoxal. Eram revoltas contra toda uma miséria física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação e o excesso de população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas eram também revoltas contra as prisões-modelos, contra os tranqüilizantes, contra o isolamento, contra o serviço médico ou educativo. Revoltas cujos objetivos eram só materiais? Revoltas contraditórias contra a decadência, e ao mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas, e ao mesmo tempo contra os psiquiatras? De fato, tratava-se realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos: como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX. O que provocou esses discursos e essas revoltas, essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas, essas ínfimas coisas materiais. Quem quiser tem toda liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas. Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” — a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras — não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos. É desta prisão, com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história.” (FOUCAULT: 2008, p. 29).

Nas palavras de Foucault o que estava em jogo “era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder”, o importante nesta mudança era se conservar o que sempre este em jogo: o poder. A mudança de instrumento onde pudesse controlar e se manter o corpo sobre “a tecnologia do poder”.

“O termo controle aparece no vocabulário de Foucault de maneira cada vez mais frequente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro momento, uma série de mecanismos de vigilância que aparecem entre XIX e que têm como função não tanto punir o desvio, mas corrigi-lo e, sobretudo, preveni-lo: ‘Toda a penalidade do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo que fazem os indivíduos – está ou não em conformidade com a lei? – mas sobre aquilo que eles podem fazer, que eles são capazes de fazer, daquilo que eles estão sujeitos a fazer, daquilo que eles estão na iminência de fazer ’. Essa extensão de controle social corresponde a uma ‘nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola’: é a formação da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar os fluxos e a repartição espacial da mão de obra, levando em consideração necessidades da produção e do mercado de trabalho, que torna necessária uma verdadeira ortopedia social, para a qual o desenvolvimento da polícia e da vigilância das populações são os instrumentos essenciais.” (REVEL: 2005, p.29).

Como se pode perceber o que estava em questão era a velha máxima o controle para ostentar a necessidade de se manter um poder central, um conjunto de construção arquitetônico onde só se pudesse concentrar toda disciplina regida por um único centro de comando.

Conseguir se chegar ao âmago do poder, estudar, pesquisar o que leva ao crime não era sobremaneira importante, mas ostentar e dar a impressão de garantia de manutenção da sociedade, por que tentar acabar com o crime, se ele gera dividendo? Por que gastar tempo e dinheiro em diminuir a ação de criminosos se eles serviriam para demonstrar a força do Estado? Por que se buscaria solução em aplicar recursos para ressocializar se esta bandeira retorna como forma de se manter um controle central? Enfim, por que acabar com a violência se ela cria a insegurança dos povos, a ponto de construir um sentimento de necessidade de se ter um governo?

A tecnologia do poder percebe esta questão e trabalha com ela para que dê muitos frutos, não importando que para isso seja necessário se arquitetar planos mirabolantes e gastos aos milhões para a manutenção da segurança. O que realmente importa, o que passa a ser necessário é a falsa sensação de tranquilidade de se manter este ou aquele governo, afinal, a proposta de manter a “paz” é o que busca o ser humano desde seus primórdios. 

Se há um crime alguém tem que se punido, para estabelecer a sensação mesmo que breve de punição, Foucault descreve de forma sublime esta ostentação:

[…]” se tornou indispensável pelo funcionamento da penalidade do século XIX. Tornou-se necessário por este álibi, que funciona desde o século XVIII, que diz que se impõe um castigo a alguém, isto não é para punir o que ele fez, mas para transformá-lo no que ele é. A partir deste momento, atribuir juridicamente uma pena, ou seja, proclamar a alguém ‘vamos cortar sua cabeça, atirá-lo na prisão, ou mesmo simplesmente aplicar-lhe uma multa porque você fez isto ou aquilo” é um ato que não tem nenhuma significação. A partir do momento em que se suprime a ideia de vingança, que outrora era atributo do soberano, do soberano lesado em sua própria soberania do crime, a punição só pode ter significação numa tecnologia de reforma.” (FOUCAULT: 2008, p. 138). 

É bem verdade que tal compreensão soa cínica demais para ser verdade, é claro que tal digressão apresenta quase que um fundo cinematográfico, quase uma história de super herói, mas será que esta não é a máxima a ser compreendida? Será que inconscientemente não é o que se vende como se fosse uma mensagem subliminar?

Hobbes trata deste aspecto em seu livro Leviatã:

“Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum.” (Hobbes: 1979, p. 135).

Esta dissecação de Hobbes de que “a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los”, dá a exata noção de como funciona a questão de proteção dentro do governo. Enquanto as pessoas que vivem em um Estado se sentem seguras, elas compreenderão a necessidade de se manter aquele soberano, acabando esta sensação, deixando de existir, o detentor do poder deixará de ser importante e o que se verá é a necessidade de substituí-lo, ou deixar este o governo. O poder dura exatamente o tempo que se demonstrar necessário, não mais que isso.

Com isto em mente fica mais claro entender o que Foucault queria dizer ao se referir ao soberano:

“A forma secreta e escrita do processo confere com o principio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um poder exclusivo. Ayrault supunha que esse procedimento (já estabelecida no que tange ao essencial no século XVI) tinha por origem o medo dos tumultos, das gritarias e aclamações que o povo normalmente faz, o medo de que houvesse desordem, violência e impetuosidade contra as partes talvez até mesmo contra os juízes; o rei quereria mostrar com isso que a “força soberana” de que se origina o direito de punir não pode em caso algum pertencer à “multidão”. Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar.” (FOUCAULT: 2008, p. 32,33). (grifos nossos).

A “força soberana”, “justiça do soberano”, “todas as vozes devem-se calar” é a constatação de ostentação de esse poder imanente pretendido pelo soberano. É como se este poder estivesse acima de qualquer coisa, fosse quase divino, onipotente, indelével, superior. Com esta prática contumaz o soberano conseguia se mantiver no poder, acaba-se esta sensação entre o povo e o fim do reinado estava decretado, daí ser de suma importância se manter este controle surreal, não dando espaço algum para outros pensamentos que não de dependência total deste poder central.

“Na segunda metade do século XVIII, este sistema de tolerância muda. As novas exigências econômicas, o medo político dos movimentos populares, que vai se tornar lancinante na França, depois da Revolução, tornam necessário um outro esquadrinhamento da sociedade. Foi preciso que o exercício do poder se tornasse mais fino, mais estreito, e que se formasse, desde a decisão tomada centralmente até o indivíduo, uma rede tão contínua quanto possível.” (DROIT: 2004, p. 46).

Com isto em mente fica claro que toda manutenção deste poder e seu estado de coisas dependia de certa necessidade premente, ora existindo violência, havendo descontrole, insegurança, o soberano era mais do que necessário, era desejado, almejado e uma figura indispensável para que o Estado gozasse de tranquilidade, demonstrar poder audaz, força na execução de sentenças, aprisionar as pessoas sob um manto de certeza era todo objetivo deste que desejava estar no poder.

Hobbes continua suas considerações sobre a necessidade do soberano e como fazer com que ele possua condições de cuidar da população:

“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de trans­ferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes, (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.” (HOBBES, 1974, p. 110) (destaques nosso).

É salutar apreciar o que Thomas Hobbes aponta como única solução para defender as pessoas é o estabelecimento de “um tal poder”, que traga segurança e paz a população. Ele continua dizendo que deve se escolher um homem, que represente a todos considerando ele como capaz de promover e disseminar a tão sonhada tranquilidade entre os homens e com palavras quase que impensadas ainda descreve, como isso deve ser feito: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações, é uma procuração com plenos poderes para agir, transigir, coordenar, decidir o que é melhor para a vida de todos. Como ideal é quase que necessário, porém, o grande problema é o que tal homem faz quando está de posse desse poder, e não é um simples poder ele é grande suficiente para desviar a atenção, para se tornar egoísta e imprudente. Por isso se pergunta, quais são de verdade seus planos e projetos, quais são as medidas a serem atingidas? Há realmente interesse em buscar o bem comum? Ou aquilo que realmente interessa ao homem comum? Fará ele àqueles que depositaram este poder em suas mãos o que desejam ou, será seus projetos pessoais mais importantes que o coletivo?

O que se pode perceber com o tempo é ser a concentração do poder danosa, dando ares de não ter quer prestar contas, não ter que explicar suas ações e pior, agir como se tudo que fizesse estivesse dentro da normalidade. É importante salientar que o poder transferido do povo a um governante é representativo não com a atmosfera de soberania, onde seus atos não podem ser inquiridos, ser contestados. O atual sistema é representativo e como tal depende da vontade popular, do projeto maior que é de atendimento ao conjunto, ao todo e não a uma parte da sociedade.

Tércio Sampaio Ferraz em sua obra Estudos de Filosofia do Direito, assim apresenta a questão:

“Nesse sentido, a primeira característica de uma relação de poder é que ele se dispensa de produzir as condições de sua instauração e de sua perpetuação. Quando essas condições ocorrem o poder é legítimo, isto é, está apto a transmitir desempenhos seletivos. […] Ou seja, a relação de poder é assimétrica, pois só um lado pode desconfirmar o outro só aceita ou nega. E essa possibilidade unimaterial não necessita de justificação (vale), pois uma autoridade que precise justificar-se perdeu a autoridade: por isso, o detentor se baseia, mas não precisa invocar nem tradição nem positivação. Entende-se assim que uma relação de autoridade sempre escamoteia, dissimula as relações de força que estão em sua base, agregando sua própria força àquelas relações.” (FERRAZ: 2003, p. 61).

A legitimação do poder se dá através das condições de sua instauração, ocorrendo quando há esta relação assimétrica. Essa é unilateral, dispensando justificativas, pois este poder se baseia na força.

O povo renova, oferece e mantém tacitamente este poder sem cobranças ou questionamentos entendendo que ele fará todo o necessário para construir o bem comum. Se há uma dependência tal que se necessite de mais tempo para esta instauração, será dado, por essa necessidade primal ter sido criada, alimentada e transposta a população como um vício, tornando-a dependente e aquiescente de tal forma de governo, em outras palavras como bem afirma Tércio Ferraz; […] “Entende-se assim que uma relação de autoridade sempre escamoteia, dissimula as relações de força que estão em sua base agregando sua própria força àquelas relações”.

4. A política do direito de punir

 O Estado como ente soberano e absoluto, decretou sua capacidade de punir usando da figura do Rei, se o monarca podia tudo, isso seria apenas mais uma das suas atividades.  Embora novos tempos tenham surgido, a herança de onipotência foi mantida e tem sido sustentada ao longo dos anos. A punição a toda sorte de transgressão pertence ao poder central que define como será.

O suplício foi sendo substituído por outras formas menos sangrentas de punir, sem publicamente se demonstrar ser sanguinária a pena aplicada. A política de punir foi dando espaço para a prisão que passou a ser uma ferramenta comum e indispensável.

Foucault comenta esta transformação vertendo sua visão desta nova prática.

“Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quando a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O fracasso foi imediato e registrado quase que ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afunda-los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica delinquente, mas os delinquentes são úteis tanto no domínio econômico como no político. Os delinquentes servem para alguma coisa.” (FOUCAULT: 2008, p.131,132).

Como se pode observar não é algo novo o fracasso das cadeias, remonta 1820 e se demonstra que nos primórdios não houve melhora do prisioneiro, pelo contrário há a afirmação taxativa que sempre se produziu dentro das prisões mais criminosas ao invés de reduzir o surgimento de novos indivíduos com esta prática.

Não é difícil imaginar a razão primária, um ambiente onde a violência é prestigiada, onde se valoriza a lei do mais forte, onde só sobrevive aquele que usa da força, seria quase impossível se esperar mudança no comportamento de quem entra ali já inclinado à violência.

Cumpre observar a forma como se apresenta PODER e VIOLÊNCIA, como se distinguem na aplicação de seu exercício:

“Violência e poder, não são a mesma coisa. […] O poder é um saber fazer e violência é uma ação que está dirigida para suprimir ou destruir o outro. O poder é:“ uma ação, uma potência, atividade para modificar; um ato verdadeiramente intersubjetivo, que leva a modificar os sujeitos em relação com a sua identidade, porque um sujeito impor sua presença19 é inerente. São movimentos de imposição, recíprocos onde um sujeito deixa sua marca no outro e o coloca em uma nova subjetividade. E se a marca existe nos força a fazer algo com ela: recebê-la, modificá-la e modificar a si mesmo.” (BERENSTEIN: 2006, p 4).

Uma simples observação desde tempos do castigo na forma de suplício para o castigo do tempo mantendo prisioneiro aquele que comete crimes, não resultou em mudanças para sociedade, o crime continuou campeando por todo tecido social, e pelo que se pode perceber só aumentou, não diminuiu em momento algum, nem na época do suplício, nem tão pouco nos tempos atuais, é peremptório seu crescimento e transformação, hoje existindo uma multiplicidade de crimes em sua forma, jamais vista antes e passando pelo chamado “crime organizado”. Para efeito de classificação e compreensão do que vem a ser crime organizado, há entre os doutrinadores que assim classifica e posiciona esta questão: “estrutural (número mínimo de pessoas integrantes), finalístico (rol de crimes a ser considerado como de criminalidade organizada) e temporal (permanência e reiteração de vínculo associativo)”. (Araújo Silva: 2003, p. 34). Diante desta estrutura se pode chegar ao que se pode considerar como crime organizado e seus tentáculos na sociedade.

Para melhor entender esta nova fase cumpre verificar o que se conceitua como “crime organizado”.

“O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um intricado esquema de conexões com outros grupos delinquenciais e uma rede subterrânea de conexões com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os Poderes do próprio Estado.” (GOMES, 1997, p. 75)

Com a ascensão do crime organizado fica evidente a derrota do Estado para o crime, afinal este hiato criado, escancara as entranhas do poder que deveria evitar esta situação a todo custo e que acabou por perder, permitindo tacitamente que tal poder paralelo surgisse e criasse fôlego a ponto de desafiar como se pode ver o Estado como instituição, como aquele que representa a segurança, e se curva a este poder chegando a até transacionar, dialogar e estabelecer uma convivência quase de convivência mínima.

Uma demonstração clara se pode encontrar no livro de Amorim; CV_PCC :

“A irmandade do crime, que assim expõe a organização criminosa: […] Subestimado pelo governo, que não conhece a realidade das cadeias, o PCC criou raízes em todo o sistema carcerário paulista. Nas prisões, diretores ultrapassados, da época repressão [no regime militar], tentavam resolver o problema de maneira que em foram doutrinados: porretes, choques, água fria, porrada … Não foi suficiente. Em menos de três anos, já eram três mil. Em menos de dez anos, 40 mil.” (AMORIM: 2004, p. 375).

Este quadro é bem esclarecedor de como a simples cadeia tem criado ramificações para mais e piores crimes, não impede o crescimento e ainda possibilita a criação de novas modalidades que a cada dia surge sem controle daquele que deveria oferecer à base de segurança a sociedade.

A política do poder de punir do Estado não está sendo suficiente e nem eficiente, há uma falência rudimentar na base da segurança pública, o discurso e a forma de aplicar a pena aos culpados não surte efeito. As cadeias não reabilitam, e quando estes presos saem, encontram uma sociedade que não os aceitam, e o ciclo volta. Por isso, a criação do crime organizado foi tão pródiga, encontrou um ambiente propício para sua existência e líderes que conseguem organizar ações e promover o caos.

Um resumo de como foi estes ataques à soberania do Estado e sua vertente de punir:

“Há seis anos, em 11 de maio, a Secretaria de Administração Penitenciária decidiu transferir 765 presos para a penitenciária 2 de Presidente Venceslau após escutas telefônicas terem levantado suspeitas de que facções estariam planejando rebeliões para o Dia das Mães, que ocorreria dali a dois dias. No dia seguinte, após a transferência do líder do PCC Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, motins foram realizados em penitenciárias do Estado de forma articulada. Na noite do dia 12 de maio, integrantes da organização criminosa deram início ao maior atentado contra as forças de segurança pública do Estado da história. Essa ação deixou mais de 20 mortos. Delegacias, carros e bases da Polícia Militar, Polícia Civil e metropolitana e até o Corpo de Bombeiros foram atacados. No dia seguinte, a onda de ataques foi intensificada e ocorreram atentados no litoral e interior de São Paulo.” (http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2012-06-24/em-2006-onde-de-ataques-amedrontou-sao-paulo-relembre.html).

E o caos criado nesta mancha negra da história nacional terminou com um saldo tremendamente ruim, o Estado se ajoelhou diante da organização e desde então não conseguiu mais vencê-la.

Os jornais da época relataram o saldo final deste atentado:

“Sexta-feira, 12 de maio: anoiteceu em São Paulo. E iniciava-se a maior onda de violência já promovida no Estado por uma facção criminosa, o PCC (Primeiro Comando da Capital), conhecido entre os detentos como o "Partido". Em oito dias, o governo contou 373 ataques. Oficialmente, 154 pessoas morreram, sendo 24 PMs, 11 policiais civis, nove agentes penitenciários, 110 cidadãos – 79 deles suspeitos de ligação com o PCC. Tratava-se de uma resposta da facção a uma tentativa da polícia de isolar seus principais líderes em presídios de segurança máxima no interior do Estado, num total de 765 presos removidos. Na mesma sexta-feira, oito detentos – apontados com o núcleo da facção – foram levados à sede do Deic (Departamento de Investigações sobre Crime Organizado), na capital paulista. Já na sexta-feira, em todo o Estado ocorreram rebeliões em 24 unidades. Internos da Febem também se rebelam. Articulados, homens abriram fogo contra bases da Polícia Militar, da Guarda Civil Metropolitana, viaturas, delegacias, Grande São Paulo e interior. Ocorreram ataques também a endereços comerciais, agências bancárias, estações de Metrô e ônibus, incendiados pelo Estado. Outras duas séries aconteceriam em julho e agosto, ambas com menor intensidade em relação a maio.Durantes as ações, a população de São Paulo viu o comércio baixar as portas, escolas e universidades cancelarem aulas, expediente encerrado mais cedo, shoppings fechados. O comércio registrou queda nas vendas de 90%. A pressa do paulistano ganhou outros contornos. Havia ansiedade de chegar em casa. A vida noturna da capital deixou de existir. Tradicionalmente congestionadas, as principais vias da cidade ficaram intransitáveis bem antes do horário do "rush". Pessoas espremiam-se ainda mais no metrô e em ônibus, outros alvos da facção. São Paulo parou… Nas manchetes da imprensa internacional.”(http://noticias.uol.com.br/ultnot/retrospectiva/2006/materias/pcc.jhtm).

Num ambiente deste instalado não é incomum, surgir defensores da volta da pena retributiva onde o condenado deve pagar numa proporção que vingue o crime cometido. Neste momento é importante lembrar que o Direito não tem a função de vindicar justiça por atos praticados, mas a justiça retributiva a que tantos lutaram ao longo dos séculos, foi exatamente para deixar longe do alcance a menor possibilidade de se voltar a um momento onde a justiça clamava por sangue e que os espetáculos assumiam uma parte importante na vida social. O avanço que se conseguiu alcançar para deixar afastado este tempo, não pode prescindir de todas as conquistas para devolver o desejo de “olho por olho, dente por dente”, de Talião. 

As penas cruéis e sangrentas matava o espírito humano. Após a prática dos castigos e o emprego implacável das penas nada mais sobrava da pessoa que passava pelo suplício. E como esperar que tanto aqueles que passavam por estas barbáries e aqueles que assistiam a este espetáculo pudessem manter a humanidade, se a menor possibilidade desta condição havia sido totalmente retirada? Quando se apaga a fagulha que nos diferencia dos irracionais, não será mais possível exigir comportamento diverso.

Inaugura-se após este período a manutenção do poder do Estado agora sob nova égide a “era dos castigos incorpóreos” (Foucault: 2008, p.85), o projeto político de se manter com a temeridade dos habitantes se mantém, pois entende ser esta a única forma de controle possível.

Cumpre observar como se dará este desdobramento:

“Essa semiotécnica das punições, esse “poder ideológico” é que, pelo menos em parte, vai ficar suspenso e será substituído por uma nova anatomia política em que o corpo novamente, mas numa forma inédita, será o personagem principal. E essa nova anatomia política permitirá recruzar as duas linhas divergentes de objetivação que vemos formar-se no século XVIII: a que rejeita o criminoso para “o outro lado” – o lado da natureza; e a que procura controlar a delinquência por uma anatomia calculada das punições. Um exame da nova arte de punir mostra bem a substituição da semiotécnica punitiva por uma nova política do corpo.” (FOUCAULT: 2008, p. 86).

Conclusão:

Este não é um problema que oferece soluções fáceis e rápidas. A pretensão deste trabalho é oferecer um ferramental para reflexão e visita ao passado de tratamento cruel e sanguinário. Mesmo tendo toda dureza hoje exigida os problemas com o crime não melhorou, não acabou e nem tampouco se há notícia se quer que em algum momento da história da humanidade que tal situação tenha ocorrido.

Diante disso e percebendo hoje países como Suécia, Noruega e Islândia onde a criminalidade é muito baixa, cumpre o observar o que levou estes países a conseguirem tal feito.

Muitos quadros e respostas podem surgir, porém é de primal importância perseguir fatores que contribua para o progresso da sociedade e não sua desvalorização e regressão aos tempos passados.

Não se trata de uma defesa alucinada dos Direitos Humanos, mas de propor algo funcional ao invés do mecânico e fracassado. Está lançado o grande desafio, de não empurrar o problema criminal apenas para dentro do castigo (ou rigor nas penas), mas de enfim perceber o problema como algo pungente e se cercar de possibilidades melhores para resolvê-lo.

Referências:
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HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção Os Pensadores. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Editora Abril: São Paulo, 1974.
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Informações Sobre o Autor

Marcos Antônio Duarte Silva

Doutorando em Ciência Criminal UBA Mestre em Filosofia do Direito e do Estado PUC/SP Especialista em Direito e Processo Penal formado em Direito e Teologia Professor de Processo Penal e Direito Penal da Faculdade de Rondnia FARO Professor de Pós-Graduação da UNIJIPA pesquisador da PUC/SP e da CNPq


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